Você está na página 1de 340

A estranha morte de um político

Um romance criminal

Terra bô sabê!

Domingos Barbosa da Silva


A estranha morte de um político

Domingos Barbosa da Silva 1


A estranha morte de um político

   

Domingos Barbosa da Silva 2


A estranha morte de um político

Domingos Barbosa da Silva 3


A estranha morte de um político

A estranha morte de um político


Um romance criminal

Domingos Barbosa da Silva

Alpha-Beta-Sigma - Norway

Domingos Barbosa da Silva 4


A estranha morte de um político

Fotografias: do autor
Tipo de letras: calibri 12
1ª. Edição: Setembro 2019
Proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem prévia
autorização da editora.
Contacto: domingosdidi@gmail.com
Todos os direitos reservados

Capa: Domingos Barbosa da Silva


ISBN 978-82-992928-7-0

Domingos Barbosa da Silva 5


A estranha morte de um político

Para a minha mãe, Teresa Barros da Silva (Didi), aos


seus 100 anos de idade, minha conselheira, uma
verdadeira amiga que me escuta a toda hora; e para o
meu falecido pai, Manuel Vieira Barbosa da Silva
(Irene), por tudo que fez por mim.

Domingos Barbosa da Silva 6


A estranha morte de um político

Domingos Barbosa da Silva 7


A estranha morte de um político

Domingos Barbosa da Silva 8


A estranha morte de um político

Conteúdo
Um encorajamento ..........................................................................................................................13
Prefácio .......................................................................................................................................15
Introdução ..................................................................................................................................17
O que é uma ideia? .....................................................................................................................19
Uma tarde tenebrosa..................................................................................................................23
Um Poema estirado na areia ......................................................................................................23
Um dia agitado............................................................................................................................29
Hotel Crioulândia! .......................................................................................................................64
As lições de Paín .........................................................................................................................80
Uma tertúlia de amigos ..............................................................................................................87
Escapadela ..................................................................................................................................95
Antes do disparo da bala mágica ..............................................................................................109
Os documentos .........................................................................................................................151
Marta e Fátima .........................................................................................................................153
Um encontro desagradável ......................................................................................................165
Sobre a igreja satânica – Aquiles, o chefe ................................................................................167
Um investigador de poucas palavras ........................................................................................171
Diogo, Sombra, Penumbra, Dário e Aquiles .............................................................................175
O guardador de Projectos.........................................................................................................183
O ano que mudou o mundo e o futuro de Cabo Verde............................................................186
A ti meu amigo ..........................................................................................................................190
O pequeno mundo de Djonzinho .............................................................................................192
A primeira audiência .................................................................................................................198
A audiência de Badiu Boxero ....................................................................................................208
A audiência final – o julgamento ..............................................................................................214
Marta e Fátima (10 anos depois) ..............................................................................................228
Anno vigesimo...........................................................................................................................236
A investigação – uma responsabilidade do Estado ..................................................................240
Djonzinho num simples raciocínio............................................................................................246
As espectativas de Marta .........................................................................................................252
Pressentimento.........................................................................................................................274
Um caso esquecido ...................................................................................................................278
Habeas data ..............................................................................................................................282
O mistério de Quebra-Canela, a prisão do suposto assassino e a aproximação da resolução do
caso ...........................................................................................................................................298
Segunda-feira, 19 de Setembro, 2005 ......................................................................................308
A trompeta do silêncio .............................................................................................................310
Um Silêncio perturbador ..........................................................................................................310
Gemidos de Quebra-Canela......................................................................................................311
Indiferença ................................................................................................................................312

Domingos Barbosa da Silva 9


A estranha morte de um político

Uma lembrança ........................................................................................................................312


Prece por uma estátua anónima ..............................................................................................313
Zanga.........................................................................................................................................314
Porton d’nós ilha.......................................................................................................................314
Alto Cutelo ................................................................................................................................315
Terra Bô Sabê ............................................................................................................................316
Biografia de Renato Cardoso ....................................................................................................325
A biografia do autor ......................................................................................................................333

Domingos Barbosa da Silva 10


A estranha morte de um político

Um homem chamado Renato Silos Cardoso estava a ser incómodo para muita gente
e, por isso, devia ser excluído dentre os vivos.
Numa tarde de Setembro de 1989, disparou um revólver em Quebra-Canela. Numa
outra em 2009, duas amigas, juntaram-se para recordar um amigo comum, que foi
morto a tiro e que fazia neste preciso ano, vinte anos depois da sua morte. A tarde
toda foi usada para reflectir sobre os possíveis atalhos do crime cometido e quem o
cometeu, sobretudo, para satisfazer a vontade própria e a do povo cabo-verdiano.
Um homem bem-trajado de nome Nero, ocupara um quarto seguro na cidade da
Praia, com vista para o Seminário de São José. Dispunha de um aposento bem
apetrechado, com um estilo ultramoderno. Acabara de se barbear e usava um
perfume de marca francesa…
Na Cidade Velha, dois dos satanistas, Aquiles e Diogo discutiam sobre a melhor
forma de esconder os documentos. Não só pelo valor que representam, mas
também, porque podem vir a servir como relíquias no futuro. A expressão Porton
d’nós Ilha, reflecte algo de muita importância para a vítima de toda esta
engrenagem.
Badiu Boxero surgiu no dúbio cenário para justificar a morte executada por um
outro, para preencher a lacuna existente e impor um silêncio desconfortável para
confundir a opinião pública.

Domingos Barbosa da Silva 11


A estranha morte de um político

Domingos Barbosa da Silva 12


A estranha morte de um político

Um encorajamento

Parabenizo-o pela coragem de escrever sobre o assunto e por trazer à memória de


todos o que Renato Cardoso representa para Cabo Verde, concedendo também, aos
que não tiveram o privilégio de o conhecer, a oportunidade de se inteirarem da
pessoa que foi, dos seus valores e dos sonhos que comandaram a sua vida. Esta é,
sem dúvida, uma excelente forma de o homenagear, de manter viva a sua essência
e o maior hino à amizade.
Espero que a publicação de uma obra deste cariz, não esteja, nos dias de hoje, sujeita
a qualquer tipo de perseguição ideológica no seio da sociedade cabo-verdiana,
podendo qualquer pessoa expressar livremente o seu ponto de vista em relação ao
sucedido.
Agradeço a oportunidade que me concedeu da leitura de uma obra de tamanha
envergadura e pelo respectivo enquadramento quanto ao personagem Nero e à
relação dele com o marido de Judith.

Daniela Lemos Veríssimo

Domingos Barbosa da Silva 13


A estranha morte de um político

Domingos Barbosa da Silva 14


A estranha morte de um político

Prefácio

Este romance é da minha autoria, baseado em factos reais, onde a fantasia procura
tocar a realidade. Ele é apoiado por investigações privadas e pelo livro A Bala Mágica
que matou Renato Cardoso. A estranha morte de um político é, portanto, um caso
criminal – um brincar com o pensamento na zona intersticial situada entre a ficção
e a realidade, a fantasia e os factos. Contém também, acontecimentos verídicos,
baseados em documentos amplamente divulgados e conhecidos do público, todos
eles envoltos em obscuros véus de mistérios, enlaçados em intrincados nós que
apenas deixam transparecer os contornos desfocados da realidade. Algures foi
urdida uma emaranhada teia de segredos, deliberada e/ou planeada, o que ocultou
muitas informações que nos pudessem levar a um desvendar do assassinato. Esses
traços nebulosos dificultaram o afastamento do manto de silêncio que deixou atrás
de si um longo rasto de pistas contraditórias.
Não pretendo resolver nem desvendar o mistério relacionado com o assassinato de
há mais de trinta anos. Coloco-me, simplesmente, no meu mundo de fantasia, ponho
um radar social na mente para escutar o que foi dito e feito nas últimas três décadas
no solo natal sobre um acontecimento hediondo e dei azo ao que pessoas
entendidas me relataram. Um acontecimento que merece uma melhor atenção. A
minha intenção é fundir ou juntar as linhas que existem entre a ficção e a não-ficção,
entre a poesia e a prosa, entre o espírito e a mente, entre o corpo e a alma e entre
a biografia e a política dum indivíduo altamente relacionado com o mundo real e
mundos imaginários. É acima de tudo, vontade de escrever para apaziguar uma dor,
para relaxar as tensões do corpo, pensar, repensar, fazer-me reflectir, contemplar e
ligar diferentes ideias desligadas e desconectadas sobre realidade e ficção, pois
factos e ficção são duas coisas correlacionadas como o corpo e a alma, a sombra e a
luz, o sonho e a realidade, o tempo e o lugar ou o espaço.
As ideias viajam a uma velocidade tremenda na nossa mente quando estamos
mergulhados no silêncio, quando estamos sós. Sentimo-las passar como barulho no
nosso cérebro, como uma voz intensa de que só nós apercebemos. É tão satisfatório
e aprazível pegar aquilo que atravessa a nossa cabeça à velocidade da luz e utilizá-
lo para algo concreto. Pegar ou aperceber este fenómeno pode, certas vezes, criar
problemas com as pessoas à nossa volta. Elas podem desconfiar que estamos a
escrever sobre os seus segredos, que estamos a amar outras pessoas, ou a criar-lhes
problemas, ou ainda, que queremos apoderar dos seus próprios pensamentos,

Domingos Barbosa da Silva 15


A estranha morte de um político

esquecendo que, para muitos indivíduos, o acto de escrever é libertador, é como


respirar o ar fresco das florestas, é sentir-se realizado e é uma actividade mental e
física. É emergir da escuridão para a luz do conhecimento, suplantar o mundo injusto
e caminhar em direcção ao mundo da justiça, da liberdade e da fraternidade.
Imagino sempre um mundo existente, mas inexpressivo. Um mundo submerso da
verdade, onde a justiça se sobrepõe à injustiça. Muitos procuram penetrar este
mundo universal com um desejo, também ele universal, de conquistá-lo à procura
de algo. Procuro palavras adequadas para descrever este mundo inacessível e não
as encontro no espaço entre o espírito e a mente ou o corpo e a alma. Nesta
tentativa de procurar exprimi-lo com frases compreensíveis, descobri que se estas
palavras existissem, elas não deveriam servir para agradar aos outros, para ocultar
as feridas no nosso corpo ou na nossa psique, para camuflar os vergonhosos
momentos da nossa vida, da nossa era ou da nossa história. Elas, as palavras, para
que possam cumprir as suas missões no mundo de opressão, de desigualdade, de
descriminação, de injustiça, devem ferir os sentimentos e causar dor aos outros, mas
devem sobretudo, obrigar-nos a questionar sobre o que nós, ingenuamente, temos
aceitado como verdades universais durante mais de trinta anos, no caso do Renato,
ou melhor, durante milhares de anos no campo das relações humanas. Quando
desvendarmos as razões da nossa vivência oprimida pela força intrínseca que se
acumula no mundo subliminar da razão, ficaremos mais livres, mais criadores de
valores universais, capazes de resolver problemas que assombram a mente, de
colocar-nos na posição de fechar a brecha que existe entre classes, entre grandes e
pequenos, entre bonito e feio, justiça e injustiça, entre os ideais de uns e a política
de outros.
Esta é a linha de pensamento que está na génese da criação desta obra que não tem
a pretensão de ser completa nem reveladora da verdade. Se alguma passagem aqui
descrita coincidir com qualquer outra passagem histórica, apresento desde já as
minhas mais sinceras desculpas, tratando-se, no entanto, de uma simples
coincidência.
Noruega, 29 de Setembro de 2019

Domingos Barbosa da Silva 16


A estranha morte de um político

Introdução

Levado pela sua fantasia, o génio incontestável da política, da poesia e da


jurisconsulta cabo-verdianas, foi ingenuamente levado ao encontro de uma morte
certa e que constitui um grande infortúnio para os que ainda carregam na memória,
como pranto do céu, nesgas de amor e amizade por um homem, que um dia soube
transportar para a sua poesia, o conteúdo da sua alma, modulada como prece,
donde ainda se ouve o gemer encantador do violão, como nas páginas do cantor de
um Mundo Novo.
Desapareceu o autor de Porton d’nós Ilha. A sua alma voou para além de uma praia
que a água azul das ondas beija e o mar envolve num prolongado abraço a um país,
em cujo seio, Deus colocou na terra um homem como relíquia esquecida, num
envoltório de madeira.
A música infinita e perene da sua poesia, que esse peregrino do céu eterniza na terra,
ouve-se sempre, como o murmúrio das vagas de Quebra-Canela, transportada nas
asas dos segredos imperceptíveis dos zéfiros, dos diálogos incessantes das rochas
com o mar, das árvores sem folhas, da algazarra misteriosa das folhas secas, dos
gemidos solenes dos cutelos, das colinas, do chilrear dos pássaros devorando os
frutos dos simbrões1 que andam na constante procura de água que não existe. Tudo
o mais, condensado num acordo inefável e contínuo da natureza que nos circunda,
nos inebria, nos vivifica e nos domina.
Naquela tarde, na mais uniforme surdina da aragem, percorrendo
melancolicamente a planície que abraçava os caminhos, com promessa de arbustos
onde se podia repousar, baloiçar-se ou embeber o frescor das sombras, o político
embriagou-se na promessa convidativa e poética da viração vespertina. Num desses
retalhos de terra verdejante, um panorama submisso às rochas que abraçam as
praias cheias de água cristalina que convidam qualquer forasteiro sedento que
habita a tépida atmosfera dos trópicos e entregou-se ao convite e à simpatia de uma
acompanhante.
Mergulhado numa atmosfera de inexprimível harmonia de almas que crepitavam
com paixão antiga, renovada e magoada, bramindo com a força da alegria,
prolongando a tarde com beijos de afecto, reprimindo todas as emoções e afastando

1 Espécie de arbusto de fruto em Cabo Verde

Domingos Barbosa da Silva 17


A estranha morte de um político

todos os pensamentos adversos na eventualidade de uma enorme desgraça no


cativeiro, acariciado no frescor da tarde à beira das ondas. O homem foi seduzido de
uma forma elegante. Corações palpitantes, enxugados com ósculos de esperança,
não deixaram espaços para umas palavras sussurrantes surgidas pelo mundo da
intuição, numa monotonia silenciosa, vibrando as cordas prosaicas e mundanas,
afastando para longe todos os módulos éticos, não deixando nesga de um
instantâneo relance de olhos a uma eventual enorme e secular desgraça. Uma
herança de Caim gravada nas omoplatas deste pequeno país. Nunca chegaram as
alvíssaras da razão libertadora ao pressentimento do político, nem os rebuliços do
coração palpitante, porque as mãos da mulher entornavam a cicuta num martírio,
com ânfora de amor e de paixão. Por outras palavras, o amor é cego demais e exclui
intuição de perigo e ameaças. A paixão tende a distrair o suficiente para não estar
tão atento ao perigo. O perigo chegou e venceu o amor, mas a reforma pela qual
lutou, ganhou terreno fértil enterrado no chão da nossa colectiva consciência. Pois,
quando a seiva do espírito colectivo da sociedade entra no gérmen de uma reforma,
é porque a Providência divina já deu a sua bênção. Esta reforma estava coberta de
ideias veneráveis, ungida pelo prestígio da verdade eterna. Nasceu para destruir os
receios em que então se vivia. Homem de visão alargada, autor de uma reforma
política, pensou que cada receio que se destruísse seria uma promessa, cada pessoa
convertida e convencida para o apoiar, seria uma vitória e cada passo dado em
direcção à mudança, seria uma grande conquista, um triunfar no terreno do medo,
um medo entulhado em qualquer lugar do nosso ser.
Na sociedade de então onde o medo imperava, onde o afastar do medo de pensar
de forma diferente feria o orgulho e o bem-estar de outros, não poderia haver, nem
existia espaço para um desenvolvimento integral e sustentável. O medo de pensar
diferentemente paralisava muitas mentes brilhantes na sociedade. As ideias ficavam
asfixiadas sob a capa da timidez e da inseguridade. Era preciso que a sociedade
abrisse uma segunda página no livro da história e lá escrevesse, iniciando um novo
inquérito independente sobre o caso Renato Cardoso.
Até isto acontecer, vamo-nos alimentando de dúvidas e de esperanças, mas
desconfiados de todos aqueles que andam com receio de abrir uma ferida mal
cicatrizada na tentativa de manter em segredo um crime histórico do tamanho do
nosso país e da nossa consciência colectiva.

Domingos Barbosa da Silva 18


A estranha morte de um político

Capítulo I
O que é uma ideia?

De onde lhe veio esta ideia de escrever sobre uma pessoa que foi excluído de entre
os vivos há mais de 30 anos? De que matéria bruta surgiu a própria ideia, esta luz
que cai sobre as coisas como forma moldadora? De onde? Que forma tomou ao
atingir o cérebro de Djonzinho? Mas sobretudo, que forma não tomou? Forma de
fotões? Forma de moléculas que se desprendem dos nós dos nervos e se espalham
nas criptas misteriosas que constituem as ruelas do seu encéfalo? Não sabe dizer.
Todavia, deve vir de algo misterioso que esbarra no vibrar do pensamento activo,
correndo até aos dedos calcinados que lhe dão vida numa página de papel em
branco.
Mas afinal o que é uma ideia? Um fenómeno transitório e efémero que escapa a
muita gente em momentos de reflexão. O que fica depois da ideia se ter evaporado
ou escapado à nossa atenção? Vazio, nada, zero? Ou fica empacotada num cacho de
silêncio até se cruzar com outras mentes? O que é transitório, por sua natureza, não
deixa saudades. É como se esta viesse revelar-se a nós como uma tentação.
No dia em que completou 20 Outonos de ausência física de um homem do povo,
Djonzinho começou a sentir a energia dos fotões a atravessar o seu corpo, a mexer
com os seus nervos, a trespassar o seu peito e a escorregar sobre este papel através
dos seus dedos, dando vida aos soluços de quem carrega na alma as dores do
mundo, as dores de todos aqueles que amam Renato Silos Cardoso.
Daí surgiu uma obra, um esforço tremendo da imaginação criadora, uma tentativa
de aproximar a realidade ao modo como desapareceu, uma realidade escondida no
crivo secreto das pessoas de consciência anestesiada pela acção do medo, do
interesse económico ou outros. Talvez político? Talvez social? Talvez passional?
Numa tarde de 2009, Djonzinho encontrava-se numa coordenada da terra a 73º
Norte e numa estação do ano em que o sol mal se vê. As nuvens altas escondiam o
sol que, timidamente, tentava espreitar, descendo com vagar para a linha do
horizonte nórdico. Dos casarios cintilavam luzes tremeluzentes à medida que a réstia
do sol se despedia do dia agonizante.
Djonzinho passou os olhos sobre os casarios que se preparavam para aguentar as
maçadas do inverno que teimosamente se mergulhava no tempo. Os seus
pensamentos dardejaram pelas ruas da pequena cidade e sentiu,

Domingos Barbosa da Silva 19


A estranha morte de um político

momentaneamente, o calafrio da nostalgia e saudades da sua terra natal. Deu por


si com um nó na garganta e com um medo estranho a apertar-lhe o peito. Uma voz
estranha surgiu do seu íntimo com uma especial advertência: todo o cuidado é pouco
no que estás a pensar.
O ter demasiado cuidado é uma característica que, muitas vezes, nos acarreta
preocupações desnecessárias. Conduz, frequentemente, a comportamentos
esquizofrénicos, caracterizados por uma dissociação psíquica típica de uma mente
dividida. Isto leva-nos a tentar esquivarmo-nos de grandes responsabilidades. O
esquizofrénico é, na maior parte das vezes, marginalizado. Ser ostracizado e
refugiar-se na sua própria consciência, é estar num estado mental igual ao que se
adquire quando se rouba, se executa um crime ou se participa numa tentativa de
algo deste género. Ter medo da própria liberdade é roubar a si mesmo o direito de
ser livre para pensar e para agir. O mundo, muitas vezes, parece-nos injusto, isto é,
nós os homens, os autores desta injustiça, somos incitados a pensar e a agir de uma
determinada maneira que promove e perpetua a iniquidade. A justiça cala-se na
sombra do medo. A injustiça triunfa onde este predomina. O medo assombra de
sobremaneira a mente humana. A mente adapta-se e tudo se torna normal e
permitido, no ciclo que cristaliza na vida diária do povo, este sentimento
perturbador.
Vinte anos depois, enquanto matutava e filosofava sobre o medo e os problemas da
vida, entrou uma abelha pela janela do seu quarto que pousou sobre o livro que
estava a ler. O livro era A Bala Mágica que matou Renato Cardoso.2 Voltou-se em
direcção à janela e bateu as asas desesperadamente, tentando fugir. Para a frente e
para trás zunindo e batendo as asas contra o vidro. Não tinha a mínima ideia da
prisão e da falta de liberdade atrás do vidro, pousando de novo sobre o livro. Já
estava incomodado com o zunir das asas do insecto. Djonzinho pôs-se de pé para
evitar o embate. Ela já devia ter expelido alguns sinais (feromonas) 3no intento de
pedir socorro. Através da janela se podia ver o vaivém de pessoas a caminho dos
seus afazeres, a silhueta do campanário de uma igreja, uma planta rastejante que
cobria as paredes do vizinho, o teto das casas vizinhas, o cume de um monte
distante. O medo invadiu-lhe o coração e Djonzinho estremeceu por um instante.
Qual a causa deste medo? O que tenho feito? São perguntas que, imediatamente,
lhe surgiram na mente. Ficou confuso por uns segundos. Começou a escrever sobre

2 A Bala Mágica que matou Renato Cardoso, de José Manuel Veiga, Setembro de 1994.
3 Hormonas ou proteínas segregadas pelas abelhas quando
se sentem ameaçadas, com o fim de pedir
ajuda.

Domingos Barbosa da Silva 20


A estranha morte de um político

o assunto num pedaço de papel azul, algo sobre a liberdade e o medo estava a
invadir o seu espírito. Porque? Qual a razão de ter medo?
O zunir da abelha irritou-o. Para a frente e para trás, encarcerado, experimentou um
pânico total. Até que chegou o momento, em que, simpatizou com ela porque viu
que cada bater de asas era uma tentativa incansável de se libertar. Estava frustrada
por não poder libertar-se. Desespero total. A simpatia do Djonzinho fez com que ele
abrisse a janela e libertou-a. Desapareceu, instantaneamente, como fumo. Foi
apenas uma abelha, uma espécie de mosca grande. Identificou-se com ela.
Djonzinho tem esta tendência natural se identificar com tudo que existe. Até com as
pedras de uma calçada. Com os mais fracos. Com os pobres nas estradas do mundo.
Com os trapos pendurados nas cordas de secar roupas. Com as folhas que caiem no
Outono da vida. Com a vida que foi ceifada deste mundo antes que chegasse a hora,
nomeadamente os abortados. Injustamente. Esta identificação é uma forma de
ressonância da dor dos outros no Djonzinho.
Esta capacidade que tem de sentir por outras pessoas, de sentir as suas emoções, tal
como sentimos as nossas, chama-se empatia e quanto sentimos empatia, tal
emoção faz ressonância dentro de nós. Sente intuitivamente os sentimentos dos
outros, qual a sua força e, também, aquilo que os provocou. É como se conseguisse,
literalmente, ler os sentimentos de uma pessoa como se fosse um livro.
Estava já farto do seu refúgio no medo. Medo de quê? Esta era outra pergunta que
lhe surgia frequentemente.
Seguiu um silêncio longo. Um sítio perfeito para se refugiar. No silêncio das coisas.
Porque é mais cómodo. Para a abelha, não foi e não é. Para Djonzinho, é. Para ti,
não se sabe. Medo de pessoas, de perseguições infundadas, de vinganças
autorizadas e da ignorância. Dos homens que pensam que são donos deste mundo
e que governam a consciência dos outros. Um reflexo da consciência balbuciou-lhe
que algures no interstício do poder, há mãos invisíveis a trabalhar para perpetuar
esse medo, esse silêncio. Há mentes invisíveis algures a pensar por aqueles que
receiam exprimir as suas vontades.
De quem tem medo? Para quê o medo? São outras perguntas que talvez, também,
te surjam na mente. Porque é que temos medo da verdade? Porque é que fere as
nossas emoções? Porque é que dói? Não se sabe muito bem!
O tempo corre devagar quando se vive no medo, no silêncio, na dor, mas depressa
na alegria, num bom ambiente e na companhia de boas pessoas. Na dor e no medo,
o próprio tempo não avança. Anda a rodopiar à volta de si mesmo, à volta do medo
e à volta da dor. O tempo adquire uma qualidade imóvel e torna cada minuto da
nossa vida igual, cada estação é idêntica, sendo sempre caracterizada por este

Domingos Barbosa da Silva 21


A estranha morte de um político

castrador de sentimento. Até mesmo o nosso pensamento acaba por estagnar, por
solidificar e congelar.
Pegou do seu Laptop depois da abelha ter desaparecido e encontrado a liberdade.
Vasculhou as páginas da Internet para encontrar informações capazes de lhe
elucidar sobre o assunto e ajudar a compreender um pouco mais. Notou nomes de
pessoas conhecidas e não conhecidas. Gente entendida no assunto. Jornais, revistas,
publicações diversas, familiares e amigos. Confidencialmente, escreveu cartas
electrónicas e pediu ajuda e discrição. Muitos lhe responderam, com medo. Outros
não se mexeram. Nenhuma, mas nenhuma, das respostas lhe esclareceu. O melhor
é ficar como está. O melhor é calar-se. Manter-se embrulhado no silêncio aterrador.
O que estás à procura, homem? A pergunta que talvez te surja de novo na mente.
Para alguns, uma investigação profunda de um caso, é uma prova que há liberdade
de acção, de expressão e de pensamento. Para outros, ela tem uma carga negativa,
de medo e de falta de liberdade. Djonzinho acha mais correcto a primeira.
Gosta de estar sozinho às vezes. Fica com a ideia de que algo o persegue, algo que
se encontra na escuridão que o medo cria, que a imaginação dilata em proporções
tremendas, principalmente, quando a escuridão tomba sobre as coisas. Algo que o
vigia de noite e de dia, algo invisível e esta vigia é infindável. Muitas vezes, prefere
ficar no escuro, deixar a luz apagada e fechar as persianas do mundo. Fecha,
também, as persianas da mente. Porém, as do coração ficam escancaradas ao
mundo. É mais confortável. Decerto mais cómodo. Existem lobisomens? – Pergunta,
muitas vezes, a si mesmo. Naquele dia, encerrou-se no quarto escuro do seu
dormitório com a cabeça entre as mãos a pensar numa bala mágica que assassinou
um grande homem. O que lhe terá acontecido em Quebra-Canela há vinte anos?
Começou com a ousadia de quem quer abrir as persianas da mente e deitar para
fora o medo.
O que aconteceu? Outra pergunta que talvez te surja. Talvez. Ou nem por isso!
Talvez estejas psicoadaptado à situação. E o mundo fica a dever-nos um
esclarecimento. E nós ficamos convencidos que assim é o mundo, assim são as
coisas, conformando-nos com elas e incorporando-as na nossa visão do mundo
como verdades absolutas, julgando não existir mais nada que justifique o amor que
devíamos ter para com os outros. Ou o dever de esclarecer ao mundo o que
aconteceu em Quebra-Canela no ano fatídico de 1989.

Domingos Barbosa da Silva 22


A estranha morte de um político

Capítulo II
Uma tarde tenebrosa

Começou a chuviscar na tarde do dia em que um grande político foi assassinado.


Chegou aquela notícia triste enquanto observava uma incrível aurora boreal. Estava
sentado no seu carro longe do acontecimento que ecoou muito tarde nos países
nórdicos. Deu por si a olhar distante e, quando regressou ao mundo real, olhava para
uma gota de água que escorria devagarinho sobre o vidro frontal do veículo onde se
sentava. Aproximou-se do vidro da janela esquerda e começou a escrever na
humidade condensada no interior, uma poesia e, por entre a espessura das linhas
que formavam as letras, podia ao mesmo tempo ver o que se passava lá fora e
imaginava a areia da praia de Quebra-Canela. Uma poesia que espelha emoções de
verdadeiro apreço, mas que ficou marcada pelo malogrado. Imaginou o Poema
deitado na areia daquela praia distante e transpô-lo em forma de letras para o seu
bloco de notas:

Um Poema estirado na areia


Em memória de Renato Cardoso

Espalhou-se a notícia p’lo país inteiro


Que o Poema a disparo foi morto
Tudo indicava que era verdadeiro:
O Poema rolava na areia, exausto.

As mil horas dessa tarde sangrenta


Que o Poema engolia e vomitava
Com desespero nos olhos imaginava
O alongamento das horas do legista.

Era alto e gordo, um pouco esquisito


De cor vermelha tinha uma gravata
De olhos nervosos postos no Poema
Assim, apurou o consumado facto.

Domingos Barbosa da Silva 23


A estranha morte de um político

Quem foi o desgraçado autor do acto


Quem? Sibilava a voz do delegado.
O médico aproximou-se do morto
Pegou-lhe nas mãos frias, absorto.

Sob olhos hirtos da multidão atenta


O delegado com a gravata ajeitada
Contornou duas voltas ao moribundo
Para adivinhar o autor do acto.

O assassino era um arquitecto treinado


Arquitecto? – Interrogou o delegado
Sim, arquitecto confirmou o bêbado
Com a mão suja a cabeça alisando.

Estás preso, seu maldito bêbado


Quem está preso é Nhôr delegado
Polícia – ponha o bêbado no calabouço
Que aqui nada tem a fazer o louco.

Sob os olhares críticos da multidão


Sob a pressão da moral obrigação
Comandou que subissem à cidade
Para que constatassem a verdade.

Não morrera o Poema de enfarto


Morte natural? Não! Assassinado!
Como? Quem cometeria o hediondo acto
Na boca escancarada da noite?

Mas quem o matou – indagou o delegado


Com um ar próprio de um investigador
De leve, segurou nas mãos do morto
Sob os olhos curiosos da multidão.

Junto ao Poema, todas as lágrimas da terra


Teciam o drama que tudo encerrara
O teatro na areia daquela amiga praia
Na boca escancarada da noite derradeira.

Domingos Barbosa da Silva 24


A estranha morte de um político

Todo o sentimento guardou a multidão


Num lugar bem dentro do coração
Um segredo na mente foi selado
Pelos olhares penetrantes do delegado.

Na praia do desespero, olhando o céu


A Lua distante da multidão escondeu
O murmúrio do perturbador silêncio
A saliva das ondas, a areia acariciava.

Não foi espada o instrumento matador


Foi um revólver a arma que usara
Não foi a espingarda a arma do caçador
Que no peito uma abertura abrira.

Preciso não era o polícia chamar


Preciso não era ao legista apelar
A justiça tornou-se uma palavra doida
Prolixa, vazia de conteúdo, varrida.

E o Poema ficou estirado no chão


Deixado às mãos da compaixão
O assassino sumiu-se na cerração
Da forma que emergiu da escuridão.

Na sombra da humana maldição


Os peitos bateram fim de Setembro
A mente varreu ligeira, mais não me lembro
Mas sim, uma vida, um ser, com paixão.

Fechei os olhos e parti, magoado


Por uma vida, um ser enamorado
Fixei os olhos no céu estrelado
Muito além do entender, pensando

Em polícia, em médico, em delegado


Distantes no pensar, a opinar a descoberta:
Não era pequeno amador o assassino

Domingos Barbosa da Silva 25


A estranha morte de um político

Sentenciaram: era decerto outro poeta.

Muito além do pensar da multidão


Muito além do silêncio das estrelas
Além da praia num canto do mundo
Sumia um matador, a mando da paixão?

Uma interrogação a saltitar na areia


Uma interjeição tombava da multidão
Quando à frente passava o legista
Com um tique nervoso no coração.

Renato, eu queria ouvir as suas palavras


A sua vontade de granito, partilhada
Para somar vontades a desejos...
E consolar os olhares e mais nada.

Hoje do seu saber queria uma nesga


Uma parte divisível de sua lida
Um instante lá do céu constelado
Um sorriso da sua face brotado.

As lágrimas no silêncio, uma resposta


Esperavam, para convencer o legista
Da sua conclusão apressada e fatalista
Que foi morto o Poema pelo poeta. 4

De longe imaginava cachos de algas arrastados pelas ondas nórdicas além do círculo
polar, cobrindo as praias, as ondas a baterem doidamente contra o calhau, as aves
a falarem a linguagem que só elas entendem, as folhas das árvores a caírem como
que se adivinhassem a chegada do Outono e alguns répteis a correrem
indiferentemente de um lado para outro.
Renato só tinha 38 anos. Balbuciou dentro de si ao ouvir um grito lá longe. Um grito
que ecoou de uma praia distante. Gostaria imenso que só fosse um sonho. Não, não
estava a sonhar. Ainda era cedo demais. Cedo para ter um sonho deste género.

4 Da Silva, Domingos Barbosa (O autor)

Domingos Barbosa da Silva 26


A estranha morte de um político

Alguns acontecimentos ficam colados na nossa mente mais do que outros.


Efervescem continuamente, fazendo uma teia de memórias e recordações que
tocam o sentido de justiça no interior de cada um de nós. Marcam-nos com o
carimbo indelével no fundo insondável da alma que leva qualquer pessoa de senso
comum a pensar que seria possível desvendar o caso estranho se mais esforços
tivessem sido feitos.
Armou-se em investigador independente. Deduziu que em três dias estaria no local
para recolher os indícios à sua maneira. Contudo, pensou que outros investigadores
estariam lá antes dele, examinando o local palmo a palmo, colhendo informações,
recolhendo todos os indícios de que precisava. Depois de alguns dias, frustrado,
assumiu uma postura como se nada tivesse acontecido. Como se não tivesse havido
um assassinato. Como se nunca tivesse existido um Renato Cardoso. Os indícios, na
sua imaginação, não foram de todo infalivelmente afastados.
Anotou todos os seus pensamentos num diário. O diário era grosso e, no fim,
escreveu o seu nome com letras verdes. Djonzinho Cabral.
Que espécie de investigador é o Djonzinho? Deduziu em poucos minutos quem foi o
matador. Quem vai investigar o caso? Que tipo de investigação vai ser dedicado ao
acontecimento? Então pensou que há, pelo menos, duas espécies de investigadores.
O histórico e o mentalista. A escavação no espírito humano. E assim, devagarinho,
desenhou a teia das suas ideias e reconstruções mentais, que vão ao encontro ou,
possivelmente, coincidir com a realidade dos factos. Mas que importa?
Certificou-se de ter notado algo importante no diário depois de alguém lhe ter
tocado no ombro esquerdo balbuciando:
– Djonzinho em que estás a pensar?

Domingos Barbosa da Silva 27


A estranha morte de um político

Domingos Barbosa da Silva 28


A estranha morte de um político

Capítulo III

Um dia agitado

O aparelho que transportava o especialista em armas de fogo ia levantar voo e


seguia numa viagem de pouco mais de meia hora. Com um grande medo estampado
nos olhos, o estranho recuou, assustado, ao presumir que estava a ser observado
por um grupo de indivíduos junto à calada de uma das paredes do aeroporto. Ele
disfarçou um sorriso e reparou que o mesmo não lhe foi correspondido. Procurou
acenar com a mão em direcção a um conhecido seu, mas este não lhe devolveu o
aceno e, assim, deduziu que ninguém teria reparado em si e que, possivelmente,
estariam a falar em algo que nada teria a ver com ele. Ou talvez estivessem
desconfiados dele e a falarem sobre a sua má conduta, o que lhe trouxe ainda mais
preocupação.
Afastou-se do edifício em direcção à aeronave. A bordo teve a impressão de que o
comandante lhe fixara um olhar vítreo. Procurou uma cadeira e sentou-se perto da
janela onde ninguém se encontrava. O estranho sentiu-se invadido por uma
sensação de pavor. Já era quase hora de partir para a capital. Uma viagem planeada
há mais de seis meses. O estranho fechou os olhos e pressentiu que algo sobre o
plano estava sendo minado quase no auge do projecto. Mas era apenas uma
presunção. O plano tinha de estar consumado dentro de 24 horas, pelo que,
procurava afastar qualquer sinal ou indício de que algo poderia afectar a execução
do projecto, mesmo que todas essas possíveis ameaças não passassem de meras
ilusões da sua cabeça. No aeroporto da capital sentiu-se perdido no meio de uma
algazarra de rapazotes brigando e empurrando-se uns aos outros na competição das
maletas. Todos queriam ajudar o maior número de passageiros a transportar as suas
respectivas malas. Dirigiu-se a um táxi, sem dar atenção aos rapazotes e pediu ao
taxista que o conduzisse até à porta de Galerias. A chave de um Toyota foi-lhe
entregue por Sombra e em poucos segundos, depois de uma breve troca de
conversa, abandonou o local.
Instalado no seu quarto do hotel, depois do almoço, ouviu o telefone a tocar e,
nervosamente, pegou no auscultador com um movimento brusco.
– Está - disse o estranho ao atender o telefone.
– O nosso homem? – Inquiriu a voz do outro lado da linha.
– Não estou a identificar a voz.

Domingos Barbosa da Silva 29


A estranha morte de um político

– Não importa, é só para saber se tudo está bem.


– Sim, está tudo bem, dadas as circunstâncias.
Mentiu e ficou à espera que a voz do outro lado da linha lhe fornecesse mais
informações. Sentiu um arrepio apoderar-se do corpo. O seu interlocutor deu a
impressão de que estaria a par do plano do dia.
– É o nosso homem! Não é?
– Quero saber quem fala.
– É o coordenador do processo com a missão de te apoiar durante o dia.
– Sim, sou o vosso homem incumbido da execução do plano.
– Estás nervoso, não?
– Não muito – tornou a mentir.
Estava a explodir de medo. Urinava de meia em meia hora. O sangue circulava a uma
velocidade de projéctil de pistola prestes a dar cabo de uma vida. Olhava para o
relógio que parecia estar parado. Todo o movimento lhe parecia um enorme
estrondo. Desejaria que as coisas estivessem ultrapassadas ou que o chão se abrisse
por baixo dos seus pés para que pudesse mergulhar no abismo, fugindo do presente
e do que o aguarda no futuro.
– Bom, temos muita confiança em ti, pois isto significa o teu sucesso na vida e o
nosso também! O teu bilhete de passagem já está confirmado. O visto de entrada e
o passaporte estão aqui no escritório. Segue amanhã pelos correios.
– Faço o meu melhor! – Exclamou o estranho.
– Força, camarada. Quando chegar a hora damos os sinais necessários!
– Combinado.
O assassino perdeu a noção do tempo e do espaço por alguns minutos. Sentou-se
de novo na escrivaninha e deu por si, nervosamente, a bater com os dedos sobre a
mesa. Levantou-se repentinamente, deu umas voltas dentro da sala e parou de
repente diante de um espelho. Olhando para o rosto reflectido no espelho, tentou
imaginar como seria a cara do homem que desligou o telefone. Os últimos meses
tinham deixado no seu semblante profundos vestígios e parecia um homem de
setenta anos. Aquela, não era, certamente, a cara que precisava para recomeçar
uma nova vida enterrado em dinheiro e bem-estar. Os olhos pareciam encolhidos
no fundo de umas conchas e tinham uma expressão doentia como, geralmente,
acontece depois de uma febre intestinal ou coisas do género.

Domingos Barbosa da Silva 30


A estranha morte de um político

Naquele dia de Outono, o calendário marcava o ano de 1989. O estranho


encontrava-se instalado num dos hotéis preferidos da cidade. Sentou-se numa
cadeira, segurando a cabeça entre as mãos e mergulhado numa profunda letargia,
abstraiu-se de tudo ao seu redor. Aquele estado mórbido em que as funções vitais
estão atenuadas de tal forma que parecem estar suspensas, isto é, oscilando entre
o estar acordado e o sono profundo, onde a mente humana já não se encontra
consciente e o superego se encontra profundamente aprisionado no solo da
existência. De repente sentiu como se algo o observasse de um ponto mais alto.
Imaginou largos olhos incidindo sobre ele, olhos estes que viriam a vigiá-lo durante
toda a vida. Seriam os olhos de Deus ou os do demónio? – Interrogou-se.
Naquele momento, sentiu receio de ambos. De súbito, viu-se afastado do estado de
torpor em que, por momentos se deixou cair, quando alguém bateu na porta do
quarto. Ajeitou as roupas, esfregou os olhos e dirigiu-se à porta. Abriu-a devagarinho
sem tirar a corrente de segurança.
– Sombra, onde estiveste metido? – Diz ao reconhecer o seu camarada.
Sombra era da estatura do estranho, bem constituído e parecia um lutador de boxe.
Andava sempre a comer. Lembrava um pouco a figura de Mike Tyson. Pouco tinha
dormido na noite anterior e não tinha intenção de descansar naquela tarde. Queria
era espairecer, mas o estranho tinha outra coisa no seu pensamento. Sombra tinha
sempre palavras encorajadoras que lisonjeavam o amigo e nos seus lábios pairava
um sorriso fraterno e de satisfação. Falava de coisas da vida, da viagem e do trabalho
que lhe ofereceram na capital, mas o estranho não ouvia nada do que este lhe dizia;
os seus ouvidos estavam voltados para dentro; ele escutava-se a si próprio, escutava
o disparo que ia transformar a sua vida, para o bem ou para o mal.
– Estava a certificar-me de que estás bem. – Disse Sombra.
Irritado com a indiferença do interlocutor, vagueou de um lado para outro, tecendo
e destecendo mil outros planos. Deu um meio falso sorriso e penetrou os seus olhos
nos do estranho. Abriu um caderno de anotações onde se lia Plano A e Plano B. A de
Alcatraz. B de Badiu. Daí tirou um envelope que entregou ao estranho. Mordeu a
ponta do lábio e pronunciou algumas palavras com a mais branda e doce voz que
daquela garganta poderiam sair e que fizeram o amigo voltar ao mundo real.
– Se tudo está bem, vou sair e falaremos mais tarde – disse o interlocutor.
Ouve uns minutos de silêncio e depois o estranho balançou a cabeça vigorosamente.
– Nada está bem! Preciso de mais dinheiro! Tens de falar com o cabecilha e dizer-
lhe que preciso de mais dinheiro. Pelo menos o dobro do prometido! Na última vez –
continuou – há 6 meses, a armadilha que os gajos montaram foi desmembrada e o

Domingos Barbosa da Silva 31


A estranha morte de um político

chefe acusou-nos de incompetência ou pior ainda. São egoístas e preocupam-se mais


com os seus próprios interesses do que comigo.
O interlocutor levantou a mão num tom pacificador.
– Não há problema. O meu chefe disse-me que qualquer soma exigida por ti será
admitida sem protesto. Aqui o tens, preto no branco. Mas muito cuidado com este
pedaço de papel! Nas primeiras horas depois de tudo consumado, enquanto
estiverem a tentar determinar o que aconteceu, o único sítio onde eles não se
lembrarão de te procurar, será no ponto de contacto aqui combinado e que mais
ninguém conhece. Depois, temos planos de desviar do caminho, todos aqueles que
venham a demonstrar qualquer interesse em resolver o caso através de
investigações.
O estranho pegou no pedaço de papel e leu o seu conteúdo com rapidez. Meteu-o
num bolso no interior das calças! Pregou os olhos num ponto no teto e pensava se
aquilo constituía alguma garantia quando tudo estivesse ultrapassado. Pensou
também, que a única coisa necessária e que faltava era comunicação por palavras
discretas e olhar directamente nos olhos dos responsáveis. Deu um riso calmo e frio.
Virou-se para a parede num movimento rápido fechando os olhos, recusando-se a
ouvir mais palavras sobre o assunto e sentiu um suor frio correr-lhe pela face.
Sombra podia sentir o peso do silêncio que se apoderou do momento. Foi à janela e
viu um carro preto imobilizar-se junto ao passeio ao lado de um edifício, ao lado do
hotel. O condutor parou o motor e sentou-se, confortavelmente, como se tivesse
uma eternidade ao seu dispor. Virou-se para o estranho e disse:
– São 11h25 neste momento. Tens ainda muito tempo ao teu dispor. Vou sair e faz
de conta que não me conheces. O condutor está lá em baixo. Boa sorte e muito
cuidado! Quando passares por ele faz de conta que não o conheces. Ele fica à tua
espera no lugar combinado. Daqui a pouco não estará lá, mas volta depois.
O estranho já não podia ter mais contactos com os seus coadjuvantes, a não ser o
condutor que o esperava lá em baixo. Mas o condutor só servia para o levar para
longe depois da operação secreta. Agarrou em alguns instrumentos necessários,
meteu-os na sacola e recapitulou o que estava escrito no pedaço de papel metido
no bolso no interior das calças: aproximação discreta do alvo, lado esquerdo do
peito, e pronto. O resto é connosco.
Repetiu as palavras ao fim de alguns minutos. Elas saíram-lhe lentas e contadas.
Cada sílaba era espremida de tal maneira que lhe dava vontade de sair e executar o
plano naquele mesmo momento, aquele pecado mortal, o primeiro que lhe vinha a

Domingos Barbosa da Silva 32


A estranha morte de um político

ressurgir do íntimo e o atormentaria o resto da sua vida. Indiferente, quase gélido,


sentou-se na poltrona sem se dar por isso.
Suspirou fundo. Sacudiu a cabeça e disse: vamos! Desceu as escadas e não observou
nada de anormal. Passou pelo carro estacionado. O condutor reconheceu-o pelo
sinal que lhe foi dado enquanto se dirigia a passos largos ao esconderijo. Um passeio
de reconhecimento. Antes de chegar ao esconderijo, voltou-se para ver a posição do
condutor que já se encontrava estacionado num outro lugar mais propício. Aprovou
a posição do condutor e desapareceu.
Chatice, disse para si. Não se via ninguém, apenas se ouviam os sons universais das
aves. Voltou depois de alguns minutos ao seu quarto no hotel.
Tirou do bolso o pedaço de papel com os códigos de instrução.

   

– O que é isto? Russo? Filho da p…, esse Daniel Delgado! – Amaldiçoou o estranho.
O símbolo que mais tarde traduziram para o alfabeto inglês, depois de reparar na
letra ómega que é, genuinamente, grega:

Eznlh vornrmzi Ivmzgl Xziwlhl

Domingos Barbosa da Silva 33


A estranha morte de um político

Capítulo IV

Domingos Barbosa da Silva 34


A estranha morte de um político

Ele estava no seu carro estacionado quando um desconhecido emergiu de uma


esquina que fazia uma entrada sinuosa que dava para Ponta Belém. Acompanhou-o
com a vista enquanto entrava para o Toyota e só ligou o motor depois de este se pôr
em movimento em direcção à praça pública. No entanto, poucos minutos depois, o
desconhecido teve um pressentimento e acelerou o seu veículo, quando se
apercebeu da presença de um seguidor após ter dado uma meia volta à praça em
direcção à Igreja matriz. Só abrandava a velocidade quando as pessoas estavam na
iminência de pôr os pés no espaço destinado a peões. Não queria perder de vista o
magrote e queria encorajar a confiança dele, convencê-lo de que não fora observado
e evitar a mínima sensação de alarme. De súbito, o desconhecido pensou em fazer-
lhe uma surpresa – pregar-lhe uma partida. Carregou no acelerador, cortou uma
artéria transversal e introduziu-se no parque de estacionamento perto do edifício
da antiga Minerva, deixando o veículo estacionado entre numerosos carros.
Passados uns segundos, surgiu o outro veículo, dobrando a esquina e seguindo em
frente, espreitando para todos os lados e com o corpo inclinado sobre si mesmo,
olhos semicerrados e a mão direita sobre os olhos servindo como pala de um boné.
O desconhecido deixou-o adquirir algumas dezenas de metros de avanço e assumiu
por seu turno o papel de perseguidor. O magro percorreu os vários quarteirões pelos
quais, presumivelmente, o desconhecido deveria ter passado, tentando localizá-lo
e, decorrido um quarto de hora, desistiu, acabando por imobilizar o veículo à
entrada de um prédio na antiga Rua 5 de Julho. Arrumou o carro e acomodou-se a
uma distância prudente, apeou-se e moveu-se com passos largos no encalço do
outro magro até que o viu entrar. Deixou transcorrer um intervalo decente de tempo
e aproximou-se para bater à porta. O magro ficou tão surpreendido ao vê-lo que se
corou de vermelho e moveu os lábios sem proferir palavra.
– Tanto tempo, homem! – Disse Nero. – Sou Nero Bettencourt – recordou-lhe. –
Hoje visitei o hospital onde se encontra a minha amiga, entrei numa livraria só para
dar uma olhadela. Dei consigo no meu encalço. Não me lembro do seu nome.
O magro não emitiu um só som e continuava com a boca semiaberta numa
expressão de choque que se mostrava pelos seus gestos. Se se abrisse um abismo à
sua frente, ele entraria nele.
– Daniel. Daniel Delgado. – Apresentou-se. Quer dar um dedo de conversa aqui
fora? – Perguntou, olhando em volta para se certificar de que ninguém o estava a
ouvir. – Ou ali dentro para que ninguém nos ouça. Às vezes as paredes têm ouvidos,
sabes? – Concluiu.

Domingos Barbosa da Silva 35


A estranha morte de um político

Daniel Delgado fez sinal com a mão esquerda e entraram ambos num pequeno
quarto mobilado com toda a simplicidade deste mundo. Atravessaram um corredor
cuja parede se encontrava em péssimo estado, com cal a cair do tecto e das paredes.
– É muito cedo para tomar um grogo5? Mas tenho Black Label – sugeriu Daniel.
– Serve na mesma. Se não tiver gelo, pode ser simples, para mim tanto faz.
Daniel Delgado verteu, trémulo, três dedos de uísque em copos de cristal e estendeu
um a Nero, num silêncio incómodo.
– À sua – brindou Nero e em seguida esvaziou o conteúdo no estômago antes que
o outro tivesse tempo de erguer o seu.
Seguiu-se uns segundos de silêncio. Ambos estavam com os nervos tensos. Mas Nero
apressou-se e quebrou o silêncio para aliviar o peso do momento.
– Olhe, Daniel, sempre que lhe interessar conhecer os meus movimentos, dê-me
uma apitada. É apenas um conselho de amigo. Não hesite em fazê-lo – disse o Nero.
– Como sabe que o seguia? E por que o fazia? – Retorquiu finalmente Delgado todo
corado até aos ouvidos e fazendo o gesto de levar o copo à boca.
Houve outro silêncio. Aquele instante parecia para Delgado uma eternidade. Olhou
para o lado onde se encontrava a garrafa do Black Label e, de repente, deixou de
ouvir os sons que advinham de todos os lados das estradas contíguas, como se toda
a atmosfera circundante congelasse por momentos. Verteu mais dois dedos de
uísque no seu copo sem perguntar ao seu companheiro se também queria mais. Deu
uns passos em direcção à porta e virou-se. Não tinha comido durante toda a manhã
e um golo de uísque não lhe caíra bem naquele momento. Sentiu um suor frio a
escorre-lhe pela face e não fez o caso de o limpar. Estava frente ao homem que
perseguia e agora sentia-se perseguido. Virou-se para Nero quando o ouviu rir à
gargalhada.
– Diga-me uma coisa, porque pensa que eu o seguia?
– Que inocência! Que ingenuidade! Porque pensa que eu o seguia? Estou apenas a
imitar a sua voz. Sabe, Daniel – continuou – já fui polícia. É pura e simplesmente a
intuição do meu lado mais feminino. O senhor andava no meu encalço e, por isso,
quero saber o porquê.
– Tenho ordem de o observar. Isto interessa-me, também, pessoalmente.

5 Bebida alcoólica feita de cana sacarina em Cabo Verde.

Domingos Barbosa da Silva 36


A estranha morte de um político

– Que interesse é esse? Para quê? Está a dar-me cabo dos nervos! – Exclamou,
enquanto batia com o punho na escrivaninha.
– Bem, sei que foi polícia e, por isso, queria saber como fazer para investigar um
assunto. – Mentiu, virando-se em seguida para a janela sem movimentar as pernas.
– Está a mentir. Que tipo de interesse ou lucro esperava com isto? Costuma seguir
os encalços de todos os que trabalhavam na polícia? Sabe que os ex-polícias têm
sempre cuidado para não serem perseguidos pelos ex-colegas? Principalmente
quando são afastados dos seus postos por motivos menos correctos.
Daniel sentiu o ódio de quem o enviou para tal missão. Sentou-se numa cadeira.
Sentiu a raiva subir dos calcanhares e pensou em reagir com violência. Estava na
iminência de o fazer quando pressentiu que sob o nome de ex-polícia se encontrava
alguém capaz de lhe fazer passar por maus bocados. Emitiu um sorriso falso,
levantou-se cuidadosamente e foi à janela.
– Vou-lhe dizer uma coisa – prosseguiu Nero. – Estou convencido de que trabalha
para alguém conhecedor das minhas relações com determinada pessoa e que está a
morrer de curiosidade para saber o que me leva a farejar por estes cantos. Se me
induzo em erro, corrija-me. Estou em crer que trabalha para alguém que é
perseguido ou que persegue alguém que, também não é do meu agrado. Talvez,
tenhamos interesses em comum.
Mais um momento de silêncio. Daniel limitava-se a saborear o Black Label em
silêncio, denunciando uma certa dificuldade em engolir. A maçã-de-adão fazia uma
protuberância durante alguns segundos antes de desaparecer no pescoço.
– Sou encarregado de fazer uma proposta concernente...
– Bem, caro amigo – cortou Nero. Tenho um recado para quem lhe paga. Se me
está a perseguir por motivos políticos, deixo aqui bem claro esta mensagem: as
minhas actividades, neste momento, relacionam-se com um pedido para ultimar uns
assuntos importantes aqui na capital. Depois disto estarei livre para aceitar qualquer
oferta de trabalho. Não acredito, de modo algum, que seja esse o motivo pelo qual
está no meu encalço e vigie os meus movimentos. Sabe que isto me enerva e a
qualquer momento pode acontecer uma calamidade. Entende? Sabe que mais? Já
agora, aceite mais um conselhozinho de uma pessoa experiente na matéria: as coisas
que parecem mais óbvias nem sempre o são. A melhor maneira de passar
despercebido é permanecer bem visível. A partir do momento que começa a tentar
dissimular-se, torna-se notado. Mas, não esqueça também, que se souber de alguém
que precise dos meus talentos, estou livre. Aqui está o meu número de telefone.

Domingos Barbosa da Silva 37


A estranha morte de um político

Daniel levantou a mão direita para completar o raciocínio, mas Nero ergueu-se e
tirou do bolso da camisa um cartão-de-visita que entregou a Daniel, saindo logo
depois apressado.
A caminho do hotel preocupava-se em verificar se, durante o percurso, alguém o
seguia novamente. Chegou ao quarto e ligou o rádio. Um Panasonic com idade
avançada, mas dava para seguir o que ia acontecendo pelo mundo. Estava exaustado
quando chegou. Trocou de roupa para descansar enquanto pensava no almoço.
Gozou da madorna em mais de meia hora. O telefone tocou e levantou-se
precipitado sem saber onde se encontrava o aparelho. Sacudiu a cabeça para se
acordar e agarrou o dispositivo que jazia ao seu lado.
– Sim, estou.
– Queria falar com Nero. Nero Bettencourt.
– É o próprio. Quem está a falar?
– Chegou aos meus ouvidos que está desempregado e que anda à procura de
trabalho.
– Bem, tudo depende do tipo de trabalho.
Nero tentou identificar a voz masculina do outro lado da linha e imaginar o homem
pela inflexão do seu tom de voz. Deduziu tratar-se de uma pessoa alta, magra,
jovem, prudente, formal e culta. Pensou também, que deveria comportar-se
decentemente, já que se tratava de um emprego eminente.
– Digamos que é de natureza confidencial. Sei que trabalhou na Polícia e que os
seus talentos são valiosos.
– Certo. Trabalhei lá 14 anos – admitiu Nero.
– As minhas fontes estão em conformidade com o que diz. E exerceu funções de
guarda-costas, certo?
– As suas fontes são credíveis. Era uma actividade em que punha todo o meu
coração e na qual era bom, segundo os meus ex-colegas.
– Sim, estamos ao corrente desse facto. Pensamos em oferecer-lhe um trabalho
gratificante.
– Que tipo de trabalho se encontra disponível?
– Bem, é confidencial, conforme disse. Seria melhor trocarmos impressões
pessoalmente para ver se chegamos a um acordo.

Domingos Barbosa da Silva 38


A estranha morte de um político

– Não é má a ideia. A pressa mata prematuramente muitas coisas. Temos de


chegar a um compromisso.
– Então pode ser daqui a uma hora. Anote o endereço.
– Sim. Pode dizer que eu estou a anotar.
Pela entoação, a voz lhe parecia familiar, mas não conseguiu identificá-la e ocorreu-
lhe também a ideia de que a conversa viria do prédio contíguo, por causa da nitidez
da voz. A voz era muito parecida com a do Aquiles.
– Rua 5 de Julho número 16, logo a seguir o Ministério de...
– Já sei, já sei – cortou com rapidez.
– Às 14.30. Em ponto. Se chegar 10 minutos atrasado já não estaremos lá e pode
esquecer o emprego.
Nero sentiu um ruído no telefone e a voz desapareceu. Pensou em Daniel Delgado
que esteve no seu encalço, nos seus ex-colegas, na sua esposa e, finalmente, na
Judith, sua melhor amiga. Ocorreu-lhe que qualquer informante se encontraria nas
proximidades seguindo os seus passos. De qualquer maneira, estava desempregado
e precisava agora de concentrar-se no preparo para a troca de impressões. Pegou
num bloco de notas e começou a escrevinhar algumas palavras-chaves. Mais tarde,
passou-as a limpo, corrigindo quaisquer erros que lhe tivessem escapado e meteu
tudo numa pasta de mão. O rádio que estava sobre a escrivaninha tocava já há algum
tempo e, apesar do seu característico som poderoso, só agora se apercebeu da voz
da locutora que muito bem conhecia. Deu um salto da sua poltrona onde se
encontrava reclinado. Foi ao guarda-roupa escolher o seu melhor fato. O facto para
o qual se inclinara de imediato, tinha uma mancha cor de catchupa6 seca e de catarro
no lado direito do casaco, pelo que, procurou limpá-lo com a ajuda da ponta
humedecida de uma toalha. Esticou os braços à distância dos olhos para verificar se
a mancha tinha desaparecido. Revolveu todos os cantos do quarto à procura de dois
pares de sapatos que tinha trazido, mas não se lembrava onde os tinha colocado,
para se verificar quais deles lhe ficavam melhor e, assim, evitar uma possível
inspecção minuciosa dos entrevistadores. Quando localizou a velha caixa com os
sapatos, soprou a poeira, abriu-a com o cuidado dos deuses e tirou de lá uma pistola
de calibre 6.35 mm. Guardou-a numa algibeira e na outra, um pequeno gravador,
caso precisasse.
O Toyota estava impecavelmente limpo. Para dar melhor impressão, conduziu a
pequena distância que o separava do local e estacionou logo à porta entre outros

6 Comida típica cabo-verdiana feita à base do milho.

Domingos Barbosa da Silva 39


A estranha morte de um político

dois Toyotas de cilindradas diferentes. Apeou-se pensando que iria ser liquidado ou,
possivelmente, tramado pelo futuro patrão de qualquer firma da capital. Logo à
entrada, olhou para o seu relógio de pulso, faltavam 3 minutos e veio-lhe de súbito
à memória o que o homem lhe tinha dito pelo telefone: se chegar 10 minutos
atrasado, não estaremos lá e pode esquecer do emprego. Entrou, subiu os degraus
de acesso e estacou na primeira porta. Não reparou em nenhum sinal inscrito sobre
a mesma. Esta era como se esperava de estilo colonial e tinha uma altura
desmesurada. Levantou a mão para tocar, quando a porta se abriu.
– Entre Senhor Nero, – chamo-me Aquiles. Aquiles Cardoso.
Nero reconheceu a voz. Era o homem que lhe telefonara. Parecia uma pessoa nos
seus 50 anos, de expressão brusca, gordo, facto branco muito bem engomado,
camisa azul e gravata amarela. Limpava o suor com um lenço amarrotado e trazia no
fundo dos olhos um sinal de amargura ou algo do género. Na verdade, o homem
nem tinha quarenta anos de idade, mas a barba dava-lhe um ar idoso e um pouco
carcomido. Deitou um olhar curioso ao local e reparou no seu mau estado de
conservação.
– Este lugar onde estamos pertence ao Estado de Cabo Verde, aliás, ao Partido. Na
altura da Reforma Agrária, foi expropriada – disse Aquiles para arrancar um diálogo.
Mas nós alugamos o local.
– Não me diga. Conheço bem o ex-dono desta casa. Era de Santiago – retorquiu
Nero, procurando mudar de imediato o rumo da conversa, a fim de evitar cair na
tentação de desaprovar o que tinha acontecido com a casa.
– Era uma vez.
– Há mais pessoas para me entrevistar?
– Peço um pouco da sua paciência.
Sentaram-se os dois por alguns minutos. Aquiles levantou-se da poltrona onde se
tinha instalado e pediu a Nero que o acompanhasse. Logo à entrada de uma grande
sala que se abria diante de si, Nero deparou-se com duas pessoas de costas viradas
para quem chega. Não havia luz suficiente para o trabalho de entrevista. Estavam
instalados em enormes poltronas. Nero não reconheceu nenhum deles. Não se
cumprimentaram e ficaram em silêncio durante uns instantes. Sentiu o soalho a
fugir-lhe debaixo dos pés. A sua frequência cardíaca acelerou e o suor escorria-lhe
pelo rosto. Trajavam uma indumentária de caqui à Mao Tsé-Tung, de barbas
desarranjadas e de ar imponente.

Domingos Barbosa da Silva 40


A estranha morte de um político

– Apresento-vos o Senhor Nero. – Proferiu Aquiles, saindo em direcção a uma outra


porta sem dizer mais nada.
– Prazer em conhecê-lo, Senhor Nero – estrondeou da pessoa com uma tez mais
clara do que a outra.
– Obrigado. Embora eu não saiba os vossos nomes, sinto-me feliz em ser-vos útil.
Os senhores conhecem o meu perfil e, se percebi bem, têm o meu curriculum vitae
nas mãos.
– Esteja à vontade Senhor Nero. Temos algo importante a discutir – retorquiu a
outra pessoa, pausadamente, com uma voz tensa emitindo um som indefinido.
Nero sentiu que enfrentava duas pessoas cujas vozes pareciam sair de um
instrumento musical muito potente, capazes de arrebatar uma multidão, de fazer
vibrar as cordas sensíveis do público, sobrepondo-se aos ruídos dos clamores dos
dissidentes e de tornar audível com clareza sem qualquer sistema de reforço
electrónico. As suas vozes imprimiam autoridade às palavras que proferiam e tinham
o poder de submeter o ouvinte ao silêncio e ao estado de alerta e atenção plenas.
Não gaguejava sequer uma palavra. Eram claras e concisas as palavras como se de
uma gravação bem redigida se tratasse.
– Nero Bettencourt? – Perguntou uma das vozes, num português de cariz cabo-
verdiano.
– Correctamente, Senhor.
– Chegou aos nossos ouvidos que anda à procura de emprego e não
compreendemos como é que um homem com a sua capacidade se encontra sem um
cargo importante. Parece até incrível.
Nero pensou em explicar-lhe a causa de estar desempregado depois de tantos anos
num emprego ao qual dedicara todo o seu brio profissional. Dizer que foi por causa
da sua consciência, iria complicar um possível emprego. Dizer a verdade, complicaria
a situação. Avançar com argumentos dessa natureza só serviria para lhe fazer a vida
difícil. Não era uma saída louvável naquele momento. Tinha de se sintonizar com as
ondas da rádio revolucionária. Melhor era remoer em silêncio os factos e deixar
acontecer o que está para acontecer. Para os diabos, pensa ele. Fui afastado do meu
cargo, pura e simplesmente, para dar lugar a uma pessoa que vota no partido do
chefe – murmurou em silêncio. Ao invés de contar toda a verdade que carregava em
si e o consumia por dentro, deu apenas a entender que a sua falta de emprego se
devia a pouca sorte.
– Aquiles deu-lhe a entender que pode conseguir um trabalho para mim.

Domingos Barbosa da Silva 41


A estranha morte de um político

– É verdade, Nero – disse o homem de tez clara, virando-se para o seu


companheiro, reflectindo. Foi de guarda-costas que falámos?
Aquiesceram ambos com movimentos de cabeça. Mas não se tratava de guarda-
costas na verdadeira acepção da palavra. Implica um trabalho que vai além das
costas a guardar. Seria um trabalho rentável, mas pouco duradoiro.
– Estamos preocupadíssimos quanto ao bem-estar de uma pessoa. Queremos que
você vele pela sua segurança – balbuciou um dos presentes.
O som da palavra “segurança” saiu-lhe da garganta como um crescendo
impressionante. Se a pessoa em causa se encontrasse nos arredores, decerto o
captaria. Talvez fosse o que ele pretendia, na opinião de Nero.
– Essa pessoa encontra-se em perigo por causa de um documento que vai dentro
em breve ser publicado e pode ser contra os interesses deste povo humilde das ilhas,
no entender de muita gente e também, contra os nossos interesses – continuou
afanosamente. – Temos de proteger essa pessoa ou evitar que esse documento saia
da gaveta. Não podemos permitir que tal aconteça. Por isso, pensamos, que um
homem com os seus talentos e antecedentes, resolveria com discrição a questão a
contento de todos. Trabalhamos aqui em assuntos de segurança e, por esta forte
razão, só usamos códigos e charadas. O Aquiles tem as charadas a decifrar. Ele dar-
lhe-á as instruções necessárias sobre o caso e o que deve dizer.
A carga sobre a palavra “discrição” foi de tal forma acentuada que invadiu toda a
enorme sala em que se encontravam. Nero aquiesceu com um gesto que mostrava
uma relutância profunda e a primeira coisa que lhe cruzou o espírito foi o facto ou o
rumor de que uma pessoa muito chegada de Daniel Delgado mantinha íntima
relação inconfessável com uma pessoa na capital (que muito bem conhecia pelo
nome), ou talvez com o inimigo ou concorrente destes entrevistadores, os quais não
queriam que algo de importância crucial fosse comentado em público, sobretudo
com o zunzum de algo iminente acerca de desacordos sobre mudanças na estrutura
do poder. Também lhe ocorreu que poderia estar a ser utilizado para qualquer coisa
suja/ ilícita que talvez não se coadune com o seu modo de ver e estar no mundo.
Pensou em como seria o jornal do dia seguinte. A esposa de X foi encontrada morta;
um dos melhores políticos do país atropelado pelo Toyota de... mas de qualquer
maneira, agarrou a oportunidade com ambas as mãos, aconteça o que acontecer.
Não analisou com profundidade a oferta de emprego, levantou-se e voltou a sentar-
se.
– Apesar de não conhecer a vossa identidade, preciso, no entanto, de mais detalhes
sobre o facto... e também, apesar das consequências que isto possa vir a ter, aceito
a incumbência se o pagamento for compensatório – declarou por fim.

Domingos Barbosa da Silva 42


A estranha morte de um político

– Como disse, o Sr. Aquiles lhe dará as instruções necessárias. Ele virá aqui ter
consigo dentro de 2-3 minutos. Espere aqui até receber ordens e instruções. –
Respondeu um dos presentes, saindo ambos em seguida sem pronunciarem mais
palavras.
Nero sentiu um suor quente a escorrer-lhe pelas costas. O vulto que lhe vinha dar as
últimas instruções entrou logo em seguida a passos largos.

Domingos Barbosa da Silva 43


A estranha morte de um político

Estimada Judith

Domingos Barbosa da Silva 44


A estranha morte de um político

Não quero ser longo.


Esta carta é para te dizer que preciso conversar contigo.
Urgente.
Há algo que me tortura. Não te sei explicar. Mas
pressinto algo trágico na minha vida. Só te quero falar,
por que se amanhã me acontecer algo de mal, tenho pelo
menos aliviado o peso que tenho sobre mim. Logo que
possa, dou um salto até aí, mas, entretanto, se for possível
vires cá, antes hoje que amanhã.
Acho que meia palavra basta para uma pessoa como tu.
Pode ser tarde demais se demorares a vir e eu não tiver a
sorte de te encontrar.
Abraços
Paín

Domingos Barbosa da Silva 45


A estranha morte de um político

Capítulo V

Ela levantou-se de manhã cedo e confidenciou qualquer coisa à empregada. Uma


pequena mala servir-lhe-ia bem. Assim, ninguém naquele meio pequeno, se daria

Domingos Barbosa da Silva 46


A estranha morte de um político

conta de que iria viajar. Apanhou um táxi e dirigiu-se ao aeroporto para uma viagem
que dura um pouco mais de meia hora. O voo foi agradável e toda a trajectória foi
feita com a cara posta num livro.
Quando desceu do avião, pôs os seus óculos de sol, mesmo sob um céu nublado,
mas dava-lhe um ar misterioso. Fazia um calor intenso, mas não se importara com a
temperatura. Saiu à rua em direcção a um táxi, e sem olhar para o taxista disse: leve-
me a um lugar qualquer no Plateau. O taxista obedeceu sem questionar. Nem o
taxista nem ela disseram uma palavra durante a trajectória, mas esta lançava-lhe um
olhar de vez em quando.
– Pode deixar-me aqui – sentenciou, pagando em seguida e saindo sem receber
o troco.
Tinha já passado a Igreja do Nazareno. Seguiu em passos lentos e firmes em direcção
ao Mercado Municipal. Vasculhou as ruas da cidade como se procurasse alguém
muito pequeno nas multidões de gente que ia e vinha. Não se sentiu segura naquele
vaivém de gente e foi-se, pouco a pouco, aproximando da praça pública. Sentou-se
num dos bancos e cruzou as pernas, lendo o jornal da semana. Ela conhece muita
gente na capital, mas gostaria que não fosse reconhecida naquele dia. Por isso,
trajou-se para tal. A impaciência tomou conta dela. Pegou na sua mala e apressou-
se em direcção ao edifício da Fazenda. Desceu estrada abaixo, pondo os pés nas
escadarias como quem não quer sequer incomodar as moscas. No fim da escadaria
sentiu um ar frio correr-lhe pelas costas e pressentiu que algo não estava bem.
Revirou a pequena mala com as mãos um pouco trémulas.
Voltou-se e subiu as escadas como se as contasse uma a uma. Manteve-se no lado
esquerdo do caminho até descobrir de novo a praça pública. Estacou durante uns
segundos quando reparou num indivíduo sentado numa das cadeiras do bar da
praça, Esplanada, que a olhava, com um copo na mão.
Ela pensou sobre o que estaria ele a beber naquele momento do dia. Porque estou
tão interessada naquele homem, nem me conhece, pensou para si. Ela olhou para
ele de soslaio por uns momentos e não disse nada, era melhor não dizer nada em
todo o caso.
Sentiu um mal-estar correr-lhe de novo pela espinha dorsal. Apressou-se a andar,
dizendo para si mesma: sou maluca. Queria expor-se o mínimo possível ao
atravessar a praça pública e queria encontrar uma sombra. Olhava ansiosamente
para trás, para os lados e por cima do ombro, em cada momento. Passava-lhe pela
mente um longo filme com uma série de promessas e palavras doces. Quando
chegou a um local apropriado, perto dos correios, pousou a mala no chão, encostou-
se a uma árvore por uns momentos, para recuperar o fôlego e renovar a sua

Domingos Barbosa da Silva 47


A estranha morte de um político

coragem, olhando em direcção ao mar. Aconchegou-se à sombra e esquadrinhou o


jornal da manhã. O mundo parecia-lhe quieto e belo naquele instante. Perdeu-se na
imaginação e, pouco tempo depois, deu por si num monólogo interno pensando que
a soma do pensamento humano é capaz de mover as rochas do sopé onde se
encontrava. Bastava haver fé e coragem suficientes. Há uma energia enorme no
pensar do homem capaz de fazer as coisas acontecerem – pensou. Se não fosse o
pensamento não estaria naquele lugar, naquela hora a pensar, pois tudo tinha uma
razão de ser. Tudo estava para acontecer. Os deterministas assim pensam.
Ela é uma pessoa de muita coragem, senão não se encontrava naquele sítio, naquele
momento. Havia muita energia nas suas determinações, havia muito idealismo nas
suas pretensões, mas havia, além de tudo isto, muita coragem. De coragem se
constroem grandes edifícios, grandes realizações. Só com coragem se ganham
muitas lutas. A luta que tem diante si há de ser ganha!
O monólogo interno continuava: criatura de Deus, que estás aqui a fazer? Tens
qualquer missão nesta terra? Que destino te traz para cá? Estás enleada em algo?
Que raio de situação embaraçosa é esta?
Deu um salto, mas abrandou os passos quando viu um homem num canto a fazer
xixi. Contudo, este não deu por ela. O homem cuspiu no xixi. Ela ficou a imaginar o
acto de cuspir e questionou-se sobre o porquê de todos os cabo-verdianos o
fazerem. O que significa esta mistura de dois líquidos corporais? Recordou que
alguém já lhe tinha revelado este segredo. A sorte dos homens. Pois, é a sorte!
Cuspindo sobre o xixi fica a sorte naquele que faz xixi. É um código cultural que pouca
gente compreende, mas que está patente na cultura. O homem passou a mão direita
nos cabelos, como se fosse um acto de limpar os dedos, e seguiu em direcção à Igreja
matriz sem se dar pela presença de alguém.
Sentiu-se só por um momento e deu-se conta da rarefacção do ar. Fechou os olhos,
de novo sentiu-se estranha, meio suspensa. Parecia que a sua alma saía do corpo e
pairava por cima de si mesma a observá-la. Começou a rir dentro de si, pois o riso
não lhe saía da boca. Não quero perder mais tempo, balbuciou para si.
Um estalido próximo fê-la voltar à realidade, lembrou-se da amiga e, levantando-se
com um salto, correu para casa dela. Estava apenas à espera que a hora combinada
chegasse para ir lá ter.
Dez minutos depois bateu à porta da amiga. Levou uma eternidade para que a porta
se abrisse. Sentiu, naquele momento, como se todo o mundo a estivesse a perseguir.
Elevou a mão para bater de novo quando a chave do outro lado fazia um semicírculo
com o ponteiro de relógio.

Domingos Barbosa da Silva 48


A estranha morte de um político

– Olá, querida, como estás? - Perguntou a amiga, acrescentando - estás mesmo


gira!
– Olá, estou bem, muito obrigada. E tu?
– Mais ou menos, querida. Conta-me as últimas notícias!
– Não tenho muito que contar. É a mesma coisa de ontem. O tagarelismo na sua
forma moderna. O mexeriquismo, portanto, coisas de gente de lugares tacanhos.
– Então vamos tomar um café, filha? Deves estar cheia de fome.
– Não digo que não. Estou a morrer de fome. O que tens para comer? – Perguntou.
– É um segredo. Mas sei que tu vais gostar muito...
– Então vamos lá que o tempo vai passando. Tenho muito que fazer. Estou em
serviço e não tenho lá muito tempo.
– Eu também vou trabalhar dento de alguns minutos. Tens aqui a chave e depois
vemo-nos mais tarde. Mas conta-me como foi o voo? E aquela malta toda?
– O voo foi bom. Estava um pouco nervosa durante a viagem. Ainda sinto os altos
e baixos descritos pelo avião, as turbulências e o barulho insuportável do motor. O
estômago ainda não está no seu lugar. A malta anda por lá naquela rotina diária. Já
sabes, a maioria sem trabalho. Ai, como estou nervosa.
– Depois tomas um uísque e tudo se recompõe. Vamos jantar juntas?
– Não, uísque não. Estou em serviço. O jantar fica para a próxima vez. Vou estar
ocupada até mesmo muito tarde.
– Conta-me, como vai o Daniel?
– Sempre o mesmo Daniel Delgado. Teimoso, mas vai bem! Anda sempre
atarefado.
As duas conversaram sobre a vida conjugal, antigos namorados, viagem aos Estados
Unidos da América, a vida na capital, a ilha natal e projectos para o futuro. Judith
olhou para o relógio e recordou à amiga a importância de chegar cedo ao trabalho.
Mesmo sendo chefe, ela deve servir de exemplo. As duas apressaram-se a arrumar
os pratos e as chávenas e o resto de catchupa guisada com ovo estrelado, moreia
fritada e bolo caseiro. Depois de uns minutos, sem dizer nada, a amiga despediu-se
com um até logo e com a promessa de se encontrarem mais tarde. Judith sentiu
como se fosse um alívio ficar só naquele momento de reflexão. Retirou do bolso um
pedaço de papel com algo codificado. Não conseguiu descodificar a charada durante
a viagem e queria usar um pouco de tempo para o fazer. Sentiu-se mal por não saber

Domingos Barbosa da Silva 49


A estranha morte de um político

o que lá estava escrito ou por ainda não o ter decifrado. Contudo, estava confiante
que não seria difícil decifrá-lo antes do grande encontro. Pegou no papel e leu-o de
todas as maneiras possíveis. Usou do espelho, nada. Leu de traz para diante, nada
adiantou. Recordou as instruções que recebeu anteriormente. Meta estes códigos
dentro da sua carteira. Vamos precisar deles! Se perder este pedaço de papel,
memorize a segunda cifra que vai instrui-la sobre o propósito da primeira. A outra
pessoa com quem vai travar conhecimento tem os mesmos códigos e vai conseguir,
sem muito esforço, decifrá-los.



Para obscurecer a mensagem foi propositadamente usado um código. Ora, a


criptanálise trata de códigos e de como quebrá-los num mundo de segredos e
subterfúgios. Vamos divertir-nos um pouco para os quebrar e revelar os segredos ali
escondidos. Excluímos à primeira vista, a existência de anagrama na charada. Para
os iniciados em alfabeto grego, era fácil fazer a correspondência com as respectivas
letras do alfabeto latino, conhecendo os símbolos e as suas origens. Assim fica o
código depois da substituição das letras:

Ovtamnoesreolriamni

Não era um segredo indecifrável, mas era algo de importância capital. Ela falava para
si mesma com uma voz forte e nítida. Não hesitava nas palavras. Era uma mulher
destemida. Não usava maquilhagem e vestia-se muito bem. Uma figura de culto na
terra. Defendia ferreamente os direitos da mulher, uma feminista autêntica.
Reparou que na margem do pedaço de papel se encontrava uma outra palavra
igualmente ilegível e voltou a folha de todas as maneiras sem conseguir decifrar o
que lá estava. Alguém vai precisar da primeira cifra daqui a poucas horas.



Assim fica quando transposto ao nosso alfabeto:

Domingos Barbosa da Silva 50


A estranha morte de um político

Tnreuroocbneett

Estamos perante uma cifra de transposição simples – comentou baixinho,


guardando depois o pedaço de papel no mesmo lugar de onde o tinha tirado.
Sentou-se pensativamente e depois descontraiu-se numa poltrona.
Era o dia mais longo de que se lembrava. Trazia consigo um livro o qual já tinha lido
mais de metade. Deitou-se no sofá para continuar a lê-lo, mas de minuto em minuto
olhava para o relógio como se fosse apanhar um avião para longe. Sentia-se
incomodada com a situação. Levantou-se para tomar um banho e compor-se.
Depois, vestiu uma blusa branca e uma saia preta. Apanhou o cabelo num rabo-de-
cavalo, o que lhe conferia um aspecto juvenil. Tens de ser corajosa mais uma vez,
mulher, disse para si mesma.
Judith era, e sempre foi, uma das belezas que habitava a ilha atlântica em que
nasceu. Com olhos castanhos, sobrancelhas pretas, estatura forte, boca pequena,
nariz com traços europeus, coxas bem-feitas, tudo combinado num visual que podia
ser intimidante. Nasceu e cresceu no meio de uma família humilde e respeitável.
Trabalhava numa firma privada com contactos a todos os níveis da sociedade.
Mulher inteligente e perspicaz e as suas qualificações profissionais eram tão
elevadas que nunca ficou, um dia sequer, desempregada. No decorrer dos anos
aperfeiçoou-se no seu ramo de trabalho, galgando diversas colocações profissionais.
Era esbelta e com o avançar de idade ficou mais simpática. Adorava vestir-se
elegantemente. Uma mulher que mostrava ser uma ferrenha lutadora pelos direitos
da mulher e o seu papel na sociedade. Podemos dizer uma feminista e uma cabo-
verdiana de gema.
No seu tempo de liceu, lutava por uma escola mais bem organizada e por um ensino
mais abrangente, tendo granjeado muitas amizades, entre os quais, o Paín.
Convicta no que pretendia almejar, argumentava de tal maneira que não deixava
qualquer espaço para dúvidas aos amigos da tertúlia. Falava com autoridade e
clareza. Escutava com atenção todos os que a si se dirigiam.
Apesar das suas relações conjugais que flutuavam entre boas e más, considerava-se
uma mulher flexível e de espírito aberto, com a medida justa de tolerância e humor.
No espaço de poucos meses a sua vida desviara-se do seu rumo, para territórios bem
conhecidos, que ela própria não conseguia explicar ao mundo. Mas era o que queria

Domingos Barbosa da Silva 51


A estranha morte de um político

na vida: ser livre e independente. Ela estava a deixar-se ir com a corrente do tempo
moderno, com a moda.
As atuais relações laborais não eram boas. Quando o seu chefe promovera uma
prima por afinidade, passando por cima dela que era mais qualificada, mais
inteligente, com mais antiguidade no ofício, mais simpática e mais atraente, ficou
furiosa e estupefacta. O medo de perder o emprego fê-la calar-se até chegar a hora
própria para desferir um murro psicológico no estômago do chefe.
Tinha-se-lhe aberto uma janela de oportunidades e pensava mandar o chefe às favas
quando essa janela estivesse escancarada. Contudo, pensou ser melhor deixar o
chefe em paz e fazer da sua vida o que melhor entendesse. Era qualificada para
outros empregos e outras eventuais oportunidades. Mesmo assim, ocorrera-lhe a
ideia de espremer a garganta do chefe até que os olhos lhe saltassem das órbitas.
Conseguiu acalmar os nervos e deixou que o tempo curasse o mal.
Portanto, Judith não estrangulou e nem espremeu os olhos do chefe para fora da
órbita por que não deixou que a emoção dominasse o seu raciocínio. Tinha controlo
sobre as suas emoções – uma virtude que sempre a recompensara em momentos
difíceis.
Um clima de medo instalou-se entre ela e o chefe. Sabia que os homens reagem
sempre como animais quando estão colectivamente irados. A ferramenta do silêncio
é o estandarte dos fortes – pensou. Portanto usou o silêncio como resposta. Preferiu
conscientemente ser fraca por fora, mas livre e forte por dentro. Pensava sempre na
frase de Galileu Galilei que devemos escrever os benefícios em bronze e as injúrias
no ar. Esta frase abriu as comportas da sua emoção e evitou que um episódio
turbulento destruísse para sempre os seus relacionamentos na vida. Isto é honrar a
sua própria consciência. Gostava de benefícios mais palpáveis, mais concretos. Ela
já os tinha na mão. Além do mais, sempre pensara em alcançar algo mais alto na
vida do que estar a discutir assuntos que não a levam a lugar algum. O progresso é
possível quando a livre vontade, a liberdade de pensar e circunstâncias trabalham
de mãos dadas. Cogitava profundamente sobre como encontrar as palavras certas
para exprimir um pensamento que a preocupava no mundo: o de deixar o seu
emprego e de como dizê-lo ao chefe sem despertar a curiosidade do meio pequeno
da ilha. Encontrar uma maneira de dizer isto, é como acertar um alvo a léguas de
distância, é como encontrar uma agulha que caiu no mar.
Antes das férias de verão, recebera um convite especial que ia justificar o
despedimento do seu emprego. A partir daquele momento, as forças do mal
começaram a trabalhar em conjunção com as forças do bem. Sabia perfeitamente
que o amor arrasta o ódio consigo. Disto ela estava certa. E isto pode ser usado por

Domingos Barbosa da Silva 52


A estranha morte de um político

terceiros em proveito próprio. As cinzas do mal estavam já lançadas sobre ela. E era
de se aproveitar enquanto os dois ainda tinham olhos um para com o outro.
Os planos futuros começaram a surgir na cabeça de Judith. Ela procurava sempre
espaço para se refugiar. Gostava de passeios aos domingos e sempre acompanhada
de algumas amigas. Baía das Gatas e Calhau eram os seus lugares preferidos. Um
fim-de-semana num e outro noutro. Mas a sua preferência era Calhau, onde se
sentia mais à vontade, mais poética, mais liberta e mais segura de si mesma. Aí,
sentada perto do mar, os seus olhos, de castanho-escuro profundo, fixavam-se na
elegante extensão das pedras negras de calhau que eram uma atracção do lugar
como ponto turístico e de refúgio. Em Calhau sentava-se sempre sobre uma pedra
grande, de costas viradas para o mar, observava o panorama à sua frente. No centro
do panorama, uma casa cercada por uma parede que transmitia e aludia a ideia de
privacidade, de sossego e de descanso. Pensava um dia comprar a casa e o cercado
onde passaria as suas férias de verão e os fins-de-semana. Calhau foi e é para ela um
lugar que a fascina. Um lugar para repousar e construir relações sociais.
Pensava sempre no convite que tivera tido antes do verão e qual o seu verdadeiro
conteúdo. Qual o resultado do encontro marcado para o mês de Setembro?
E, quando chegasse a Capital do país, faria os seus planos para o resto dos dias que
lá iria ficar. Passeios diversos. Contactos a todos os níveis da sociedade.

Domingos Barbosa da Silva 53


A estranha morte de um político

Capítulo VI

Na manhã de um dia especial do mês de Setembro, pensou alugar um carro para dar
umas voltas ao redor da capital. Estava em casa da sua amiga, aí por voltas das onze
horas da manhã. Dois indivíduos acabavam de sair da casa de uma amiga de Judith
e dirigiram-se a um táxi estacionado logo a seguir a um prédio de 2 pisos.
Aproximou-se da janela e certificou-se de que ninguém a incomodaria. Judith

Domingos Barbosa da Silva 54


A estranha morte de um político

pensou em Paín e fez-lhe um telefonema. Levantou o telefone e marcou ou número.


Ao terceiro toque, ouviu a voz que muito bem conhecida.
– Sim, quem fala?
– Sou eu!
– Ah! Como estás?
– Bem, estou apenas a ligar para conversarmos um pouco.
– Como estás hoje?
– Muito bem! Estava a pensar em ti, ao passar pela praça! Aproveito para te
agradecer pelas notícias que tens para me dar e pela confiança! Veremos mais tarde.
– Igualmente, pelo interesse mostrado até aqui. Obrigado pela maravilhosa
amizade!
– Tu também! O mundo tem os olhos pregados em nós. Tens algum remédio contra
esse mal?
– Tenho! Tenho sim. O tempo! O tempo cura tudo! Vamos dar tempo ao tempo. E
tu tens algum?
– Sempre tenho! Vamos dar umas voltas depois da reunião de trabalho conforme
combinado?
– Sim. Telefono-te mais tarde! Vou acertar algumas coisas primeiro, isto é, vou
rever o que tenho a dizer ao senhor Presidente. Já sabes que temos de estar sempre
bem preparados! Até logo.
– Tchau, beijinhos. Admiro-te muito. Boa sorte e que tudo corra bem!
– Também eu. Vemo-nos mais tarde – concluiu Paín.
Judith sabia que sair com ele, iria mais cedo ou mais tarde, despertar a curiosidade
da gente tacanha da ilha. A nossa cultura é estranha. Andar acompanhada por
alguém do sexo oposto é sempre malvisto, mesmo quando este andar é platónico,
relacionado com trabalhos de interesse público. Mexeriquismo dos lugares
pequenos. Sabes o que vai pelas ruas hoje? Fulano e Beltrano estão... Paín não queria
que ela pensasse que a estava a rejeitar, era apenas um passeio depois do trabalho.
Como representante de uma nação, tem de respeitar as regras de jogo e observar
os códigos morais. Judith pensava nas suas relações conjugais e Paín nas dele. Por
estas razões, ambos têm de tomar muito cuidado, para não dar ao mundo o que
falar. O tagarelismo da nossa terra é perigoso. Quando desligaram o telefone,
pensou Paín acerca do enorme interesse que ia despertar com o Projecto sobre a

Domingos Barbosa da Silva 55


A estranha morte de um político

restruturação do poder e o Caminho para o pluripartidarismo em Cabo Verde. O


projecto não estava maduro para a sua publicação e, se chegar ao conhecimento do
público antes da sua maturação, sofrerá um desgaste no seu status quo que não é
bom para um homem do seu calibre e para o futuro da nação. Sabe que muita gente
quer denegrir o seu nome em proveito próprio. Qualquer passo precipitado,
remontará à mais alta responsabilidade e desmoronará tudo.
Judith ficou impaciente por não saber ao certo se iriam sair ou não. Tinha já alugado
um carro. Os companheiros de trabalho já tinham comentado sobre o seu
nervosismo e pediram-lhe para se acalmar um pouco. Mas quem cai no mar tem de
nadar.

Capítulo VII

Naquela manhã de sexta-feira em que as coisas estavam a correr como planeado,


foi a primeira vez que Umberto falou com Daniel Delgado. Encontraram-se logo a
seguir ao prédio pertencente ao Ministério da Educação, naqueles dias de
memoráveis lutas entre o grupo de Lisboa e o grupo trotskistas. Um amigo comum
apresentou-os e, uma hora depois, trocaram os seus cartões-de-visita e cada um saiu

Domingos Barbosa da Silva 56


A estranha morte de um político

para os seus afazeres. Cada um pensando nos problemas em que estavam


implicados.
Delgado era, aparentemente, elegante nas suas maneiras, no sorriso, janota no
traje, simpático na atitude, mesclado de uma certa seriedade, barbas cinzentas um
pouco malcuidadas e seguia o código da moda que reinava na altura. Era severo na
política e, muitas vezes, esquecia que tinha um coração dentro do peito, mas outras
vezes, parava para escutar o que os outros tinham para dizer. A política era o seu
refúgio. Delgado era casado, mas trazia sempre um ar de solteirão. Alguns amigos
diziam-lhe que devia dividir o tempo entre as duas coisas mais elevadas que a
natureza deu ao homem: a inteligência e o coração. Da inteligência, sobejavam-lhe
os dotes de bem falar e de argumentar, mas do coração, faltava-lhe muito. Era um
sem-coração em tudo que se envolvia.
Dava a impressão de que ainda não estava preparado para aturar uma esposa que
só prefere reparar no comprimento da sua gravata ou da saia das suas amigas.
Preferia um debate sincero sobre os problemas sociais. Não interrompia uma boa
leitura para prestar atenção a namoros nas ruas ou na televisão. Esta pessoa pode
vir a ser uma boa mulher, mas não uma óptima esposa, pensava ele. Ele precisava
de uma esposa que vivesse na serenidade do dever. Precisava ainda, de exercer o
seu machismo de forma tradicional. Mas, afinal precisava era de uma besta de carga.
Delgado estava sentado no seu gabinete quando alguém lhe batia à porta
anunciando a chegada de Umberto. Pediu à secretária que deixasse entrar o recém-
chegado. Apressou-se em direcção à secretária, balbuciando-lhe qualquer coisa ao
ouvido.
– Você é pontual como um rei – disse alegremente Daniel Delgado
– É um dever de todos os cidadãos. A pontualidade é coisa rara na nossa terra.
Quero servir de exemplo. Não me agrada esta coisa de não cumprir os horários. Não
se coaduna com o meu modo de ser e nem com o tempo em que estamos a viver. A
nossa terra precisa, acima de tudo, de pontualidade e responsabilidade.
– É sim, mesmo. Obrigado por não se ter esquecido.
– O dever e a responsabilidade acrescentam-nos o respeito pelos outros, pelo
tempo dos outros. E quando os outros são colocados na linha de frente das atenções,
estamos a valorizar as nossas relações. Estamos a contribuir para um mundo melhor.
– Aprecio as suas palavras, Umberto.
Ambos deixaram-se cair na cadeira. Umberto Andrade é formado em medicina
tropical e forense. Depois de ter completado os seus estudos, desempenhava

Domingos Barbosa da Silva 57


A estranha morte de um político

algumas funções políticas além de médico assistente no hospital da capital. Os dois


sentaram-se frente a frente. Depois de uns segundos sem nada dizerem, Delgado
quebrou o silêncio:
– É, precisamente, responsabilidade, o tema deste encontro. Não sei se o senhor
acredita no destino ou melhor, se existe um deus do bem e um deus do mal em todos
os conflitos travados entre os homens. Eu não acredito nisso, não sou fatalista, mas,
além da responsabilidade, acrescento algo que adoro mais e rima com ela, a
confidencialidade.
– Bem, o destino é a vontade do homem. Todos os homens criam os seus destinos –
cortou Umberto, um pouco preocupado. Quanto à confidencialidade, adianto-lhe
que sou profissional de saúde, portanto estou comprometido com o segredo
profissional.
– Então estamos de acordo neste assunto. Penso que nascemos com a hora de
morrer marcada. Se um indivíduo atropelar um outro na estrada, estava tudo
previsto. Assim, tal indivíduo não devia ser responsável pelo atropelo causado...
– Senhor Delgado, não penso assim. Todos nós somos responsáveis pelos nossos
atos. Sou da opinião...
Umberto sentiu um certo mal-estar a circundar. Pensou em sair e ficar sozinho.
Sentiu-se impotente e não encontrou palavras adequadas para explicar-se. A língua
humana é impotente para exprimir certos afectos do conteúdo da alma. Estava
condenado a não dizer nada ou a dizer mal, pois sentiu-se fraco e não tinha forças
para continuar a conversa. Ainda não tinha entendido o propósito do encontro e os
nervos estavam a ponto de explodir.
– Tenho um assunto delicado para esclarecer consigo – interrompeu Delgado,
dando à voz um tom suplicante e melífluo, mas baixando a voz, como se alguém
pudesse ouvi-lo no silêncio e na solidão daquele quarto: – este assunto é
extremamente confidencial...um trabalho médico cujo dia, lugar e hora ser-lhe-ão
comunicados dentre em breve.
– Sim, senhor, farei o que estiver ao meu alcance, embora a minha consciência não
tarde em me acusar e apontar para algo que está acima do que é permitido...
Seguiu-se um curto silêncio e os dois entreolharam-se por breves minutos, sem dizer
nada, mas nada, como a lerem na alma, um do outro, as prescrições do destino e da
ética. Umberto levantou-se e sem poder dizer mais palavras, desceu as escadas,
particularmente irritado, sem saber para onde virar a cara. A conversa com o agente
deixara-o nervoso e quando a proposta começou a desenhar-se-lhe no espírito,
sentiu os seus passos tornarem-se pesados e com todos os olhos do mundo postos

Domingos Barbosa da Silva 58


A estranha morte de um político

sobre si. Podia dizer mais coisas ao eventual futuro patrão se desde o princípio
tivesse conseguido ler mais a fundo o coração dele. Chegou à praça pública sem
saber como lá foi ter. Olhou algum tempo à sua volta e, mentalmente, visualizou o
patrão com quem havia falado há poucos minutos. Mas o espírito tentou fugir-lhe
da realidade que o cercava. Repensou a situação e até que ponto uma recusa ao
pedido iria magoar o chefe e sofrer as consequências da recusa, mas varreu logo do
espírito os receios que lhe nasciam de tal interrogação, afinal tratava-se de uma
ordem de um superior. Mas antes de os arredar de si, pesou-os e sentiu-os a calcar-
lhe na alma. Por mais que tentasse arredar-se, o que o futuro chefe lhe dissera
revolvia-lhe as entranhadas, trazia-lhe à alma as lembranças de actos que não se
coadunam com o seu modo se ser e pensar o mundo. Umberto é um homem que
veio ao mundo já com a ruga da reflexão do espírito, nunca dispara um desaforo sem
pensar duas vezes, sem contar de dez até um, não se perde no redemoinho da
maldade do mundo. Ele não precisava de conselhos porque o melhor deles não é
melhor que a voz da sua própria consciência, que é o relógio da vida. Pensou
enquanto fazia uma autópsia, nas conversas com o Daniel Delgado e durante alguns
minutos, perdeu-se no mundo da imaginação.

Domingos Barbosa da Silva 59


A estranha morte de um político

Capítulo VIII

Na altura em que corria uns zunzuns sobre um plano ou melhor a existência de uma
proposta para uma mudança na estrutura do poder, uma proposta que minava o
Artigo 4º da primeira Constituição da República cabo-verdiana, surgiu um
movimento radical no seio da sociedade, contra todas as mudanças possíveis no
sistema vigente de então. Algumas pessoas (anti-mudanças) aperceberam-se, muito

Domingos Barbosa da Silva 60


A estranha morte de um político

cedo, de que tinham um problema grave que afectaria tanto a sua ideologia como o
interesse próprio. Afiliaram-se ao Partido-único para construir um Estado sob
controlo de uma direcção perpétua. Outros viram, muito cedo, o perigo da
perpetuação do poder que não deixava espaço para outra reflexão que não fosse a
do Partido-único e esforçaram-se para contornar o poder de forma democrática,
mexendo na sua estrutura interna através de diálogo, começando no topo. Na
iminência das negociações, a proposta ou projecto de mudança teve eco significante
nos meios de comunicação e os anti-mudanças reuniram-se no casarão perto do mar
em Tarrafal de Santiago, para discutirem a inaceitabilidade das negociações que
estavam prestes a decorrer na capital do país. Eles engendraram um plano para
neutralizar ou repelir o resultado das negociações. Até tinham um nome para ele:
Plano Alcatraz. Atiravam-no quando as duas partes negociantes se encontrassem no
auge do trabalho. A queda do Artigo 4º seria um sério arrombamento no casco do
navio omnipotente que os conduziria a um Estado utópico com rumo a um futuro
cheio de luz e guiados pela estrela negra nascida no oriente. Tal arrombamento iria
mexer no bolso de muita gente. O Plano Alcatraz tinha como propósito embargar as
negociações para que estas não alterassem o sagrado Artigo 4º.
Por outro lado, havia também um outro grupo responsável pela execução da
operação em vista, reunidos em directo contacto com os anti-mudanças,
pretendendo não ter nenhuma conexão política. Ocupavam um pequeno
apartamento construído numa zona limítrofe da capital. Daí circulavam todas as
informações de cariz secreto. Era conhecido entre os agentes da polícia política
como centro de operação Alcatraz. Nesse tumultuoso ano de 1989, Nero andara
com uma chave do apartamento no bolso e comportava-se como se fosse um turista.
Pensou na última vez que tinha entrado naquele apartamento. Tinham-se passado
6 meses desde o último falhanço na tentativa de apanhar o Ministro da
Administração Pública. Na altura, foi avisar ao chefe da operação Alcatraz que os
planos tinham sido descobertos pelos seus inimigos e de que chegara a altura de
regressar à casa para um melhor plano de acção. Passado o tempo necessário para
um novo avanço, o chefe de operação assegurara-lhe que desta vez não ficariam
sinais da sua passagem nesta ilha. O lugar seguro tinha possibilidades de
comunicação segura e situava algures na Avenida 13 de Maio. Nero dispunha de
instrumentos afinados que eram identificados logo que entrassem na linha segura
que transferia todas as informações para o Centro de Operação Central que, por sua
vez, dava ordens finais para a execução da operação. Judith seguia de perto todos
os movimentos e informações concernentes aos planos que vinham do Centro de
Operação.

Domingos Barbosa da Silva 61


A estranha morte de um político

Os preparos para o desfecho final foram breves e naquele casarão cercado com
paredes altas, brancas, telhado cor de tijolo e guardado por cães raivosos, situado
mesmo sobre um rochedo em que as ondas do mar constantemente batiam,
orquestrando as noites longas com as suas melodias monótonas, reuniram-se um
grupo de indivíduos encarregados pelo Plano Alcatraz. O sol de Tarrafal de Santiago
mimava as rochas altivas e as praias nos arredores, segredando aos meninos que
não se podiam banhar nas proximidades do casarão.
O Plano era codificado. Em Alcatraz há ondas de até 7,5 metros de altura nas horas
vespertinas. A utilização duma frase será interpretada pelo agente num abrir e
fechar dos olhos. Alcatraz é a luta de poder. Ondas de 7,5 metros, significa às 19.30,
Camarada Bettencourt, era um código para um agente que se encontrava na Praia.
O KK significa o Quebra-Canela e um dia santo todos os anos, assim como, todos os
anos há uma sexta-feira santa.
Aquiles entrou a sede com passos apressados pedindo desculpas pelo atraso. Vestia
uns jeans azuis e uma camisa de caxemira de cor cinza. Estava a acertar alguns
assuntos com uma pessoa muito interessante que iria ajudá-los no Plano Alcatraz.
Penumbra avançava pelas ruelas sem gente, com apenas algumas vendedeiras com
cesto na cabeça a gritarem o nome do produto que vendiam, em direcção ao casarão
sobre o mar. Na mesa ao lado da cadeira de Aquiles estava um monte de jornais
dispostos de forma que os cabeçalhos ficassem visíveis. O que estava por cima foi
atirado para o colo de Sombra. Quando Penumbra finalmente entrou, já o Aquiles
se encontrava impaciente e com cara de poucos amigos. Não disse nada e nem se
desculpou pelo atraso.
Um empregado colocou-lhes à frente uma garrafa de Black Label, juntamente com
uns copos de cristal. Aquiles acendeu um cigarro e serviu-se de um copo de uísque
com gelo. O empregado diminuiu a intensidade da luz enquanto um desconhecido
alto e corpulento se sentava ao lado de Aquiles. Este inclinou-se para a frente e
murmurou-lhe umas palavras que o fizeram encolher os ombros enquanto
endireitava a gravata.
– Estamos aqui por razões de segurança. Escolhi este lugar sossegado onde
possamos falar sem ser escutados e vistos – disse Aquiles para sair do silêncio
perturbador. O Sombra empurrou o jornal em direcção a Aquiles e ao homem alto e
corpulento. Na parte da frente, na segunda coluna está: Um encontro com o
Presidente da República. O Conselheiro vai ser ouvido pelo PR sobre a possibilidade
de uma abertura política. Parece-me que o conselheiro já fez a sua primeira tentativa
para convencer o chefe – acrescentou.

Domingos Barbosa da Silva 62


A estranha morte de um político

Não se deve esquecer que a polícia política se encontrava por todos os cantos das
ruas do país. Estes tipos de polícias acham que têm obrigação de se infiltrar em todas
as reuniões e comunidades de exilados e dissidentes. Têm os ouvidos ligados a todas
as antenas do país e não só. Estão em todos os sítios que se pode imaginar.
– Pois fez, e saiu mais aliviado do que quando entrou para o encontro – replicou o
Sombra.
- Acho que não demorou muito tempo lá dentro. O que teria acontecido? – Ripostou
o desconhecido.
– Olha, uma coisa. Este teu agente é um homem a quem se pode confiar uma
missão importante como esta? – Perguntou Sombra a Aquiles.
– Ora, é um homem muito inteligente, muito leal e um dos melhores – respondeu
Aquiles.
– E os códigos estão claros para todos? – Questionou o Penumbra.
– Dei instruções a todos e espero que se não estivessem claras alguém me
contactaria ou ele contactaria os mais achegados na operação – asseverou Aquiles.
– Temos os recursos necessários à disposição para continuarmos a passos seguros?
– Indagou o estranho.
– Com certeza. Aqui não nos falta absolutamente nada – garantiu Aquiles.
– Bom, esta é a melhor notícia de hoje. Vamos levar um pouco da justiça ao
chamado Projecto de estruturação do poder e o caminho para o pluripartidarismo
em Cabo Verde. Não quero que o meu povo venha a sofrer só porque um homenzinho
quer mudar o regime. Só para depois nos deixar com migalhas do pão que vão
usufruir sem lá muito esforço. Não queremos migalhas, minha gente. Queremos o
pão todo – concluiu o estranho.
Depois de uma curta reunião e esclarecido o plano, levantou-se do assento e
afastou-se. Uns minutos depois, tinha desaparecido pela povoação dentro sem dizer
mais nada. Os outros arrepiaram-se com o comportamento do estranho e depois
cada um saiu à vez adentrando o ardente sol do dia.
Mais tarde, um pouco depois da meia-noite, abordaram um iate imponente que
flutuava logo à frente do rochedo que amparava o casarão. O iate tinha por costume
desaparecer durante a noite e aparecer no mesmo lugar na manhã seguinte. Um
outro iate seguiu uma hora mais tarde com o estranho a bordo.

Domingos Barbosa da Silva 63


A estranha morte de um político

Capítulo IX
Hotel Crioulândia!

O desconhecido, alto e forte, desembarcou na praia Gamboa às três horas da


madrugada, segurando na mão uma sacola. Quando pisou a areia viu o Seminário de
S. José emergir à esquerda como uma fortaleza a espreitar o inimigo que entra pelo
mar. Sentiu um alívio ao pisar a estrada de Chã d’Areia depois das sacudidelas do

Domingos Barbosa da Silva 64


A estranha morte de um político

iate no mar revolto. Sentiu a aragem amena da noite e reparou nas fachadas de
todas as cores, em degradação e com os telhados a emprestarem-lhes um certo
toque familiar. Era como se todas as coisas circundantes o acolhessem num
aconchego protector de mãe à espera de um filho há muito tempo ausente.
Tinha uma fome de lobo. Não comia desde que entrou no casarão em Tarrafal. O
comandante do iate não lhe ofereceu nada para o estômago, mas mesmo que o
fizesse teria vomitado tudo. Agora, tinha de comer e dormir. Foi directamente ao
seu quarto no hotel Crioulândia.
Antes de ir para cama, dispensou alguns minutos para se dedicar ao assunto delicado
do dia. O assunto permanecia presente no seu espírito e recordou o resumo feito na
reunião passada.
- É preciso ser forte para ter sucesso num assunto do género - disse Aquiles antes de
se despedir dele.
A prioridade era ver o problema resolvido no decorrer do dia e depois arranjar
maneira de cortar relações com Aquiles e os seus comparsas para toda a vida, pois
estava farto de se ver reduzido a um mero instrumento nas mãos de um grupinho
de pessoas sem escrúpulos.
O estranho meteu-se debaixo do chuveiro e em seguida foi directamente à cama
pensando que em poucos dias se tornaria de novo senhor de si mesmo, longe dos
sem-corações, dos sem escrúpulos, dos covardes que querem possuir tudo e todos.
No dia seguinte, depois de um banho reconfortante, assomou-se à janela do seu
quarto e observou o caos que reinava nas ruas. Carros de chapa amolgada com
buzinares impacientes e condutores maldispostos enchiam as vias traficais da
cidade. O estranho de olhos castanhos e cabelo encaracolado voltou à sua poltrona
e estudou as suas opções. Depois, pensou em descer a escadaria e tomar um bom
pequeno-almoço. Porém, desistiu da ideia, pois podia aplacar a fome com o que
tinha no quarto. Era preciso não se expor a olhos atentos durante a sua estadia no
hotel Crioulândia.

Domingos Barbosa da Silva 65


A estranha morte de um político

Capítulo X

Fátima insistiu em continuar a conversa do último dia. Mas Renato só queria


continuar num ambiente mais propício e não num em que muitos estavam com os
olhos pregados nele. Ela teimou em continuar a conversa e pediu que Renato, em
vez disso, falasse então, acerca de qualquer coisa sobre si mesmo. Que falasse sobre
a sua vida, família e crescimento desde a meninice. A conversa virou-se para um

Domingos Barbosa da Silva 66


A estranha morte de um político

tema diferente da do dia anterior. Ela repisou teimosamente o mesmo assunto e foi
de novo directamente ao tema:
– Ora, fala-me de ti. Como foste educado, como cresceste, etc.
– Ora bem, não é muito fácil e confortável falar de si mesmo. Saltitando a história,
posso contar-te alguma coisa que ainda retenho na memória sobre a minha pessoa.
Só tinha 9 anos. Recordo nitidamente um dia quando, com muita raiva, dei um
pontapé a uma bola que foi bater violentamente na janela de um carro estacionado
no outro lado da rua onde morávamos. A minha mãe chamou-me e com imensa
paciência e autoridade, agarrou nas minhas duas mãos esqueléticas e com
maviosidade na voz, pediu-me um grande favor.
– Filho – disse-me ela – fecha os teus olhos. Respira fundo durante alguns
segundos. Deixa o ar entrar. Conta até dez. Agora deixa o ar sair também durante
dez segundos. Agora, vamos pensar no que fizeste há pouco. Deixa o ar entrar
novamente. Pensa na tua raiva. Ela ainda está aí dentro de ti. Não está? Consegues
identificar o que causou a essa raiva? Agora, deixa todo o ar sair dos teus pulmões
devagarinho e sorris para a tua raiva, aceita-a. Abre os olhos. Quando, numa
próxima vez sentires raiva, faz este exercício duas ou três vezes antes de dar um
pontapé na bola ou em qualquer coisa. Está bem?
– Mas porquê mãe? – Indaguei curiosamente.
– Vou-te explicar: fecha os olhos de novo. Agora vais lembrar-te daquele dia em
que completaste 5 anos. Estás a ver-te como um rapazinho de 5 anos? Vamos fechar
os olhos de novo. Deixa o ar entrar devagarinho em ti. Visualiza-te como uns 5 anitos
a brincar aqui mesmo à porta.
– Sim mãe, estou a ver-me realmente a brincar. Mas o que significa isto? –
Questionei eu novamente.
– Repete de novo e inspira o ar durante cinco segundos. Estás a ver aquele rapazito
que dependia de mim, frágil e vulnerável? Agora, expira todo o ar devagarinho e diz
para ti mesmo: eu fui frágil e dependente da mãe, agora vou sorrir para o menino de
cinco aninhos que fui, com todo o meu coração.
– Mas, por que vou fazer isto, mãe? Não quero mais – protestei.
– Só mais um bocadinho filho – insistiu. Agora mais uma coisa. Fecha os olhos e
inspira devagar o ar fresco desta rua. Vamos pensar na tua mãe como uma criança
de 5 anos. Quando expiras o ar, dás um sorriso àquela criança que a tua mãe foi.
Depois, faz o mesmo imaginando o teu pai como o menino de cinco aninhos que ele
foi. Tanto a tua mãe como o teu pai foram frágeis e vulneráveis quando eram

Domingos Barbosa da Silva 67


A estranha morte de um político

crianças. Imagina essas crianças que fomos, enquanto expiras o ar, sorris com
compreensão e amor, abraçando aquelas crianças que a tua mãe e o teu pai foram.
Eles também precisavam de alguém que lhes desse amizade e carinho como estamos
a dar-te. A eles também era negado o pedido de ir dormir com os amigos nos fins-
de-semana.
Porque faço isto, meu filho? Simplesmente para te fazer compreender uma coisa
importante na vida. A tua raiva ou o teu desespero faz os outros sofrer e quando os
outros sofrem tu sofres também. Podemos aliviar a raiva ou o ódio que temos para
com os outros, simplesmente, abraçando os nossos sentimentos de raiva ou de ódio,
reconhecendo a sua presença dentro de nós. Ao respirar fundo, pensando que estás
com raiva e oferecendo-lhe um sorriso, acaba por acalmar a própria raiva, a própria
dor.
Vamos fazer mais um exercício, filho. Depois vais brincar à vontade. Diz para ti
mesmo:
• Vejo a minha mãe em mim – inspirando fundo e prolongadamente;
• Estou a enviar um sorriso à minha mãe em mim – expirando devagarinho;
• Vejo o meu pai em mim – inspirando fundo e prolongadamente;
• Estou a enviar um sorriso ao meu pai em mim – expirando devagarinho;
• Compreendo a vulnerabilidade e a fragilidade da minha mãe e do meu pai em
mim – inspirando fundo;
• Vou trabalhar para libertá-los e aceitá-los – expirando devagar todo o ar dos
teus pulmões.
Vai brincar à vontade, filho. Qualquer problema que surja na vida pode ser resolvido
da mesma maneira, isto é, concentrando-te na tua própria respiração, aceitando o
problema, abraçando-o e sorrindo para ele. Lembra-te sempre que te amo, filho. O
teu pai também! Sei que és uma pessoa forte e sei que vais conseguir fazer isto.
Cuidando das coisas dos outros, estás a cuidar também das tuas coisas. Tu vais ser
um grande homem neste país. Por isso, respeitar, respeitar e respeitar os outros e as
suas coisas são palavras de ordem nesta casa – completou a mãe.
Ela tinha boas intenções. A nossa maneira de estar e de ver o mundo é, em grande
parte, instilada em nós pelos nossos pais, pelos nossos avôs, vizinhos, padres e
pastores da freguesia, professores e amigos durante o tempo da meninice. Os
carinhos recebidos do meio em que crescemos imprimem em nós o selo ou marca
do que nós desejamos ser um dia. Esta forma de educar através do carinho ou
estímulo, que podemos definir como unidade de reconhecimento, pode ser tanto

Domingos Barbosa da Silva 68


A estranha morte de um político

positivo como negativo, condicional como incondicional. Assim, a educação positiva


baseia-se em carinho, sorrisos, abraços de afecto, em reconhecer as qualidades e
aprovar comportamentos positivos, um sorrir com o coração, um animar e estimular
a fazer sempre mais e melhor, um acreditar que se há de ser uma pessoa de grande
valor para a sociedade, apoiando-a em tudo que é digno de apoiar. Por sua vez, uma
educação negativa, baseada em insultos, em fazer troça, dar bofetadas, desapreciar
o trabalho feito, chamar de burro a uma pessoa, dizer que ela nunca há de ser gente,
marginalizar um indivíduo social, religiosa e politicamente, terá certamente, efeitos
contrários à anterior, causando consequências negativas na formação da
personalidade do individuo e que este, consequentemente, irá transpor para a sua
vida futura. O tipo de carinho recebido, por exemplo, quando criança, determina ou
carimba a nossa mente com o distintivo da nossa vida futura, isto é, o que cada um
de nós será na vida: uma pessoa de sucesso ou um fracassado. Por outras palavras,
o carinho recebido escreve e imprime um guião, muito cedo na vida, um plano no
nosso subconsciente que determina como a nossa vida se desenrolará no futuro.
– Acredito no que estás a dizer. Eu vejo um pouco do meu pai em mim. Mas muito
pouco da minha mãe. Vejo a mim mesmo no meu filho mais velho. Não tenho dúvidas
quanto a isto – disse Fátima depois de ter escutado atentamente.
– Pois, quando os nossos pais nos amam incondicionalmente, transmitem-nos um
carinho positivo que fica impresso em nós. A palavra, amo-te, filho, sai da criança
interior que a mãe tem dentro de si. O carinho incondicional da mãe, em forma de
amor incondicional, nutre a criança interior do filho, certificando assim, a razão da
própria existência, pois o amor da mãe é maior que tudo, não está preso nem
limitado a condicionalismos, não depende do bom comportamento do filho, o facto
de ele existir na vida dela, é motivo suficiente para um amor sem limites e sem
condicionantes. Compara, querida amiga, esta forma de carinho com o de uma mãe
que desaprova tudo que o filho faz, dizendo, tu não prestas para nada, tu és um
estúpido, um desajeitado, um malandro, não quero ser tua mãe e que é deixado
sozinho o tempo todo.
– Vejo onde queres chegar – cortou a Fátima.
– Sim, o que a minha mãe fez foi dar uma outra forma de carinho, um estímulo
positivo, que saiu directamente da parte mais iluminada e evoluída enquanto ser,
isto é, do seu reconhecimento do potencial que existe em mim, da sua consciência
livre de preconceitos. Ela pôs em mim a seguinte impressão espiritual: Sei que és uma
pessoa forte e sei que vais conseguir isto. Ela deu-me um arsenal de carinhos
positivos, incondicionalmente. Isto saiu da sua maturidade, do seu senso de justiça,
da sua experiência de mãe que sabe que, dizendo isto, cria um comportamento igual

Domingos Barbosa da Silva 69


A estranha morte de um político

e justo no coração do filho ao lembrá-lo que, apesar da sua raiva, apesar do mal que
fez, ele é uma pessoa inteligente, forte e capaz de superar muitas dificuldades na
vida. Este tipo de carinho é diferente do de uma outra mãe que dá ao filho uma
bofetada dizendo que ele não é capaz de nada neste mundo.
O afecto e o carinho penetram o nosso ser de uma maneira extraordinária,
marcando-nos de forma profunda para toda a vida. Basta ver, para repetir, o que a
minha mãe imprimiu em mim quando disse que ia ser um grande homem neste país.
Não me considero grande, mas penso que sou útil para muitas coisas. Se uma mãe
ou um pai for capaz de fazer um discurso ou melhor, dizer uma coisa desta natureza
ao seu filho, o resultado tem de ser bom, a vida toma um caminho de justiça e de
entendimento. A linguagem da mãe advém do amor incondicional que ela nutre pelo
filho, da compreensão que mostra para com ele. A compreensão pelo facto de que
ela e o filho são unos e de que a felicidade e bem-estar não são fenómenos
individuais. Vendo o filho sentir-se feliz também traz felicidade à mãe – concluiu
Renato pedagogicamente.
– Então é por isso que se diz que colhemos o que semeamos. Gostaria de ter uma
mãe deste calibre. Se te compreendo bem, a semente da felicidade encontra-se no
fundo da nossa subconsciência. Se criarmos condições propícias para fazer brotar
essa semente, alcançaremos a felicidade. Não apenas isto. O discurso de amor pode
salvar-nos do mal, o saber escutar salva-nos de preocupações negativas e nocivas à
nossa saúde. Se temos suficientes sementes de paz, de compaixão e de entendimento
no nosso inconsciente, precisamos apenas chamá-lo à superfície para nos acudir –
interceptou Fátima.
– É mesmo assim, querida amiga. Temos de relembrar a nós mesmos que há muitas
maneiras de borrifar estas sementes. É preciso primeiro entender isto, fazer uma
introspecção. Há tanta coisa, há tantas sementes não físicas, mas ao mesmo tempo
sensíveis e concebíveis dentro de nós, como o amor e a raiva. Quando a minha mãe
me disse que ia ser um grande homem neste país, meteu dentro de mim algo
importante que imediatamente foi ter ao meu subconsciente em forma de carimbo
ou guião. Essa semente transformou-se em energia orgânica em potencial, isto é,
uma entidade materializável / física, um fenómeno biológico capaz de ser
transformado numa outra entidade orgânica como a materialização da semente no
mundo físico através do facto de me tornar, efectivamente, um grande homem neste
país. O que é preciso é ser inteligente, saber que existe a tal semente dentro de nós,
não ter medo do futuro e ter a vontade suficiente para superar as dificuldades e as
pedras no caminho.

Domingos Barbosa da Silva 70


A estranha morte de um político

Com este carinho positivo e incondicional que a minha mãe me deu, a semente ficou
plantada no meu íntimo, dando-me um sentido de propósito neste mundo. Sendo
uma mãe conselheira, educadora, animadora, protectora e com o poder de imprimir
em mim normas éticas, ela conseguiu transformar a criança que há dentro de mim,
numa vencedora que acredita no destino que cada um tem na terra. Equivale ao
desejo da minha mãe o facto de dizer que vou ser um grande homem neste país.
Tudo isto me transformou numa pessoa que se sente forte, inteligente, capaz de se
modificar a si mesmo, capaz de amar a todos e que gosta de ser um grande homem
e servir este país que é de todos nós. Toda a sua influência sobre mim, ressurge
agora, da criança que existe em mim, em forma de sonhos, de projectos de
reconstrução da Mãe terra e de luta a travar, para fazer destes sonhos realidade. Os
sonhos precisam de persistência, coragem e pertinácia para serem realizados.
Portanto, Fátima, temos um potencial intelectual represado ou reprimido sob os
destroços das nossas dificuldades, das nossas doenças psíquicas, das nossas perdas
e das nossas preocupações do dia-a-dia. Felizes são os capazes de se libertarem
desses destroços nocivos, dessas sombras malévolas, desse mal que entulha o
melhor que existe em nós.
– Renato, estou a sentir-me cada vez mais próximo do teu ideal – disse Fátima –
olhando para ele com comoção. Sei que és capaz de tudo isto e mais – continuou. A
história ensina-nos que muitos dos que sobem alguns degraus da escada do sucesso,
depois de pouco tempo de trabalho, tornam-se inacessíveis. Mas acho que a tua mãe
te treinou bem para ser acessível. Na época em que vivemos, podemos contar pelos
dedos os que são acessíveis. Os outros, em quantidade tremenda, têm sucesso à sua
agenda. Para estes, quanto mais for a índice de popularidade, maior é a arrogância
e o distanciamento do povo humilde. Este torna-se aos olhos daqueles, mais um
número de identidade para colocar votos nas urnas, mais um trampolim para eles
chegarem ainda mais alto, mais uma conta bancária, mais um consumidor dos
serviços públicos, uns chatos a perturbar a ordem pública e nunca um ser humano
ímpar, inigualável, com dignidade, com direitos e deveres como eles. O
distanciamento cria problemas comunicacionais, cria arrogância e prepotência. O
nosso país não avança com este tipo de pessoas que sabem tudo e nada têm a
aprender com os outros.
Antes de abraçarmos uma visão do tamanho dos nossos sonhos, penso também, que
será útil, contribuir para instalar no nosso país uma psicologia preventiva no campo
da criminalidade, porque num mundo onde a discriminação, o terrorismo e a
criminalidade se espalham como fogo na palha seca e a vida vale tão pouco, como
se nota na nossa sociedade, inserir uma psicologia preventiva no nosso meio é
brindar à vida, é glorificar o homem cabo-verdiano, é salvar a sociedade e contribuir

Domingos Barbosa da Silva 71


A estranha morte de um político

também para salvar a humanidade. Precisamos, por exemplo, de uma política capaz
de pôr termo ao estado de terror, de medo, de falta de liberdade individual. Isto só é
possível através de um controlo rigoroso onde a tolerância zero é a palavra de ordem
do Estado. A polícia e os militares nas ruas munidos de poderes necessários,
contribuiriam para pôr termo a muitos crimes – acrescentou Fátima.
– Olha que estou a gostar do que tu estás a dizer. Este país precisa de mulheres e
homens capazes de pensar como estás a pensar, isto é, alguém que se coloque dentro
do mundo das pessoas para analisar as suas necessidades, as suas dificuldades na
perspectiva delas e não ao contrário. Pessoas que se treinem em ouvir o que o povo
diz no silêncio do seu mundo, o que as palavras não dizem e a ver, pelo menos um
pouquinho, o que as imagens não revelam. Mulheres e homens que compreendam
as causas e não a reacção exterior, que entendam o que está por detrás de cada
comportamento humano, que sejam tolerantes e conheçam a arte de compreensão.
Estas pessoas devem possuir a capacidade de aceitar as suas próprias limitações,
com a coragem suficiente para não se posicionar como semideuses. Pois quem se
assume como semideus será sempre uma pessoa exclusivista: rápido a julgar e
menosprezar os outros e tardio a respeitá-los. Julga sem ter em mente o sentido de
justiça. Não tendo todas estas classificações apontadas desrespeitam até a sua
própria mãe. Mas a minha mãe preparou-me para enfrentar a vida em situações
péssimas, desfavoráveis e tempestuosas. Aproveitar para fazer germinar a semente
que ela introduziu dentro de mim é uma honra em seu nome. Enquanto eu viver, vou
esforçar-me para alcançar o maior objectivo que tenho: ver esta Pátria de todos nós,
desenvolvida, mudada e os desejos legítimos do Povo respeitados. Isto é, dar a cada
simbrom a sua gota de água.
Fátima não disse nada, mas ficou pensativa. Estava neste momento mergulhada nos
seus pensamentos. Deu uns passos sem pensar onde se encontrava, mas Renato
trouxe-a ao presente, segurando-lhe num braço.
– Muitas vezes, a criança dentro de nós adapta-se a situações vividas numa família.
Tal criança intrínseca encerra ou enclausura proibições não escritas, não faladas no
meio familiar. Contém um contracto não-verbal e não escrito – continua Renato.
Para exemplificar isto, podemos dizer que na família ROBERTO nunca se fala de
relações sexuais, mas descobre-se pouco a pouco que são coisas secretas e
estabelece-se um contracto não-verbal e não escrito entre os membros da família.
Isto é, estabelece-se um contracto secreto de não falar determinadas coisas no meio
familiar. Mas no meio de camaradas já se fala disso. Outro exemplo. O facto de não
ter o direito de chutar a bola em direcção à propriedade dos outros, quando estamos
com raiva, dá-nos a ideia de que uma semelhante acção também é proibida pelas
mesmas razões. Assim, este contracto secreto estabelece-se no meio familiar. Isto

Domingos Barbosa da Silva 72


A estranha morte de um político

acontece porque na estrutura da nossa personalidade existe algo que se chama


criança adaptada, isto é, que se adapta às situações e obedece às regras de
comportamento que interiorizou e aceitou previamente. A minha mãe com o receio
de explicar-me muitas coisas como elas são, cria uma atmosfera de segredo. A
criança adaptada da minha mãe comunica directamente com a minha criança
adaptada, sob forma de códigos deontológicos, não escritos e não verbalizados.
Mais tarde quando já crescido, vim a aperceber-me deste código de que também
faço uso para comunicar secretamente com os meus filhos, mas que ninguém antes
me tinha contado directamente.
– Ocorre-me, neste momento, uma situação bastante triste que gostaria que me
explicasses a razão de tudo que aconteceu depois. Quando eu estudava no liceu a
minha vizinha de 14 anos foi violada pelo seu padrasto. A mãe sabia da situação,
mas silenciou-se e até pedia à filha que não dissesse a ninguém. Dizia sempre à filha
para se vestir bem e para se comportar de forma correcta em todas as
circunstâncias.7 O padrasto continuou a abusar dela até aos seus 19 anos. Ela, a filha,
ainda com 25 anos passava a vida entre os braços de diferentes homens. Apesar de
ser bastante inteligente, e hoje ocupar um lugar muito privilegiado na sociedade, ela
é inconscientemente atraída por situações que reflectem o mesmo padrão de vida
com o qual cresceu, embora não goste de o fazer.
– Vou explicar a situação usando uma linguagem pouca usada no nosso meio. Vou
tentar explicar isto de tal maneira que qualquer pessoa possa entender o fenómeno.
A tua vizinha não se encontra sozinha no mundo dos frustrados e violados. Quando
a mãe da vizinha pronunciara a frase: “que não dissesse a ninguém, que se vestisse
bem e que se comportasse de forma correcta em todas as circunstâncias...”
– A jovem, de facto, andava sempre bem vestida o que reflectia os conselhos da
mãe para se vestir bem, quando aquela era pequena. O pai da miúda abandonou a
mãe e foi viver com uma amante na Ribeira Grande, em Santo Antão. Mas ela
visitava ao pai frequentemente e este dedicava-lhe incondicionalmente muita
atenção – interrompeu a amiga.
– A certa altura a mãe da jovem, através da sua autoridade, imprimia uma ordem,
um conselho ou um constante pedido à filha, o que ficou gravado na criança
intrínseca adaptada da filha. Esta ordem ou conselho prescreve à filha como viver o
resto da vida, como ela se apresenta ao resto do mundo. Isto significa, ainda, uma
instrução de como a filha se deve vestir para ficar bonita perante os amigos,
conhecidos e todo mundo, camuflando assim o facto de ser uma pessoa abusada
sexualmente, compensando a psicologia da filha e também da mãe. Estes conselhos

7 http://www.jutdemo.com/miscellaneous.htm

Domingos Barbosa da Silva 73


A estranha morte de um político

da mãe não constituem estímulos incondicionais. Estes conselhos, e o facto de a mãe


ter aconselhado a filha a não dizer nada aos outros sobre o problema de violação,
fazem com que a filha continuasse a procurar carícias condicionais e incondicionais
dos braços de diversos rapazes de vida fácil. Não digas a ninguém, senão..., se te
vestires bem toda a gente vai gostar de ti... São todos conselhos condicionais.
– Obrigada, entendi perfeitamente. Isto basta para bem entender, mas agora
quero-te falar sobre um outro assunto. Na última vez tínhamos falado sobre as tuas
poesias e sobre os teus sonhos. Como ligas os teus sonhos àquilo que escreves e
pensas?
– É apenas deixar o que estamos a falar neste momento, pois, são coisas
importante à vida, para passar para outro assunto sem aprofundarmos no tema. De
qualquer maneira, vamos mudar de assunto. Como já te disse várias vezes, no curso
da minha vida, tenho sido visitado por grandes e diversos sonhos. Estes sonhos são
reflexos dos conselhos, das carícias da minha mãe. As carícias incondicionais fazem-
nos sonhar com grandes coisas. Pois, quando as crianças não estão condicionadas,
são mais livres e criativas. Quando te falo disso, quando escrevo poesias líricas, é
precisamente para tentar acertar com a interpretação do sonho que me visita
constantemente. Não tenho escrito muitas poesias e nem dou preferência a elas.
Muitos me pedem para cultivar esse dom, mas eu conheço melhor o que quero fazer.
Ao compor um poema, estou apenas a obedecer a um sonho menor que o sonho de
que te costumo falar. Um verdadeiro poeta é aquele que ultrapassa os seus discursos
líricos e inventa algo que sirva à população deste pequeno país, fazendo-a sair da
pobreza e da forma de vida mesquinha, “nhanida” como se diz na nossa terra,
ajudando a mesma a adquirir um sentido de vida mais digno, mais humano e
transcendente. Não te quero meter na cabeça coisa de pouca monta, Fátima, e se
me prestares ouvidos, vou discorrer sobre...
Os dois silenciaram-se durante alguns segundos. Os pensamentos de ambos
estavam cheios de imagens inéditas, de vontade de dialogar, mas algo mexia na
consciência de Renato, o que o preocupava desmedidamente. Sentiu uma emoção,
ou melhor, um campo de energia em contínuo estado de transformação a invadi-lo.
Gostaria que esse campo de energia se transformasse num sentimento de paz, de
quietude e em algo contemplativo, mas sabia que isso não era de todo possível.
Sentiu prazer de falar e de libertar-se de algo que lhe dava um nó na garganta, mas
não sabia por onde começar. Na vida do ser humano, o prazer muitas vezes se
converte em dor, a alegria em tristeza, a paz em guerra e assim por diante. As
emoções alternam-se. A sua mãe incutira-lhe na alma que uma emoção é mais
saudável quanto mais estável for. Sabe que a tolerância faz equilibrar as energias
emocionais de tal forma que começamos também, a compreender as limitações dos

Domingos Barbosa da Silva 74


A estranha morte de um político

outros. Fátima sentiu o peso do silêncio a invadi-la. Contudo, mantinha o olhar


distante. Suspirou fundo e sentiu o ar a trespassar os alvéolos pulmonares, virou-se
mais para dentro de si e sentiu o sangue venoso a adquirir ar fresco. Quando voltou
a si, reparou que Renato falava sozinho de pé.
– Paín? Onde estás neste momento? – Reiniciou Fátima o diálogo, recordando-se
ao mesmo tempo, do nome que este tinha adquirido no Liceu quando o Dr. Baltasar
lhe pediu para ler em francês “le pain” (o pão). – Acho que não deves fazer o velório
antes do tempo, isto é, não deves sofrer por antecipação. É bom pensares nos
problemas que tens pela frente, ponderando sobre os conselhos e as advertências
que tens recebido, mas também, é preciso ter em conta as diversas possibilidades e
os desfechos para que possas preparar-te para enfrentar certos argumentos
considerados politicamente correctos. Não deves gravitar à volta dos problemas.
Acho que se é isto que fazes agora, estás apenas a treinar-te a ser infeliz, a gastar
uma ribeira de energia e a fazer da tua vida um mar de preocupações – disse ela.
– Tens muita razão, Fátima. Todos nós somos uma fonte de perguntas em busca
de respostas. Nós que pensamos além da ponta do nosso nariz nunca saldamos a
dívida da nossa vida e nunca ultimamos as contas da solidão. Refugiamo-nos na
solidão à procura de uma resposta que nunca havemos de encontrar, mas é sempre
um consolo saber que temos feito algum esforço. O que falei com o Presidente da
República, não foi só sobre um projecto, mas sim, sobre vários. O projecto sobre
administração pública que acabáramos de traçar com um perito das Nações Unidas
foi simples e não demorou mais do que meia hora, mas um outro, que é mais
importante ainda, preocupa-me de sobremaneira e está a tirar-me o sono. Enfrentar
os nossos políticos não é tarefa fácil. Eles pensam que estão em todos os lugares,
que sabem mais que ninguém e que nada têm a aprender com os outros. Não deixam
espaços para dúvidas, esquecendo que elas, as dúvidas, são propulsoras do
desenvolvimento e da ciência. Os que ocupam cargos públicos são omniscientes e
inacessíveis demais.
Mais uns minutos de silêncio invadiram o encontro. Renato sentiu-se orgulhoso de
ter ao seu lado uma mulher capaz de dar conselhos válidos e de lhe segurar na mão
quando precisa. Uma mulher que irradia segurança nas palavras proferidas e que
demonstra o peso contido na verdade expressa. Para ele, ela era uma biblioteca viva,
uma colega inestimável, uma mulher de grande extirpe, com uma capacidade de
trabalho enorme, com uma inteligência brilhante e uma pessoa credível e de moral
íntegra.

Domingos Barbosa da Silva 75


A estranha morte de um político

CAPÍTULO XI

No antigo caminho íngreme que dava acesso à Achada de Santantónio nos anos 70,
mesmo na base de um outro Plateau menor, numa bifurcação que dá para Prainha
e Terra Branca, foi erigido o hotel Lapónia, a escassos metros do hotel Crioulândia,
construído com o dinheiro de dois emigrantes cabo-verdianos que trabalharam no
norte da Escandinávia. O estranho foi ter com o chefe das operações secretas para
ver se conseguia ajuda para decifrar a charada.

Domingos Barbosa da Silva 76


A estranha morte de um político

   

Mas não podia conseguir essa ajuda. Tinha de o fazer sozinho.


Lembrou-se de que o Sombra era muito esperto na área de criptoanálise e despediu-
se do chefe das operações sem mais conversa. Desceu uma escada longa, saiu do
hotel sem olhar para o recepcionista.
Quando encontrou o Sombra, na Achadinha, este mandou-o entrar na casa dele sem
muita demora. Entrou sem dizer nada e fixou os olhos nos dele.
– Que estás a fazer a estas horas por estas bandas? – Perguntou o Sombra.
– Preciso da tua ajuda – respondeu.

Tirou do bolso o pedaço de papel com a mensagem cifrada. Entregou-o ao Sombra


para ver sem dizer nada. O Sombra sentou-se na poltrona e virou o pedaço de papel
de todas as maneiras sem conseguir entender. Fixou os olhos na cifra e ficou
pensativo.

   


– Que será isto? – Perguntou Sombra desesperado sem saber que era, de facto,
grego.
– É grego. Temos de substituir os signos por letras latinas do nosso alfabeto –
assegurou.

   


Eznlh vornrmzi Ivmzgl Xziwlhl
– O que significa esta merda?
– Os gajos entregaram-me esta charada hoje de manhã, mas não entendi nada.
Preciso de saber rapidamente o que significa – disse frustrado.
– São irresponsáveis – condenou o Sombra.
O Sombra sentou-se, inclinou-se na poltrona e esbugalhou os olhos, tentando
decifrar a charada rabiscada no pedaço de papel. Tinha a mente ocupada na busca
de uma maneira de quebrar o enigma. Pegou no telefone e ligou ao Penumbra.
– Estou – respondeu uma voz masculina.
– Ó Penumbra, podes dar uma saltada até cá, por favor?

Domingos Barbosa da Silva 77


A estranha morte de um político

– O que se passa Sombra? – inquiriu o Penumbra.


– Preciso dos teus conhecimentos, mas é urgente – asseverou Sombra, desligando
o telefone.
Passada meia hora, o Penumbra imobilizou o seu veículo do outro lado do passeio.
Atravessou a estrada e carregou no botão da campainha. A porta abriu-se sem muita
demora. Saltou as escadas com passos largos.
– Foi bom vires até cá porque temos um problema para resolver urgentemente.
Queremos saber o que está aqui – começou o Sombra, arremessando-lhe o
pedacinho de papel. Este mergulhou os olhos na charada, leu-a letra por letra e
abanou a cabeça devagarinho.

Eznlh vornrmzi Ivmzgl Xziwlhl


– Dá cá o teu computador – disse ele.
– Para quê? – Questionou Sombra.
– Vamos consultar uma coisa simples – respondeu o Penumbra, continuando –
vamos tentar decifrar a charada usando o método de substituição antes de mais
nada, isto é, segundo o método baconiano. Podíamos usar o método de César e
outros, mas desta vez vamos usar o mais simples.
Depois de alguns minutos a estudar a cifra, voltou-se para os presentes e disse-lhes
que não se tratava duma cifra baconiana, mas de atbash.
Os presentes ficaram de boca aberta e sem saberem o que dizer. Nunca tinham
ouvido esta palavra.
– Considerando o alfabeto simples que mais se adapta ao método atbash, o
alfabeto inglês, com 26 letras, teremos:

AbcdefghIjklmnopqrstuvwxyz

Penumbra apontou para as linhas com os alfabetos e escreveu:


Eznlh a partir da charada grega 
Vejamos que a letra E da charada é a quinta letra do alfabeto. A quinta letra do
alfabeto começando pelo fim é o V, estás a entender?
– Quer dizer que estamos a decifrar uma cifra simples? – perguntou Sombra.

Domingos Barbosa da Silva 78


A estranha morte de um político

– Claro que estamos. Uma cifra é uma escrita secreta encriptada segundo certas
regras. A de atbash, a de César, a baconiana, a de substituição simples, etc. Estamos
perante uma cifra de substituição – clarificou Penumbra.
– Então que tipo de informação podemos tirar deste pedaço de papel? – Insistiu
Sombra.
Estamos no caminho certo. A letra z da charada é a vigésima sexta, isto é, a última
letra do nosso alfabeto. A última letra contando do fim é o A! Portanto, já temos o
Va. A letra seguinte da charada é o N. Esta letra ocupa o décimo quarto lugar e, se
contarmos outra vez do fim para o princípio, teremos o M. Temos mais uma letra
que se junta ao va e fica vam. Em seguida vem a letra L que ocupa o décimo quinto
lugar. Contando alternadamente do princípio para o fim, damos com a letra o, e para
terminar a primeira palavra da cifra temos que procurar a posição em que fica o H.
Estás a ver? Fica no oitavo lugar! Contando de novo do fim para o princípio damos
com o S! Portanto, temos o Vamos como a primeira decifração do enigma – disse o
Penumbra apontando para a palavra acabada de decifrar.
– Então, vamos o quê? – Perguntou o estranho impaciente. – Mas quem é que
cifrou este enigma? – Indagou.
– Calma, isso não interessa. O que interessa, neste momento, é prosseguir a
decifração, o resto vem ao de cima.
– Pois, temos somente o Vamos, o que não nos diz nada – comentou o Penumbra
também muito impaciente.
O Penumbra inclinou sobre o papel com a charada rabiscada. A palavra seguinte é
 ou Vornrmzi no nosso alfabeto
– Prosseguimos usando a técnica atbash - esclareceu.
Agora contamos do fim para o princípio. O V corresponde ao E, o O corresponde ao
L, o R ao I, que significa que temos por enquanto eli. A próxima letra é o N e onde
está ela posicionada? O N corresponde ao M! O que nos deu elim. Já tínhamos visto
a letra R antes e é a mesma coisa, isto é, equivale ao I. O M é, como antes, igual ao
N. Temos, portanto, elimin. Já tínhamos substituído a letra Z que corresponde à letra
A. Finalmente, resta-nos a letra I. Ela é a nona letra contando do princípio, o que
corresponde ao R contando do fim. Temos então, eliminar.
– Ah, já começo a entender. Até posso adivinhar o resto – comentou o estranho.

Domingos Barbosa da Silva 79


A estranha morte de um político

– Não, temos de prosseguir. Nada de conclusões apressadas. A chave deve estar


na terceira palavra da charada – disse o Penumbra preocupado e excitado em saber
o que se escondia por detrás da charada escrevinhada
 ou Ivmzgl
– O I ocupa o décimo oitavo lugar contando da direita para esquerda. Este lugar é
ocupado pelo R, contando da esquerda para direita. As três letras seguintes já as
sabemos e temos então, Rena. Só nos resta a letra G para decifrar. Ela é a sétima
letra e a sétima contada do fim é o T. RENATO é a palavra codificada! Bingo! Já temos
o resto – sentenciou o estranho.
– Filho da… Esses malandros estão muito adiantados em criptografia – disse o
Penumbra irritado.
– Se o X e o W correspondem ao C e ao D respectivamente, temos uma decifração
completa. Vamos ver a última palavra Xziwlhl. Da esquerda para direita temos o X
no terceiro lugar. Da esquerda para direita temos o C e o W corresponde ao D. Mais
um bingo, caro amigo.
Ouve um silêncio assustador entre os dois.
– Agora, meu caro amigo, tens um trabalho a fazer – declarou o Sombra.
– Vamos tomar uma cerveja ao bar.

CAPÍTULO XII

As lições de Paín

(Sua última pregação sobre tolerância religiosa)

Domingos Barbosa da Silva 80


A estranha morte de um político

Renato era tratado por Paín, entre os seus amigos mais íntimos da escola e,
principalmente, pela Marta e pela Fátima. Este trato vem dos tempos do liceu. Com
o decorrer do tempo quase todos os amigos o começaram a tratar por Paín. Alguns
chamavam-no assim como simples sinal de amizade. Outros, apenas para o chatear.
Mesmo os tais chamados Religiosos do Templo da Babilónia (RTB) o chamavam Paín.
Poucos dias antes da sua estranha morte, convidou os seus amigos mais íntimos para
uma pregação especial e uma oração que ele mesmo precisava para se afastar de
pensamentos tenebrosos que lhe assomavam o espírito.
O homem, crente de gema, fazia com que os outros fixassem os olhos nele,
imprimindo nos ouvintes, o sentido da vida e um modo de conseguir alcançar a
felicidade. Dizia, repetidas vezes, que a felicidade não tem segredos e que os
homens infelizes são todos parecidos. Acumulam alguns desgostos durante a vida,
possuem alguns desejos negados, sofrem golpes nos seus orgulhos, sentem que uma
reluzente centelha de amor foi extinta pelo desprezo, pela falta de carícias e pela
indiferença. Agarrados a esses infortúnios vivem envoltos no manto roto dos dias
passados. Mas o homem feliz não olha para os dias passados e nem tão pouco olha
para frente. Ele vive no presente. No entanto, isto atira-o para a dificuldade, para os
problemas do mundo, por que há qualquer coisa que o presente não lhe pode dar:
o sentido da vida. Pois, o caminho das dificuldades e do sentido da vida, não são
iguais. O homem feliz precisa apenas de viver no momento, isto é, para o momento.
Para que ele possa compreender o sentido, o significado dos seus sonhos, dos seus
segredos, da sua vida, ele precisa de reabitar o seu passado e viver para o futuro. O
passado pode ser sombrio e o futuro muito incerto, mas importantíssimo para os
que procuram um sentido ou propósito na vida. Renato dizia-nos sempre que “assim
a natureza exibe a felicidade e sentido e insiste sempre que escolhamos o caminho”,
que imprimamos sempre um sentido humano em todos os nossos actos. A nossa
escolha é decisiva na vida. Ele, Renato, escolheu o sentido, isto é, o sentido da vida.
Por isso, ele se encontrava ali, naquela Igreja, de pé, frente aos da mesma fé,
confiante no que tinha a dizer e sabia o que o levava até ao local do convívio
fraternal.
Depois de fazer a sua meditação, agradeceu a todos pela presença amiga, penetrou
um olhar na audiência e disse:
Hoje, meus caros amigos, vamos falar sobre o diálogo inter-religioso. Semelhanças entre
religiões e possibilidades de coexistência pacífica. Parto do princípio de que todos os
presentes seguem o princípio da tolerância, respeitando os que pensam de maneira
diferente e os que não confessam a mesma doutrina que nós.
A tão chamada civilização branca tem, durante séculos, tomado uma posição de
destaque na sociedade mundial. Para ser mais claro: o ocidente branco atingiu um nível

Domingos Barbosa da Silva 81


A estranha morte de um político

de desenvolvimento mais avançado, tanto na técnica de produção, como no uso de armas


de fogo e na indústria em geral. Não só se tornou superior na força bélica, mas também,
na economia – duas forças importantes, necessárias e suficientes para dominar os outros.
Portanto, um poder e uma força que os outros não possuíam. Ao mesmo tempo a
sociedade ocidental foi organizada de tal maneira que possibilitou o uso de poder à custa
dos outros. Ela tornou-se exemplo a seguir, por conseguinte, muito invejada pelos outros.
O bem-estar, a maneira de ser, o consumo excessivo, o desenvolvimento industrial e mais,
são vistos e invejados pelos outros não pertencentes à mesma sociedade. Isto marcou as
cooperações e as relações internacionais com os seus ideais quase indeléveis. Esses ideais
tomaram a forma de padrões ou de modelos a serem seguidos pelos outros.
Não é fácil explicar o que se passou na humanidade e nas relações entre as diferentes
raças humanas a ponto de clarificar e justificar os problemas relacionados com a
escravidão, o racismo e a discriminação. Uma coisa que sabemos com elevada precisão
é que é mais cómodo comportar-se como os outros se comportam. Estar ao lado dos
outros, pensar como os outros, vestir como os outros, comer a mesma coisa que os outros
comem, detestar o que os outros detestam, desejar a mesma coisa que os outros desejam
são coisas ou fenómenos que nos conferem a máxima segurança neste mundo. É mais
fácil seguir do que liderar, pois quando se segue um caminho previamente traçado,
conhecemos de antemão, o lugar onde este nos conduz. É como viver através de uma
espécie de GPS colectivo.
Ser judeu, católico, protestante, adventista, budista, político, emigrante, preto, branco,
amarelo ou pertencer ao hinduísmo, candomblés, orixás, etc., representa uma maneira
de estar no mundo, de ser diferente dos outros, portanto, proibido aos que não se incluem
nesses grupos.
Podemos dizer com mais plausibilidade que para os que não estão incluídos na lista acima
e pensam de forma diferente, tendem a considerar os outros como desviados sociais,
incrédulos, pecadores e que devem ser excluídos de entre os vivos. Ser diferente dos
outros tornou-se uma vergonha que fere a decência, a honestidade ou a modéstia do
próprio grupo. Portanto, pensar diferentemente do estabelecido ameaça o status quo e,
em certas circunstâncias, ameaça o pão-de-cada-dia de certos indivíduos ou grupos.
Muitas vezes raciocino assim: com que direito se determina que um grupo é mais lícito
do que outro? Ou que se comporta com mais decência? Quem lhe confere tais direitos?
Quando é assim perguntamos: não estamos a exigir mais dos outros do que de nós
mesmos? Não estamos a violar a própria natureza quando negamos aos outros os
direitos de cada um e que reconhecemos como se fossem natos?
Ora, a antropologia e sociologia ensinam-nos que são os outros que nos dizem quem
somos, isto é, que a identidade social de uma pessoa lhe é conferida pelos demais. E daí,
aprendemos a ser quem nos dizem que somos.
Bem, não quero entrar na filosofia sobre identidade, direitos e deveres. Mas uma coisa é
certa. Vale a pena lutar contra preconceitos, arrogância, falsidade, ignorância e

Domingos Barbosa da Silva 82


A estranha morte de um político

prepotência. Há uma distância enorme entre o tempo da escravidão e o do dia de hoje,


mas ainda existe no meio de nós uma intolerância no campo da consciência humana e a
sua expressão na sociedade. Há uma tendência e um espírito de revolta nos países
libertados do jugo colonial e noutros contra a sociedade ocidental, contra a hegemonia
do ocidente. Em algumas partes do globo, muitos já estão fartos da imposição de normas
e padrões alheios. A China, a Índia e o Japão mostram hoje um desenvolvimento
demográfico, tecnológico e económico sem precedentes, portanto, actualmente o
Ocidente não conduz a locomotiva do progresso. Está sim, a sentir-se ameaçado pelos
valores dos outros. Alguns na Ásia fazem demonstração de força de maneira pouco
correta, mas tudo sob uma forma de protesto resultante de uma opressão secular.
Para que se possa estar seguro no lugar onde cada um se encontra é preciso muita
tolerância. Respeitar os outros e seus valores culturais, morais e espirituais, porque todos
“os outros” estão certos e têm a convicção de que o que eles pensam e fazem está correto.
É preciso que nós não preguemos a doutrina que ensina que a nossa perspectiva é melhor
e mais válida do que a que se ensina na igreja ao lado. Por isso, qualquer resolução de
conflitos ideológicos ou religiosos deve partir do princípio de que o bem esteja a enfrentar
o bem do outro lado e não o mal a combater o bem com o propósito cínico de usar a
violência para alcançar o poder individual ou usar a mentira para cobrir a verdade.
Devemos, primeiramente, cultivar o que nos une e não o pouco que nos separa.
Martin Luther King Jr. fala ao mais íntimo de todos nós quando diz, mais ou menos, o
seguinte:
• As pessoas odeiam-se porque têm medo de umas das outras.
• Receiam umas às outras porque não se conhecem.
• Não se conhecem por que vivem sem contacto entre si.
• Não têm contacto porque vivem separadas.
Ele estava a referir-se aos americanos brancos e pretos. No entanto, a mensagem contida
no que ele diz pode ser extrapolada para o caso da nossa igreja, da igreja dos outros, da
nação, da política, da sociedade e de cada um de nós neste pequeno país. Seria elevada
vaidade da minha parte criticar ou fazer emendas aos dez Mandamentos que Moisés
recebeu de Deus. Gostaria, contudo, de acrescentar mais um que surge do texto da
própria Bíblia. Muitos hão de protestar e dizer que não é fácil cumprir todos os que foram
decretados pelo Altíssimo e que os dez são mais que suficientes. Mesmo assim,
acrescento a proposta de um texto para servir do décimo primeiro Mandamento.
No Terceiro Livro de Moisés, chamado Levítico, um dos livros do Pentateuco, isto é, os
cinco primeiros livros da Bíblia, no capítulo 19, verso 18 encontramos a seguinte
mensagem:

Domingos Barbosa da Silva 83


A estranha morte de um político

Não te vingarás nem guardarás ira contra os filhos do teu povo; mas amarás o teu
próximo como a ti mesmo.8
Esta é a essência da visão humana que herdamos do nosso passado. Se toda a gente
procedesse desta maneira não haveria problemas de homicídios, de inveja, de ódio e de
terror que arrasam o nosso mundo. Não haveria perseguição religiosa nem política.
Todavia, nada é mais difícil neste mundo do que precisamente isto, algo que parece
inconciliável com a natureza humana. Mesmo assim, vale a pena tentar! O texto
encontra-se em todas as três religiões abraâmicas, isto é, no judaísmo, no cristianismo e
no islão. O hinduísmo e o budismo formulam normas semelhantes ao que se encontra no
livro de Moisés. Portanto, as cinco maiores religiões, apesar das diferenças que se
acentuam nos meios de comunicação de massas, apresentam similitudes que vão, lado a
lado, defendendo o amor ao próximo como uma tradição humanista e universal.9
Esta é a mensagem que vos queria transmitir para ampliar um pouco o panorama da
nossa alma quanto à tolerância e ao respeito para com os outros. Ao respeitar os direitos
e a liberdade dos outros, estamos também a respeitar a nós mesmos.
E assim terminou a última mensagem de Renato Cardoso. Acrescento aqui o que o Papa
João Paulo II deu na sua encíclica sobre o convívio fraterno, uma semelhante lição de
vida, que veio completar a do Renato: 10
Variados são os recursos que o homem possui para progredir no conhecimento da verdade,
tornando assim cada vez mais humana a sua existência. De entre eles sobressai a filosofia,
cujo contributo específico é colocar a questão do sentido da vida e esboçar a resposta:
constitui, pois, uma das tarefas mais nobres da humanidade. O termo filosofia significa,
segundo a etimologia grega, «amor à sabedoria». Efectivamente a filosofia nasceu e
começou a desenvolver-se quando o homem principiou a interrogar-se sobre o porquê das
coisas e o seu fim. Ela demonstra, de diferentes modos e formas, que o desejo da verdade
pertence à própria natureza do homem. Interrogar-se sobre o porquê das coisas é uma
propriedade natural da sua razão, embora as respostas, que esta aos poucos vai dando, se
integrem num horizonte que evidencia a complementaridade das diferentes culturas onde
o homem vive.

8 Bíblia Sagrada
9 Jo Benkow, Det ellevte bud, Gyldendal Norsk Forlag – Oslo, 1994
10 Carta encíclica, Fides et Ratio – do sumo pontífice – João Paulo II – aos bispos da Igreja Católica –

Sobre a relação entre Fé e Razão.

Domingos Barbosa da Silva 84


A estranha morte de um político

Domingos Barbosa da Silva 85


A estranha morte de um político

CAPÍTULO XIII

Domingos Barbosa da Silva 86


A estranha morte de um político

Uma tertúlia de amigos

Fátima, Marta, Roberto, Djonzinho e Renato


O manto negro das nuvens que se abatia sobre a ilha, trouxe uma promessa de chuva
sempre desejada. A chuva que traz felicidade a um povo massacrado pela falta de
água. De olhos mergulhados na zona da praia Gamboa, a amiga filosofava sobre as
letras da canção Porton d´nós Ilha à qual nutria um certo amor por significar mais do
que uma simples canção. Renato tinha um ar preocupado, o que atraiu a atenção de
Roberto. Antes que aquele pronunciasse uma só palavra, Marta abriu-se com ele
num tom quase tristonho.
– Renato, sabemos que tens uma certa amizade pelo Porton d’nós Ilha e o facto de
ele ser um objecto da tua poesia. Conta-nos o que pensas deste lugar na formação
da cabo-verdianidade no sentido moderno da palavra – perguntou.
– Ora, vamos reflectir no seguinte: sabemos que, num pedaço de terra, na ilha de
Santiago, a uns escassos quilómetros a oeste da capital do país, se encontra o berço
dos cabo-verdianos. Nessa leira de terra rochosa ocorreu, certamente, há muito
tempo, uma espécie de revolta e, algumas pessoas, chamam-lhe revolução ou
mudança na mentalidade do cabo-verdiano, o que conferiu a esse pedaço de terra
uma força simbólica e mística da qual ainda hoje não se compreende bem o
significado. Este sítio é o nosso coração nacional. É um pedaço de cada um de nós.
Assim como o nosso sentimento, a nossa honra nacional, a nossa consciência
enquanto nação / povo e o nosso sentimento de honra em relação à independência
política que hoje temos. Tudo isto tem aqui a sua génese, neste terreno – o grande
ponto de partida na nossa história. A luta pela independência, a construção nacional
e a assembleia constitutiva, começaram a germinar lá naquele pedaço de terra. Aí,
nasceu a ideia de um Estado nacional, a ideia acerca de Cabo Verde como nação
livre. Sem a Cidade Velha, nada de 1975, porque ela também foi o centro de
dissensão, de polarização de interesses, de abuso de poder, de recriminação, de
racismo, de linchamento, de escravidão, de carnificina, um campo de batalha e de
fuga, de desobediência, de protesto, algo que simboliza uma luta pela Liberdade e
vitória da Paz.
Se queremos compreender o cabo-verdiano, devemos primeiro ir às suas raízes, à
Cidade Velha, escavar nas suas imediações para encontrar o cerne da nossa cabo-
verdianidade. Portanto, ela foi o primeiro berço, a primeira referência histórica que
temos do nosso país. Na Ribeira Grande de Santiago, a primeira cidade, construída

Domingos Barbosa da Silva 87


A estranha morte de um político

pelos europeus nos trópicos, encontram-se também, as ruínas de uma Catedral


centenária.

– Estamos a ouvir-te com interesse – cortou Marta, ficando com os olhos fixos nos
de Renato.
– O assunto em apreço, atormentou-me a mente quando, muitos anos atrás, visitei
a Cidade Velha, na ilha de Santiago. Foi no mês de Julho e as ruínas da cidade
pareciam uma casa de formigas. Centenas de turistas conglomeravam a ruína
através do portão imenso, aberto ao mar, aos céus e a tudo o que existe, com olhares
penetrantes, engolindo secamente os ecos do passado. Multidões de gente
rodeavam as paredes da ruína num silêncio sepulcral. Japoneses, americanos,
franceses, italianos, alemães e cabo-verdianos fotografavam, febrilmente, para
levar consigo um pedaço da história, um pedaço de cabo-verdianidade, uma nesga
da obra feita pelas mãos dos nossos antecessores. - Disse Renato.
– Todos os que hoje visitam a Catedral experimentam algo especial e sem limite,
algo extraordinário, algo que ultrapassa o entendimento humano – comentou
Djonzinho.
Renato sorriu, levantando a cara, leu a expressão que banhava a face do Djonzinho
e, depois de alguns segundos, disse:
– Sabemos que a Cidade Velha nasceu e desenvolveu-se por conta do tráfico
negreiro, tendo sido a primeira capital de Cabo Verde até 1770, quando esta função,
mais tarde, foi transferida para a Praia de Santa Maria – actualmente Cidade da
Praia. O que não se sabe é como se parecia a catedral na sua forma original.
Desconhece-se quantas torres formavam a sua cúpula. Quantas janelas enfeitavam
a sua fachada. Possivelmente, quem sabe, haveria uma torre alta que simbolizava

Domingos Barbosa da Silva 88


A estranha morte de um político

Cristo, 12 pequenas torres que representavam os apóstolos e, ainda, 4 outras torres


mais pequenas que simbolizavam os evangelistas. Tinha 20 ou 50 metros de altura?
Um sonho cabo-verdiano, uma arte cabo-verdiana? Um sonho do futuro da nação,
erigido como protótipo do património cabo-verdiano?
O político manteve o olhar alto, como se o peso daquela história o envergonhasse
ou talvez lhe trouxesse muito orgulho e continuou sem fixar os olhos no seu
interlocutor.
– Como qualquer outra obra, a Catedral tem um passado histórico muito
interessante. Ela é, acima de tudo, um símbolo cristão. Neste contexto, é importante
lembrar a todos que esta Catedral é a mais cabo-verdiana de todas as outras obras.
O Cristianismo foi uma ligação entre raças diferentes que moldaram a comunidade
cabo-verdiana, a argamassa que cimentou os costumes, as tradições e as crenças ou
grupo de família, o conteúdo do conceito que hoje é Cabo Verde. Imaginemos a
Catedral com uma fachada voltada para o oriente. Deve ter sido pintado com
algumas imagens que simbolizavam o nascimento de Cristo em Belém, exactamente
como todas os santuários das igrejas cristãs são construídos. Isto engloba tudo o que
simboliza as várias passagens bíblicas. Nela, podiam observar-se as imagens da fuga
de José e Maria para Egipto, a descrição das maravilhas relacionadas com o
nascimento, retratos da natureza, a árvore da vida. Tudo construído sobre os
fundamentos da crença religiosa. No meio, situava-se o portão da misericórdia,
rodeado dos portões da Esperança e da Fé. À volta da Catedral podemos imaginar
palmeiras e outras árvores, arbustos e plantas rastejantes. O nascimento e o
sofrimento, a vida e a morte num quadro só. Pelas bandas do ocidente e do pôr-do-
sol, podemos imaginar um quadro de sofrimento brutal de Cristo. Vemos Pedro
ajoelhado em Getsémani quando o galo cantou pela terceira vez, Judas a beijar Jesus,
discípulos a comer a última ceia, a lança do soldado Longino a atravessar o peito de
Cristo. Tudo numa associação de ideias acerca da humilhação e terror humanos da
época. Por outro lado, apresentava também, outras associações de opressão e terror
relacionados com Auschwitz, Treblinca, Pidjigiti e outros terrores psíquicos que
durante séculos visitaram e continuam, ainda, a visitar este planeta.
Renato parou um instante, como se fosse doloroso demais levar o raciocínio até ao
fim, mas optou por continuar.
– Mesmo que muita gente não consiga imaginar a Sé Catedral da cidade, como
uma construção gótica, construída num local privilegiado, frente ao oceano, no
século XVI e XVII, podemos dizer que ela continua a ser uma atracção turística por
causa da sua história e do seu contexto divino. Existe, talvez, algo escondido nesta
história. Os turistas e curiosos que visitam a cidade procuram a essência da cabo-

Domingos Barbosa da Silva 89


A estranha morte de um político

verdianidade, o princípio do caldeamento de raças, a junção do individualismo


europeu com o do africano, a miscigenação de raças, de religiões, de crenças, de
modernidade, de primitivismo, de misticismo, de magias, de artes, de graus de
literatura e das visões do mundo que ali se juntaram para se confrontarem e
entenderem. Uma raça a oprimir a outra. Mas o que os turistas e curiosos encontram
ali? O silêncio poisado sobre as paredes, as vozes reprimidas que ocupam os buracos
das paredes da Catedral, os ecos de gritos reprimidos de escravos, as impressões
digitais dos africanos e, possivelmente, dos europeus e de outros povos que aí se
juntaram? A concreção ou solidificação de culturas de vários povos, a renascença
europeia, a “arte nouveau” francesa na argamassa que forma a arquitectura,
inspirada pela mesquita árabe, pelos templos egípcios, pela arte dos índios e pelo
misticismo africano?
A explicação desencadeou um burburinho entre os presentes. A explanação que
acabaram de ouvir era bastante evidente e suscitou algumas perguntas.
– Sabe-se da sua danificação em tempos que já lá vão. Qual foi a razão para o seu
estado de degradação? Que interesse esteve envolvido? – Cortou Roberto.
O interlocutor levantou a mão. A interrogação suscitou um leve sorriso e, com o jeito
que lhe era próprio, continuou a explicação.
– A Sé Catedral da cidade mantém-se no seu lugar original. Nada a pode tirar dali.
Porque ela existe no pensamento colectivo do cabo-verdiano. A sua total danificação
pelos piratas em 1712, tendo ficado em ruínas, tal como é hoje observável, não
removeu a sua existência histórica. Hoje, o nome da Cidade Velha, está para sempre
ligado à escravidão, mas está sobretudo, ligado à história cabo-verdiana e à cabo-
verdianidade. E, o conceito de Cabo Verde, encontra-se eternamente ligado ao
conceito da paz, da amizade sem fronteiras, da morabeza11 e de irmandade ou
fraternidade. Com o andar do tempo vai, pouco a pouco, adquirindo o significado
que liga Cabo Verde aos conceitos de democracia, direitos humanos, liberdade de
expressão, livre de tortura, de crime, de marginalização e com segurança individual
entre as primeiras opções políticas. Agora, cabe a todos, lutar para que esses valores
se alastrem e perdurem no meio do povo.
Os construtores da Catedral são representantes dos cabo-verdianos. Simbolizam
cada indivíduo, um universo insubstituível. Demostram que uma pessoa pode criar
algo que ultrapassa as limitações impostas pela vontade humana, que um indivíduo,
em si, tem valor ilimitado e é merecedor da vida eterna na sua acepção cristã. Os
motivos para a sua deterioração poderão ser vários. Há quem diga que sempre houve

11 Derivada da palavra amorável, na Ilha Brava, morabi, uma maneira especial de ser cabo-verdiano.

Domingos Barbosa da Silva 90


A estranha morte de um político

um movimento contra a escravidão no mundo, mas há outros que justificam o seu


estado de degradação com a hegemonia política dos franceses. Eu acredito mais na
primeira hipótese, pois não havia riquezas na nossa terra e partiram sem nada.
Portanto, a destruição da Catedral deve ter sido motivada pelo movimento contra
escravidão da época.
A história de Cabo Verde, de maneira geral, é uma história sangrenta de milhares de
indivíduos que foram sacrificados no altar da colectividade: em nome da Mãe-pátria,
do rei, do partido e do interesse próprio. A própria Catedral da cidade Velha é símbolo
ou memória colectiva de tal altar da colectividade – a casa da carnificina. Nos séculos
que se seguiram, cresceu o respeito pelo indivíduo anónimo. Mas só muito tarde, no
século XX, é que o valor individual cresceu. Ao indivíduo, foram dados direitos
individuais inalienáveis. Ele tem, portanto, em princípio, o mesmo valor que um rei
ou um príncipe tem. Nenhum dos turistas que visitaram a Sé, mencionaram uma só
palavra positiva sobre a escravidão, sobre a opressão, sobre o colonialismo ou sobre
os desafortunados que construíram a Catedral. No entanto, quase todos falaram e,
ainda falam, sobre Cesária Évora, Amílcar Cabral, sobre Cabo Verde, em particular,
sobre os cabo-verdianos e sobre a Cidade Velha, em geral – raciocinou Renato.
Um silêncio apoderou-se do momento como se todos se encontrassem sintonizados
na mesma onda do tempo e da história, imaginando como seria possível tal acto,
isto é, se todos lutassem contra as lágrimas que, teimosamente, lhes tentam aflorar
aos olhos, como seria possível abandonar tanta gente à mercê dos interesses de uma
minoria?
– Hoje questiona-se se os valores cabo-verdianos estão em crise. Família em
dissolução. Criminalidade em crescimento vertiginoso. Insegurança nas ruas das
cidades. Indiferença nas relações sociais. O que está a acontecer? A história trata do
passado, mas não só, trata também, do presente. Há muita informação histórica na
Sé Catedral da cidade Velha, culturalmente rica e preciosa para a nossa sociedade,
mas que se perdem nas experiências do presente, no egoísmo de todos nós e,
particularmente, no desinteresse generalizado dos homens do poder. Houve até
quem propusesse a sua reconstrução. A pergunta que talvez surgisse seria se ela teria
o mesmo valor histórico como ruína ou se a sua reconstrução lhe daria um valor mais
elevado.
O que estou a contar-vos não se trata de Cabo Verde como ideia, como conceito, mas
sim, das pessoas que viveram nos primórdios da história de Cabo Verde e que, pouco
a pouco, formaram ou deram origem ao conceito de cabo-verdianidade. Homens e
mulheres que sofreram na pele a escravatura, as intempéries da carestia – a
epidemia da fome, da seca, da doença, os problemas de amor proibido entre

Domingos Barbosa da Silva 91


A estranha morte de um político

diferentes raças, a discriminação, os abusos de poder, entre outros. Trata-se, numa


só palavra, de nós. Cabo Verde venceu a crise e experiencia hoje o crescimento em
muitas áreas, devido a novas tecnologias, novas ideias, novas formas de governo e
uma nova ordem mundial. Alguns chamam a isto, Claridade. Despertar, digo eu.
Despertar de uma crise social – uma crise humana. Nós precisamos de eternizar esta
luta ferrenha, este modo de sentir cabo-verdiano e esta tarefa de transformar as
coisas para melhor e para o bem de todos nós – acrescentou Renato.
A tertúlia de amigos descontinuou aqui. A presença de outros indivíduos criou um
mal-estar e a conversação foi perdendo ênfase, ou melhor, a conversa tomou um
rumo diferente. Fátima deixou cair os ombros e virou os olhos para o mar. Soergueu
o sobrolho e optou, prudentemente, por não tecer comentários.
A partir do momento em que Aquiles entrou na cena da conversação, o Djonzinho
sentiu algo de estranho a mexer dentro de si. Não sabia bem onde nem o quê, mas
alguma coisa começou a saracotear ali dentro. Tentou puxar um músculo facial para
daí extrair um sorriso e respondeu boa tarde à sua saudação. No mais profundo do
seu ser, qualquer coisa se encontrava estagnada, como um carro num parque de
estacionamento escuro. O seu corpo disse não à sua presença, apesar de manterem
toda a cordialidade. A sua mente disse um total não e assim também o fez aquela
estranha, escura e intangível coisa, meio-anjo, meio-diabo que peleja dentro do seu
corpo e que, comummente, se chama de espírito. Até ao dia de hoje, o Djonzinho
não sabe explicar porque o detestou tão violentamente logo à primeira vista. De
qualquer maneira, detestou-o com todo o seu ser. O ódio, assim como o amor,
acontece às vezes sem nenhuma razão aparente, ou talvez tenha a sua própria razão
que não pertença ao domínio da mente humana e nem possa ser imaginado por ela.
Ódio e amor são iguais a todas as verdades importantes e eternas na vida, mas que,
por vezes, escapam ao entendimento da mente humana. Como a existência de Deus,
como a existência do Bem. As verdades importantes são sempre rodeadas de
dúvidas. Mas Djonzinho, naquele momento, não duvidou dos seus sentimentos para
com o homem à sua frente, aquele sentimento que nasceu à primeira vista. Os seus
olhos encontraram-se durante uns segundos. Os olhos para Djonzinho são iguais às
janelas. Através delas, mergulha o seu olhar na profundidade das coisas, no fundo
daquilo que outras pessoas, muitas vezes, chamam alma. Depois de passar a vista
pelas janelas, ficou certo de que encontrou qualquer coisa que não lhe agradou.
Seguindo-se os gestos, os músculos faciais, os ossos da face e da boca que
completam a imagem que formou na sua mente sobre a pessoa que paralisou a
conversa do grupo. Ele deve ter ficado um pouco paralisado e sentido a aversão do
Djonzinho. Não sabe da sua sensibilidade, mas a experiência da vida, muitas vezes,
descobre muito mais verdades do que a própria ciência é capaz de fazer.

Domingos Barbosa da Silva 92


A estranha morte de um político

Além do mais, a observação do Aquiles, o seu modo de ser, a pose e as suas palavras,
permitiam-lhe lê-lo melhor. Configurá-lo no espaço que cercava o grupo de amigos
que vivia na sombra de Renato, um indivíduo carismático, amante da liberdade, da
igualdade entre os homens e que, além disso, era muito simples.
Aquiles era conhecido por todos como o amigo da onça. Não tinha papas na língua,
não guardava segredo e estava sempre pronto a condenar qualquer amigo que
pensasse de forma divergente. Ele desafiava qualquer argumento que se opusesse
à obediência cega aos princípios do partido único como luz e guia do povo. A palavra
obediência fere os meus sentidos, soa como uma ofensa, um insulto à dignidade
humana quando ligada a qualquer partido político, ou mesmo a qualquer religião,
uma característica da escravidão, do servilismo e da opressão. A obediência neste
sentido, é um veículo da opressão e serve para dominar os outros. Os grandes dizem
que a obediência é uma virtude, mas fora do contexto, soa ao contrário. Para que
parecesse verdade no contexto político de então, Djonzinho teria de abolir a sua
razão, a sua vontade humana e fazer o que os outros lhe dissessem para fazer.
Isto levá-lo-ia a perder ou a vender a sua alma, a sua capacidade de pensar como um
ser humano, e transformá-lo-ia em animal doméstico que vive atrás duma parede
com medo de desobedecer os seus donos.
Quando aquele homem falava, dava a impressão de ser o detentor da verdade e
acabava sempre os seus discursos com aplausos. Ele era o primeiro a aplaudir-se e
os outros seguiam-no com um sentido de dever. Aplausos, são provas de lealdade
para com o poder estabelecido ou para com aquele que o representa. Para Aquiles,
significava o mesmo que patriotismo. Se as mãos de alguém aplaudissem
frouxamente ou, por descuido, deixassem de o fazer, essa pessoa seria de imediato
vista com suspeita. O seu nome não tardaria a aparecer na lista das pessoas não
desejadas no Ministério do Interior. Aquele que não chora a perda do seu líder,
acaba por ser persona non grata, pessoa não desejada, num país ou numa
sociedade, que se diz de crentes de razão pura, uma vez que, os seus
comportamentos passam a ser observados cuidadosamente e, mais cedo ou mais
tarde, vê-se o resultado de tal observação, isto é, o preço de não chorar. Choros e
aplausos são, nestas circunstâncias, sinónimos, são provas de lealdade, de
patriotismo, de obediência e de afiliação ao sistema estabelecido.
Enervado com a presença que a olho nu, parecia amigável, Djonzinho percebeu que
estava a proceder de modo pouco correcto, assim, endireitou-se e segurou as rédeas
das suas emoções.

Domingos Barbosa da Silva 93


A estranha morte de um político

CAPÍTULO XIV

Domingos Barbosa da Silva 94


A estranha morte de um político

Escapadela

Renato Cardoso contava-nos a história do nosso passado como que sonhando e


brincando ao mesmo tempo. Sempre se sentia bem em contar-nos algo relacionado
com o passado, a origem da nossa cabo-verdianidade ocupava um lugar central nas
tertúlias dos cafés, nas reuniões de amigos. Desenhava cenários que nos deixavam
estupefactos. O ponto de partida era sempre o desembarque na antiga capital, os
horrores da escravidão, o espezinhamento dos escravos, os castigos depois de uma
fuga malsucedida, a fuga e a libertação de alguns, os maltrates, a falta de
humanidade, a desonra, o racismo, a discriminação, a desumanização, etc. O
aparecimento de Aquiles, na altura da reflexão conjunta que se ia aprofundar,
causou desconforto. A presença dele, naquele momento, só contribuiu para desviar
as atenções dos amigos. Havia tanta coisa a contar. Renato tinha novidades a dar.
Pelos vistos, ele não havia ainda descarregado tudo. Quando o silêncio pesava sobre
os presentes, ele cortava o silêncio de um modo muito especial. Começou a
tamborilar com os dedos em cima da mesa, mas de repente imobilizou a mão e
inclinou-se para os outros.
– Calculo que não houve uma só alma sentada na varanda daquela casa, que não
tivesse festejado, que não tivesse sorrido da ignorância dos seus próprios actos,
vendo os seus servos a trabalhar e a comer as migalhas deixadas na mesa dos
colonos. Mais tarde, só se via uma pessoa sentada numa poltrona a bebericar uma
cerveja. Era o Corte Real, o encarregado de plantão que ia vigiar os servos o resto do
dia. Tinha como vício dormitar um pouco durante a tarde e não era estranho
encontrá-lo no mesmo lugar na madrugada do dia seguinte.
Parou um instante, como que para revolver e arrumar o que lhe vinha à mente e
vendo a expressão de curiosidade desenhada na cara dos amigos que ainda não
tinham entendido o que ele ia contar, continuou imperturbado.
– Naquele determinado dia, tinha a janela aberta onde a aragem vespertina ciciava
os furores do dia. As fragrâncias das flores do jardim balsamizavam as dores de
Nqunta e seus camaradas. Com Corte Real nas proximidades, prestes a deixar-se
embalar numa soneca, acendiam na retina de Nqunta as últimas esperanças e
passavam imagens de sonhos caprichosos.
Pensava nos seus companheiros de luta, no medo estratificado na alma, nos horrores
que devastavam as peripécias do dia-a-dia, nos olhos empedernidos e desumanos
que penetravam o gosto de viver, desmoronando as esperanças de um dia melhor e
na desumana invenção da escravatura. Pensava também, em como vivenciar a

Domingos Barbosa da Silva 95


A estranha morte de um político

felicidade de que os outros usufruíam sem um mínimo de esforço. Não a felicidade


que o poeta canta ou que os jovens príncipes sonham, nem aquela que se imagina
no estado de delírio ou sob efeito de estupefacientes ou, ainda, a que nasce daquilo
que é proibido. Era pura e simplesmente, o alcance da alegria do dia-a-dia, a única
alegria que confere o sentimento de profunda felicidade e que proporciona uma
contribuição para um mundo mais justo, mais reconciliável e mais unido.
Mergulhado naquele mundo de sornice e cantar dos pássaros, Nqunta raciocinava
como se entrasse numa passagem da poesia de Goethe: não estaria ele a libertar
forças sobre as quais não tinha qualquer controlo? Não iria uma avalanche causar
outras avalanches? Não iria um Mal causar outro Mal; violência gerar ainda mais
violência e transformar tudo num pesadelo sem igual? Não iria uma existência
pacífica de escravos, com os seus segredos e as suas dores recalcadas, repletos de
rica civilização e cultura, transformar-se num campo de carnificina humana? O
pensamento deslizou para a luta do Bem contra o Mal. Esforçou-se para juntar as
forças de concentração e de atenção e empurrou tudo para o lado escuro da
consciência. Ainda assim, aflorava-se-lhe novamente no íntimo, a ideia de ser ele
próprio, exactamente como nasceu, nu e livre. Não queria ser mais descrito com
metáforas médicas como parasita, bacilo, bactéria, nem como preguiçoso, raça
inferior, feio e outras expressões depreciativas.
Nqunta estava muito preocupado com a linguagem usada na época. E com toda a
razão para o fazer. Pois a linguagem desliza suavemente e penetra a subconsciência,
criando uma predisposição ou um estado mental que, pouco a pouco, se torna
determinante para o nosso comportamento, isto é, condiciona o nosso modo de ver
e de estar no mundo em consequência de tal fenómeno. Portanto, não é o mero
significado conceptual das palavras contidas na linguagem falada ou a expressão
escrita utilizadas, que determina o nosso comportamento, mas sim, a intenção
contida, reiterada e asseverada a cada vez que são proferidas. É isto que nos guia
nas nossas acções na vida! É esta nota sustenida, aquilo que está escrito entrelinhas
e que dá cor ao nosso modo de ver e de estar no mundo.
Ele acha que se não teimar-nos na luta para conquistar aquilo que os outros
adquirem sem fazer esforço, isto é, a valorosa liberdade, os nossos destinos
continuam a ser administrados por terceiros, acabando por cair numa teia de
dificuldades e enredo complicado, sem nunca mais de lá sair, pois os nossos
comportamentos são a nossa própria prisão com a repetição constante da
linguagem que enjaula e que ecoa da nossa subconsciência.
Imaginava os lugares por onde iam passar, enquanto aproveitava para receber ou
inspirar um pouco de brisa que pela janela passava, procurando cristalizar no tempo

Domingos Barbosa da Silva 96


A estranha morte de um político

a fonte inspiradora dos seus segredos. Os últimos raios do sol daquela tarde
poisavam-lhe na fronte como um diadema da verdadeira corte real. Pegou no balde
do jardineiro e começou a regar as plantas ao redor da casa, enquanto no beirado
da casa, uma avezinha no seu ninho temerário, chilreava a sua última canção da
tarde. Com este panorama vespertino, de tamanha paz, parecia que Deus imobilizara
todas as almas vivas, com excepção de Nqunta, da avezinha no beiral e das galinhas
na capoeira.
Naquele instante, Nqunta contemplava serenamente três mundos diferentes,
reflectindo sobre cada um deles: um embebido em preguiça, do qual fazem parte o
patrão e seus companheiros, outro no qual vivem cantando os pássaros que
ocupavam os beirais das casas e outro que se desenrola perante os seus próprios
olhos, situado no interstício entre a preguiça e o cantar da avezinha. Este terceiro
mundo, é um mundo calado, solitário, injusto, como o mundo da vegetação ou pior.
No entanto, o estado vegetativo é, em si mesmo, uma forma de vida sem a qual esta
se extinguiria. Portanto, sem nós como força motora, impulsionadores da acção
neste terceiro mundo, os preguiçosos que nele habitam não conseguiriam sobreviver
– pensou Nqunta.
Nqunta deteve-se por instantes no raciocínio de que, na esteira da luxúria, no meio
do campo luxuriante, se encontra a senzala nua e desmoronada, isto é, desfeita em
ruínas. Sob os tectos da senzala há um mundo que vegeta como uma planta. Um
mundo de escravos que têm paixões, sensibilidades, amor, enfermidade, agonia e
morte. Um mundo que não conhece uma pátria ou mátria, um noivado, um lar, um
direito e nem olhos chorosos sobre o túmulo.
Esse homem que assumiu a posição de capitão de escravos, vive no reino silencioso
dos vegetais, onde são precisos os efeitos prismáticos da luz sobre a terra e a
presença da água como única forma para se manterem vivos. Ele sabe e tem a
perfeita consciência de que o ser humano precisa mais do que esses elementos. Ele
precisa de amor, como elemento unificador e como ponte que liga os escravos aos
senhores, embora isso seja algo inexequível no mundo em que vive. Por isso, também
sabe, que a multidão cativa, os escravos, trazem na pele e no fundo da alma, um luto
inviolável, um manto imóvel de um povo que, pela origem comum, pelo comum
destino, deve lutar, incansavelmente, pela sua liberdade. E sabe, além disso, que é
preciso uma emoção fraterna, um olhar de ternura, mas sobretudo coragem para
vencer os obstáculos que a vida impõe.
O indivíduo humano precisa, entre outras coisas, de satisfazer as necessidades
primárias do seu corpo, de filosofar sobre as necessidades primárias do seu espírito.
Depois de satisfazer estas necessidades, procura satisfazer as secundárias, como

Domingos Barbosa da Silva 97


A estranha morte de um político

desenvolvimento integral como pessoa, comunicar com um telemóvel, escutar


música, viajar, etc. Contudo, essas necessidades secundárias estavam relacionadas
com as primárias na cabeça do Nqunta. Poder-se-ia perguntar por que é que ele
sentiu necessidade de filosofar? Todavia, caros amigos, tal necessidade encontra-se
estruturalmente radicada na própria natureza do homem que procura saber qual é
o lugar que ocupa neste universo. Sendo assim, a filosofia é necessária para qualquer
ser humano, pois é indissociável e irrenunciável, precisamente porque não se pode
separar o homem da maravilha da criação nem se pode renunciar à capacidade
humana de transcender as suas limitações e procurar respostas para as questões que
o mundo lhe coloca.
Torna-se, assim, evidente que se trata de assuntos para os quais o homem procura
uma explicação e que, à medida que vai construindo a sua verdade, encontra
também, possíveis soluções para os desafios que a vida lhe propõe. Esses desafios,
são também eles, o que nos ajuda a compreender o sentido da marcha, isto é, por
onde segue o nosso caminho, mesmo depois do triunfo das ciências modernas, pois
nenhuma delas nos fornece verdades universais, uma vez que, as ciências respondem
somente a perguntas sobre partes e não sobre o todo.
Por todas estas razões, podemos, portanto, mencionar o pensamento de Aristóteles
que defendia que não apenas na origem, mas também, agora e sempre, a velha
pergunta sobre o todo tem sentido — e terá sentido enquanto o homem se
maravilhar diante de tudo o que existe e diante de si mesmo, enquanto parte de um
todo.
Renato remeteu-se, momentaneamente, ao silêncio com os olhos fixos na lonjura a
digerir o que na sua mente constituía um panorama a ser descrito por palavras bem
ponderadas. Ao fim de uns minutos, porém, recompôs-se e voltou a encarar os
amigos.
– Não sei se sonho ou se é minha imaginação criadora. Sei que nem sempre os
sonhos são definidos no palco da mente. Sei, também, que algumas vezes eles
nascem, fogem e desaparecem. Outros tomam forma ao longo do tempo e as
grandes mudanças no mundo surgem por causa dos grandes sonhos. Porém, o que
sinto é uma retrospecção, uma navegação em águas passadas.
Não há dia em que não pense na nossa história. Nenhuma madrugada surge sem
que oiça uma voz estranha no fundo da minha alma. Não durmo sequer uma noite
sem conversar comigo e com Deus. Não poucas vezes, uma dor profunda insiste em
visitar-me e dilacera todo o meu ser. A voz é estranha e não é recognoscível. Vem de
todos os lados e toca o meu ser.
– Irmãos, temos de acordar – diz essa voz estranha.

Domingos Barbosa da Silva 98


A estranha morte de um político

Era a voz maviosa de Nqunta que tinha os olhos arregalados onde reluzia o medo.
Uma mão invisível tocou-me no ombro e disse algo baixinho ao meu ouvido, algo que
me transportou no tempo, aquele tempo da cegueira humana.
Nesta visão retrospectiva recuo no tempo e experimento a dor, a febre, a disenteria,
o medo, a adrenalina no sangue, a dificuldade na respiração com os pulmões
danificados, a transpiração na fuga ou no trabalho forçado, os protestos calados e
os olhares frios dos senhores. Sinto um fogo dentro de mim e digo para mim mesmo:
meu Deus, há um incêndio dentro de mim. E a mão sobre o ombro, que
pacientemente me afaga diz:
– Vamos fugir para longe. Nesta mesma madrugada vamos sair daqui. Vamos
avisar Bafuá, Bafu, Memenga, Safeya, Babour, Lulua e Quintana e todas as crianças
– diz a voz.
O que há de especial nessa voz? Quem é essa pessoa com a mão sobre os meus
ombros?
Além da dor que sinto, oiço também alguém, constantemente, a dizer algumas
palavras amigas aos meus ouvidos, como se fosse um eco do passado. Um eco que
repete: a partir de amanhã somos livres! Acreditem em mim. Tenho um plano para
a fuga – era o eco do pensamento de Nqunta.
O senhor Corte Real estava sentado na varanda a beber cerveja. Não era pessoa para
brincar. Chicoteava todos os que estavam debaixo do seu comando num pestanejar
de olhos! Neste preciso momento, dormia já pesadamente. Tinha os ouvidos afiados
e ouvia mais do que os ratos do deserto, mas a acção do álcool contaminara-lhe os
sentidos, anestesiara-lhe a mente e ensurdecera-lhe os ouvidos.
Um pouco mais afastada da varanda, perguntou uma voz:
– Que data é amanhã?

Domingos Barbosa da Silva 99


A estranha morte de um político

– Primeiro de Setembro – respondeu, silenciosamente, uma outra voz dentro de


mim sem pensar nas consequências que a fuga poderia ter. Olhei à minha volta e
não encontrei vivalma. Porém, a voz continuou a perseguir-me. Não consegui fugir
dela. Ela deu uma ordem, uma ordem a ser seguida. Entrei de novo no transe e
depois acordei sem saber onde. Um banho esta noite para limpar o suor de semanas
de trabalho, uma troca de roupas antes de amanhecer, uma vigilância contínua, uma
fé firme e uma esperança renovada, são ingredientes para o sucesso.

Nqunta sentou-se debaixo do beiral da casa onde dormitavam os escravos e pôs-se


a rezar. A voz dele ecoava nos meus ouvidos como uma oração:
– Meu Deus, se amanhã é o dia da liberdade, deixe-nos vencer esta caminhada,
não nos deixe morrer para podermos contar a história ingrata e pedregosa que
alguns homens colocaram no nosso caminho.
E, como que se a voz quisesse dar uma argumentação lógica a Deus, acrescentou:
pois, se morrermos pelo caminho, quem é que irá contar a história daqueles que
todos os dias morrem sem saber porquê?
A voz continuou a perseguir-me, como um fantasma. De repente, senti de novo uma
faísca acender dentro de mim. Olhei demoradamente para o homem à minha frente.
Tinha um brilho nos olhos e as mãos trémulas.
Nqunta olhou para o céu cheio de estrelas e previu se haveria, ou não, vento ou mau
tempo no dia seguinte. O seu pensamento era o guia mais certeiro que podia haver
sob o céu estrelado. Não sabia para onde fugir, mas de qualquer maneira, pensava
em fugir para longe. Fugir até onde os pés o pudessem levar. Não pregou olho
durante a noite com medo de adormecer ou que o plano fosse descoberto. As cabras
e as vacas esperavam por ele todas as madrugadas. O Nqunta, o Bafu, a Memenga,

Domingos Barbosa da Silva 100


A estranha morte de um político

Badour, Safeya, Bafuá, Lulua e Quintana eram quem delas tomava conta. As outras
centenas de escravos andavam nos seus afazeres e outras dezenas dormiam sem
saber o destino que o amanhã lhes trazia.
Renato, mais tarde, numa das tertúlias de café de que me lembro com muita nitidez,
continuou a dar-nos uma grande lição da história da nossa terra e do nosso povo.
Tinha uma visão muito clara sobre a formação da nossa língua, dos nossos costumes
e tradições, da miscigenação de raças, da cultura, da nossa revolta contra o poderio
e do processo da primeira liberdade que nos conduziu até onde hoje estamos. Ele
contava com desembaraço e detalhes como as coisas, possivelmente, aconteceram
num passado bastante longínquo.
Assim, disse imediatamente que voltaríamos ao ponto onde ficámos e continuou a
explicar o processo da fuga:
– Era já bastante tarde quando Nqunta preparava uma tigela de feijão e toucinho
para a viagem. Tivera de utilizar tomates de conserva e pimentas verdes que já
estavam a crescer na ladeira ao lado da casa. Preparou as marmitas e ficou a pensar
na trajectória incerta. Saiu para a capoeira no intento de matar uma galinha para
assar. Logo à entrada, encontrou um frango morto e desfez-se dele, pendurando-o
nos ramos de uma árvore de cabeça para baixo. Começara a chuviscar quando um
outro frango estava pronto a ser posto na marmita e o cheiro do assado era de fazer
nascer água na boca. O vento soprava levemente, durante a madrugada. Com o mar
a sudoeste, as nuvens foram sendo arrastadas pela frescura da alvorada, ficando
cada vez mais baixas, até encherem as ribeiras e o topo das colinas. A seguir, caíram
gotas grossas como uvas. Nqunta saiu para o curral e, de pé numa manjedoura, ficou
a escutar com alegria a chuva a rufar no telhado de Lusalite, telhas de fibrocimento
ou de amianto. Com o primeiro cantar de galos, a comitiva começou a chegar
conforme combinado. A chuva dificultava um pouco, mas o ambiente de fuga
tornara-se mais propício. Ela tornou-se mais cerrada e oblíqua pela acção do vento
fresco que soprava do oceano. O cheiro a terra molhada inebriava a comitiva. Ainda
assim, os planos estavam firmes e em vias de serem implementados.
A chuva abrandou antes de amanhecer, mas de cada um dos pequenos vales e de
cada prega das colinas, podiam ouvir-se os chiados de uma corrente de água que ia
juntar-se ao mar arrastando troncos, arbustos, batatas, mandiocas e raminhos
levados pela corrente. A comitiva receara que a chuva parasse antes de partir e
apressou-se em direcção à cocheira e ao curral. A chuva havia de apagar as pegadas
dos animais e seria, por isso, mais uma razão convincente e conveniente para se
apressarem. As trouxas foram arremessadas para cima dos animais em poucos
minutos. Da porta do celeiro, o Nqunta viu o ajuntamento e aproximou-se. Colocou

Domingos Barbosa da Silva 101


A estranha morte de um político

o seu chapéu esfrangalhado na cabeça e dirigiu o grupo para o lado da ribeira. Os


galos continuavam a cantar animadamente.
Já se tinham feito sentir alguns dias de tempo quente, o que fez espigar o milharal.
Os vaqueiros contornaram uma colina e pegaram em 7 reses, mais à frente, em 7
cabras e em 7 cabritos, entre outros animais e seguiram atrás dos cavalos. Antes da
aurora, já tinham transposto o vale situado perto de Belém.
A uma certa distância da pequena estância, um dos cavalos, a passo pachorrento,
levantou o focinho para o céu e relinchou amigavelmente. As mulas ficaram mudas.
Os burros cheiravam o xixi de uma égua e, um deles, levantou o focinho para o céu
com os beiços arreganhados. Dois pássaros seguiram, curiosamente, a caravana. O
mesmo cavalo soprou de novo e lançou um outro relincho. Nqunta apeou-se
airosamente e segredou algo ao ouvido do cavalo, afagando-o com as mãos nas
ilhargas. Seguiram rumo ao incerto. A única certeza era a de serem livres dos
mandamentos descabidos de alguns senhores de barriga grande e cabeça
preconceituosa.
Ainda não nascera o Sol quando começaram a descobrir a zona a que, mais tarde, se
deu o nome de Pico Leão. Durante algum tempo mantiveram-se quietos, mirando-se
uns aos outros com um sorriso no canto da boca. Um sorriso tantas vezes recalcado
no fundo do peito.
Desceram dos animais e todos fizeram uma genuflexão, dando depois um beijo no
chão e, em jeito de prece, pediram à Nossa Senhora de Salvação para lhes alumiar o
caminho da liberdade. Seguiram tropeçando por entre pedregulhos em direcção ao
norte, até se sentirem arrasados pelo cansaço. Aproximaram-se da calada de uma
rocha e pararam.
– É a hora do descanso – comandou Nqunta, descendo do cavalo, sentando-se
sobre uma pedra e olhando para o céu coberto de nuvens.
As mulheres traziam nos braços o pão amassado sob o peso do medo, como se fosse
um braçado de lenha. Empilharam-no sobre uma pedra grande. Os homens traziam
leite azedo, mandioca, milho, batata, salada, feijoada e marmitas de outros farnéis.
A saliva saltitava nas bocas quando os aromas das comidas começaram a impregnar
o ar. As mulheres desembrulharam umas canecas de folha de alumínio e distribuíram
uma para cada um.
– Essa nuvem negra, ameaçadora, lá no alto, traz chuva – disse Nqunta. Depois de
um longo silêncio, levantou-se e pôs-se a acariciar o pescoço do cavalo para se
acalmar a si próprio.

Domingos Barbosa da Silva 102


A estranha morte de um político

Todos estavam em silêncio até que de uma mula escapou um peido ruidoso, isto é,
uma ventosidade sonora expelida pelo ânus. Só então se via o sorriso no canto da
boca de todos, menos na do Nqunta que fitava a grossa nuvem negra que ia
invadindo o céu e, subitamente, atingiu e cobriu o Sol. A nuvem era tão espessa e
poderosa que o dia se transformou em crepúsculo. De repente, as colinas irradiaram
umas luzes metálicas, umas setas prateadas de uns relâmpagos desprenderam-se
das nuvens espessas, seguidos de uns ribombos de trovões, rolando sobre os topos
das colinas. Depois todos correram para fixar os arreios e seguiram montados nas
suas alimárias. O ar tremia com o embate dos trovões e, em poucos minutos, o céu
tornou-se claro de novo. Retomaram o caminho da liberdade.
Djonzinho escutava o homem com muita atenção e respeito. Sentia-se transportado
no tempo e identificava-se com todos da comitiva de Nqunta… Aquele dia não
amanheceu como todos os outros dias.

– Pensa um pouco, caro Djonzinho – disse Renato e continuou – quem se atreve a


seguir esses homens? Quais são as credenciais daquele que fez a proposta da fuga?
Que implicações teria essa proposta caso falhasse? Nqunta não prometeu uma fuga
nem uma estrada sem acidentes, tão pouco, madrugadas sem tempestade, nem
sucessos sem perdas. Mas uma coisa prometeu: coragem numa comunidade de
medo, fuga do desespero, alegria nas lágrimas de amanhã, afecto no desespero de
hoje e, acima de tudo, liberdade. Parecia uma loucura seguir Nqunta, mas basta
estar vivo para correr riscos e ser louco. Risco de fracassar nos atentos de fuga e cair
na mesma ratoeira que os outros irmãos. Loucura em sonhar com a liberdade.

Domingos Barbosa da Silva 103


A estranha morte de um político

Caro amigo, não se deve temer em andar por terrenos desconhecidos e pedregosos,
respirar novos ares nunca antes respirados, pois, quem fica preso numa cápsula com
medo dos acidentes da vida, acaba por se frustrar e morrer aos poucos. Dedico esta
tertúlia de amigos ao povo cabo-verdiano: o Corte Real, como general, andara às
apalpadelas, marchando como se estivesse à frente de um exército numeroso de
gafanhotos, incontável como o pó da terra, à procura dos filhos de Nqunta, de Bafu,
da Memenga, de Badour, da Safeya, de Bafuá, da Lulua e de Quintana que andavam
na orla da ilha sem saber por onde ir. Era capaz de despedaçar todos os que lhe
resistissem e foi até os confins dos Órgãos, capaz também de devastar suas
plantações e levar todos os jovens ao fio da espada, fazendo cair o temor e a
inquietação sobre os habitantes do interior da ilha, que se prostraram diante dele,
sendo humilhados.
Devastou santuários e lugares sagrados.
Depois de três dias e três noites sem encontrar os escravos regressou à casa com as
mãos vazias. Dois dias depois, foi encontrado morto com um buraco no peito,
possivelmente, abatido pelas mãos do seu chefe – terminou Renato num tom
desolado.

Domingos Barbosa da Silva 104


A estranha morte de um político

CAPÍTULO XV

Depois do importante encontro reuniram-se, Judith e Renato, n’O Poeta. Foi um


encontro de alívio para este último. Foi certamente um desabafo de espírito. O
jurista não mediu as palavras e foi logo directamente ao assunto. Fechou os olhos,
deixando cair as mãos sobre a mesa, inclinou-se para frente e disse:
– Queria falar contigo pessoalmente, Judith. É um assunto delicadíssimo. Tão
delicado que receio expô-lo ao mundo. Bem, sinto-me afundado na lama do
pessimismo. Sinto-me, principalmente, arrasado e dilacerado pela dor do medo
metida no meu peito. Eu julgava ser destemido nas minhas decisões e
recomendações. Todo o mundo à minha volta parece um manto de nevoeiro que
sombreia e embruma a minha inteligência. Todo o mundo à minha volta parece ser
meu inimigo. Questiono a mim mesmo: onde terei falhado? Por que é que as pessoas
não confiam mais em mim? Por que é que não respeitam o direito de uma pessoa
que quer ver o país em bons caminhos? Viajei para fora deste mundo concreto e
chegou o momento em que queria fugir da vida, do mundo concreto, mas ao mesmo
tempo pensava: quem pode fugir de si mesmo? Quem pode fugir da sua
responsabilidade? Quem pode fugir do papel que lhe é reservado neste mundo?
Quem pode fugir das promessas feitas ao seu povo com as mãos postas sobre o
peito? Mesmo assim, sinto-me vítima do medo. Vítima da vingança. Por isso,
telefonei a alguns amigos de peito para virem até aqui apaziguar a minha dor. Tu és
uma das pessoas a quem telefonei e queria expor-te o seguinte: estou a pressentir
algo a perseguir-me. Não quero, de maneira nenhuma, esconder a minha cabeça
debaixo do travesseiro por causa do medo, porque, confesso, vale a pena dar a vida
por uma causa nobre como a que ofereço a este país. Não vou perder noites de sono
por causa de uma injustiça contra a minha pessoa, contra a minha integridade moral,
mas perco noites de sono quando outros me censurem, quando os sonhos de um
povo são espezinhados, quando outros invadem o território emocional de um povo
humilde que sonha com uma vida melhor, mais digna e mais feliz – confessou Renato.
– Calma Paín. O que se está, verdadeiramente, a passar? Se te entendo bem, estou
a ver que algo te incomoda de sobremaneira. Sabes uma coisa? A sociedade em que
vivemos está apta a exaltar os que têm sucesso rápido na vida, na própria economia,
os que enriquecem em poucos meses, mas é rápida a zombar dos que pensam de
forma diferente, a manchar a vida honesta daqueles que não fracassam no caminho

Domingos Barbosa da Silva 105


A estranha morte de um político

da vida. Quem sonha melhorar este país, este mundo, quem almeja atingir uma
meta, não deve esperar muito dos outros – disse Judith.
– Não conto com muita gente neste momento. Acho que tens muita razão. Não
espero muito dos outros, apesar de tudo. Sou amigo dos que argumentam contra os
meus argumentos, mas os argumentos passam, primeiro, pelo filtro da minha razão
crítica, pelo senso comum que os meus antecessores imprimiram em mim, antes de
me atingir o fundo da alma. Sinto-me neste momento, apesar de tudo, mais forte e
com coragem para ultrapassar a mesquinhez de muitos amigos. Esta coragem é o
combustível que mantém acesa a chama dos meus sonhos. Recentemente, não
aceitei um contracto de milhões de dólares para trabalhar fora do país porque não
reflecte quem sou. Refutei a oferta para dar o meu contributo a este povo que tanto
amo. Se perco a vida nesta travessia, neste caminho espinhoso, espero que este povo
venha um dia a reconhecer o meu trabalho. Não quero o sucesso pelo sucesso, no
meu projecto. Não. Não sou um político dominado pela coroa da vaidade, da
arrogância e do poder. São indignos do poder os que o amam cegamente. Não
pretendo ter grande sucesso para estar acima dos outros, isso é um insano e injusto.
– Tens uma ambição muito legítima, Paín. O que pretendes é ajudar o teu povo.
Ajudar o ser humano. Ajudar os cabo-verdianos a saírem da escuridão, do vale da
miséria física e emocional onde se encontram. Os teus sonhos são legítimos, Paín.
Sonhar com o dia em que todos serão tratados com dignidade humana sem ter em
conta a cor da sua consciência política, é um acto belo, digno e nobre.
– Sabes uma coisa, Judith? Sou conselheiro a nível governamental, mas o que sinto
neste momento, é que estou a ser aconselhado a não dar muitos conselhos. Quer
dizer, eu devia conformar-me com o status quo, com os meus fracassos, mudar-me
da nossa pequena cidade, emigrar para longe, isto é, aceitar o convite que me foi
feito e deixar o emprego ou psicoadaptar-me ao estado das coisas. Isto não é justo
nem admissível. Esta terra é nossa como a Lua pertence a todos. Sinto-me, também,
muito feliz em ter alguém que partilhe comigo o que sinto no fundo da alma. Preciso
desesperadamente que alguém me escute amigavelmente, isto é, partilhando
comigo o fardo que trago dentro de mim. Nós não somos aqueles rebanhos que
obedecem a um só pastor, queremos ser rebanhos com ideias e opiniões próprias
porque as ideias e as opiniões do pastor podem esgotar-se, podem tornar-se
obsoletas e vazias de conteúdo. O mal deste país não é ter muitos sonhadores, mas
sim, muitos pensadores que neutralizam ou espezinham os nossos pensamentos,
espezinhando os sonhos dos cidadãos. Temos bons sonhadores e pensadores, só que
dentre eles, há os que gritam mais alto porque têm do seu lado a faca para cortar o
queijo. Têm a foice empenada contra a garganta do povo. Não respeitam um pensar
diferente, nem sonhos que ultrapassam os deles. Isto é muito mau. É desrespeitar os

Domingos Barbosa da Silva 106


A estranha morte de um político

sonhos legítimos de cada individuo. Não se vislumbra o limite entre a justiça e


vingança. Não toleram os legítimos interesses dos outros. Ora, o Art.º 19 da
Declaração Universal dos Direitos Humanos diz:
Todo o homem tem direito à liberdade de opinião e de expressão; este direito inclui a liberdade
de, sem interferências, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e ideias por
quaisquer meios, independentemente de fronteiras.

O grande mal deste país, é não estar em sintonia com os direitos e deveres dos
outros. No momento em que, a justiça e a vingança mexem com as emoções das
pessoas, devemos fazer um esforço enorme para não confundir as duas coisas. A
justiça, é um valor universal como a dignidade, a liberdade, a democracia e a
solidariedade, o fundamento sobre o qual a nossa civilização se encontra edificada.
A justiça está em deficit na nossa querida terra. Há uma desigualdade no acesso à
justiça, há uma grande morosidade na implementação da mesma e não há
independência dos tribunais. Eu defendo a igualdade para todos no acesso à justiça.
Ao falar sobre direito e igualdade, sob igual consideração, é preciso ter honestidade
intelectual para reconhecer que há um grande deficit entre nós. Quando os cidadãos
cabo-verdianos buscam o serviço público de justiça ou outros serviços, nem todos
são tratados com igual consideração. Precisamos de um sistema judiciário célere,
efectivo e justo. Isto é um problema com tendência a tornar-se crónico no meio de
nós. De nada valem os discursos sumptuosos, sofisticados sistemas de comunicação
e de informação se, naquilo que é essencial, a justiça falha. Precisamos de reforçar a
independência do juiz, afastá-lo desde o ingresso na carreira, das nocivas influências
que podem arruinar-lhe o discernimento e a alta integridade moral. Estas más
influências podem manifestar-se tanto a partir da própria hierarquia interna a que o
jovem juiz se vê submetido, como também, através dos laços políticos que
contribuem para o fazer ascender no exercício da função e da profissão. Quando os
funcionários e os magistrados da justiça procuram ascensão por meio de
aproximação ao poder político, exalam, ao mesmo tempo, o cheiro de corrupção no
seu seio dos magistrados.12
Como sabes, a Justiça tem fundamentos vinculados a direitos. Ela tem normas e
rituais. Quando ela está em acção, defronta o princípio do contraditório e da
legalidade, da culpabilidade, da humanidade, dentre outros, que devem ser
respeitados. Num país que se autodenomina democrático, estas normas de justiça,
estes rituais e fundamentos, devem exprimir a vontade e as escolhas da sociedade.

12 Advogado Amadeu Oliveira na sua viagem aos Estados Unidos e numa entrevista no dia do
julgamento que foi adiado, 2019.

Domingos Barbosa da Silva 107


A estranha morte de um político

Caso contrário, não podemos falar em democracia. Portanto, a Justiça é uma norma.
Ela visa o bem mesmo quando se manifesta em forma de castigo.
– E a vingança?
– Bem a vingança, aponta o mal em todas as sociedades. Visa o mal mesmo quando
se utiliza o sistema judiciário para o fazer. O vingativo fundamenta a sua
argumentação com a tão célebre frase: aqui se faz aqui se paga ou justifica os seus
actos com a lógica de olho por olho, dente por dente, nutrida por impulsos de ódio,
de inveja, de rancor e de dor provocada por um dano que se julga injusto. Portanto,
a vingança envenena a nossa alma, danifica a nossa personalidade, espalha o ódio
nas sociedades e cria um círculo vicioso. Ela é, simplesmente, uma retaliação com
objectivos destrutivos e que reflecte um raciocínio primitivo daquilo que é justo.
– Achas, então, que a vingança e justiça podem significar a mesma coisa quando
nos deixamos levar pela emoção? – Perguntou Judith.
– Não, de modo algum. Quando estamos no ápice das nossas emoções, muitas
vezes, acreditamos que são a mesma coisa. A vingança esgota-se facilmente e nunca
é inteiramente satisfeita. O homem sente um prazer momentâneo que desaparece
logo após o acerto de contas. Ela semeia ou incita a outras vinganças que, por sua
vez, resultam na exclusão de personas non gratas.
– Achas que estás a ser tratado injustamente?
– Bem, é uma questão complicada e, sobretudo, uma questão de interpretação.
Penso que estou a ser marginalizado e isto, por si só, é uma injustiça. Há, de facto,
pessoas munidas de cargos públicos capazes de usar a sua influência e autoridade,
para desfavorecer directa e indirectamente interesses particulares divergentes dos
seus. Isto pode findar em vinganças.
Já se fazia tarde. Renato reparou que não havia fregueses no restaurante e fez um
sinal ao empregado, pedindo-lhe a conta. Seguiram-se uns minutos sem que
nenhum dos dois dissesse uma palavra. Um indivíduo de estatura alta e forte que
estava sentado na mesa vizinha a ler o jornal da semana, também pagou a conta e
saiu logo em seguida, seguindo em direcção à porta de saída.

Domingos Barbosa da Silva 108


A estranha morte de um político

CAPÍTULO XVI

Antes do disparo da bala mágica

Aquela tarde sangrenta estava envolta em escuridão. Todos os movimentos da vida


praiense pareciam desconfiar de si e de seus projectos. Passara a tarde sentado no
restaurante o Poeta, com a maravilhosa vista panorâmica que é próprio do local. Os
movimentos do porto da Praia, os vaivéns dos veículos e de trabalhadores da cidade
davam vida à paisagem de tom esverdeado com o ilhéu de Santa Maria logo à frente.
O Seminário de São José era testemunha de todos os acontecimentos, mas
sobretudo, era o baluarte de uma cultura que ilumina o país. Logo ao lado do
restaurante ouvia-se um ruído constante de motor em funcionamento cortado pelos
chiados dos carros que passavam velozmente. O almoço caiu-lhe bem, bafejado com
alguns copos de cerveja. Ele levantou a mão para se espreguiçar depois da refeição
e concentrou-se num livro de bolso e num pedaço de papel onde escrevera algo sem
muita importância. De súbito, explodiu qualquer coisa a uma grande distância.
Talvez um acidente de viação, um disparo de uma pistola ou coisa do género. Levou
a mão à algibeira do casaco e descobriu que o revólver estava lá. O alvo, o lado
esquerdo, o disparo, passavam-lhe na mente como uma fita magnética. Tenho de
sair daqui para averiguar o local - cogitou. Daqui a pouco estarei envolvido numa
situação de filmagem – pensou o assassino.
Conseguiu disfarçar a sua excitação e perturbação, forçando-se a não beber de um
trago o último uísque on the rock. Lentamente, arrumou as suas coisas, pagou as
contas e pediu o recibo. Saiu para o sol abrasador e verificou que tinha bebido um
copo a mais do que pensara. Não estava embriagado, mas também não estava
completamente lúcido, e que importava isso? Queria conduzir ele mesmo, mas
pensou um pouco e deixou o seu carro estacionado ao lado do restaurante. Acenou
para um táxi que ia a passar. Rua 5 de Julho, ali perto do Mercado Municipal –
instruiu ele ao taxista. O taxista parou à frente do mercado. Pagou sem reparar no
movimentar de olhos do condutor. Apeou-se, passando pela rua do Quartel, pelo
largo da Minerva, pela frente do Ministério dos Negócios Estrangeiros, pelo largo do
Hospital e foi dar ao Liceu. O ar fresco sabia-lhe bem e, em poucos minutos, já o
fígado teria transformado o álcool etílico em subprodutos menos nocivos ao

Domingos Barbosa da Silva 109


A estranha morte de um político

organismo. O homem, segundo consta, tinha uma inclinação especial para a pinga.
Adquirira esse hábito durante os tempos turbulentos da vida. Parou e raciocinou um
pouco. Lançou um olhar ao outro lado da ladeira e reconheceu que não lhe restava
qualquer alternativa, pois sabia que o seu chefe não abandonaria o caso tendo já
chegado àquele ponto, não havia volta a dar.
Deu mais uma olhadela para as bandas de Lem-Ferreira e voltou pelo mesmo
caminho até encontrar um táxi. Restaurante o Poeta – disse ele ao taxista.
Frente à situação que o esperava em Quebra-Canela, dominando o desejo de
eliminar o sorriso do interlocutor com um murro na cara ou com uma bala mortífera,
respondeu à pergunta que lhe foi colocada pela própria consciência: O que faço
aqui? A pergunta surgia-lhe várias vezes! O que estou a fazer aqui?! De regresso ao
hotel onde se hospedara, retirou o papel do interior das calças e estudou de novo
os códigos. Entrou de novo em pânico. Sentou-se na poltrona. O corpo não se
moveu. Conservava-se sentado, um pouco inclinado para a frente, com um copo de
whisky entre as mãos. Fixou os olhos na janela. Julgou detectar um som dentro de
si. Estaria mais alguém naquele quarto? Alguém que ele não queria ver e que o
esperava noutro lugar? Sentiu a intensidade das pulsações cardíacas a aumentar e
esforçou-se por repelir o nervosismo e as suposições crescentes que ameaçavam
converter-se em histerismo, algo de transcendente o rodeava naquele momento.
Desejava gritar a plenos pulmões até que alguém o sacudisse com brandura, dizendo
que tivera um pesadelo. Levantou-se e espreitou as outras divisões do seu quarto
de hotel, mas nada encontrou. Certificou-se, de novo, de que não havia ali ninguém
para o perturbar. Encontrava-se ali sozinho, ninguém lhe preparava uma emboscada
nem estava prestes a ser atacado.
Por fim, sentou-se e quase que ia caindo no sono, mas o relógio biológico tocou
depois de alguns minutos. Deu um salto, saiu da poltrona e foi ao quarto de banho.

Domingos Barbosa da Silva 110


A estranha morte de um político

CAPÍTULO XVII

Um projecto diferente

Renato Cardoso era um homem de ideias inusitadas. Viveu a maior parte da sua vida
na escassez da água potável. Tinha dezenas de planos para Cabo Verde. Eram planos
para desenvolver o país e tinham que primeiro passar pelo crivo político. Aquele
desejo inato de pensar por si próprio era, muitas vezes, esmagado por quem detinha
o poder nas mãos, usando a força. Podemos dizer que, quando isto acontece, é como
se nos apertassem os miolos com uma corda grossa, como fazem quando enfaixam
os pés dentro dos sapatinhos, como faziam na China às meninas pequenas,
metendo-lhes os pés à força dentro duns sapatos minúsculos, para os impedir de
crescer. Mas como conselheiro, Renato sentia-se um pouco mais receptivo pelo
poder e, também, confiante para apresentar as suas propostas. Era, portanto,
preciso passá-las pelo filtro da censura e do poder. Num encontro com a Fátima,
explicou demoradamente um dos seus planos para o futuro próximo, sendo
interrompido na sua descrição de um projecto da seguinte maneira:
– Estás maluco! – Exclamou Fátima e continuou – Isto custa quase 10 vezes mais
o orçamento do país. Isto é, portanto, uma loucura tua. Nem penses aventar ou
divulgar esta ideia, porque as pessoas hão de pensar que és maluco!
– Bem, acho que não se trata de loucura. As pessoas estão com medo de pensar
em coisas novas.
Fátima cravou-lhe um olhar de quem insinua a demência de um homem que até o
momento era, pela amiga, considerado um erudito, um sabedor das coisas da vida.
Renato olhou-a com um ar hesitante e sentiu as palavras da amiga sair do seu eu
inconsciente, cortando a comunicação. Não sentia coragem para contradizê-la com
um contra-argumento convincente, com o receio de ali ficar sozinho a remoer os
pensamentos. Não neste momento, pensou. No do silêncio perturbador, escolheu
cuidadosamente as palavras para se sentir em terra firme e, também, sentir-se bem-
disposto por saber que ia, possivelmente, mudar a opinião da amiga. Endereçando
os seus argumentos ao modo ou estado da razão que analisa as situações e o
conteúdo do diálogo, pondo-os no prato da balança da justiça, antes de fazer

Domingos Barbosa da Silva 111


A estranha morte de um político

qualquer julgamento ou atirar-se em contra defesa, ele sabia que ia sair vencedor
ou, pelo menos, ficar de acordo com a amiga.
Inclinou-se sobre a mesa, penetrou um olhar amigo nos olhos da Fátima, mantendo-
se quieto. Depois de alguns segundos, replicou:
– Compreendo a tua reacção e hesitação, querida amiga. É melhor desarmarmos
aqui e agora as nossas diferenças quanto a isto, pois conheço bem os teus desejos
de avanço do nosso país. Isto é apenas uma proposta que visa resolver os problemas
da água a longo prazo na ilha que nós amamos. A ilha de Santo Antão é rica em água
de boa qualidade. A de São Vicente também tem muita água, mas não tem água de
boa qualidade. Uma proposta deste calibre, não só serviria para desenvolver a terra,
como também, serviria de exemplo para outros países com semelhantes problemas.
Aliás, há muitas ilhas no mundo com este tipo de problema resolvido da maneira que
proponho. Não é vergonha nenhuma retroceder neste meu caminho. Mas primeiro
temos de fazer uma proposta bem pensada. Se der certo, muito bem, se não der,
paciência – disse ele firmemente.
– Vou ver se me aprofundo mais nisto, caro amigo. Penso que és mais pragmático
do que eu. Deixa-me dormir com este projecto debaixo do travesseiro durante uma
semana – disse Fátima.
– O tempo que queiras. Não tenho pressa. Quanto mais apoio moral tiver, tanto
melhor será quando o momento chegar. Mas não te deixarei em paz quanto ao
assunto em questão. Sabes que quando temos um projecto baseado em ideias
próprias, sentimo-nos felizes e satisfeitos. Por que faço isto? A razão principal desta
felicidade e satisfação é que regamos a semente da felicidade inserta no cerne da
nossa mente ou da nossa subconsciência com o líquido do bem-estar e da satisfação.
Quando esta semente começa a brotar com a ajuda do meio ambiente, a felicidade
torna-se mais palpável, mais real, portanto, maior. Assim, a energia ou a semente
da criação fica iluminada pelo sentimento da felicidade. Aproximamo-nos da
natureza na sua forma mais brilhante – a criação. Se a própria natureza é sinónimo
de criação, também nós, quando criamos algo, estamos a copiar o que é natural nela.
Somos a continuidade das gerações anteriores. Somos a continuidade deste país e
ele precisa de nós como precisam os nossos filhos e nós deles. Nós e este país somos
um, assim como, os nossos filhos e nós somos um. Se estamos a sofrer eles sofrem.
Se eles sofrem, sofremos também. Se inventarmos algo, é para o bem de todos nós.
Se não fizermos nada para melhorar a nossa condição humana ou a do país,
sofreremos as consequências de não termos feito nada. Reconheço que tanto eles,
os nossos filhos, como nós sofreremos os efeitos de inanição, da imobilidade e da
indolência.

Domingos Barbosa da Silva 112


A estranha morte de um político

– Estou de acordo contigo. Da minha parte vou fazer o melhor que possa –
intrometeu Fátima.
– Acho que devemos apoiar uma causa comum para encontrar soluções para os
grandes problemas que a ilha enfrenta. Podemos falar sobre estes problemas? Se é
loucura, que seja então chamado de projecto louco. Quero comunicar ao mundo os
problemas relativos à água nesta pequena ilha, pois, não posso fazer nada sozinho.
Preciso, em primeiro lugar, da tua ajuda e da tua compreensão. Preciso do auxílio de
muita gente. Quanto maior for este apoio, tanto maior será a possibilidade de
regarmos a semente da criação com a água da esperança, da fé e do amor. O amor
posto na criação contribui para a felicidade e para o bem-estar de muitos, pois o
amor é a energia potencial que criou o nosso universo. Em tudo o que nós fazemos,
deve-se acrescentar uma dimensão humana! Deus criou o mundo por amor à
criação. E nós fomos criados para criar.
Muitas vezes, quando me retiro para longe dos meus colegas e amigos, não o faço
pelo facto de não querer estar perto deles, mas faço-o por necessidade existencial,
para reflectir e sobreviver. Alguns chamam isto isolamento. No entanto, eu chamo-
o retiro, descanso para encher o meu espírito com uma nova energia criadora. Uso o
tempo para reflectir profundamente no meu projecto de vida, nas ideias que
emergem do fundo da minha mente. Faço-o uma espécie de meditação e
reconhecimento por ter este dom de pensar, por ter oportunidade para estes
momentos de refúgio que são momentos de receber claridade na mente e de
exercitar a inteligência, o que considero ser uma manifestação do que flui no fundo
da minha mente. Porém, quando alguém nos irrita com coisas irrelevantes, quando
só pensam nos seus interesses mesquinhos e nos transmitem uma mensagem de
egoísmo, de desencorajamento, sentimos que essas pessoas perderam a capacidade
de reflectir, de criar, de ser iluminado e de ser inteligente. Precisamos, também, de
momentos para sentir que estamos emersos no reconhecimento de termos o
privilégio de possuir alguns talentos que outros não possuem. Temos milhares de
desafios a confrontar-nos diariamente. Penso que devemos criar condições propícias
para a invenção e para a reinvenção. Contudo, temos primeiro de nos preparar, de
fazer planos e reorganizar a vida de tal maneira que possamos usufruir da nossa
inteligência e do momento da iluminação da nossa mente.
Fátima estava neste momento mais virada para dentro de si do que para as
lengalengas do amigo. Sentiu-se submersa numa fonte de inteligência e de erudição.
Quase que um mal-estar se apoderou dela, mas voltou rapidamente à realidade.
Respirou fundo sem nada dizer. Olhou de soslaio para um lado, levantou-se
bruscamente e disse:

Domingos Barbosa da Silva 113


A estranha morte de um político

– Como queres fazer isto? Em que te posso ser útil? Acho que estás a ser exigente
demais para comigo. Se este projecto te traz felicidade, o prazer é, também, todo
meu – retorquiu ela.
– Ouve, Fátima. Alegra-me muito ouvir-te dizer isto. Ao compartilhares deste
prazer comigo é mais uma alavanca propulsora dos meus pensamentos. Sabes, há
um barco que nos transporta rapidamente do estado de miséria para o de felicidade,
de uma praia para a outra. Um barco que nos leva para a outra margem do rio que
tem mais beleza e mais segurança. Já que existe esta possibilidade, por que ficar aqui
sentados do lado de cá, se o barco nos pode levar para o lado do bem-estar, do belo
e da segurança? Acho que não devemos deixar a tirania do medo reinar a nossa
mente. Convido-te a apanhar o barco para o outro lado. Não fiques aqui no lado do
medo, da confusão, da dúvida, da ira, da mentira e da injustiça. Temos todo o direito
de sermos felizes. O germe desta conquista encontra-se dentro de nós, no fundo do
nosso ser.
– Apanho o barco que apanhares. Se eu naufragar, conto com os teus braços fortes.
Se do outro lado do rio se encontra uma vida melhor para todos nós, nada há a
perder, só há a ganhar – garantiu Fátima.
– No meu tempo de menino e moço, tempo bem recente, transportava-se água em
pequenos barcos de Santo Antão para São Vicente. Depois veio a dessalinização da
água do mar. Depois as despesas relacionadas com tudo isto. Hoje, fala-se
mundialmente na poluição, redução de consumo de energia fóssil, da economia
mundial que afecta grandemente os países pequenos como o nosso. O meu sonho de
sempre é trazer a água de forma subaquática até São Vicente. Isto é, ligar ou
canalizar essa água boa que temos lá na Mesa, Santo Antão, através de um tubo não
corrosível na linha submarina mais curta que liga as nossas duas ilhas. Não digo que
temos muito dinheiro para tal, mas contamos com a cooperação, ou melhor, com a
ajuda internacional. Tenho muitos amigos que nos podem estender fraternalmente
as mãos neste sentido. Tenho a certeza de que será um trabalho que exige muita
perícia e tempo, mas é um trabalho cujo resultado é durável. Antigamente, havia
ligação telefónica com as outras ilhas através de cabos submarinos! Por que não
utilizar tubos para trazer a água?
O problema da água é mais simples. Vamos lá ver isto. O direito à água, como o
direito à luz e à higiene está a ser ameaçado. Estamos a enfrentar uma profunda
crise de água e luz nas terras de Cabo Verde. Este problema, conduz-nos
obrigatoriamente, para o problema da saúde (higiene) dado a implicação que os
primeiros têm neste último. São recursos necessários para a preservação da vida no

Domingos Barbosa da Silva 114


A estranha morte de um político

planeta, mas, muitas vezes, são negligenciados por grande parte da população
mundial. Na Declaração Universal dos Direitos da água, encontra-se o seguinte:
A água é a seiva do nosso planeta. Ela é a condição essencial de vida e de todo o ser
vegetal, animal ou humano. Sem ela não podemos conceber como seria a atmosfera, o
clima, a vegetação, a cultura ou a agricultura. O direito à água é um dos direitos
fundamentais do ser humano: o direito à vida, tal qual é estipulado no Art.º 3º da
Declaração Universal dos Direitos Humanos.
No futuro, um dos objectos principais de cobiça será a água e não o petróleo. Num
país pequeno como o nosso que não possui nenhum potencial hidroeléctrico, a não
ser o mar à nossa volta, portanto, sem muitas possibilidades de construção de
barragens para a produção de electricidade, deve-se apostar naquilo que são os
nossos recursos naturais e que temos em abundância: o sol, o vento e as ondas do
mar, transformando-os em combustível propulsor de desenvolvimento sustentável
para a nossa ilha.
– O nosso povo não pode continuar a sofrer por causa da falta de luz e água. Os
principais interessados deviam ser as empresas engarrafadoras de água e os
fabricantes de bebidas que demandam muita e boa água – cortou Fátima.
– Claro, o Estado deve tomar a responsabilidade pela situação da água e da luz,
não como gestor, por que ele é mau gestor, mas como mediador, de forma a garantir
que estes recursos sejam colocados ao serviço do bem-estar da população cabo-
verdiana. O Estado deve neste sentido:
• Consagrar a água como propriedade comum e a igualdade de direito ao seu
usufruto como direito de cidadania.
• Garantir o acesso de todas as pessoas à água potável como serviço público.
• Garantir a manutenção dos serviços de água sob propriedade e gestão públicas
e sem fins lucrativos.
• Estabelecer o enquadramento legal, institucional e de administração
económica que garanta, de facto, o direito de cada pessoa à água, à saúde e à
natureza.
• Garantir uma gestão integrada da água como responsabilidade pública
inalienável, assegurada por legítimos representantes dos cidadãos, visando a
melhoria do bem-estar comum da população actual e das gerações vindouras.
• Estabelecer serviços públicos de água competentes, transparentes e funcionais
munidos dos recursos necessários. Uma gestão da água baseada num
planeamento participado e democrático.
A água de que todos nós precisamos neste país, necessita da luz e da energia, na
maior parte dos casos, para a sua utilização efectiva. Felizmente, temos a luz do Sol

Domingos Barbosa da Silva 115


A estranha morte de um político

que é de todos. Mas a luz a que me quero referir é a luz eléctrica que hoje se produz
na nossa terra à base de energias não renováveis, das quais já nos tornarmos
dependentes. O problema é que o uso da luz eléctrica, hoje, é muito mais intenso que
há algumas décadas. Criámos uma necessidade que antes não existia. Estes
problemas todos causam mudanças climáticas das quais não nos podemos esconder.
O conceito de escassez, introduzido como fundamento económico pelos neoclássicos,
agora também é aplicado na questão da água. Para esses pensadores, um produto
tem mais valor económico quanto mais escasso ele for. Por consequência, aplicar o
conceito de "escassez" à água, tem uma clara conotação ideológica dos princípios
liberais dos neoclássicos. Entretanto, no tocante à água, a sua escassez quantitativa
e qualitativa, não é uma questão natural, mas produzida pela mão humana.
Portanto, pode ser evitada. A própria ONU afirma que a crise da água é mais uma
questão de gerência do que de escassez – concluiu o Renato.
– Já estou a perceber melhor a tua preocupação. Estás a ver a água como um bem
público, um direito humano e uma possessão da qual é um direito humano. Então,
devemos lutar por criar uma consciência nacional sobre o cuidado como a
preservação da água como um bem público, universal, património da humanidade e
de todos os seres vivos. Para ser mais claro, o problema não é somente da natureza,
mas da acção humana sobre ela. A água é um bem natural renovável, do qual
necessitam todos os seres vivos. A crise da água tem, portanto, de ser resolvida com
o foco na sua questão chave, isto é, no modo como o ser humano tem vindo a gerir
a parcela de água que utiliza. Sabendo que ali perto de São Vicente existe este
recurso em abundância necessária para o nosso consumo comum, a solução do
problema é encontrar uma forma de trazê-lo até lá! Portanto, é lógica a proposta
que apresentas, apoiada também, pelos padrões que a ONU recomenda.
– Há, no entanto, um detalhe importantíssimo nesta tua reflexão. Penso que
haverá uma distribuição desigual da água doce mesmo quando a temos em
abundância. Temos de criar uma legislação capaz de proteger os direitos do
consumidor ao acesso a esta dádiva divina! Temos de dar ao consumidor a
possibilidade de escolha, pois os seus direitos estão altamente ameaçados. A nossa
ilha é desprivilegiada pelo regime das chuvas. A rara precipitação de águas
meteóricas sobre a ilha, com intensa média de evaporação, cria uma grande
deficiência hídrica. É necessário considerar estes detalhes da ilha porque mesmo
havendo precipitação em abundância dentro do nosso espaço geográfico, a sua
condição orográfica encontra-se abaixo do exigido para produzir água potável.
A água, dádiva divina, não está ainda, infelizmente, ao acesso de todos. Ela não deve
ser desperdiçada e nem poluída. A sua utilização deve ser feita com consciência e

Domingos Barbosa da Silva 116


A estranha morte de um político

discernimento, para que não se chegue a uma situação de esgotamento ou de


deterioração da qualidade das reservas actualmente disponíveis. As reservas em
Santo Antão devem ser tratadas com discernimento. Primeiro, temos de trazer essa
água até São Vicente – concluiu.
– Caro amigo, já partilhaste este teu projecto com os teus colegas no poder? –
Perguntou Fátima.
– Ainda não! Mas tenho uma audiência marcada com o Presidente da República
sobre outros projectos e aproveitarei a oportunidade para o fazer – assegurou
pensativamente.
– Espero que os teus sonhos venham a ser realizados. Não esqueças que os sonhos,
a energia motivadora e o desejo de sermos livres, nos ajudam a superar grandes
dificuldades e vencê-las. Tem paciência, caro amigo, que as coisas aqui andam
devagar – disse Fátima. Os nossos políticos têm cabeça de pedra – acrescentou.
– Agradeço-te pelas tuas palavras de coragem. O filósofo Kant diz que a paciência
é amarga, mas os seus frutos são doces. Não devemos ser medidos pelo nosso poder
político e financeiro, mas pela grandeza dos nossos sonhos e pela paciência e
coragem em torná-los realidade. Para quem sonha grandes sonhos, os maiores riscos
são as pedras no caminho, são os estorvos que ele ou ela encontra ao tropeçar em
pequenos problemas impostos pela ignorância e prepotência.
A passividade deixa muitas oportunidades escondidas atrás das nuvens de
ignorância. As pessoas que sonham, geralmente, alcançam grandes metas, mesmo
quando sofrem consequências por causa da sua ousadia. As pessoas passivas
sucumbem às suas desculpas e submetem-se aos seus temores. Os sonhadores, pelo
contrário, transpõem montanhas, porque têm muita coragem. A coragem é a
energia ou o combustível que mantém acesa a chama dos seus sonhos. Renato era
um sonhador, um pragmático e um político de gema, fiel à sua consciência. Ele não
gostava de brilhar diante dos holofotes porque o seu interior era mais rico e mais
belo do que muitos que gostam de brilhar e de se exibir, mas que possuem um
interior opaco. Quem não é fiel à sua consciência tem uma dívida impagável para
consigo mesmo. Este político gostava de gerir as suas ideias, de dar os primeiros
passos, proferir as primeiras palavras e não temia nada. A ausência do medo era o
nutriente da sua coragem. A coragem e a inteligência iam de mãos dadas. Ele não
tinha medo de dizer aos políticos que não estavam preparados para o poder, que
precisavam de uma aula de leitura em ética. Pois, o poder os seduz, fazendo-os
fortes para receber elogios ou aplausos, mas tímidos para atender as necessidades
dos outros.

Domingos Barbosa da Silva 117


A estranha morte de um político

– Olha, amiga. Pensa só nisto. É uma ideia que me surgiu quando era criança. Uma
ideia apenas. Mesmo que ela pareça simples pode vir a mudar a minha vida, a tua
vida e a dos outros. Ninguém tem mais responsabilidade pela minha vida do que eu.
Ninguém te obriga a inventar coisas, trazer ideias novas e voláteis, fazer as coisas de
maneira diferente, descobrir o que ainda não foi descoberto e pôr tudo isto em
prática. Ninguém. Tu és a única pessoa responsável pela tua vida e que se interessa
pelo bem-estar próprio. Portanto, sê criativa, cria novas ideias e põe tudo em prática.
Assim, descobrirás brevemente que uma ideia brilhante te conferirá algo mais na
vida e servirá para acrescentar valores adicionais à vida dos outros. O meu projecto,
a minha ideia posta em documentos, é uma coisa brilhante para mim. Eu, pelo
menos, vejo-o como algo importante, também, para a vida dos são-vicentinos.
Fátima não disse nada. Pegou-lhe nas mãos e apertou-as rijamente, com os olhos
fixos nos do amigo.

Domingos Barbosa da Silva 118


A estranha morte de um político

CAPÍTULO XVIII

Um veículo no qual não se identificava a marca devido ao lusco-fusco que estava


preste a tombar sobre a zona marginal da cidade, dificultando ver o número do
registo do carro, seguiu o carro que conduzia Renato Cardoso e a acompanhante,
passando pelas zonas de Chã d’Areia, Prainha até Quebra-Canela. Ao passar pela Chã
d’Areia, o condutor pensou em fazer uma ultrapassagem, mas isto chamaria a
atenção do carro à frente. Em vez disso, abrandou a velocidade e teve a paciência
de esperar e manter-se a uma certa distância.
O condutor do não identificado veículo fez as suas manobras como bom conhecedor
do local e imobilizou a viatura a uma distância prudente. Chegou à praia do mar
muito antes dos outros terem chegado. Aproveitou-se da sensação que teve de que
ninguém o estaria a ver, começou a correr doidamente e, de repente, parou. Voltou
ao esconderijo e posicionou-se confortavelmente. Um ruído de veículo aproximou-
se? Não, ainda não. Era apenas impressão dele. Era muito cedo ainda. Procurou a
posição que lhe conferia a melhor vista sobre toda a extensão da praia. A tarde
aproximava-se do fim e o sol já se ia esconder atrás do horizonte, enviando os seus
últimos raios cor de fogo. O ar estava demasiado quente.
O espião agitou-se ao ouvir o som do motor de um veículo que se aproximava. Saiu
do esconderijo em direcção à praia e parou atrás de uma pedra. Certificou-se de que
tudo estava sob o controlo e da identidade do alvo a abater. Ficou por um momento
impressionado com a celeridade de como tudo estava a acontecer naquela tarde de
sexta-feira. O tempo que antes andava devagar, agora corria demasiado depressa.
Pensou no abatimento do alvo.
Entretanto, junto ao veículo que chegara, dois indivíduos saíram do seu interior e
passeavam juntos de mãos dadas. Não, Renato segurava a companheira entre o
cotovelo e o ombro esquerdo. Andaram uns 50 metros e, de repente, pararam.
Frente a frente gesticulavam intensamente com os braços como que para sublinhar
algo em que estivessem em desacordo. Porém, pouco depois abrandaram as
gesticulações e deram mais alguns passos em direcção ao esconderijo.
Tocava-a e, de vez em quando, abraçava-a. O amor tem, em todas as culturas, a
grande inconveniência de não guardar a discrição necessária para que os outros não
o percebam, o amor é cego no dizer popular. O ditado popular diz que o amor é cego
e é defendido com unhas e dentes quando o assunto é relacionamento humano. Ele
desactiva o senso crítico do cérebro. Os especialistas dizem que o dito popular
antecede a ciência quando diz que o sentimento é cego, porque quando uma pessoa

Domingos Barbosa da Silva 119


A estranha morte de um político

está apaixonada por outra, o seu cérebro desactiva estruturas responsáveis pelo
julgamento crítico que o mantém alerta contra as ameaças do ambiente. Isto
significa, ainda, que os mecanismos cerebrais que identificam as atitudes dos outros
de forma crítica, são desactivados. Assim, o apaixonado dificilmente consegue ver
os defeitos e de desconfiar da pessoa amada.
Quando dois enamorados conversam entre si, quando os seus olhares penetram os
seus corações, todo o mundo à volta testemunha esse amor que deles transborda.
Reclamam o direito intocável de viverem um do outro e para o outro, esquecendo-
se de tudo o resto, como se só eles passassem a existir naquele mundo etéreo que
é só deles. Todo aquele mundo lhes pertence. Os olhares críticos não lhes penetram
o crivo da razão. Ficam imunes a todos os perigos. Insensíveis à incisão de olhos
curiosos.13
Os olhos do estranho faiscavam ao ver os gestos de amor que os dois trocavam entre
si. Não se sabe se por ciúmes ou se por ter esquecido dos predicados da beleza e dos
milagres da simpatia que se estendem para lá da aparência física. Aproximaram-se
os dois de mãos dadas, quase pisando o lençol das ondas.
A acompanhante estacou, prendendo o olhar no de Renato.
– Renato, estamos aqui para fazer duas coisas: primeiro, para um dedo de conversa
e relembrar alguns momentos felizes. Segundo, para falarmos sobre os teus
projectos. Penso que, apesar do teu tempo limitado, terás tempo para abordar este
assunto, também.
– Judith, o tempo ensina-nos muitas coisas. O tempo dissolve os nossos erros
cometidos na juventude. Isto não quer dizer que eu já tenha esquecido tudo entre
nós. Eu deposito uma enorme confiança em ti e essa é a razão de estarmos aqui –
disse, certificando-se de que ninguém os estava a observar e dando-lhe, em seguida,
um abraço apertado. – Acho que hoje vai ser apenas dedicado ao que temos falado
pelo telefone – disse.
– Vim, principalmente, para inteirar-me, pessoalmente, sobre o assunto e analisar
aprofundadamente os documentos de que me falaste. Não vim para relembrar a
nossa relação... sei... esquece...
Aquela senhora, de notável inteligência, tinha uma boa porção de esperança, assim
como, muitos dos seus conterrâneos, em que, muitas vezes, se resumem todas as
bendições da vida. Não havia dificuldades em se aproximarem um do outro, pois os
portais dos seus íntimos estavam abertos como as pétalas de uma rosa. Ela movia

13 Op. cit. ref. Machado de Assis.

Domingos Barbosa da Silva 120


A estranha morte de um político

os olhos com a serenidade de namorados para refrear ou, possivelmente, espicaçar


o coração impaciente do seu companheiro. Havia nesse homem um espírito elevado
e, por isso, é preciso ser discreta e respeitosa com tudo o que se faça neste
momento.
– Não hesites. Podes estar à vontade comigo. A amizade está em primeiro lugar!
Eu não me esqueço de nada do que aconteceu entre nós desde o tempo do liceu.
Nunca as circunstâncias foram mais propícias do que hoje para discutirmos o que
trazemos no nosso íntimo. Lamento, no entanto, que o tempo seja pouco e o lugar
inapropriado. Hoje, quero-te falar, essencialmente, do projecto, aliás dos projectos.
Ressurgia-lhe o quadro cronológico dos acontecimentos diante dos olhos, os
momentos, o céu brilhante, a Lua prateada, o doce alento das tardes e, por fim, a
figura elegante da moça que ela foi nos tempos que já lá vão, como um lindo quadro,
trazendo-lhe recordações infindas, que ele julgava mortas. Curvou a cabeça ao doce
peso daquelas memórias, escutando a voz maviosa de Judith, dando-lhe forças para
o fazer voltar a si mesmo. As declarações da acompanhante, feitas rosto a rosto,
declarações que ela gastou alguns segundos longos para fazer, faziam-no relembrar
o que a frouxo lhe saía do peito em tempos passados. Judith, receando perder a
oportunidade que o momento lhe oferecia, disse com a voz triste e com tibieza:
– Ninguém sabe que estou cá contigo. Estou “em serviço,” por assim dizer. Penso
muito em ti. Desculpa-me em dizer isto. Mas...
– Assim é, e sempre foi, o primeiro amor! Fica sempre um rasto de perfume mesmo
depois de muito tempo – disse, dando-lhe mais um abraço.
Alguns instantes passaram, em que, nem um nem outro falaram. Ambos pareciam
medir-se, ela serena, mas trémula, ele, quieto e gelado. A comoção comprimia-lhes
a garganta, o sentimento de estima estava presente, mas era apenas estima. Era
apenas mais um momento social, um momento de recordações. Havia algo mais que
era preciso discutir e Renato não queria perder o tempo.
– Espero que ainda não te tenhas aborrecido com a solidão, Renato. Penso na
solidão que te disse pelo telefone. Penso no retiro voluntário neste momento, isto é,
nos retiros frequentes que fazes sozinho.
– Não, eu até contemplo a solidão como um companheiro que me salva do mal
deste mundo. Das perseguições, da marginalização, dos choques sociais, da inveja
cega, dos ódios, etc., mas acho que tu estás a referir-te à marginalização política!
– Não estou a compreender!

Domingos Barbosa da Silva 121


A estranha morte de um político

– É simples. Não dou ouvidos ao mundo de invejas. Faço aquilo que o meu coração
me indica! A solidão é o meu refúgio, é a minha tábua de salvação. Tenho as minhas
razões para estar sozinho. Só, no meio de tanta gente. Porém, quando estou a sós
comigo mesmo, ultrapasso a mesquinhez humana e consigo fazer mais por este país
que tanto amo. Eu tenho as minhas convicções políticas e tenho as minhas ideias
sobre como uma sociedade deve ser organizada sem nos envolvermos em ideologias
necrófilas e trazidas de fora. Sou amassado com o barro forte que os meus pais,
muito bem, souberam escolher e com convicções religiosas que imprimiram em mim
muita perícia. Quero ser eu mesmo e mais ninguém. Sabes que muitas vezes o
homem vende o seu eu por causa de ideologias, e a sua consciência é manipulada.
Eu não faço isto, não admito ser manipulado.
– Mas o que tem isto a ver com o que, muitas vezes, temos falado? A tua vida
profissional, as relações com o mundo que nos cerca, não estamos a misturar duas
coisas? Nós e os outros?
– Tem muito a ver! Temos de dar tempo ao tempo! Temos de deixar as coisas
amadurecerem para colher daí frutos. Aprecio esta tua presença aqui e agora. Mas
quero aproveitar este momento para te iniciar naquilo que constitui a razão principal
da tua vinda. Disse-te, há dias que, aquilo que sai de dentro de nós é o produto da
imaginação. Muitas vezes, sai apressadamente e sem que consigamos fundamentar
tais pensamentos, acabando por ofender pessoas ou, simplesmente, repetimos,
como que em modo automático, o pensamento de outras pessoas. Nós precisamos
recriar e ré-imaginar este mundo, este país que é nosso. Ora, a minha solidão é
precisamente para aprofundar e aproximar-me das coisas reais e daquilo que se
encontra dentro de mim, que é maior do que eu mesmo. Não quero deixar-me levar
pela pressa. Sei que todos aqueles que pensam desta maneira e que acreditam que
existe algo dentro de si, que é muito maior do que si mesmo, acabam por ter pouca
sorte na vida.
– Ainda não estou a entender-te!
Renato alçou um sorriso leve e encolheu os ombros. Segurou, de novo, o antebraço
da acompanhante e olhou-a fixamente, dando alguns passos paralelos à língua das
ondas.
– Bem. Primeiro não vivo na solidão, para te ser muito claro. Tenho amigos por
todos os cantos da terra. Uma família estabelecida. A minha opção por uma vida que
tu chamas solitária, não adveio do facto de eu estar a viver sem uma posição política
que se enquadre dentro da dos meus “inimigos”. Veio de longe. Mas posso-te dizer
que, lá dentro de min, ali no abrigo do ser, lá onde me sinto feliz e só, onde escuto

Domingos Barbosa da Silva 122


A estranha morte de um político

atenciosamente a voz do silêncio como uma música maviosa que cria uma quietude
dentro da alma, lá nutro paz e serenidade. É uma harmonia sem igual!
A serenidade do Renato parecia morar-lhe na alma e reflectir-lhe no rosto, mas
estava longe de pensar sobre a dimensão de todo o alcance do “rendez-vous”
daquele encontro e acerca do rumo que as coisas estavam a tomar. Falava num tom
pensativo, tão frio, tão nu e transparente, mas tão cheio de sentimentos humanos.
Comportava-se como um filósofo, com serenidade. Dava lições da vida.
– Este momento está longe de ser o que pensava, Renato. Vim de longe para...
– Para ouvir-me ou para fazer outras coisas...
– Não, Renato, estás a ser injusto comigo...
Irritados com o curso que a conversa iria tomar, ambos tecendo e destecendo mil
planos para evitar que a taça de cicuta se enchesse e derramasse o seu líquido fatal
sobre um amigo de longa data, um amigo que tinha nas suas mãos, o único remédio
que ela, nessa ocasião, pedia – a chave do seu coração. Nada mais queria ela. No
entanto, Renato queria mais do que entregar a chave. Queria ensiná-la o valor da
liberdade e da responsabilidade. Pois, quem tem prática dessas coisas de amor,
fareja uma paixão a mil léguas de distância. Ele virou-se para ela, pondo-lhe as mãos
nos ombros, encarando-a nos olhos, e por fim rompendo nestas palavras, meias
suspiradas:
– Vou-te dizer uma coisa importante. A liberdade custa muito. Ela é um diadema
oculto para muitos. Ela é uma divisa que muitos carregam sobre os ombros sem
saber. Só é visível na cabeça de um indivíduo quando ele não é livre, quando está
aprisionado, espezinhado, marginalizado e pisoteado.
– Estás a ser um pouco injusto para comigo…
– Não. Não estou. A espada da lei não deve distinguir entre forte e fraco, grande e
pequeno, bonito e feio, pobre ou rico. Por exemplo, a lei contra a exploração duma
minoria para proveito de alguns, deve ser uma das prioridades da Nação. A Justiça é
um bem maior que se faz primeiro em casa. Não se faz apenas no tribunal jurídico,
mas também no fundo da nossa consciência, pois lá não se apaga a visão de um acto
cometido. O peso da consciência pode aprisionar um indivíduo a ponto de, mais
tarde, fazer uma confissão. Muitas das acções do homem devem-se,
frequentemente, a certos impulsos ou instintos “animais” que residem na sua
natureza. Já há muito que pressinto um mal que me está a atingir de frente e que
este mal é inevitável. Por isso, procuro minimizar estas possibilidades ou
probabilidades, optando pelo que chamas de solidão. Eu chamo isto outra coisa -
afirmou.

Domingos Barbosa da Silva 123


A estranha morte de um político

Judith estremeceu. Virou a cara para o mar num movimento rápido, voltando-se
depois para Renato, furiosamente:
– O que é que se está a passar contigo, Renato? O que é que estás a insinuar? Estou
a ser levada a crer que, neste momento, me odeias. O que pensas de mim? Não podes
estar aqui a culpar-me pelos teus problemas.
– Não. Nada disso. Fui ensinado a não ter lugar para o ódio no meu coração. Tu
não tens culpa nenhuma. São os meus desabafos neste momento! Peço-te perdão se
estou a ofender-te – acrescentou, olhando fria e longamente para ela.
– Compreendo a tua frustração, Renato, mas...são assuntos que se pode tratar
entre nós os dois, sem inconveniência para nenhum de nós, sem interpor a tua
posição política e outras coisas.
Renato ficou pensativo por instantes.
– Deixa-me contar uma coisa que não sabes, já que trouxeste à baila este ponto.
No convite disse que tinha algo a revelar-te e que serias a única pessoa neste mundo
a saber. Eis, primeiro, uma preparação para melhor compreenderes a minha posição
social. Eu não conheço o léxico socialista/marxista revolucionário e nem o uso na
minha opção política. Quando actuo nacional e internacionalmente como político,
não uso a fraseologia da esquerda marxista e revolucionária mesmo que eu seja uma
pessoa de esquerda. Tive uma influência religiosa de cariz protestante de onde
resultou o meu pensamento como político de esquerda.14Convivo com outros
políticos de direita. Convivo também, com os políticos marxistas sem, por isso,
entregar-lhes a minha alma. Portanto, a minha visão do mundo está profundamente
marcada pela influência religiosa, herdada dos meus progenitores. Este facto tornou-
me resistente à fraseologia ideológica da esquerda marxista. Quando estudava em
Lisboa, tinha lá os meus “inimigos” que me apelidavam de reaccionário por não me
associar à corrente que seguiam. Sentia um certo desconforto no meio da
comunidade estudantil de esquerda em Portugal.15 Os próprios líderes dos
estudantes cabo-verdianos consideravam-me um reaccionário quando debatíamos
sobre a cultura cabo-verdiana, o que contribuiu para criar uma tensão entre
estudantes, algo que se estende aos dias de hoje, uma tensão e um clivo enorme que
ainda hoje persiste entre nós. Estás a compreender-me, Judith?
– Um pouco! Creio é o que se propala pelo país.
– Bem, esta demarcação ideológica influenciou a minha carreira política, de tal
modo que, eu me sinta, muitas vezes, marginalizado. Mas isto não é o cúmulo das
14A Bala Mágica que matou Renato Cardoso, de José Manuel Veiga, Cabo Verde, Setembro de 1994.
15 Ibidem.

Domingos Barbosa da Silva 124


A estranha morte de um político

coisas. Sou aquilo que sou e continuo a ser o mesmo. Não vendo a minha consciência
e nem me encontro à venda. Apesar deste contraste entre o que sou no fundo e o
meu posicionamento na estrutura política, estou a trabalhar com afinco para
levantar esta terra que é de todos nós a um nível mais humano e com mais justiça.
Isto é, ter mais democracia no interior do partido, o que vai pouco a pouco,
contaminar positivamente a sociedade toda. Este país é como as estrelas que
pertencem a todos nós, da direita ou da esquerda política. Bonito ou feio, preto ou
branco, político ou não político. Somos células orgânicas deste mundo em que Cabo
Verde é uma das partes componentes.
– Já estou mais ou menos na linha do teu pensamento e a compreender-te melhor.
Estou curiosa em ouvir mais.
– Há um clivo no seio da política vigente. Este clivo existe e vive silenciado pelo
medo e pela falta de coragem de muitos aqui na terra. Há o “grupo de Lisboa” e há
o grupo de “direcção da luta”. Apesar de eu ser claramente marginalizado por ambos
os grupos, sou identificado como pertencente ao grupo de Lisboa que, para muitos,
está associado ao trotskismo aqui neste país. Eu, para te dizer a verdade, não
pertenço nem a um, nem a outro quanto à ideologia que defendem porque, para
mim, são práticas que não se coadunam com aquilo que nesta terra pobre nós
chamamos de Morabeza, com a nossa maneira de ser, ver e de estar no mundo.
Acima de tudo, com a minha visão do mundo. O nosso país ainda não está preparado
para ser depositário de uma ideologia marxista. A África não está, no meu entender,
preparada para algo deste género. Não acredito na ideia de ascensão do partido
sobre o Estado. Este é um órgão supremo da Nação. O Estado inclui todos sem
excepção, enquanto o partido representa alguns, logicamente exclui muitos. Muitos
falam da democracia antes da eleição, mas depois de eleitos, subjugam o povo que
os colocou no poder. Isto é, em si, muito mau. Destrói a confiança que o povo
deposita na política. Se admitirmos a ideia de ascensão do partido sobre o Estado,
estamos também, a admitir a ascensão de medíocres na estrutura de poderes,
paternalismo social e uma gestão político-burocrática da cultura e de outros males
na sociedade. Sou, neste caso, considerado um crítico de dentro e, por isso, muito
perigoso. A minha diferença ideológica com o grupo de Lisboa não me salvou de ser
apelidado de trotskista. Contínuo a posicionar-me como homem de esquerda e
defensor ferrenho da abertura política, preocupadíssimo com as questões sociais e
sou partidário da concepção da política como jogo.16 Tudo isto, Judith, pesa muito
no seio da política nacional, em toda a sua estrutura, e isto parece promissor se a
razão não for vilipendiada pelos nossos homens no poder. Compreendes agora a

16 Ibidem.

Domingos Barbosa da Silva 125


A estranha morte de um político

minha preocupação, Judith? Esta é a minha confissão a ti. É isto e muito mais que
está nos documentos que vais ler.
– Perfeitamente, caro amigo. Fala-me mais sobre o Estado como órgão supremo –
pediu Judith, já com um alívio na voz.
– O Estado é uma unidade política básica que equivale a uma comunidade humana
fixada num território onde exerce o poder político. Os fins do Estado são,
nomeadamente, a segurança, o bem-estar económico, a justiça social, etc. As
funções do Estado são: legislativas (elaboração das leis), a executivas ou
administrativas (execução das leis e satisfação das necessidades colectivas) e a
judicial (resolução de conflitos e punição da violação das leis). O Estado é um
conceito político que se refere a uma forma de organização social soberana formada
por um conjunto de instituições que têm o poder de regular a vida num determinado
território. Portanto, organizado, política, social e juridicamente dentro de um
território definido, tendo como lei máxima uma Constituição escrita17dirigida por um
governo que possui soberania reconhecida tanto interna como externamente.
Dentro desse território não pode haver uma soberania maior que o Estado. Por isso,
um partido não pode ser soberano, principalmente, numa sociedade democrática. Se
o for, em outras circunstâncias, é porque já se aproveitou da euforia do povo em
momentos de crise existencial, de frustração, para criar certas dependências a um
grupo que, à primeira vista, parecia salvador do mundo e que depois, com a ajuda
do medo criado no povo, oprime uma nação inteira. Se somos democráticos, não
podemos e nem devemos admitir a ascensão do partido sobre o Estado, por que o
partido é exclusivista na sua autodefinição. Um dos nossos mestres do passado, Max
Weber, sintetiza um Estado soberano pela máxima: um governo, um povo e um
território, sendo o Estado o detentor legítimo do monopólio do uso da força.
Um partido, por seu lado, principalmente quando é único, não deve possuir esse
monopólio, pois se o possuir, não estamos a ser governados, mas sim, comandados
como se fossemos militares. Um partido político é um grupo organizado formal e
legalmente, baseado em formas voluntárias de participação, numa associação
orientada para influenciar ou ocupar o poder político num determinado país.
Juridicamente, é uma organização de direito privado que, no sentido moderno da
palavra, pode ser definido como uma união voluntária de cidadãos com afinidades
ideológicas e políticas, organizado e com disciplina, visando a disputa do poder

17MaxWeber, Sociological Writings: Editor(s): Wolf Heydebrand. Published: 03-01- 1994, by


German Library.

Domingos Barbosa da Silva 126


A estranha morte de um político

político.18 Sociologicamente falando, os partidos políticos atuais são organizações


onde predomina a burocracia na sua estrutura e que se fundamentam na ideologia
da representação política, e não no acesso directo do povo às decisões políticas.
– Deixa-me falar-te à razão. Tudo isto que me tens contado, são coisas nobres. É o
crepitar do fogo que está ardendo no teu coração. Mas, não pensas que tudo isto é
trabalho a mais para um só homem? Tem de ser um trabalho colectivo. Acho que
estás a sentir-te menosprezado pelos outros, enquanto estás a ser mesquinho, isto
é, a ter autopiedade.
– Há um pouco de verdade no que acabaste de dizer. Quando se dá uma rosa a
uma pessoa, fica sempre um pouco de perfume na mão de quem dá, como dizem os
chineses. Quero que o mundo à minha volta reconheça que sou capaz de pensar com
minha própria cabeça, isto é, sem me impregnar de outras ideologias. Tudo o que
tenciono fazer pode perfeitamente ser o trabalho de um só homem ou uma só
mulher. Quero expor a minha opinião ao mundo e não quero impor nada. É o que
proponho no meu projecto. Não, Judith. Não concentro a minha atenção em coisas
mesquinhas da vida. Ponho-a numa coisa que é nobre, que é maior do que eu mesmo,
em algo que é transcendente na alma de Cabo Verde. Queres saber mais?
– Quero, estou curiosíssima.
– Suponhamos que tens uma alma que é a essência imaterial da tua vida. Uma
alma que deriva da palavra latina “anima”. Não sei se acreditas na sua existência,
mas eu acredito. Tenho esta convicção de que ela existe. Chegou até mim com o leite
materno. O conceito da alma como algo transcendente é tão claro para mim como
a água cristalina. Então, vamos pensar num outro conceito da alma, em que, não
precisas de fazer lá muitos esforços nem comprometer o teu modo de ver o mundo,
com a tua religião ou a tua cor política.
– Não tenho compromissos nessa área – interrompeu Judith.
Os dois estiveram ali silenciosos alguns segundos. Ele despertou, enfim, das
reflexões e voltou-se para ela:
– Então escuta. Nós, aquela casa, esta praia, aquelas árvores, aquelas pedras,
todos, temos uma alma. Mas é um outro tipo de alma. Uma alma que é o conjunto
de qualidades inerentes a cada ser e a cada coisa. E em cada alma há uma paisagem.
Anima ou alma, aqui, é o conteúdo interior ou valor intrínseco de qualquer coisa ou
ser. Podemos dizer que aqueles objectos são a alma desse edifício, aquela área é a
alma desta praia. Aquelas casas são a alma da Prainha. Aquele seminário é alma da

18 Idem

Domingos Barbosa da Silva 127


A estranha morte de um político

cultura cabo-verdiana. Da mesma maneira podemos dizer que tal rio é vivo. A onda
do mar é viva.
– Isto é filosofia, homem. Não sei onde queres chegar com isto. Para mim uma
pedra é apenas uma pedra com valor instrumental e nada mais.
Renato compreendeu que estava a falar de coisas difíceis, mas perfeitamente
inteligível para uma mulher do calibre da sua acompanhante. Olhou para o alto e
fixou o olhar num determinado ponto no céu. Algumas vezes, a comoção da Judith
era tão grande que obrigava Renato a pegar-lhe afectuosamente nas mãos,
procurando confortá-la com outras palavras de confiança e esperança. Mas ele
proferia as palavras com a segurança necessária para serenar o ânimo da
acompanhante, que ficou algum tempo a olhar pasmada para ele, como quem
reflectia e não escutava as suas boas palavras. Ao cabo de alguns segundos de
silêncio, baixou o semblante e apontou para uma pedra grande.
– Sim, entendo. Aquela pedra pode ser transformada em arte, embora ela tenha
sido obra da arte da Natureza muito antes da nossa existência. Quando
transformamos a pedra em arte, isto é, numa imagem qualquer, atribuímos à
imagem um valor maior do que a pedra tinha anteriormente. Este novo valor que a
pedra adquire é a alma dessa pedra. Daí podemos dizer que toda a natureza tem
uma alma. Os gregos tinham uma deusa, de nome Héstia, que representava esses
valores transcendentais. Isto chegou até nós através de mitos. Os mitos servem para
explicar as coisas que nós não compreendemos. Mas também podem servir como
obstáculos, para baralhar a nossa mente e, assim, deixarmos de pensar com a nossa
própria cabeça. Na nossa terra temos ainda hoje muitos mitos. Um dos mitos criados
que te posso adiantar é o mito dos “melhores filhos”. No mundo de hoje existe, por
exemplo, o mito de “o homem branco ser superior ao homem preto”, etc. Ainda há
muitos no meio de nós que, infelizmente, acreditam nestes tipos de mitos. Existe
melhores filhos e piores filhos? Se eles são melhores, o que são os outros? Piores,
medíocres e inimigos da pátria. Ora, penso que o mito foi criado com o fim de forçar
a luta que culminou na nossa independência, num momento em que precisávamos
de mais força para ultrapassar as barreiras criadas pelo colonialismo, pela fricção
interna no partido com o fim de unir os combatentes da liberdade. Não como arma
de separação e de clivagem no seio social como hoje se observa. Por uma
necessidade instrumental na luta, criou-se um mito para consolidar as forças
armadas, mas depois da independência política, tal mito tornou-se desnecessário e
obsoleto e, por este motivo, devia ser erradicado do meio cabo-verdiano. O povo
cabo-verdiano é suficientemente inteligente para ver, analisar e rejeitar este
conceito de clivagem, isto é, de admitir a existência de melhores filhos do povo.

Domingos Barbosa da Silva 128


A estranha morte de um político

Já que entrámos na mitologia, vou-te contar a história de Héstia para nos podermos
aproximar desses valores que te quero transmitir e que estão, explicitamente,
descritos na primeira parte do meu projecto e na parte intitulada: “Caminho para o
pluripartidarismo em Cabo Verde”.
– Então conta!
– Muito antes dos filósofos gregos, o homem não estava satisfeito, assim como
hoje, com as respostas às perguntas fundamentais da vida, isto é, às perguntas
filosóficas sobre questões difíceis da existência. Por isso, inventaram mitos para
explicar as coisas difíceis. A ciência diz que, no mundo, existem coisas que só podem
ser entendidas através dos cinco sentidos, da experiência. É o que os pensadores
chamam de pensamento empírico (ciência). Héstia é a deusa do fogo doméstico,
rege o fogo sagrado. O fogo de Héstia simboliza a chama que arde no coração dos
homens; a vida, o amor à vida; a vida pelo amor; a beleza e o que nós nesta terra
chamamos Morabeza que é a soma total dos valores inerentes ou intrínsecos na
cultura cabo-verdiana. É símbolo da pureza, da força e conhecimentos ancestrais; da
paz, do respeito ao passado que forma cada um de nós. É ao redor dele e do seu calor
que, à noite, a família se reúne e, por mais modesto que seja o alimento servido,
todos têm nele o fogo da esperança de um novo e melhor amanhã. É símbolo da
família. A chama que torna possíveis os laços de união, da justiça, do bem-estar e de
tudo o que contrapõe aquilo que é injusto.
Héstia tinha a preocupação de manter os corações dos homens aquecidos e unidos,
alimentá-los com o leite do afecto e da humanidade. Héstia também simbolizava a
continuidade e preservação das tradições, do saber ancestral. É o símbolo do
renascimento dos antigos cultos. De todos os deuses da sociedade, Héstia é a deusa
a quem os homens mais amavam e respeitavam, segundo a tradição. É uma deusa
humilde, simples e modesta. Para ela, havia um altar em cada casa, em cada lar; à
lareira. Ali, ardia uma chama constante. Os homens pediam que ela abençoasse o
alimento antes das refeições e prestavam-lhe homenagens ao terminá-las.
Como deusa, Héstia amava e protegia todas as crianças. Quando estas cresciam,
casavam-se e mudavam de casa, levavam consigo uma parte da chama paternal
para abençoar e iluminar a nova residência. Dessa forma a chama (o amor) podia
manter-se acesa durante anos, décadas, séculos e até mesmo milénios. Esta era a
maneira como se transmitia os valores positivos às gerações vindoiras.
No centro de cada cidade havia um prédio público chamado em grego Pritaneia. No
centro da Pritaneia, um enorme átrio tinha no seu centro um altar dedicado à deusa
Héstia, e sobre este altar, uma chama em honra à deusa, onde se pedia para que ela
protegesse todos os que moravam na cidade. Havia homens dispostos a morrer para

Domingos Barbosa da Silva 129


A estranha morte de um político

não deixar que a chama se extinguisse. Sempre que novas expedições saíam com
objectivo de fundar novas aldeias, levavam consigo um pouco da chama da Pritaneia
para que a cidade a ser fundada fosse abençoada pelas graças da deusa. Héstia era,
também, o símbolo de amizade e concórdia entre as cidades.
– Tu és um erudito. Vais-me emprestar alguns livros sobre a mitologia grega. Estou
a falar a sério!
– Vamos voltar ao conceito da alma como sugeri antes. A alma de que falamos
existe na poesia e na prosa. Na poesia esta alma aparece em forma de música, de
rima ou de cadência. Quando damos à alma uma ancoragem poética na nossa
imaginação, arrancamo-la do círculo teológico, para fora do quarto fechado da
psicoterapia e colocamo-la no mundo concreto ou real. Ela fica liberta,
inclusivamente, do cérebro de cada indivíduo, de tal modo que, ela se mostra
claramente em tudo que existe no universo, isto é, em toda a criação. Portanto,
falamos da alma não apenas “aqui-dentro,” mas também, da alma “lá-fora.” O que
é, normalmente, chamado de “coisas inanimadas”, sem vida, também possuem
alma.
– Quero ouvir mais. És platónico demais.
– Um poeta americano disse, e muito bem, que existe poesia no coração das coisas.
Ora, as coisas têm um corpo. Falar sobre o coração, o corpo e a alma das coisas é
pôr a nossa atenção na ideia, conceito e qualidades que esta ou aquela determinada
coisa apresenta ao mundo que a observa. Isto não é o mundo platónico das formas,
mas o platonismo ajuda-nos a compreender melhor esta visão do mundo! Para ser
mais específico: a alma é o lado feminino das coisas.
– Fico lisonjeada ao ouvir isto. Incutes em mim a esperança de que esta terra, um
dia, venha dar mais valor às mulheres e ao lado feminino da sociedade. – Disse
Judith.
– Não precisamos de ser todos poetas para nos apercebermos da alma nas coisas.
Não, é um dom comum a todos nós. Tu e eu estamos a participar nesta visão ou
processo de “criar” um mundo com alma em todas as suas coisas. Um exemplo
esclarecedor: um Tribunal que se encontra preocupado com a justiça, tem alma, tem
o valor intrínseco da justiça como alma do tribunal. Portanto, a própria justiça é a
alma – o lado feminino do tribunal judiciário e do tribunal da consciência. Os
documentos que vais ter na mão daqui a pouco têm uma alma. Portanto, guarda-os
bem. Pois, és a única pessoa com quem posso falar sobre o assunto e, por enquanto,
fechados a sete chaves.

Domingos Barbosa da Silva 130


A estranha morte de um político

Ela assentiu sem hesitar, baixando o olhar de maneira comovida. Silenciou-se


durante alguns segundos. Não apenas sentiu, mas também, ouviu como o seu
próprio pulso batia na cavidade do pescoço abaixo do ouvido esquerdo. Não estava
a escutar as palavras do Renato naquele momento. Ela tentou pegar-lhe na mão,
mas hesitou desta vez. Ela não disse nada durante uns instantes, como se pesasse
os prós e os contras do que tencionava dizer. Pareceu lisonjeada pelo lugar
privilegiado que lhe foi atribuído, pelo menos, foi o que os seus sentimentos
deixaram transparecer. Naquele momento, apresentava alguns dos atributos que a
deusa possuía, mas era porventura apenas uma impressão?
– Garanto-te a confidencialidade deste segredo. Se o mundo vier a saber disto só
se deverá aos teus descuidos. Agradeço-te pela confiança. Aliás, esta é uma
confiança que vem de longe e é recíproca.
– Agradeço-te bastante por essa garantia. Já era de esperar dado a nossa longa
amizade. Mas antes de terminar esta narração sobre o mito, vou-te contar mais uma
história antiga, também grega, sobre o deus Hermes segundo as exposições
homéricas. Isto só para te poder narrar, mais tarde, sobre os problemas da nossa
sociedade. Homero descreve Hermes como uma divindade cuja ser teria sido
revelado aos gregos na época da epopeia, e que se tratava de uma lógica em que
Hermes anima e governa um mundo completo e não um fragmento; ele não vem do
céu pedindo coisas, quem quer os seus favores também precisaria saber perder, pois
ele ensina que uma coisa não existe sem o seu oposto. Ele era, na maioria dos casos,
o oposto de Héstia. Hermes, então, entenderia de ganâncias e perdas, mostrando-se
bom e complacente nos infortúnios. Isso poderia parecer ambíguo moralmente
falando, mas é a realidade e a essência da totalidade incorporada nele. Hoje,
encontramos sinais de ganância de Hermes em todas as sociedades. A ganância
política, a ganância económica, a droga e o desrespeito pelos direitos dos outros.
Dentro destes vícios negativos, vivem muitos seguidores do modelo de Hermes nos
nossos dias.
Ele não se importa com a fama e está longe de ser um herói. Sua mestria é outra, a
do “ladrão”, que rouba Ares de sua prisão e rouba o cadáver de Heitor quando os
deuses concordam. Ele mata e sabe justificar o porquê da matança, pois com a sua
arte de bem falar consegue convencer toda a gente.
Hermes é deus dos rebanhos, da sorte, mensageiro dos deuses, que concede graças,
guia e doador de boas coisas, o mensageiro em constante movimento. Mais uma
característica de Hermes é o equilíbrio de opostos. É justiceiro, mas também traz
injustiça aos outros.

Domingos Barbosa da Silva 131


A estranha morte de um político

Portanto, Hermes foi deus do negócio, da liberdade da expressão, da retórica, do


ladrão, do caminhante, do traidor e do mentiroso. Como tinha muito apetite para
comer, roubou a Apolo 50 vacas e apagou as pegadas e todos os indícios, de tal
maneira que, ninguém o pudesse descobrir. Matou duas das vacas e cortou-as em
doze bocados, estabelecendo, pela primeira vez, na história dos deuses, o costume
ou ritual de oferecer carne a todos os deuses, incluindo-se a si mesmo como um dos
12, comendo a sua parte e queimando o resto.
Quando regressou a “casa”, a mãe ralhou com ele por ter sido pouco correcto, mas
como ele conhecia e dominava bem a arte de falar, defendeu-se brilhantemente, o
que se pode constatar num dos hinos homéricos. Quando, momentos depois, Apolo
passou à frente do buraco onde Hermes morava com a mãe, descobriu as peles das
vacas. Apolo foi com toda a fúria ter com ele. Hermes disse a Apolo que tinha nascido
ontem e nem sequer sabia o que significa uma vaca. Mas Apolo não se deixou ser
enganado e levou Hermes com ele para que Zeus fizesse justiça. Quando chegaram
a Olímpia (a morada dos deuses), Zeus recomendou a Hermes que chegasse a um
acordo com Apolo e, assim, com a sua arte de bem falar, estabeleceram um acordo
entre si dentro de minutos, de tal maneira que, ambos ficaram satisfeitos. Fizeram
um contracto de amigos.
A acompanhante do Renato tinha já a cabeça às voltas com tanta informação, mas
queria ainda saber mais sobre o conteúdo da conversa do Renato com o Presidente
da República. Coçou a garganta para despistar o seu companheiro e virou a cara para
ele num movimento ligeiro:
– O que dissestes ao Presidente para que as coisas se tornassem de cabeça para
baixo?
– Disse-lhe pouca coisa. Falei-lhe do mimetismo. Entreguei-lhe os projectos e
comecei a explicar concisamente o seu conteúdo. Pregou os olhos nos documentos e
não sei se me estava a ouvir. Disse também, que o nosso partido precisa de ser
liberalizado internamente, sendo este, um primeiro passo a dar em Cabo Verde.
Depois desta liberalização no interior da estrutura partidária, o segundo passo a dar
é trabalhar para mais democracia no país. A democracia não pode ser garantida e
implementada sem existência de garantias legais para proteger aqueles que têm
opiniões diferentes das da tirania da autoridade. Sem estas garantias, o medo
governa as mentes das mulheres e dos homens cabo-verdianos e que onde o medo
governa, não há criação nem invenção de nada que contribua para enriquecer e
desenvolver o país. O medo faz com que as pessoas se recolham dentro das suas
casas, se refugiem no silêncio e na inanição ou viajem para o estrangeiro à procura
da liberdade para criar e inventar. Outras simplesmente aceitam o status quo para

Domingos Barbosa da Silva 132


A estranha morte de um político

dar prazer aos poucos que governam. Disse-lhe ainda, que tinha na mão um projecto
que, possivelmente, conduziria o país à mudança, uma mudança muito necessária
neste momento em que estamos a viver. Parece-me que ele não estava preparado
para escutar uma tal ousadia da minha parte.
Ora, outra coisa importante mencionada é que hoje em Cabo Verde o
desenvolvimento é compreendido como um conceito global e é um objectivo que se
demanda desesperadamente. É um anseio fundamental do povo das ilhas e, em boa
verdade, é a razão e a legitimação dos próprios processos de independência. Isto
porque, perante a demora na realização desse sonho, alguns começam a perguntar
sobre o valor real da independência. Sabemos que a liberdade foi sempre entendida
como a via necessária para o progresso. Estamos a atrasar este processo de
desenvolvimento.
O desenvolvimento fala-nos de um esforço que abrange a sociedade inteira, centra-
se nos homens, abarca os objectivos, os processos, os recursos, o know-how. É
fundamentalmente interno. Envolve as variáveis sociais e políticas, económicas e
morais. Estas são as minhas preocupações globais em relação à África de hoje, mas
pensando em Cabo Verde com particular ênfase. Para iniciar um debate saudável,
nós temos de tirar a enorme pedra colocada sobre o assunto relativo ao
desenvolvimento integral das nossas ilhas.
– Que ousadia! Acho que disseste demais – condenou ela friamente.
– Bem, o caminho de regresso não existe neste momento.
- E sobre o que mais conversaram?
- Ora, quando ele levantou a cara dos documentos, fixou os olhos em mim,
enquanto eu relatava as coisas à minha maneira. Ele ficou imóvel por uns minutos.
Acrescentei que nós precisamos dos outros para completar a nós mesmos. Os outros
definem-nos. Precisamos de um desenvolvimento sustentável. Uma política de
desenvolvimento fundada sobre os interesses e as necessidades do homem africano,
pressuporia uma adequação estrutural do sistema herdado, que perpetua a
dependência do nosso país de terceiros. Implica a adopção de valores novos, uma
correcção da dinâmica social, uma revisão das relações com o exterior, uma
correcção das relações sociais estabelecidas no tempo da colonização e que ainda
persistem em muitos países. Efectivamente, a África, em geral, e Cabo Verde, em
particular, herdou estruturas de dependência e, mesmo, de subordinação que não
lhes têm permitido fazer escolhas próprias. Libertar-se dessa dependência excessiva
é uma das palavras de ordem contidas no Plano de Acção de Lagos. Cinco anos após
este plano de acção, a União Africana constatou que poucos progressos haviam sido
realizados nesse domínio.

Domingos Barbosa da Silva 133


A estranha morte de um político

Nós continuamos ainda a ser dependentes do exterior porque estamos amarrados


ao sistema estrutural herdado. É só ver a percentagem das importações em relação
ao PIB. Há uma presença exagerada de pessoal estrangeiro na nossa economia, o
que mostra que não estamos no caminho da autossuficiência. Mais ainda: reflecte-
se no plano político e social, em inúmeras distorções e perversões e consubstancia,
em muitos casos, numa subordinação completa do país em relação ao exterior. A
impossibilidade de alterar essas estruturas no nosso país, em particular e em África,
em geral, significa, na prática, absoluta incapacidade de promover o
desenvolvimento económico e social real e autocentrado. 19
Ademais, a nossa estrutura política está fragilizada porquanto se encontra sobre
alicerces fracos. Vejamos: disse e bem, incapacidade de promover um
desenvolvimento económico e social real e autocentrado. Real, porque os laços
económicos estabelecidos internacionalmente, as estruturas de produção dirigidas
pelo exterior e para o exterior, as servidões políticas de diversa natureza, os valores
retrógrados dominantes nas administrações, a fraqueza de meios humanos e
materiais, tendem a perpetuar o subdesenvolvimento. Na verdade, a África é forçada
a gerir uma estrutura económica, social e administrativa geradora de
subdesenvolvimento, um sistema disposto para regredir. Nós, como parte dessa
África, sob esta estrutura fragilizada, precisamos com muita urgência de criar um
alicerce sustentável e credível, mas faltam-nos os pressupostos essenciais de uma
estratégia de desenvolvimento própria, a saber: a confiança em nós mesmos, a
difusão de valores institucionais dinâmicos virados para o progresso, a autonomia
de decisão, para podermos inverter o sentido do movimento encontrado nas
estruturas sociais do nosso país, em particular e da África, em geral. Esta dinâmica
exige rupturas:
1) Ruptura com os conceitos e hábitos que não privilegiam o progresso, como o imobilismo e a
indiferença política das populações, a irresponsabilidade e o mimetismo das classes
favorecidas;
2) Ruptura com as tendências dominantes das estruturas administrativas, que, muito
frequentemente, não se responsabilizavam perante a sociedade que serviam; não detinham
uma verdadeira noção de interesse público; não entendiam a necessidade de progresso; não
se entendiam como factores de progresso;
3) Ruptura com sistemas políticos e económicos de relacionamento com as ex-metrópoles
preparados para perpetuar a subordinação colonial;
4) Ruptura com a dinâmica de divisão instalada pelos poderes coloniais entre os Estados e dentro
dos Estados africanos.

19 Renato Cardoso – Cabo Verde – Opção para uma política de PAZ, Instituto cabo-verdiano do livro,
Praia, 1986.

Domingos Barbosa da Silva 134


A estranha morte de um político

Renato estava embrenhado no conteúdo dos projectos que focavam a necessidade


de eliminação da subordinação aos valores antigos e vigentes como requisitos de
desenvolvimento autêntico e autocentrado e que Cabo Verde deve assumir a
responsabilidade do seu próprio desenvolvimento integral, o que pressupõe a
capacidade de se assumir como entidade organizada e dotada de interesses
próprios, consciente dos seus próprios objectivos e movida por um sentido de nação.
A área de acção do Renato era a administração pública, por isso repetia com
frequência a necessidade de sublinhar o seu papel na consciencialização da nação.
Estava defraudado pela não realização das esperanças suscitadas pela emancipação
política, interrogava os responsáveis sobre o “paradoxo da independência”. Queria
convencer os dirigentes de que a política seguida nem sempre fora a melhor. É
preciso reformar a administração de modo a banir as dependências, como a
dependência alimentar do exterior no domínio de agricultura e assim por diante. O
paradoxo de que “as melhores terras dos países onde a fome é uma realidade, são
utilizadas para produzir produtos de exportação para os países ricos, sendo as terras
mais pobres consagradas a alimentar os países desenvolvidos” torna-nos mais
dependentes que antes da independência nacional e esvazia a política vigente do
sentido da participação do povo, sufoca as iniciativas particulares, desencoraja as
economias tradicionais, como a dependente da agricultura.20
Enquanto Renato discorria sobre o conteúdo da sua audiência com o senhor
Presidente da República, apareceu um vulto que se aproximava com determinação
em direcção aos dois.
– Temos companhia – disse Renato baixinho.
– Sabes quem será?
– Não faço a mínima ideia.
Ela deu uns passos atrás, colocou a mão direita sobre a boca e fixou os olhos na
silhueta que se aproximava.
Renato conversava com naturalidade de modo a desencorajar qualquer investida da
parte do seu interlocutor. Este já não estava consciente de si e perdeu o ar vigilante.
Enquanto falavam, o mascarado deslocava-se para o lado, de modo a que, o corpo
de Renato deixasse de se interpor entre ele e a acompanhante. Quem raio é este? -
Pensou.
– Não faça isso – exortou.

20 Ibidem

Domingos Barbosa da Silva 135


A estranha morte de um político

O estranho sacou da arma e apontou-a para os dois.


A companheira deixou-se cair sobre a areia a gritar.
Notando a pistola, girou para o lado direito, suplicando com voz alta: pare com isto.
Renato entrou em transe e, por momentos, imaginara ter atingido o pulso que
empunhava a arma, com o pé direito. A arma caiu na areia de boca para o chão e
não disparou. O mascarado caiu para cima da arma enquanto Renato tentou atingi-
lo outra vez. O mascarado rolou no chão para evitar as investidas do Renato. Rolou
e voltou a rolar até sentir por baixo de si a presença de um objecto maciço. Levantou-
se como um gato ágil e Renato foi atingido de novo. Caiu de mau jeito. Viu uma
figura em silhueta erguendo-se acima dele e arremessou-lhe um pontapé no
traseiro. O adversário rolou sobre areia molhada e levantou-se de novo num salto
atlético. Correu à volta de Renato até que este se tornou desorientado.
Voltou à realidade e ouviu o mascarado a exigir os documentos.
– Quem te mandou cá? Quem te contratou? O que queres tu de mim? Podes matar-
me, mas o meu nome não matas. – Disse Renato com uma voz tensa com a areia a
rolar-lhe nos olhos.
Renato pensou por um momento se estaria a sonhar. Mergulhou mesmo num
estado onírico em pensamento. Mordeu os lábios para se certificar de que estava
vivo. Se estava verdadeiramente a enfrentar uma pessoa do mal. A imagem que
ocupava a mente de Renato quando segundos depois de ter enfrentando a figura
solitária à sua frente com um aspecto empedrado, mascarado, com uma construção
física de um blindado, foi a de que tudo aquilo era irreal. O que se passa Renato? –
pensou para si mesmo. Imaginou ter caído no chão sob a pressão de umas mãos
enormes. Com este meu corpo não vou deixar nenhum homem subjugar-me neste
momento – pensou de novo. Porradas daqui e de acolá. Gritos de uma voz feminina.
O mascarado caiu no chão depois de ser surpreendido pelo adversário. Ainda em
estado de transe e de choque, Renato imaginou ter arremetido um soco na cara do
mascarado e procurou tirar-lhe a máscara, mas aquele afastou-se. Outra ronda de
luta livre. Gritos femininos dizendo parem com isto! Quero saber por que fazes isto,
homem – pensa Renato. Não ouve resposta. Após lutar durante algum tempo, sentiu
que estava em vantagem sobre o mascarado. O mascarado perdeu o revólver de
novo. Arranhes, mordeduras aqui e acolá. Renato pensava: porquê tudo isto? Será
vingança por ciúmes? Questões políticas? Ódios antigos? Rixas? Interesses
pecuniários? Uma combinação de tudo isso? Meu Deus, acuda-me!
Nenhuma resposta, nenhuma compaixão. Renato continuou em transe e perdeu o
conceito do tempo e de lugar e no pensamento ocorreu-lhe a ideia de que devia
pagar-lhe com a mesma moeda e, com a rapidez de uma águia, encheu-lhe a cara de

Domingos Barbosa da Silva 136


A estranha morte de um político

areia e aproveitou a ocasião para uma mordedura. Levantaram-se ambos e o punho


do Renato foi mais forte e fez o mascarado voltar ao chão. A visão não era ainda
clara e a escuridão tombou em cima deles. Murros sucederam e o mascarado sofreu
uma outra mordedura. A desorientação era grande. Os murros cortavam o ar sem
atingir o adversário. Outra vez, foi o Renato que sofreu um golpe maior e foi de novo
parar sobre a areia. Estavam fatigados de lutar e Renato só conseguiu ver um vulto
erecto à sua frente e um outro logo ao seu lado esquerdo choramingando. Renato
procurou levantar-se sem muita força. Depois, instantaneamente, descobriu que o
seu adversário tinha uma arma apontada e podia disparar.
Quando regressou ao mundo real em fracção de segundos, o homem mascarado
ainda estava à sua frente, exigindo os documentos. Nenhuma argumentação lhe saiu
do pensamento. A boca secou e a mente escureceu. Ajoelhou-se e pediu paz. Ficou
ajoelhado e procurou levantar-se quando uma bala quente e mortal lhe penetrou o
peito. Soube donde veio a bala. De que vulto. De que origem. Foi o desfecho final de
uma luta para engrandecer a pátria! Procurou levantar-se e balançou-se sobre os
seus pés fortes e depois, ajoelhou-se de novo. E perguntou: por que fazes isto?! O
vulto à sua frente já não estava lá. Sentiu-se abandonado e sem ninguém que o
socorresse. A voz não lhe saia da garganta. Procurou orientar-se, viu somente a
silhueta das rochas e ouviu o barulho das ondas.
Enquanto rolava na areia tentara avançar em direcção ao veículo e gritar com toda
a força que pudesse, mas não saiu nenhum som da sua garganta, contudo, ecoou na
sua mente um grito estrondoso que obrigou as aves a fugirem, as folhas das árvores
a caírem, as ondas do mar a excitarem-se e a força do vento a lamber a areia da
praia. De novo um outro grito explodiu dentro de si e ecoou em direcção ao céu e
reverberou em todas as direcções, causando o cair dos galhos das árvores sobre a
ilha, o circular das aves sobre a cidade, o fugir dos peixes em direcção às praias e,
depois, um silêncio prolongado. Ergueu as mãos, mas não tinha força suficiente para
mudar de posição. Sentiu-se abandonado. Estava só no mundo. Tentou apurar os
ouvidos para ouvir o bater do coração, mas só ouviu o som dum motor distante a
trabalhar. Por um instante, sentiu um impulso irresistível de fugir velozmente.
Todavia, acabou por desistir ao sentir que já não tinha força anímica. Sentiu a
garganta repentinamente seca e um suor frio a corre-lhe pela testa. A dor era nesse
momento mais intensa, o que era de esperar, porque depois de um acontecimento
do género dá-se o fenómeno que se chama tensão retardada. Todas as pessoas
sofrem disto ou, pelo penos, manifestam propensão para tal. Se uma pessoa que
conduz um carro escapar de um acidente por um triz, não sente nada nos primeiros
minutos que se seguem. No entanto, passado cerca de meia hora, dá-se a reacção e
começa a tremer, isto é, fica nervosa. É a isso que se chama tensão retardada. Num

Domingos Barbosa da Silva 137


A estranha morte de um político

outro instante, imaginara que estava a sonhar e, por mais que se esforçasse para
mover os membros inferiores, sentia-se como se estivesse sob os efeitos dum
pesadelo. A força de gravidade puxava-o para o chão. Procurou de novo forçar um
grito a sair da sua garganta, mas em vez do grito saiu-lhe um murmúrio quase
inaudível, como se receasse a presença de ouvidos indiscretos nas imediações.
Pressentiu a morte e tentou arrumar no espírito o que dispunha da última conversa
que teve como político, mas tudo se misturou com o medo da morte e tornou-se
uma confusão tremenda. Em forma de concha juntou as duas mãos como que em
prece e ouviu um distante piar de um mocho em desamor. Depois sentiu um arrepio
correr-lhe pelas veias, passando friamente pelo coração cada vez menos palpitante.
Entrou de novo em transe. Por um instante, recordou de novo a última conversa
política num fresco raciocínio e arregalou os olhos em direcção à formação grotesca
que as rochas formavam. Como relâmpago, passou na sua mente a última conversa
com o Presidente e o que podia ser a origem da sua perseguição, se política ou
passional. Veio-lhe à mente algumas réplicas da conversa do último encontro:
– Acredito mais no diálogo e na compreensão como uma forma de resolver
problemas de entendimento humano, problemas que se situam fundo no espírito das
pessoas. Talvez não esteja a acreditar em mim, julgando que estou a falar de modo
pouco científico, mas vou explicar uma coisa importante e básica. O homem não é
um complexo mecânico. Ele é mais do que isso. Na sua unicidade, é considerado
como um ser muito complexo, com direitos, deveres e dignidade humana, com
milhares de impulsos invisíveis e não detectáveis...
Repito: é melhor abandonares os teus projectos! Tudo isto são tretas.
– Uma questão muito complicada. Se me permita continuar...
– Boas intenções de facto, mas como é que nós podemos ver o interior das pessoas?
Estamos a perder tempo, homem! É melhor esquecer o assunto!
– Tem algo a ver com a entrega, afecto e devoção. Se queremos alcançar o coração
das pessoas...
– Vamos dar por terminado a nossa conversa. Temos coisas mais importantes a
fazer.
Depois de voltar ao mundo da dor, queria fazer um esforço para chegar ao veículo,
mas começou de novo a sentir uma dor dilacerante e uma corrente fria a descer-lhe
pelas costas. Sentiu-se rodeado de silhuetas que assombravam uma vida penosa,
projectados na escuridão do céu como pano de fundo. Recordou momentos
anteriores e pensou: Judith porque me abandonaste? Sentiu como se acordasse dum
sono pesado ou voltasse dum sonho demorado, pensando que talvez tivesse

Domingos Barbosa da Silva 138


A estranha morte de um político

decepcionado uma nação inteira, a sua família, os seus amigos, os seus irmãos, sim,
todos aqueles que nele depositavam uma enorme confiança. O sentimento de culpa,
de trair os seus melhores amigos, mas especialmente a nação, causara-lhe ainda
mais dores. Além disso, traí-los, é inaceitável e imperdoável. Aumentar as suas
dores, isto é, as dores de ter perdido ou fracassado para com os amigos íntimos, as
suas ânsias, os seus desesperos, as suas decepções, as suas tristezas, acorrentá-los
numa profunda lamaceira são coisas que o perturbavam. Ele é o único culpado da
situação e nada neste mundo poderia livrá-lo dessa responsabilidade. Sentiu a
presença da morte, um medo intenso gotejando friamente sobre o peito, entrando
e transpondo o portal do pensamento, recordando-lhe o mundo que vai deixar. O
cheiro da maresia invadiu as suas narinas e sentiu a condensação do vapor a
repousar sobre as pedras, sobre a areia, sobre as árvores e sobre a escuridão que se
baixou sobre a então funesta Prainha e Quebra-Canela, tudo harmonizado com o
espectro da sombra da morte. Os insectos da noite rodopiavam velozmente numa
forma circular para depois morrer. Depois de morrer surgirão novas vidas, novos
insectos. As aves silenciaram-se e tudo se tornou soturno.
Por uns instantes, estava a vislumbrar o mascarado afastar-se a coxear. O seu
destino era um carro parado na estrada mais próxima. O inimigo do mascarado
estaria morto dentro alguns minutos e com a sua morte viria a esperança para
muitos. Ele já não se ouvia nas proximidades. Desaparecera.
O carro que o esperara e o conduziria até Chã d’Areia onde tinha o seu Toyota Rav4.
Abriu a porta do mesmo e ligou o motor. Deu um suspiro de satisfação e olhou para
o espelho retrovisor quando acedeu à estrada principal e verificou que ninguém o
seguia. Não havia nenhuma luz de veículos a circular. Travou à frente do Hotel, subiu
as escadas com a passos largos, entrou no seu quarto e estirou-se na cama. Em
seguida levantou o telefone e marcou o número privado de Renato.
– Casa do senhor Renato Cardoso!
– Posso falar com o Dr. Renato?
– Não. Ele não se encontra em casa neste momento. Telefone mais tarde – disse
uma voz feminina noutro lado do fio.
O mascarado desligou o telefone. A caminho do Plateaupolis, Renato estava a ser
assistido pelos paramédicos. As guinadas da dor dilaceram-lhe o peito e as
têmporas. O cheiro do sangue e do ódio a invadiram-lhe as narinas. Não conseguiu
libertar-se das garras da morte. A dor lancinante cortou-lhe o coração como uma
lâmina. Sentiu como se um pontapé o atingisse na zona púbica, mais um no lado da
barriga, uma comichão na mordedura, os olhos e a boca cheios de areia. Sentiu

Domingos Barbosa da Silva 139


A estranha morte de um político

alguém a mexer-lhe no relógio de pulso, mas não o tirara. Ciao, bastardo, ouviu
Renato mergulhado numa dor que lhe atravessara o peito.
Percorrendo a estrada da praia de Quebra-Canela ao Plateaupolis, a sua imaginação
e o seu raciocínio transportaram-no aos tempos romanos, pensou no poeta Virgílio
e na sua obra Eneida. Naqueles momentos tudo lhe saíra da mente como um filme
em câmara lenta e tratara-se dos amores de Dido (Elissa), a rainha de Cartago e o
seu fim trágico, aquela infeliz viúva que fugira da sua pátria Tiros e residira na costa
nordeste de África. Ao contrário do Eneias, Renato não ia conseguir pôr em prática
os seus sonhos.
Acidentalmente, como que fosse a ironia do destino, Dido esteve cara a cara com
Eneias que andava com um projecto em mãos à procura duma localidade para
fundar uma nova cidade. A partir daquele momento, nasceu uma paixão enorme
pelo companheiro.
Dido sabia perfeitamente que não pertencia a Eneias, pois ele cavalgava noutra
direcção. Mesmo assim, ela entregou-se-lhe totalmente, sabendo que Eneias a ia
abandonar. Por que é que o ser humano se comporta como Dido? – Raciocinou.
Pensara que todos são fracos e que, no momento de uma decisão racional,
relegamos tudo para a parte mais escura da nossa mente e as nossas acções
irracionais, que normalmente não aceitamos como certas, como algo bom, surgem
na prática, isto é, cometemos um erro ou fazemos aquilo que não devíamos ter feito.
Arremessamos tudo para o inconsciente.
Contudo, Dido tinha uma perfeita compreensão da situação e achava que tanto ela
como Eneias foram arrastados pela tempestade do destino para Cartago. Ela tinha
uma vaga ideia do que se alojava no lado escuro do espírito de Eneias. Ela viu uma
espécie de imagem reflectida, uma espécie de aceitação, na alma daquele homem.
O lado masculino de Dido reflectia o ser intrínseco de Eneias. É como se o lado
espiritual masculino de Dido reconhecesse o seu irmão gémeo noutro lado, no
homem que Dido amava doidamente. Será possível que seja por isso que uma
mulher e um homem são atraídos um pelo outro? Por uma força inevitável e
implacável, muitas vezes mortal? São estes dois espíritos que as leis universais
recomendam a unir-se em amor?
É possível que seja isso que acontece quando encontramos aquela pessoa com quem
desejamos viver juntos. É possível que uma pessoa, intuitivamente, sinta ou
experimente o seu próprio espírito na mente de outra pessoa.
Dido, no silêncio da noite, sob o céu escuro da cidade de Cartago, podia imaginar
Eneias sentado sobre um trono alto e elevado. Acima dele estavam Lúcifer e

Domingos Barbosa da Silva 140


A estranha morte de um político

Serafins, “cada um com seis asas… Eles clamavam uns para com os outros, dizendo:
Santo, Santo, Santo é o Senhor Deus dos Exércitos, toda a terra está cheia da sua
glória”. (Isaías 6,2-3). Ao som desse brado, as dobradiças das portas estremeceram
e o templo enchera-se de fumaça. O pensamento dela foi para o da viúva Judite
sobre o pescoço de Holofernes, com o propósito de salvar uma nação inteira. Ela
curvou-se sobre os joelhos e disse: sou a nova Judite. Sou a filha de Mattan I, rei de
Tiro e irmã de Pigmalião que mandou matar o seu primeiro marido, Sicheus, de
quem cobiçava a riqueza. Aquele que fugir da minha presença vai ter o destino de
Holofernes.
O coração de Renato palpitava ainda mais lento, sentiu o vento frio a entrar-lhe de
novo pelas narinas enquanto rememorava a declamação, em sinopse, de um poema
de Castro Alves numa aula de história:

Lá nas areias infindas,


Das palmeiras no país,
Nasceram crianças lindas,
Viveram moças gentis...

Depois, o areal extenso...


Depois, o oceano de pó.
Depois no horizonte imenso
Desertos... desertos só...

E a fome, o cansaço, a sede...


Ai! Quanto infeliz que cede,
E cai p'ra não mais s'erguer!...
Vaga um lugar na cadeia,
Mas o chacal sobre a areia
Acha um corpo que roer.

Senhor Deus dos desgraçados!


Dizei-me vós, Senhor Deus,
Se eu deliro... ou se é verdade
Tanto horror perante os céus?!...

A noite era escura, o mar revolto e o mocho continuava a piar algures. Segurava
rijamente a mão de um dos paramédicos. A sombra do desespero passou-lhe na

Domingos Barbosa da Silva 141


A estranha morte de um político

fronte nebulosa. A caminho de Plateaupolis, fisicamente abatido, pegou o fio do


raciocínio de há pouco e sem esperança de executar o seu projecto ouvia a própria
voz interna a recitar:

Existe um povo que a bandeira empresta


P'ra cobrir tanta infâmia e cobardia!...
E deixa-a transformar-se nessa festa
Em manto impuro de bacante fria!...
Meu Deus! Meu Deus! Mas que bandeira é esta,
Que impudente na gávea tripudia?
Silêncio. Musa... chora, e chora tanto
Que o pavilhão se lave no teu pranto!21
Naqueles momentos de contorces e dores que não davam para gritar nem para pedir
ajuda, vislumbra a silhueta de dois vultos a seguir em direcção ao mar e a
desaparecerem. Já a vista de Renato não servia, a língua também não, senão para
balbuciar algumas palavras que exprimiam desespero, tormento e pressentimento
da morte. Recordava que passados alguns minutos, provavelmente tarde de mais,
lembrara minimamente que a acompanhante saiu toda molhada e
desesperadamente a correr à procura de ajuda para conduzir o vitimado ao Hospital
da Capital e ali ser socorrido. Mais tarde uma voz masculina que não podia
identificar, o ruído de um veículo que se aproximava... Já não é necessário muita
velocidade, porque já não me serve...tenho muita sede... estou cheio de dores...
levanta-me a cabeceira da maca... vou morrer... vou morrer e, por último, no
hospital dirigido à esposa: deixa a mão...São as últimas palavras pronunciadas por
um moribundo que não pôde descrever o assassino ou dizer uma palavra que nos
tirasse duma situação incerta acerca do assassinato em que até hoje se vive, a não
ser que o assassino era alto, preto e forte.
O assassino tomou um banho rápido e trocou de roupas. Da garrafa de Black Label
entornou meio copo de uísque que engoliu num trago e saiu do hotel. Imobilizou o
Toyota junto da esquina que dá para o hospital da Praia e apeou-se. Passado mais
de uma hora, encontrava-se na praça pública a passear quando um carro da Polícia
deslizou com velocidade de uma flecha cortando o ar e, por um instante, sentiu um
impulso irresistível de fugir velozmente ou de sucumbir num abismo que
mentalmente se abriu logo à sua frente, mas resistiu a ambas as alternativas. A ideia

21O poema foi escrito pelo poeta brasileiro, Castro Alves, em 1869, encontra-se publicado no
http://www.culturabrasil.pro.br/navionegreiro.htm

Domingos Barbosa da Silva 142


A estranha morte de um político

de suicídio fincou-se-lhe mais adentro no espírito e imaginara ele mesmo metido nas
estreitas tábuas de pinho que constituía um caixão a caminho do cemitério,
prevendo e olhando para os rostos dos que o iam, piedosamente, acompanhando
nas suas dores à sua última morada. Sacudiu de si essas imagens que lhe bailavam
no cérebro. Foi apenas uma edição aumentada do que tinha pensado em outras
ocasiões, poucas horas antes, mas agora com maior fundamento, com maior peso
na consciência. Foi uma fiel tradução do que lhe bailava no espírito e a razão das
suas preocupações, patente no modo pensativo de há pouco, como um raio de sol
filtrado por entre nuvens negras de tempestade. Porventura, este pensar que deixa
sulcos profundos na memória do homicida, venha a ser a sua maior condenação no
Tribunal da Consciência. Mais tarde, não podendo suportar a presença de outras
pessoas, voltou ao hotel. Pegou novamente do telefone e digitou um número de
telefone.
– É o senhor...
– Sim sou eu, caro amigo. Estou aqui apenas à espera da tua mensagem. Correu
tudo bem?
– Sim tudo perfeito. Preciso de um bilhete de viagem amanhã antes das onze.
– Não será melhor um dedo de conversa hoje mesmo?
– Para quê?
– Queria fazer-te umas perguntas...
– Não quero mais perguntas. O senhor sabe perfeitamente do que sou ou não
capaz. Nenhuma outra pessoa das minhas relações me conhece tão bem como o
senhor. Estarei amanhã no aeroporto à espera. Não é preciso ir lá pessoalmente, pois
não tenho mais declarações a fazer. Qualquer pergunta sobre o caso pode fazer-me
saltar do telhado e isto é pouco aconselhável para ambos. Boa noite.
Nero sentiu-se mal devido ao que tinha feito. Sentiu-se só naquele momento.
Sentiu-se enjoado e muito maldisposto. Se lhe acontecesse algo de mal naquele
momento, não haveria ninguém que o socorresse.
– Então, faz as malas e desaparece. Já nem eu te quero ver mais – disse o homem
doutro lado da linha.
Nero Bettencourt fechou os olhos. Sentiu-se anormal, meio suspenso. Parecia que o
seu espírito saía do corpo e pairava por cima a observá-lo. Pensou que se fechasse
os olhos conseguiria ver os pormenores nítidos da acção daquela tarde. Sentia-se,
de qualquer maneira, muito realizado. Era quase meia-noite e tudo tinha corrido

Domingos Barbosa da Silva 143


A estranha morte de um político

bem desde o início da tarde: o dinheiro, a viagem e a nova oportunidade estavam aí


à espera.

CAPÍTULO XIX

Domingos Barbosa da Silva 144


A estranha morte de um político

Comunicado das FSOP

Verificou-se, ontem, cerca das 19h30, nas proximidades da praia de Quebra-Canela,


uma ocorrência na sequência da qual, encontrou a morte o Dr. Renato Cardoso, que
foi Secretário de Estado da Administração Pública.
Tendo em conta a necessidade de esclarecer a opinião pública sobre essa mesma
ocorrência, o Comando-Geral das Forças de Segurança e Ordem Pública, feitas as
preliminares averiguações, comunica que:
A morte da vítima foi provocada por disparo de arma de fogo de pequeno calibre e
a curta distância;
Os indícios recolhidos até ao momento, apontam para a existência de um crime de
homicídio praticado por alguém que estaria à espreita de potenciais vítimas nessa
zona;
Conquanto os motivos que originaram o cometimento do crime não estejam ainda
completamente esclarecidos, os dados já recolhidos pelo Comando-Geral das FSOP
indicam que se trata de um crime de delito comum sem qualquer relação com as
funções públicas que a vítima exercia.
O Comando-Geral das FSOP, dadas as circunstâncias desta ocorrência, está a fazer
os maiores esforços para o rápido esclarecimento do caso. Praia, (30 Set. 1989).

Domingos Barbosa da Silva 145


A estranha morte de um político

CAPÍTULO XX

Domingos Barbosa da Silva 146


A estranha morte de um político

Era já tarde quando o agente Roberto se apressou entre grupos de curiosos que se
encaminhavam em direcção ao hospital para se inteirar da tragédia da tarde. O
agente seguia absorto em seus pensamentos e não foi impedido pela polícia que
orientava o fluxo de pessoas na subida do Plateaupolis e de todos os caminhos que
convergiam para o hospital. Passou o portão frontal e foi directamente ao local onde
se encontrava o malogrado. Deu várias voltas ao defunto sem dizer uma palavra.
Retirou um caderno de anotações da sua pasta onde tinha já registado os suspeitos
e acrescentou qualquer coisa.
O agente contornou mais uma vez o cadáver e anotou mais umas notas rabiscadas,
mais informações no seu caderno. Depois de poucos minutos observando o corpo e
as lesões, saiu sem dizer nada. Quando na rua, acendeu um cigarro Prince, enquanto
dava uns passos largos e apressados no largo do hospital meio distraído e meio
aturdido, estava decidido a apanhar o assassino o mais urgente possível. Não tinha
qualquer dúvida, se nada o impedisse de ter acesso ao lugar do crime, resolveria o
caso. Apagou o cigarro, tirou de novo o seu caderno da pasta e dirigiu-se ao portão
do nosocómio e ali estacou. Poucos segundos depois, voltou, nervosamente, ao
passeio do outro lado da rua. Escreveu à frente de cada suspeito as suas possíveis
conexões e envolvimento na morte de Paín. Dirigiu-se ao seu carro estacionado no
largo do liceu. De volta ao seu gabinete, sempre absorto nos seus pensamentos,
sentou-se sem dizer nada à sua secretária. Depois tirou uma cópia das anotações e
entregou à Glória, dizendo:
– Preciso de entrevistar todas a pessoas desta lista urgentemente.
– Entendido – disse Glória.
– Deixa-me saber o resultado dos teus contactos o mais urgente possível.
– Preciso de uns poucos minutos – assegurou Glória.
A secretária olhou para a lista de nomes e ficou confusa. Olhou para o chefe que já
não estava sentado na sua poltrona. O agente levantou-se e tornou-se a sentar meio
confuso e sem palavras! Sem dizer mais nada, saiu ainda mergulhado no seu
pensamento e começou a passear de um lado para o outro no passeio da rua logo à
frente do seu gabinete.
Parou um instante para anotar qualquer coisa no seu canhenho e, de repente, um
rapazinho de cara suja e roupas amarrotadas surgiu da escuridão e lhe coçou no
cotovelo dizendo: um homem deu-me isto para lhe entregar. Enquanto lia o pedaço
de papel, o menino tinha já desaparecido na primeira esquina da rua.

Domingos Barbosa da Silva 147


A estranha morte de um político

Apressou-se em direcção à esquina, mas já não viu ninguém. Leu o pedaço de papel
de novo e olhou demoradamente à sua volta, coçando a cabeça. Praguejou dentro
de si e seguiu o seu caminho!
Enquanto ia cogitando, veio-lhe à memória a imagem do homem que tinha
mostrado pouca resistência contra as flechas amorosas de Cupido durante tantos
anos, agora foi morto pelas mesmas flechas. A cidade estava a ser invadida por
rumores estranhos e percebia-se que a atenção pública estava de tal forma
direccionada a um alvo comum que não adiantava abafar o que se tornou tão claro
– o envolvimento de um elemento passional. Dirigiu-se depois à praça pública frente
à Igreja matriz e ficou a observar, andando de um lado para outro, reparando no
aglomerado de gente por todo o lado e no vaivém de veículos policiais.
Tirou do bolso o pedaço de papel e, mais uma vez, ficou ciente de alguém que,
possivelmente, iria aparecer a qualquer momento. Desconfiou que, por causa da
presença dos polícias, ninguém lhe iria contar o que se passara há poucas horas na
praia de Quebra-Canela.
De longe avistou a Marta a aproximar-se apressadamente e foi, imediatamente, ao
encontro dela.
A cara dela parecia uma pedra transfigurada à imagem humana. Estacou-se à frente
dele como um robot e curvou-se para lhe perguntar algo.
– Tens algo para me dizer?
– Tenho, mas aqui não, ando confusa – respondeu.
– Tens alguma razão para andares assim?
– Claro que tenho – assegurou Marta.
– Um menino entregou-me este pedaço de papel e desapareceu num instante -
explicou.
Marta inspeccionou o pedaço de papel, segurando-o com as duas mãos. Fixou os
olhos nos do Roberto. Achou que alguém estava a brincar às escondidas com o
propósito de baralhar a situação.
– Um menino? – Perguntou, enquanto deu uma olhadela à sua volta.
– Sim um menino com uma cara suja – respondeu Roberto.
– Estamos tramados. Não consegues identificá-lo?
– Desapareceu da minha frente num abrir e fechar dos olhos – respondeu frustrado
o Roberto.

Domingos Barbosa da Silva 148


A estranha morte de um político

– Deixa-me ver outra vez o bilhete!


– Aqui o tens:
“Se queres saber mais sobre o que se passou no KK segue-me até à praça pública, frente
à Igreja, ali indicar-te-ei um lugar seguro para falarmos a sério.”

E mais abaixo estava escrito:



As letras são definitivamente gregas. Vamos substitui-las com as letras do nosso


alfabeto:

Tnreuroocbneett

Roberto virou e revirou o pedaço de papel e não conseguiu decifrar o enigma.


– Já estou cá há mais de meia hora e nada aconteceu – acrescentou enquanto
metia o pedaço de papel no bolso da camisa.
– Acho que estou no teu caminho, vou-me afastar. Mas ouve, tem muito cuidado.
Da minha parte tenho muitas teorias sobre a cena que se passou nesse KK. A
evidência circunstancial é, muitas vezes, bastante convincente e estou convicta de
uma coisa: a morte deste homem for premeditada – acrescentou antes de se ir
embora.
– Não tenho outra teoria – assentiu o Roberto.
Mais uma vez tirou do bolso o papel rabiscado com a charada. Murmurou, incrédulo
e combalido, olhando para a amiga que ia atravessar a rua na passadeira à sua
frente.
– Isto não é um código – disse ele em voz alta. É uma cifra – acrescentou.
Marta voltou atrás para ver de novo o código. Revirou o pedaço de papel.
– Qual é a diferença – perguntou, voltando-se em direcção ao interlocutor.

Domingos Barbosa da Silva 149


A estranha morte de um político

– Uma cifra tem formações absurdas e tem a ver com letras. É uma cifra de
transposição. Uma cifra de transposição é um anagrama, pois está escrita com as
letras de uma outra palavra. Não tenho toda a certeza ainda, mas acho que é um
anagrama. Um anagrama é uma palavra ou frase feita com as letras de outra (caos
e saco são anagramas de caso) – argumentou Roberto.
Marta afastou-se sem virar a cara. Roberto ficou a transpirar de impaciência. Os
minutos tornaram-se longos e tinha agora mais coisas em mente do que quando saiu
do hospital. Sentiu-se inquieto no momento. Ficou a pensar se o bilhete fosse
propositado para lhe tirar da senda que conduziria ao perpetuador ou para o afastar
da ideia de entrevistar os suspeitos. Fez mil perguntas a si mesmo e acabou por se
sentar num banco da praça pública à espera que aparecesse alguém com coragem
suficiente para o enfrentar. Não se sentiu seguro quando a luz se apagou deixando
a cidade numa escuridão tremenda. Levantou-se e foi-se embora sem ter o esperado
contacto. Dirigiu-se à casa da Marta para a informar de que não havia ainda
quaisquer avanços ou novidades. Depois de sair da casa da amiga, dirigiu-se para o
seu gabinete e encontrou-se com a secretária no meio da escadaria. Pediu-lhe para
voltar ao escritório e deixar os preparativos da entrevista na gaveta até nova ordem.
Sentaram-se no gabinete num silêncio prolongado e, por fim, disse à Glória: vamos
tomar um café na Esplanada, para associar os pensamentos.

Domingos Barbosa da Silva 150


A estranha morte de um político

CAPÍTULO XXI

Os documentos

A triste notícia correu célere

Pela calada da noite do dia 29 de Setembro de 1989, debatia-se em todos os cantos


do país e em toda a diáspora cabo-verdiana sobre o assassinato de Renato Silos
Cardoso.
Pelas 21h00 horas da noite, já todo o país estava inteirado da morte de Renato. As
pessoas falavam baixinho em todos os becos e praças públicas. O país estava de luto.
Os grandes do poder foram os primeiros a lamentar a morte de um homem do
Estado. Um jurista de grande calibre, um político empenhado na reforma do estado
e um grande compositor musical de baladas eternas como Porton d’nos Ilha, Terra
bô Sabe, Alto Cutelo e outras. Um homem comprometido com o desenvolvimento
do país, sobretudo com a Justiça social para com os mais necessitados, para que
todas as pessoas e todos os simbrões tivessem o direito à sua gota de água, ao seu
pão de cada dia.
Hoje, mais de 30 anos após a sua morte, a melhor justiça que se pode fazer a este
compositor é cantar as suas mornas, erigi-lhe uma estátua em bronze, porque outras
formas de justiça já o abandonaram. Os homens já o esqueceram. O peso da sua
pedra sepulcral sufoca o grito da justiça e só resta a dor a dilacerar os corações mais
sensíveis dos amigos mais próximos e íntimos.
Marta e Fátima estavam sentadas junto ao monumento de Serpa Pinto a debater os
problemas sociais da ilha e a morte de um grande estadista, mas não chegavam a
uma conclusão convincente quanto aos motivos para um homem como Renato ter
sido assassinado. Procuravam encontrar os álibis dos seus mais ferrenhos e possíveis
inimigos e os lenitivos para as suas próprias dores. Fátima pensou em ir à rádio e à
televisão pedir uma entrevista para expor a sua opinião sobre o caso, mas não o fez.
Tinha lá as suas razões. Investigação urgente do assassinato ou ignorar o
acontecimento? - Pensava ela. Estavam a pôr em causa a virtude pessoal do
malogrado, isto é, a sua honra. Debatiam também, sobre problemas de ciúmes, da
economia e da política. Todos estes problemas induziriam um indivíduo assassino a
um erro crasso – roubar ou tirar a vida de outrem. O pior crime que existe no mundo

Domingos Barbosa da Silva 151


A estranha morte de um político

é o roubo – pensa Marta. Quando uma pessoa mata outra, ela está a roubar-lhe a
vida. Se negamos o direito a outra pessoa de pensar e actuar, estamos a roubar-lhe
a sua liberdade. A vida é uma oportunidade enorme e é pena que o homem só
descubra esta verdade quando é já demasiado tarde. Porquê tanta dor quando
podemos construir a paz! Porquê tanto ódio quando podemos amar-nos uns aos
outros? Porquê tanto desprezo quando podemos valorizar as infinitas virtudes do
homem? Porquê tanto sofrimento quando podemos construir a felicidade? -
Pergunta ela.

Domingos Barbosa da Silva 152


A estranha morte de um político

CAPÍTULO XXIII
Marta e Fátima

As duas amigas souberam da morte de Renato Cardoso e encetaram uma discussão


do mais sentimental que alguma vez foi narrada. Todo o dia de trabalho foi ocupado
pela conversa entre as duas. Com muitas lágrimas espremidas no fundo do coração,
algumas saltaram dos olhos de Fátima e desceram-lhe rapidamente até se perderem
no desfiladeiro do seu decote, jazendo algures dentro do seu sutiã.
Marta, sentiu o coração explodir-lhe no peito quando viu a dor enrolada nas lágrimas
da amiga. As suas, no entanto, correram-lhe silenciosas, sem um soluço, sem uma
palavra que exteriorizasse o seu pesar.
– Essa pessoa não tem coração – balbuciou Fátima. – Um homem como Renato
não é fácil de se encontrar entre nós – acrescentou.
Sentada com um olhar posto nas alturas, Marta perdia-se entre as suas reflexões,
desligando-se da realidade, invocava antigas memórias, fazendo surgir diante dos
seus olhos a figura gentil, recta e amável de Paín. Reconhecia autoridade no seu
olhar. Recordava as palavras por ele proferidas com tanta segurança e saber. O
conhecimento que dele brotava, entoava-se-lhe agora no coração como uma doce
melodia. Criava e pintava com a sua imaginação a felicidade que poderia ter trazido
ao povo das ilhas, a transformação da sociedade, as reformas na administração
pública e o destino que o barco de Cabo Verde poderia vir a tomar se a sua
contribuição política tivesse chegado a bom porto. Ela virou-se para sua amiga,
lamentando-se:
– Sabes, Fátima, há um gérmen de ódio no amor que pode vir a desabrochar mais
tarde em desamor. Os profundos reflexos que chegam do coração, não estão nas
mãos de nenhuma vontade humana. Nascem naturalmente da profundidade do ser.
É muito fácil activar o gérmen do ódio quando o amor corre o risco de se afastar de
alguém querido.
– Reconheço esse gérmen de que estás a falar. Mesmo debaixo das cinzas do
passado pode haver uma faísca, uma só, é suficiente para repetir o incêndio de ódio.
O ódio é o contrário do amor e é um sentimento intenso de raiva. Ele aparece sempre
em forma de antipatia, desgosto, inimizade ou repulsa contra uma pessoa, seja ela
amada ou não. Ele é tão primitivo como o amor. O amor são os braços fortes da mãe

Domingos Barbosa da Silva 153


A estranha morte de um político

divina, quando estes braços se estendem, caiem neles todas as almas. Padre António
Vieira reduziu as inúmeras paixões do coração humano a duas paixões capitais: amor
e ódio. E acrescenta: são dois afectos cegos e são dois polos em que se revolve o
nosso mundo. Mas esses polos são mal governados e mal geridos. Se os nossos olhos
vêem com amor, até o próprio diabo é formoso. Se escolhem colocar a lente do ódio,
até o anjo mais puro se torna feio e desfigurado. Com amor, o anão e o pigmeu,
agigantam-se. Com ódio, o gigante torna-se pigmeu. Se os olhos vêem com amor,
têm o poder de transformar o objecto amado no seu máximo potencial, no entanto,
se escolhem a perspectiva do ódio, aquilo que vêem é um pequeno fragmento que se
espelha a si mesmo, enfatizando, a cada vez que se olha de frente, toda a ira que
carrega dentro de si. – Disse o famoso padre.
– É nosso dever ou obrigação moral investigar esta tragédia que se abateu sobre
nós neste momento. Este dever pesa-me na consciência e vai continuar a pesar na
consciência da nação. Para mim, este dever é como a religião. A verdadeira religião
é o sentimento de dever. O dever não é, necessariamente, a luz da minha vida, mas
é a luz da alma ou algo maior que nós mesmos, que nos guia dizendo: eis aqui o rumo
que deves seguir, aqui é o caminho recto, eis aqui o trilho que conduz ao teu destino.
Pode não significar, necessariamente, o destino final de negativa conotação que
comummente se lhe atribui, mas sim, um lugar onde se chega quando se caminha
pela vida ouvindo a voz da intuição e deixando-se conduzir por um propósito que nos
transcende. Dever, no sentido de ter por obrigação; de ser provável e mais favorável
se agir de tal forma; de ter de agir de determinada maneira em estreito compromisso
com a sua consciência de estar obrigado a; ser devedor de; estar em agradecimento
a alguém, etc. Isto é, a obrigação de fazer ou deixar de fazer alguma coisa, imposta
por lei, pela moral, pelos usos e costumes ou pela sua própria consciência. Trata-se
do dever imposto pela consciência que fala. Assim como, temos dever de escolher os
nossos governantes, temos o dever de os tirar do poder. Temos também, o dever de
cumprir as leis, de respeitar os direitos inalienáveis de outras pessoas; educar e
proteger os nossos semelhantes; proteger a natureza; proteger o património público
do país; colaborar com as autoridades, etc. É, em suma, realizar o ideal do ser
humano. Este tipo de sentido de dever, surge com a necessidade de se estabelecerem
relações entre as pessoas, a fim de se criar uma ordem social capaz de promover a
acção colectiva rumo ao desenvolvimento, tanto a nível individual, na esfera pessoal
de cada um enquanto ser, como a nível social.
– É, então, nosso dever investigar o trágico acontecimento – concluiu.
– Segundo Immanuel Kant, segundo a sua teoria do ser e do dever ser, o dever ser
corresponde ao comportamento do homem de acordo com as normas, exteriores a
ele, com a justiça e com as leis do Estado. O dever ser, corresponde ao mundo ideal,

Domingos Barbosa da Silva 154


A estranha morte de um político

ou seja, o homem agindo de acordo com a justiça. Kant observa que existe uma dupla
legislação que actua sobre o homem, ou seja, uma legislação interna ou intrínseca e
uma legislação externa ou extrínseca. A interna, diz respeito à moral, obedece à lei
do dever, sendo de foro íntimo. Por exemplo, se ajudamos alguém esperando a sua
gratidão e o seu reconhecimento, não estamos a agir moralmente, pois esperamos
algo em troca da nossa acção. Neste caso, a nossa finalidade é obter a gratidão do
outro e não o bem em si mesmo. Agiríamos moralmente se, simplesmente, nos
guiássemos por um dever de fazer o bem, independentemente das consequências ou
possíveis retornos. Se há imperativos categóricos, aos quais não podemos nos
subtrair, impõe-se o reconhecimento de que somos livres para nos ser possível o
cumprimento do dever. Em outras palavras, se podemos agir em determinado
sentido, se podemos escolher agir de acordo com a lei universal de conduta, é sinal
de que somos livres. A prática do dever exige a existência da liberdade. Entenda-se
aqui, a noção de livre arbítrio, isto é, o conceito de sermos responsáveis pelas nossas
próprias escolhas e conduta de vida. Tal como a paz perpétua, a justiça universal, o
encontro do ser e do dever ser: não se trata de acreditar ou não, se é uma utopia ou
um sonho, trata-se de viver como se a justiça universal fosse possível e de caminhar
para ela. É nesta conformidade que quero agir segundo os imperativos categóricos
da legislação interna, obedecendo à lei do dever, à lei moral dentro de mim! –
Completou Marta.
– Estou a ver onde queres chegar. Estou a ver, também, que por mais que uma
pessoa seja habilitada, capaz, qualificada, poderosa, influente, etc., se não tiver o
sentido de dever, ninguém acredita nela. Mas uma vez, descoberta numa pessoa um
sentido vivo de dever e responsabilidade, sente-se imediatamente, uma crescente
confiança, a ponto de se ficar dependente dela. Foi o que Paín procurou incutir em
nós. Foi o que ele procurou incutir em nós – repetiu Fátima.
Ambas ficaram em silêncio durante uns segundos. Ambas estavam profundamente
comprometidas com o sentido de responsabilidade. É verdade que uma pessoa
responsável é capaz de mobilizar uma energia interna nas outras pessoas. Este
sentimento de dever ou obrigação moral que uma pessoa transmite a outra, é a
melhor impressão que se pode incutir nos outros. Neste sentimento encontra-se
toda a virtude, força, poder e bênção. Valorizamos um amigo em que temos
confiança. Por isso, podemos dizer que todas as qualificações que o homem possui,
sejam elas provenientes de universidades ou de escolas médias, todas parecem
situar-se na superfície, mas por detrás delas, há uma força que as mantêm vivas,
essa força ou espírito é o sentido de responsabilidade. Marta parou com os soluços.
Tinha a face virada para o céu. Lentamente, movera os seus olhos para o horizonte
onde o mar abraça eternamente o firmamento e disse em voz agradável:

Domingos Barbosa da Silva 155


A estranha morte de um político

– Tenho a impressão de que há algo passional envolvido neste drama. Aquele bom
homem tinha uma boa porção de esperança de ver esta terra num estado avançado.
Acho que a esperança nunca abandonou os homens. É na esperança que se resumem
todas as bênçãos da vida cabo-verdiana, toda a expectativa de uma vida mais
folgada no porvir. A esperança de um dia melhor, a esperança da chuva, de um bom
governo, de uma sociedade bem organizada, da liberdade de andar sem medo nas
ruas das cidades do país, etc. É nela que nós investimos por um melhor amanhã. Ele
sabia manter-se superior às esperanças de uns e às suspeitas de outros e com
serenidade ultrapassou muitas barreiras intransponíveis para muitos. Cristo foi
morto por ser tão bom, Sócrates foi morto por ser bom e muitos outros bons também
tiveram o mesmo destino trágico, mas a longo prazo, benéfico para a sociedade.
– Penso que há mais do que um móbil. O que se pode dizer do motivo político? Era
um concorrente a altos cargos! Não te esqueças desse pormenor! Era um homem
com bagagem, que incutia respeito a muitos, enfim, não quero especular sobre este
assunto arriscado. Mas havia nesse homem um espírito elevado. Há de se reconhecer
isto. Era responsável e era um homem de Estado capaz de mudar o destino de todos
nós – disse Fátima.
– Além disso, tinha uma proposta de mudanças na estrutura política que, segundo
os zunzuns da cidade, ainda não tinha sido publicada. Judith sabia e conhecia, pelo
menos em parte, os documentos e o fim a que se destinavam. Onde está a proposta?
Quem a tem? – Questionou Marta.
Pode-se pensar neste momento que o leitor amigo estará curioso em saber quem
era o infeliz ou a infeliz que matou Renato Cardoso e de quem as duas amigas falam
no diálogo que se segue, se é que já não tenha suspeitado que esse ou essa não era
nem mais nem menos que o Fulano ou Beltrano. O melhor é contentar-se com a
realidade. Se esta é brilhante, como a suspeita acima, tem pelo menos, a vantagem
de existir um(a) criminoso(a) e este(a) encontra-se nas imediações das suspeitas.
Não será preciso dizer ao leitor arguto que o autor mais se ocupa em mencionar
duas ou três causas ou móbeis e em expor, dentro do possível, alguns sentimentos
humanos e, até certo ponto, a lógica implicada, sendo apenas e só este o motivo que
o move na elaboração desta obra. Outra coisa não o animaria ou se atreveria a fazer
ou a dizer. É muito arriscado. Pelo menos foi na altura, muito arriscado. No entanto,
o que se atreveria, com muita coragem, seria por na boca das duas amigas
destemidas, as gotas de ódio que destilaram de um amor antigo. Fosse este amor
de teor político ou passional, para consolar a si mesmo e ao leitor interessado em
desvendar o caso em questão.

Domingos Barbosa da Silva 156


A estranha morte de um político

Marta confiava muito na sua intuição. Fechou os olhos para abrir as cancelas do seu
espírito, abriu a boca para falar, mas não achou palavras que dissessem o que
interiormente sentia; levou a mão ao peito para certificar se o coração batia e ficou
a olhar para Fátima com os olhos esbugalhados, secos e parados, a voz extinta, como
se a alma lhe fugisse. Caiu nos braços da amiga com rítmicos soluços. Esta consolou-
a no que pôde. A serenidade parecia morar-lhe na alma e reflectir-se-lhe na cara,
mas os sentimentos da amiga eram tal qual os da Marta. Ambas se sentiam
penalizadas e esses sentimentos eram punhais que se lhes cravavam no peito. Como
se reproduzisse os sentimentos interiores da amiga, muda como uma pedra,
sacudiu-a dando-lhe uma leve palmada na cara que a trouxe de volta para o mundo
real.
– Vamos dar um passeio para te sentires melhor – balbuciou Fátima.
Saíram em direcção à antiga Rua Sá da Bandeira. Contornaram a esquina que dá para
a praça pública. Deram duas voltas à praça e dirigiram-se para o miradouro de Serpa
Pinto, o lugar preferido onde costumavam conversar. Certificaram-se de que tudo
estava bem com a saúde e começou a desenhar-se-lhes no espírito a ideia de como
contribuir para aclarar a situação de desespero. Pensaram que a responsabilidade
tinha de estar algures. Toda a gente se questionava sobre isso, se a responsabilidade
da perda do paraíso devia caber a Eva ou a Adão.22 Uns, dizem que cabia a Eva,
outros, a Adão. Mas, com mais plausibilidade, a ambos. Ambos deviam ou devem
assumir a responsabilidade. Portanto, ambos são culpados. A culpa tem sempre
duas faces.
As duas amigas levantaram-se e, num silêncio de campo-santo, moveram-se em
direcção à saída, mas não saíram. Voltaram ao ponto de partida. Se alguma vez
tivessem de ser uma esponja de choque, era naquele momento. Estavam
melindradas! Estavam a tentar reconstruir na mente, com toda a concentração e
clareza, aquela tragédia que chegara sem avisar e sem dar tempo para despedidas.
Procuravam encontrar significado nas imagens que lhes acorriam à mente
inesperadamente. Nada claro que indicasse sequer remotamente uma causa, um
móbil, uma ligação passional ou uma ligação ao Governo, mesmo munido de um
arsenal tão vasto de conhecimento e de numerosas suspeitas. Tinham medo de
descobrir se se tratava, de facto, de um assassino contratado. Medo de mencionar
os móbeis e as consequências que dai advêm. O medo estratificado na textura social,
o medo que não se exprime em linguagem simples, mas sobretudo não se exterioriza
porque o povo é considerado mentecapto, incapaz de saber decidir o seu próprio
destino, de raciocinar e tirar as suas próprias ilações. Marta cravara na amiga, um

22Adão e Eva de Machado de Assis, www.bibvirt.futuro.usp.br.

Domingos Barbosa da Silva 157


A estranha morte de um político

par de olhos castanhos como se fossem punhais do mais duro metal fundido nos
magmas do nosso vulcão. Esse medo entranhado no espírito do povo era
comentado, em voz baixa, nas esquinas, nas cabeleireiras, nas barbearias, nas
repartições públicas e nos bares, e transformou-se num romance do destino,
correndo de boca em boca nas ruas, nos caminhos e nas estradas do nosso país, num
fatalismo sem par. Os amigos do Renato sabiam dessa aleivosia, dessa deslealdade
que o medo acomete aos braços fracos do povo. Mas que fazer? Fátima sabia de
muitas coisas que se passavam ao nível do poder, mas não tinha coragem para
denunciá-las, nem que fosse com a sua amiga do peito. Porém, o momento era
propício a desabafos. Desabafar era o único lenitivo para a sua dor no momento e
interrompeu o silêncio:
– Há quem faça de tudo nesta terra para salvar e conservar o poder e até dizem
que preferem andar sobre cadáveres a ceder o poder a outros, que fazem tudo para
conservar a ideologia partidária. Estou só a pensar alto. Ao mesmo tempo, temos de
dar uma nesga do nosso cuidado e pensamento aos familiares deixados. Também
temos de pensar no nosso pão de cada dia.
– É e foi uma tristeza, meu Deus. Que pena. Quem me dera ter-lhe podido valer
naquele momento. Prestava-lhe, pelo menos, a assistência na altura em que mais
necessitava dela. Gritava pelo socorro, emprestava-lhe um pouco do meu fôlego,
pedia-lhe o favor de não nos deixar, executava tudo segundo o esquema que fazia
parte da nossa maneira habitual de proceder com qualquer doente – disse Fátima
angustiada e com a mão sobre a cabeça.
– Ocorreu-me agora uma coisa interessante, Fátima. Lembras-te de Daniel e Judith
terem-se zangado connosco naquele dia, nas vésperas de São Pedro, só porque tu e
eu questionámos sobre a fragilidade das suas relações?
- Claro que lembro, Marta. Eu nunca mais toquei no assunto. Não quero voltar a
falar sobre isso. Dói-me até os ossos ao lembrar-me da atmosfera criada naquele dia
que se pretendia que fosse de festa.
O silêncio que se seguiu, começou a sentir-se, excessivamente, pesado. Marta
esfregava-lhe inconscientemente com a mão direita as costas. Não tinha muito a
dizer. Estava a etiquetar um homem que tinha na sua mente de vestuário
amarrotado e olhos negros, de expressão bravia e uma outra pessoa que o ajudou,
também, de indumentária mal-arranjada. Começava a chuviscar quando, de
repente, a luz da cidade se apagou. O apagão era uma coisa normal naquela cidade
e, por isso, não sentiram medo. Continuaram sentadas mais alguns minutos.
– Sabes uma coisa? - Inquiriu Marta. – Estávamos a falar sobre o medo. Vivemos
aqui atabalhoados entre um medo que nos entra olhos dentro e a escravidão dos

Domingos Barbosa da Silva 158


A estranha morte de um político

nossos temores. Perdemos, assim, a liberdade, a nossa total liberdade, porque


agimos mergulhados no medo. É um medo que nos cerca nas ruas, um medo que
encontramos nas esquinas da cidade com tamanhas orelhas e que captam as vozes
que ecoam das paredes vizinhas. Temos duas opções a fazer: ter coragem ou ter
medo. Estamos todos aqui predispostos a escolher ter medo, porque é mais
confortável a curto prazo. É o conformismo na sua forma mais simples. Adaptamo-
nos psicologicamente ao estado das coisas. Há, também, o que podemos,
claramente, chamar de medo político, isto é, um medo de deixar de poder controlar
o rumo das coisas, um medo da justiça e da liberdade, temendo um dever que a todos
cabe. Sabes porquê? Porque somos escravos dos nossos temores, porque perdemos
a liberdade e o senso de justiça. A verdade é simples. E, por ser simples demais, a
nossa alma não a atrai, porque a nossa vida é assim. Valorizamos mais o que custa
muito a obter. Simples e muito simples: neste momento, passeia o assassino algures
aqui perto, fazendo de conta que nunca há de ser julgado. E nós estamos
psicoadaptados e conformados com este estado de coisas. O país inteiro está
psicoadaptado, portanto, tudo soa bem. E melhor ainda para quem o matou ou o
mandou matar.
Começaram a andar de um lado para o outro. Fátima estacou um momento, afogou
a dor em lágrimas, cogitou no conceito de medo e observou:
– Sim. Se existe neste momento um medo da política é, também, verdade que existe
uma política do medo. Ao perder o medo de ter medo, mobiliza-se uma outra paixão
que nos incita a uma acção política responsável, emancipada e libertadora. É desta
paixão política responsável que Renato nos falava no último encontro. Sublinhava
que, quem tem coragem de ter medo, pode adquirir a esperança de o conquistar e
superar. Ao superá-lo, conquista o direito de lutar pela liberdade dos outros.
Curiosamente, ele falava como se adivinhasse a sua morte. Isto tem de ser feito antes
da morte – dizia. Ele nos ensinou a razão prática das coisas. Tudo o que se faz deve
ser voltado à acção. Em tudo o que se faz, deve entrar um pouco de humanidade. Ele
não acreditava em palavras vazias, dilatadas. Dizia sempre que aquele que teme
reflecte, portanto, o medo não é lá muito negativo. Temos medo de animais
selvagens, mas coragem suficiente para fugir se nos atacarem. Pois, do medo pode
nascer algo positivo, instrumental e pragmático. Instrumental, porque avalia os
meios para atingir os seus fins, julgando estes meios sob o critério da eficácia;
pragmático, porque avalia o valor do fim desejado sob a luz dos outros fins. O medo,
dizia ele, é o que nos leva a reflectir, negativamente. Parece-me que se estava a
referir ao filósofo Leo Strauss. Devemos superar o medo, de tal maneira que,
extraímos dele a essência da liberdade dos outros. Temos de ter a esperança de
superação do medo gerado pela razão prática, pois, o ser humano gera dentro de si

Domingos Barbosa da Silva 159


A estranha morte de um político

o processo de construção de sua coragem. Coragem de resistir àquilo que lhe causa
medo, mas também, coragem de obedecer àquilo que pode tirar-lhe o medo.
Somente agora percebemos a grande personalidade de Renato.
Fátima e Marta desejavam ser de novo testemunhas do amor de Renato pelo
mundo, com os seus sonhos e ideais, desejavam que o mundo lhe retribuísse esse
amor de volta, que fosse estimado por todos, mas queriam, sobretudo, vê-lo. Ambas
já não podiam conter as suas lágrimas, vertiam-nas incessantemente. Ambas faziam
de Renato a pintura mais lisonjeira do mundo, porque era a todos os níveis um
homem distinto, notável, de nobreza social e digno de estima para o povo das ilhas.
Recorda-se que Renato Cardoso era um grande político e diplomata que queria
introduzir reformas, não só, na administração pública, mas também, em todo o
sistema político vigente da época. Reformas que pudessem pôr fim aos grandes
exageros de alguns fanáticos que proliferavam no poder. Alguns desses fanáticos
infernizavam a vida daqueles que pensavam de um modo diferente. Faziam a
glorificação da ignorância e admitiam a mediocridade no sistema de governação.
Com o sistema adaptado a incutir e perpetuar o medo nas pessoas, conseguiram
permanecer no poder e colocar uma venda nos olhos e na mente do povo que,
pouco a pouco, se resignou ao sistema, acreditando que a verdade não pode ser
outra senão a que o partido único pregava.
Assim, como a morte de Amílcar Cabral, intensificou-se a luta pela independência
política, a morte de Renato Cardoso, apressou a chegada da liberdade de opinião e
consolidou a democracia em Cabo Verde. A polémica que se seguiu após a morte
dele mobilizou os meios intelectuais cabo-verdianos da época e rendeu a
democracia ao país. Não podemos deixar de mencionar que o modus operandi das
patrulhas ideológicas era tal que as pessoas eram silenciadas pela “omnipresença”
dos militantes, pelas milícias populares e pelo medo alastrado em todas as
estruturas sociais. Existia, portanto, um sistema de pressão, abstracto e concreto ao
mesmo tempo, um sistema de vingança, caso o vizinho ou amigo não se
comportasse segundo os critérios dominantes. As manifestações culturais cabo-
verdianas eram codificadas e, tudo o que escapasse a esta codificação, seria
necessariamente, patrulhado com um efeito refreador no desenvolvimento do país.
Isto era possível porque já estavam lançadas no extracto social as condições
necessárias e suficientes para a vigilância ideológico, aproveitando-se de relações de
autoridade ou mediante abuso de espaço público. O objectivo deste controlo social
era, portanto, convencer o povo para que se seguisse ou obedecesse as normas e os
critérios dominantes.

Domingos Barbosa da Silva 160


A estranha morte de um político

As patrulhas ideológicas entenderam e ainda entendem, em muitos países, que a


oposição às suas ideias é uma espécie de transgressão e procuravam/procuram
desencorajar quaisquer iniciativas que levassem ao questionamento de princípios
ou factos relacionados com a ideologia do partido único. O tal patrulhamento podia
empregar técnicas de intimidação, apelo ao medo e obstrução de espaço público e
privado, evoluindo eventualmente, para o conflito.
Alguns intelectuais reclamaram da acção das patrulhas ideológicas, por ocasião da
queda do Muro de Berlim, quando muitas ideias esquerdistas foram questionadas
perante factos concretos que então se apresentavam. Uma segunda vaga de
protestos apareceu, aquando do desmantelamento da URSS, sepultando muitos
conceitos tidos como sacrossantos. Convém esclarecer o seguinte:
Empregando a expressão patrulhamento ideológico no caso concreto de Cabo
Verde, uma versão mais amena do que a dos outros países do Leste europeu, ela
refere-se aos constrangimentos aplicados a indivíduos ou grupos divergentes das
ideias dominantes da época. Alguns apelidados de trotskistas, outros de cachorros
de dois pés, classificação que foi largamente usada na nossa terra através da
Juventude organizada para o efeito, através de tribunais de zonas e mediante a
instituição da denúncia sistemática de desvios ideológicos, inclusive dentro das
famílias. Os vizinhos policiavam-se entre si, muitas vezes, uns denunciando os outros
perante as autoridades constituídas, gerando uma verdadeira caça às bruxas àqueles
que discordavam do sistema.23
Assim pode-se dizer que a ausência de liberdade se expressava da seguinte maneira:
– Roberto – Acho que este ano vou votar num candidato da esquerda.
– Djonzinho – És um comunista! – Exclamou apontando o dedo, com os olhos fora
de órbita.
– Roberto – Então, vou votar num candidato da direita.
– Djonzinho – És um conservador danado! – exclamou, sublinhando com um gesto
de mão.
– Roberto – Talvez seja melhor não votar.
– Djonzinho – Tu és um omisso!
– Roberto – O irmão vai para aquela parte?
– Djonzinho – Tu és um indeciso! Mal-educado!

23 https://pt.wikipedia.org/wiki/Alemanha_Oriental

Domingos Barbosa da Silva 161


A estranha morte de um político

Desde os primeiros dias depois do assassinato se questiona se existe ou não vontade


política para desvendar a morte de Renato. Pensamos que não. Em lado algum existe
o mínimo de vontade política quando o regime é único e totalitário. Se existisse tal
vontade, mandar-se-ia chamar a acompanhante, cujo testemunho ainda constitui
um incógnito. Abrindo esta caixa, poderia saltar aos olhos de todos as informações
de que precisamos sobre quem matou ou mandou matar Renato. Este procedimento
seria a solução do mistério. O código inicial da resolução do mistério desta estranha
morte, está na posse da acompanhante. Do ponto de vista legal, é preciso
demonstrar de forma concreta como foi encenado e executado o crime. Assim,
descobriríamos se teria sido uma troca de favores a altos níveis, se foi uma simples
coincidência ou uma vendeta. Mesmo assim, ficaríamos com dúvidas, analisando o
comportamento dos colegas do Renato e o pouco interesse que o seu pensamento
despertou nos seus pares. Portanto, é preciso comprovar se os ex-colegas teriam
benefícios com o seu afastamento.
Esta questão, infelizmente, é distinta da discussão moral e não deixa em aberto
muito espaço para outras interpretações: ou as evidências existem e são cabais, ou
não existem e não há provas, apenas suposições. De hipóteses temos o suficiente
para criminalizar muita gente, mas por si só, não são provas suficientes e cabais.
Os custos da reforma no sistema político de então, foram demasiados altos com
perda de inúmeras vidas. Sendo assim, do ponto de vista legal, parece frágil a
acusação de um individuo que, segundo uns zunzuns, frequentava o local do crime.
Houve, portanto, pelo menos duas agravantes no caso: a acompanhante, apesar da
sua presença no local do crime, foi ilibada; um homem qualquer que,
ocasionalmente, apareceu no local do crime e que foi constituído réu, para ser,
pouco depois, libertado. Uma troca de favores ou o simples facto de agradar aos
outros? No que toca à acompanhante, pode ser moralmente injusto incriminá-la,
pois a própria lei concede o benefício da dúvida porque as nossas suposições não
contêm, em si, elementos probatórios que transformem a ex-amiga numa
verdadeira criminosa. Ilações podem ser feitas, mas são insuficientes para
fundamentar juridicamente, acusações tão graves quanto ao que se pretende
concluir deste caso tão tristemente negligenciado.
Por este e outros motivos, ficamos tão desapontados e inabalavelmente tristes por
não encontrar um lenitivo para as nossas dores e nem a resposta tão desejada.
Numa altura, em que, já podíamos dizer que existia um pacto de silêncio na
sociedade cabo-verdiana, um pacto passivo, onde qualquer um que se atrevesse a
romper este acordo tácito, pagaria um preço muito caro ou seria sufocado ao
extremo, usando-se para tal, uma táctica subtil e matreira. É o que se deduz do caso
de Renato Cardoso. E, esta dedução, encontra ecos nos escritos de muitos

Domingos Barbosa da Silva 162


A estranha morte de um político

pensadores cabo-verdianos que conviveram de perto com o malogrado. Alguns


destes ecos encontram-se nas diversas transcrições feitas no decorrer deste
trabalho.

Domingos Barbosa da Silva 163


A estranha morte de um político

Domingos Barbosa da Silva 164


A estranha morte de um político

CAPÍTULO XXIV

Um encontro desagradável

Dada atenuação da verdade, resultara aquele perene estado de luta interna, uma
luta abafada de receios, de indecisão e de amarguras secretas. Para dar o último
traço ao perfil das coisas e pôr à prova a sua natural sagacidade, contribuindo para
levar a cabo uma operação delicada e difícil, que exigia muita discrição e perícia,
Daniel percebeu que, uma diplomacia de grande alcance, deveria ser aplicada e, se
as coisas corressem bem, podia contar com um lugar de alta responsabilidade ou
com um futuro brilhante no estrangeiro ou mesmo no país, com a esposa.
– Quero sair do país e encerrar as coisas de uma vez por todas. A partir deste
momento, nós não nos conhecemos. Não quero mais ser parte disto tudo. Guardarei
para sempre o segredo profissional, mas nada mais – disse determinantemente.
Aquiles, percebendo a narração e os sucessos obtidos, compreendeu, como homem
que não tinha nenhuma comoção na voz porque não tinha coração, que tudo tinha
corrido como planeado. Olhou de frente para Daniel, como se o perfurasse com o
olhar e disse com frieza e sequidão:
– Vai a casa descansar e arrumar as tuas coisas.
Daniel sentiu que a torre que lhe tinha caído em cima, evaporara-se naquele
instante. Levantou-se e saiu apressadamente. Aligeirou os passos e quando Aquiles
se consciencializou do que tinha dito não viu mais que a ponta do casaco que se
perdia por detrás de uma porta. Aquiles causa-lhe desgosto através da capa rota da
sua importância, via-se-lhe palpitar a triste vulgaridade. Possuía apenas um
espectáculo brilhante de grandezas sociais embrulhado num saco de pompas e
amor-próprio. Mas Daniel Delgado, atravessando a rua, sentiu como se todos os
olhos do mundo estivessem a incidir sobre si e precisava urgentemente de se
esconder destes olhares curiosos. Precisava de um refúgio urgente para fugir às
pretensões de Aquiles. Preferia nunca mais ver aquele homem frio e calculista que,
segundo se diz, é um funcionário de alta posição.
Aquiles recolheu-se ao seu escritório e deu por si batendo os dedos de satisfação
sobre a escrivaninha. Imagine-se, por isso, o seu estado de espírito depois da
declaração do Daniel. Foi um presente do céu naquele momento. No entanto, estava
satisfeito consigo mesmo. A sua fasquia não era alta, as tristezas do seu coração não

Domingos Barbosa da Silva 165


A estranha morte de um político

tinham a decência de um homem que cuida dos interesses da sociedade. Porém, no


meio de tanta reflexão, soaram-lhe na memória as palavras de Daniel Delgado.
Ouvia-as de novo ecoar na sua cabeça, tal qual ele as tinha proferido. Fizera-o de
uma maneira afável e respeitosa, o que lhe recordava o carácter cortês de Daniel.
Embora não lhe pudesse ler o fundo da alma, via-se nele uma grandeza de espírito
na forma como obedecia às ordens do seu superior.
Aquiles levantou o auscultador do telefone e tornou a colocá-lo no seu lugar. Hesitou
por três vezes, mas tinha capacidade para dominar-se e excluir todo o sentimento
do seu coração. Estava certo de que ninguém o escutava, a não ser as paredes mudas
do seu gabinete.
Ia, no entanto, dar a sua demão no processo em curso. Encheu-se de coragem e
arrependeu-se por ter pensado longo tempo naquilo. Arrebatou o telefone e digitou
o número pretendido. Alguém atendeu do outro lado da linha. Balbuciou algumas
palavras discretas e sentiu a face a ser iluminada pelo sol contemporâneo de Adão,
de Cristo e do último homem que há de vir habitar esta terra. O sol que iluminava o
dia, o dia prestes a afogar-se no seio da noite.
Um grande passo estava dado.

Domingos Barbosa da Silva 166


A estranha morte de um político

CAPÍTULO XXV

Sobre a igreja satânica – Aquiles, o chefe

Nos princípios dos anos noventa, uma amiga e colega do Djonzinho, que era uma
ferrenha Testemunha de Jeová, contou-lhe que o país em que mais aumentou o
número de Testemunhas de Jeová (TJ) era Cabo Verde. Não acreditava, mas anos
depois, confirmou que era verdade, que uma série de seitas religiosas surgiram no
país e que estavam todas em crescimento. Este aumento do número de seitas
religiosas veio explicar uma série de outros acontecimentos no país. A liberdade
religiosa é uma coisa boa, mas é boa a consequência desta liberdade? Vive o povo
mais feliz? É esta felicidade parte do desenvolvimento do país? Aquiles e Dário,
apesar de pertenceram ao mesmo grémio de amigos, tinham ideias diferentes
relativamente à maneira de alcançar a felicidade numa sociedade. Dário não é
membro activo da seita, mas conhece bem os contornos da organização e simpatiza
com ela. No dia em que a igreja satânica completou 2 anos, houve palestras e orgias.
Depois do jantar, o senhor Delgado e membros de outra congregação, travaram uma
acesa discussão sobre a existência de um deus diferente. Delgado começou por
perguntar aos outros a seguinte questão:
– Qual é a função da vossa congregação e quais são as estratégias de satanás para
destruir o homem?
– Deixa-me primeiro iniciar-te numa coisa muito importante. Há aqueles
fenómenos do Mal contra o Bem que preocupam o ser humano. É uma luta
constante. Nós, que estamos na tribuna do Mal, pensamos que o Bem não existe e,
se existe, anda muito fraco. Basta olhares à tua volta. Tantas coisas temíveis que
acontecem! Mas, frente à frente, encontra-se a tão chamada tribuna do Bem a
desafiar-nos constantemente. Os satanistas prevêem o futuro e sabem que não
podem vencer Deus nem o Bem, mas trabalham em colaboração com os seus anjos
com muito afinco para levarem o maior número possível de pessoas para o lado do
fogo do inferno, aquela prisão eterna.24 Portanto, não temos nada a perder no nosso
grupo. O nosso propósito é desviar o máximo número de pessoas. Nosso objectivo
maior é afastá-las de Deus. Isto é possível através de uma estratégia bem camuflada,
estimulando-as a praticar o mal e confundindo suas ideias com um mar de filosofias,
57 Ezequiel 28:19; Judas 6; Apocalipse 20:10,15

Domingos Barbosa da Silva 167


A estranha morte de um político

pensamentos e religiões cheias de mentiras, misturadas com algumas verdades.


Pedimos ao Lúcifer e seus mensageiros travestidos, para confundir aqueles que
procuram Deus. Tornamos a mentira parecida com a verdade, ao repeti-la centenas
de vezes, induzindo o homem ao engano e a ficar longe de Deus, achando que está
perto. Além disto, fazemos com que a mensagem de Jesus pareça uma tolice
anacrónica, tentamos estimular o orgulho, a soberba, o egoísmo, a inimizade e o
ódio dos homens. Trabalhamos arduamente com o nosso séquito para enfraquecer
as Igrejas, queimando-as, profanando-as, lançando divisões, desânimo, críticas aos
líderes, adultério, mágoas, friezas espirituais, avareza e falta de compromisso.
Tentamos destruir a vida dos pastores, principalmente com o sexo, ingratidão, falta
de tempo para Deus e orgulho.25
– Quem criou o satanás?
– Foi criado pelo próprio Deus, bem antes da existência do homem.26
– Como era o satanás quando foi criado?
– Veio à existência já na forma adulta e, como Adão, não teve infância. Era um
símbolo de perfeição, cheio de sabedoria e formosura e suas vestes foram
preparadas com pedras preciosas.27
– Onde morava o satanás?
– Ele morava no Jardim do Éden e caminhava no brilho das pedras preciosas do
monte Santo de Deus. [Ezequiel 28:13].
– Qual era a sua função no reino de Deus?
– Era como querubim da guarda, ungido e estabelecido por Deus, sua função era
guardar a Glória de Deus e conduzir os louvores dos anjos. Um terço deles estava sob
o seu comando.28
– Alguma coisa lhe faltava – perguntou Delgado?
– Aquiles muito reflexivo, diminuiu o tom de voz e, pensativo, respondeu. Não, nada
lhe faltava.29

58 1Pedro 5:8; Tiago 4:7; Gálatas 5:19-21; 1 Coríntios 3:3; 2 Pedro 2:1; 2 Timóteo 3:1-8; Apocalipse
12:9.
26 Ezequiel 28:15.
27 Ezequiel 28:12,13.
28 Ezequiel 28:14; Apocalipse 12:4.
29 Ezequiel 28:13.

Domingos Barbosa da Silva 168


A estranha morte de um político

– Qual é a causa ou o que aconteceu quando ele foi afastado da função de maior
honra que um ser vivo poderia ter?
– Isso não aconteceu de repente. Um dia, ele viu-se nas pedras (como espelho) e
percebeu que sobrepujava os outros anjos (talvez não ao arcanjo Gabriel) em beleza,
força e inteligência. Começou, então, a pensar como ser adorado como Deus e
passou a desejar isto no seu coração. Do desejo passou para o planeamento,
estudando como firmar o seu trono acima das estrelas de Deus e ser semelhante a
Ele. Num determinado dia, tentou realizar o seu desejo, mas acabou por ser expulso
do Santo Monte de Deus.30 Pois o orgulho, a vaidade e o narcisismo fizeram-no cair.
– Mas o que é que detonou finalmente da sua rebelião?
– Quando percebeu que Deus estava para criar alguém semelhante a Ele e, por
consequência, superior a ele, não conseguiu aceitar o facto. Manifestou, então, os
verdadeiros propósitos do seu coração.31
– O que aconteceu com os anjos que estavam sob o seu comando?
– Eles seguiram-no e, também, foram expulsos. Formaram o império das trevas.32
– Como ele encara o homem?
– Ele tem imenso ódio da raça humana e faz tudo para destruí-la, pois sente inveja.
Acha que ele é que deveria ser semelhante a Deus. [1Pedro 5:8].
– Aquiles, compreendo que o que dizes foi elaborado com base nos versículos
bíblicos, por isso é uma ilustração da mais pura verdade. Mas por que razão é que
vocês pegam apenas na parte do Livro Sagrado que fala do satanás? Também se
encontra algo de bom nos Hebreus [3:7,8] onde o Espírito Santo diz: ”se ouvirdes,
hoje, a sua voz, não endureçais os vossos corações”. Não justifica a veneração ao
satanás se o próprio criador nos adverte de tal perigo. Diz, também a Bíblia, que
“ninguém tem maior amor do que Aquele que dá Sua vida em favor dos Seus amigos”
[João 15:13] e nos ensina a amar os nossos próprios inimigos. Portanto, Jesus no
Novo Testamento, mudou tudo aquilo que contribuía para dividir os povos,
lapidação, olho-por-olho...
– Sim, naturalmente.
– Vamos ver uma coisa importante sobre a tua vida privada: és membro da igreja
satanista ou és membro da igreja protestante?

30 Isaías 14:13,14; Ezequiel 28: 15-17.


31 Isaías 14:12-14.
32 Apocalipse 12:3,4.

Domingos Barbosa da Silva 169


A estranha morte de um político

– Sou membro das duas.


– Pode uma pessoa ser membro de dois partidos ao mesmo tempo, se são
contraditórios os seus ideais?
– Não está escrito em lugar algum que é proibido ser membro de dois partidos ao
mesmo tempo.
– Porque é que és membro na igreja satânica e protestante ao mesmo tempo?
– Porque eu creio que tanto Deus como Satanás existem. Preciso de ambos. Para
poder estar mais seguro pertenço a ambos partidos já que não é proibido.
– Então vives no temor por toda a eternidade. Vives na hipocrisia, pois não há
remédio que cura este mal – asseverou Delgado.
– Não, vivo na certeza de que tudo existe, apesar das minhas declarações feitas
anteriormente que dizem o contrário. É para vos baralhar – concluiu Aquiles.
Muitos dos membros do grupo satânico não acreditavam na existência do Mal nem
do Bem e que não se pode julgar os outros pelas suas opções ideológicas. Vivem
num vácuo pertencente ao maniqueísmo, o relativismo moral que preceitua a não
existência do Mal e nem do Bem, pois para eles, não existe nem a sanidade moral
nem decência humana. Por isso, o mundo pode disseminar os males sociais, pode
aceitar de mãos cruzadas tudo de grotesco que acontece porque tudo está
determinado desde o princípio do tempo.

CAPÍTULO XXVI

Domingos Barbosa da Silva 170


A estranha morte de um político

Um investigador de poucas palavras

Roberto era um homem magro, de olhos fundos e acastanhados, cara cheia e a boca
fazia uma reentrância que dava um aspecto de estar sempre a sorrir. Nos momentos
de investigação mostrava uma paciência sem igual, de olhar atento e detalhado,
como se prestasse mais atenção do que os outros, interrogando e teimando em
prosseguir. Quando mergulhado em cogitações, exclui a presença de todos para se
concentrar exclusivamente no objecto ou na ideia sobre a qual reflecte. Um homem
de poucas palavras, mas de cogitações profundas. Quando fala, não lhe saem
asneiras pela boca. Um homem que luta contra a alienação do homem comum,
contra aqueles que subvertem as conquistas milenárias da civilização, pisando a
ética, espezinhando as instituições democráticas, os direitos naturais e universais,
desdenhando a dignidade dos outros. Um homem que crava o seu olhar nos
problemas da classe inferior que sempre erra aos olhos da classe superior,
carregando sobre os ombros todos os males da sociedade.
Numa tarde coberta de nuvens espessas, sentados na Esplanada da praça pública da
capital do país, estavam todos animados em conversas, isto é, numa tertúlia de
amigos. O vaivém de pessoas estava animado pela temperatura agradável do dia.
As pessoas deitavam um olhar curioso, invejoso e profano sobre o grupo de amigos.
Roberto tinha o costume de usar longos cabelos que lhe davam pelos ombros. Os
olhares penetrantes eram uma forma de desaprovação. Mas a desaprovação era
mútua. Sentiu aqueles olhares sobre si, ouviu o eco das zombarias e os comentários
depreciativos! Ele parece uma mulher, diziam. Era, obviamente, sobre o cabelo que
os transeuntes estavam a falar e a criticar. O cabelo, longo e encaracolado, estendia-
se-lhe sobre os ombros. Ele nunca ostentava uma atitude pretensiosa. Não dava
qualquer atenção ao que diziam sobre o seu cabelo. Sabia que nada neste mundo
fala mais sobre uma pessoa do que o cabelo. Basta perguntar às mulheres. Elas
podem passar horas a arranjá-lo com grampos, fivelas e com engenhosidade. Em
tempos remotos, o cabelo definia-nos como seres humanos, na medida em que,
definia o nosso estatuto social e o nosso lugar na sociedade. Os egípcios, os
romanos, os gregos e até os Vikings, com a ferocidade implícita no cabelo e na barba,
invadiram outras terras destruíram suas culturas que não ostentavam o mesmo tipo
de cabelo. Na época renascentista, os agitadores sociais da época, usavam sempre
cabelo longo. Para os barrocos e os romancistas, os gregos e troianos e outros povos
em todas as épocas, o cabelo e o penteado foram importantes marcadores sociais.
Roberto ao deixar o seu cabelo crescer daquela maneira, mostrava ao mundo o lugar
que ocupava na sociedade segundo os que o criticavam. Não só. A aparência das

Domingos Barbosa da Silva 171


A estranha morte de um político

pessoas conferida pelo cabelo, em certos meios, mais do que a cor da pele, define
as pessoas como sendo de classe mais alta ou mais baixa. Se são longos e se
estendem até às costas, são da classe alta, se encaracolam, são da classe baixa,
segundo a psicologia da classe que colonizou as nossas cabeças.
Lembremo-nos da barba do rei que pagou todas as dívidas duma nação. A barba é
usada em quase todas as religiões como símbolo de poder, de ser diferente e, muitas
vezes, de beleza e marcador social. Aqueles que pretendem ser diferentes cortam o
cabelo curto, talvez como forma de protesto, de diferenciação. Alguns cortam o
cabelo curto para irradiar uma masculinidade que, simultaneamente, indica
conformidade com determinados grupos sociais que os distanciam do status quo
estabelecido. Por que insiste a tradição militar em todos os países para que os
soldados andem com o cabelo curto? O cabelo curto, neste caso, incorpora um
indivíduo no anonimato de massas, na submissão de classe, na inferioridade
hierárquica. Porém, Roberto não dava atenção a nenhuma dessas categorias, não
tinha pretensão de ser diferente. Não tinha, simplesmente, tempo para cortar o
cabelo.
Roberto questionava certas atitudes que surgiam na sociedade actual e dizia sempre
que era difícil imaginar a coragem que era necessária para enunciar um projecto ou
projectos que embatiam contra o comportamento Todo-Poderoso que cimentava a
estrutura política de então. Isto é, propor um projecto nacional que contrariasse o
que todos os bons militantes aceitariam como a palavra que vinha da Luz e Guia,
palavra que transcendia todas as verdades e valores do mundo. Quem iria crer nas
promessas desses projectos?
A ousadia de Renato era grande. A sua boa índole e o seu brilhante aproveitamento
nos estudos, continuaram a granjear-lhe, no entanto, a simpatia e o aplauso dos seus
melhores amigos que também estavam perto da cúpula do poder.
Já na época decorria a profanação das igrejas. Os criminosos não eram perseguidos
como deviam ser. Uma onda de profanações abateu-se sobre lugares santos e a
nação inteira tremia de medo. Bem, era uma gigantesca luta interna. Os movimentos
satânicos estavam já estabelecidos no país. Era então de esperar que quem ousasse
contradizer as normas estabelecidas correria o risco de apanhar um castigo severo.
Se a verdade de um projecto chocasse contra a verdade da Luz e Guia do povo, então
aconteceria o que aconteceu com Giordano Bruno, que foi condenado a morrer na
fogueira por ter sustentado que o espaço é infinito e está povoado de estrelas tão
grandes como o Sol. Dizer que existe uma verdade que transcende as da Luz e Guia
era um problema que desafiava uma elite que não queria largar o poder absoluto.

Domingos Barbosa da Silva 172


A estranha morte de um político

Renato, como pessoa de cariz religioso, discutia frequentemente com Aquiles e seus
acólitos, mas sempre que os deixava, dizia umas palavras dentro de si e orava. Assim
fez, também, naquele dia em que deixou o gabinete do Presidente da República.
Orava com o fervor de um santo. Mais duradoiro do que qualquer monumento que
se possa erigir para perpetuar a memória de uma pessoa que foi o legado da sua
coragem. A vida de Renato Cardoso, tão cheia de esforços e dificuldades, tão cheia
de fé e de esperança, tão cheia de clareza espiritual, pode sintetizar-se na expressão:
per aspera ad astra, que significa: através das dificuldades, a caminho das estrelas.
Como cristão, foi sempre firme na sua crença e nas suas palavras. Sempre que
acabava de fazer um projecto, ter uma conversa difícil, ler um livro ou terminar o
trabalho diário, recordava a oração de Johannes Kepler: Meu Deus, graças Vos sejam
dadas por nos guiardes para a luz da Vossa glória, pela luz da Natureza. Realizarei a
tarefa que me destes e regozijo-me na Vossa criação, cujas maravilhas me
permitistes que revelasse aos homens. Amem.
Porém, as sombras do infortúnio estariam a girar à sua volta. Pressentiu-as por várias
vezes. No entanto, o seu ideal era maior do que a própria vida, algo maior que si
mesmo. Tinha muito claro na sua mente o cenário de um país plantado no Atlântico,
onde cada um tem direito à sua gota de água, à sua colher de sopa, à sua
catchupa,33ao seu pedaço de terra, ao seu bom nome, à liberdade de se exprimir, de
pensar, de agir, sem vender a sua consciência para ter estes direitos. O seu modo de
agir nascia do amor pela pátria. O amor mantinha os seus desejos unidos. Desejos
de criar uma nova pátria de todos e para todos. Comportava-se como um homem
comum, não para julgar os homens de estrelas ao peito, mas para levar e transmitir
a mensagem dos homens da rua. Para levar a poesia solta na rua aos homens do
poder, mas estes, bastantes vezes, foram surdos e cegos. Para ele, a Luz e Guia eram
algo mítico usado para desprezar a noção da dignidade, de direitos humanos e da
justiça social, para se distanciar do povo cabo-verdiano. Renato desprezava esta
visão do mundo que contradiz a sua noção tradicional da justiça. Era um homem de
costumes, de tolerância, mas sobretudo, de Paz.
No documento que constituía o Projecto sobre a restruturação do poder e o caminho
para o pluripartidarismo em Cabo Verde, a parte que mais embatia contra ou
desafiava as instituições estabelecidas era A Estrutura do Sistema Político, onde
propunha uma reestruturação do sistema vigente. Estava escrito numa linguagem
que só os intelectuais entendiam. Foi feito, propositadamente, para evitar ser
importunado pelos principiantes na política. Ele sabia que a maior alegria que existe
no mundo é a de construir uma ponte entre o sonho e a realidade. Estava em vias

33Comida típica cabo-verdiana feita à base de milho.

Domingos Barbosa da Silva 173


A estranha morte de um político

de uma luta para construir tal ponte de ligação e sabia como fazê-lo, mas estava
também com medo, sentimento este que enfrentou até ao último fôlego da sua vida,
medo.

Daqueles míticos “filhos melhores”


Antes, estrelas entre estrelas no oriente,
Mas, filhos da terra, de outros amores
Que guiaram liberdade a um povo crente.

CAPÍTULO XXVII

Domingos Barbosa da Silva 174


A estranha morte de um político

Diogo, Sombra, Penumbra, Dário e Aquiles

Um indivíduo de estatura normal, com reputação de garanhão de primeira classe,


trabalhava num departamento de alto nível. Ganhava bem, o que servia para
satisfazer todos os seus deveres financeiros. O amigo Dário Rezende falava-lhe
sempre do dinheiro que lhe passava à frente todos os dias e questionava sobre o
porquê de ele não ser rico como os outros incompetentes que andam por aí. Dário,
sendo também contabilista, sabia perfeitamente de que maneira parte daquele
dinheiro podia mudar de rumo sem dar nas vistas. Era só um ou dois zeros a mais
aqui e acolá, e tudo estava arrumado. Qualquer coisa que corresse mal era só dar
salto a casa do Aquiles e tudo seria arquivado com um simples despacho.
– Se tu quisesses ficarias rico enquanto o diabo esfrega os olhos – disse-lhe o amigo.
– Olha, nunca tinha pensado neste assunto. Prefiro dormir uma noite com toda
tranquilidade e com a consciência limpa, a desviar coisas públicas. Acho, além disso,
que é imoral e um grande pecado desviar os bens comuns.
– Não estou de acordo contigo. Toda essa gentinha, teus colegas, andam aí com a
conta bancária cheia e, além disso, quando se tem uma conta bancária com algumas
cifras a mais, a gente dorme melhor, isto é, com a consciência tranquila!
– Os teus conselhos são bons e são maus ao mesmo tempo, mas não quero ter a
consciência de ladrão, mesmo que ninguém descubra. Sempre fui um indivíduo
honesto e quero continuar no meu trabalho ainda por algum tempo.
– Onde está a tua honestidade quando andas a denunciar o teu melhor amigo, o
rapaz da polícia? Estás a mostrar uma moral dupla quanto à tua vida de homem
honesto? Digo-te uma coisa, há por aí muitos homens, nossos amigos comuns,
capazes de te ensinar a fazer uma rápida limpeza. Eles têm prática de sobra! Quanto
a isso de limpeza, acho que estás a mostrar demasiada honestidade. A honestidade,
neste caso, está em razão directa com a tua estupidez – afirmou Dário.
– Não estou a entender-te. Pensava que tu andavas a defender os interesses do teu
patrão, como eu ando a salvaguardar os da comunidade. Quero continuar a ser
honesto, perante Deus e minha consciência. Esta é a minha riqueza – contra-
argumentou.
Dário engoliu a resposta secamente, mas não podia deixar de fazer qualquer
comentário sobre a postura do amigo e prosseguiu:

Domingos Barbosa da Silva 175


A estranha morte de um político

– Já viste algum honesto rico a não ser que tenha ganho uma lotaria ou tenha
herdado uma fortuna? Eu nunca vi um. Essas coisas de consciência e Deus estão
somente na tua cabeça. São tropeços para ti – retorquiu.
– Já viste algum ricaço feliz? Talvez contados nos teus dedos! A maior parte deles
vivem condenados pelo Tribunal da Consciência. É o pior tribunal que existe. Se eu
roubar hoje, pode ser que amanhã sejas a primeira pessoa que me vai acusar e atirar
pedradas. Não esqueças que onde há amor e amizade há, também, ódio e inveja.
Além disso, vivo bem na minha humildade, com uma casa pequena, mas coração
grande, com alegria na minha miséria e escassez. Quero que os meus filhos brinquem
na companhia dos que exigem pouco para serem felizes, mas conseguem fazer uma
grande festa com quase nada. Isto tudo lhes dará mais prazer de viver e incutirá a
criatividade para viver a vida de forma alegre – respondeu Diogo.
– Faz o que mais te apetecer. Se a miséria para ti é melhor que a riqueza, tudo bem.
– É o que vou fazer, meu caro amigo. Não quero viver dessa maneira. Sabes, há
muita coisa na vida que à primeira vista parece contradição. Não há nada pior para
os nossos filhos que crescer na ausência completa de conflitos, de crescer sem
dificuldades, de viver superprotegidos, sem encontrar dificuldades nos caminhos,
sem adquirir uma gripe porque dessa maneira adquirem defesas para sobreviver na
sociedade de hoje. Olha para os jovens de hoje! São todos superprotegidos, os pais
dão-lhes tudo o que eles apontam com o dedo indicador, mas são insatisfeitos e
ansiosos. Muitos deles são hipersensíveis. Não querem levantar um dedo para
adquirir algo ou para ser alguém, não querem estudar nem procurar trabalho,
porque acham que não é preciso. Por outro lado, as dificuldades da vida, as
roçaduras e atritos com os irmãos, as brincadeiras com simples brinquedos
inventados pela própria criança estimulam-na a inventar coisas, a sonhar, a criar na
escassez e a ser forte na defesa das doenças e outras dificuldades. Quem não põe o
dedo no fogo, não sabe se é quente ou frio. Quem não tenha sofrido miséria, não
sabe se a riqueza é boa.
O coração do Diogo palpitava, as faces estavam rosadas, o cabelo revolto de tanta
irritação. Diversas emoções saiam-lhe do coração em torrentes. Pequenos gestos
marcam uma vida e palavras suaves podem, muitas vezes, ser cortantes mesmo para
corações duros. Ele sentia-se responsável pelos seus actos e não queria ser
intimidado pelo amigo. Achava que Dário com a sua visão altruísta, estava enganado.
Ambos eram amigos de Aquiles. Este era um homem que não acredita em Deus e
não tolerava a presença de padres. Mas Dário era um religioso daqueles que ia à
missa todos os domingos. Mesmo assim, era um grande amigo de Aquiles, bastava
que não falassem sobre coisas de Deus e da Igreja.

Domingos Barbosa da Silva 176


A estranha morte de um político

Aquiles terminara uma formação intermediária em chefia, haviam já passado 3


meses. Fora então, destacado para um posto de chefia pelo primo que era um
ministro, mas não tinha experiência de liderança. Uma coisa que o distinguia dos
outros chefes era o seu coração de pedra. Mas, apesar de tudo, já era chefe
executivo, isto é, supremo do departamento de investigações. Quando lhe foi dado
o cargo, foi sublinhada a importância do mesmo. Era o CHEFE com letras maiúsculas.
Despachava tudo o que lhe caía nas mãos o mais rapidamente possível. O seu
antecessor era uma pessoa humilde, um católico fervoroso, pio e de muita paciência.
Na altura da entrega da chave do departamento de investigações, o predecessor
abençoou o novo chefe, dizendo que Deus havia de ajudá-lo, ao que, o seu sucessor
respondeu com um olhar desprezível como quem diz que aqui Deus sou eu.
Aquiles não tinha diplomacia alguma. Não tinha grandes sonhos. Mas tinha uma
enorme vontade de mandar. E o poder satisfazia-lhe essa vontade. A sua delicadeza
em situações que exigem carinho era comparada com a de um elefante a atravessar
uma loja de copos e porcelanas. Não era inteligente, mas tinha uma apurada
capacidade de observação e um desejo ardente de fugir da mesmice e da tradição.
O poder só servia para o fazer sentir-se forte e receber aplausos, revelando-se tímido
para satisfazer as necessidades dos outros. Ele não conseguia matar o monstro
enorme, o monstro psíquico, que trazia dentro de si e, por isso, projectava-o em
todos ao seu redor.
No seu primeiro despacho sobre um caso alfandegário, em que, um funcionário foi
apanhado em flagrante delito numa situação de roubo, despachou o caso com um
traço de lápis e mandou arquivar o processo.
Aquiles reparou que o homem à sua frente estava mais calmo e decidiu fazer uma
nova investida, apoiando o Dário.
– Então homem, ganha juízo e pensa no que o Dário te propôs!
– Mas senhor Chefe – intrometeu o primo – esse funcionário está a fazer a vida
difícil a muita gente nesta ilha...
– Não me faças queixinhas, primo. Vai lá pensar em outras coisas – comandou
Aquiles.
Tinha o coração agitado. Bateu com a mão sobre a mesa. Que diabo teria feito para
ter empregados idiotas e incompetentes? Estes estupores não sabem com quem
estão a brincar – pensou. O que era preciso agora, nos primeiros dias, era uma
demonstração de força, mas raios, que força se pode mostrar a um punhado de
mentecaptos que andam à luz do dia a convencer o mundo que sabem muito e
conhecem a justiça porque Deus os guia? Aquiles era da opinião de que devia

Domingos Barbosa da Silva 177


A estranha morte de um político

sempre atacar primeiro e impor as suas ideias. Vou atacar à minha maneira e não
quero que eles me estraguem os planos – raciocinou. Ele não conseguia manter os
olhos fechados, pensando na estratégia a adoptar. Quanto mais dura a decisão,
tanto melhor para se posicionar perante os seus súbditos.
Diogo aproximou-se do Dário e, baixinho, disse-lhe ao ouvido, em forma de
conselho, o que este não queria ouvir.
– Sabes, amigo. Há modos de ver o mundo que não se coadunam com a minha
maneira de ver e perceber o mesmo. Há uma força dentro de mim que clama pelo
bem, que é contrário do mal, uma força no meu espírito que serve de filtro e não
deixa entrar esta tua maneira de pensar. Devemos parar pelo caminho da vida e
deixar as lágrimas, que nunca tivemos coragem de chorar, correr silenciosamente
pela nossa face em prol daqueles que não tiveram coragem de continuar na corrida
da vida porque lhes faltou coragem, porque desesperaram, ou porque não
encontraram um significado na vida e desistiram dela. Pára, amigo. Faz uma pausa
na caminhada, procura novos atalhos que conduzam aos remansos da vida, tantas
vezes quantas forem necessárias. Ambiciona ser feliz com o pouco que possuis, sonha
com coisas maiores, persiste em ser feliz e serás feliz. Escreve os mais belos poemas
da vida – disse-lhe.
– Não te estou a entender. Sabes que as oportunidades podem desaparecer e não
voltam mais. Muitas pessoas nascem com o destino de miséria e nunca saem dela.
Eu não acredito nessas tuas lengalengas. Olha para o teu compadre. Em menos de
um ano anda por aí a somar as cifras. Ele não tem medo das longas noites que a vida
lhe traz. Tem uma vida garantida. Não sofre de insónias e não é tratado como
mentecapto – acrescentou Dário.
– Bem, o sol não deixa de brilhar para os amigos da paciência, da consciência livre
e limpa. Para mim, a sinceridade, vale milhões e respeitar aquilo que pertence ao
bem comum é brindar a vida com um valor mais alto do que milhões de cifras no
banco. Muitos dos que sobem apenas alguns degraus da escada do sucesso
económico ou social tornam-se inacessíveis pelos mais necessitados. Tornam-se
distantes dos demais e ninguém tem acesso às suas agendas. Vêm o povo como um
mero número de identidade, um título académico, uma conta bancária e não como
um ser humano inigualável, com a sua unicidade, com a sua dignidade humana, com
seus direitos, deveres e responsabilidades – explicou Diogo.
– A estatística dos últimos tempos demonstra que a maior parte dos que meteram
a mão nos cofres do Estado não sofreram consequências algumas...
– Alto lá. A estatística pode ser manipulada. Ela pode apresentar uma resposta
feita à martelada, mas nunca responde às perguntas, por exemplo, da psicologia e

Domingos Barbosa da Silva 178


A estranha morte de um político

da consciência. Pobre da estatística! Sabe muito, mas conhece tão pouco sobre a
vida do homem. Ela somente aquieta a alma dos que pensam pouco. Não engana
aos que pensam além da ponta do seu nariz – cortou Diogo.
– Caramba! És teimoso como um elefante.
– Não é teimosia! É, antes, uma virtude nata. Um homem honrado vale muito.
Desde os tempos idos, a honra exerceu uma enorme influência na vida de muitas
gerações. É uma virtude incomensurável como muitas outras. Ela constitui um
grande valor na vida do ser humano, especialmente quando representa um grupo,
um povo ou uma nação. Por outras palavras, os que servem a causa do bem comum
adquirem méritos pelas suas boas acções. Não quero estar aqui com ar de erudito
para explicar o que tenho a dizer. Mas quero falar das virtudes do carácter que se
adquirem através do hábito, da educação e da prática. Entre elas encontram-se a
honestidade, a moderação, a coragem, a justiça, o amor, a fidelidade, a fé, etc...
Tirando essas virtudes na minha profissão, a instituição onde trabalho fica viciada e
corrupta, e isto é uma fraqueza moral. Segundo Immanuel Kant, a virtude é uma
fortaleza moral da vontade, o que vem de encontro à definição que Platão e
Aristóteles defendiam, muitos séculos antes. Ao concordar com esta definição de
virtude, estou a considerar que a virtude depende de nós e torna-nos fortes pela
procura que nos obriga a fazer dum ideal ético. Portanto, toda a moralmente boa
vida humana tem como suporte as virtudes. Elas têm uma importância extrema no
relacionamento entre os seres humanos, ou seja, na vida em sociedade. Por outro
lado, a avareza, o orgulho, a gula, a inveja e a demasiada luxúria, são defeitos, isto
é, vícios, que não me deixam dormir durante a noite.
Enquanto Sombra e Penumbra se recolheram a um canto, Aquiles aproximou-se dos
dois e intrometeu-se na conversa de Dário e Diogo com jeito de sabichão.
– Não há nada além do céu estrelado, caro amigo. Não faço a mínima ideia da tua
preocupação com as coisas que pertencem a todos. Deves seguir os conselhos do
Dário. Se não fazes isto haverá quem o fará por ti...
– Que o façam à vontade. No entanto, diz-me lá então, se na tua profissão não
existe honra, respeito, responsabilidade, por exemplo, quando estás a resolver,
solucionar um caso de crime? Não tomas em consideração o culpado e a família da
vítima? Separas a honra e a virtude das leis estatais? São duas coisas opostas? Se
são conceitos opostos, como vês a tua função pública vis-à-vis ao direito dos outros
se não respeitas os direitos deles? Como resolves o processo de um crime cometido
pelo teu melhor amigo? Enfim, as minhas perguntas são tantas que poderás perder-
te no redemoinho das respostas. A honra é uma virtude e virtude é um bom hábito
da pessoa, que facilita o seu comportamento moral em direcção ao bem. A ética da

Domingos Barbosa da Silva 179


A estranha morte de um político

virtude é uma preocupação do ser humano desde há muito tempo e é debatido em


todas as religiões. Centra-se no agente moral que é a pessoa responsável pela
decisão a favor da justiça, de como aplicar os princípios morais gerais a situações
específicas para alcançar resultados que dignifiquem a integridade e competência
do mesmo, que defendam e promovam a justiça e o bem. A nossa terra está cheia de
problemas morais, o casco moral está-se a arrombar em câmara lenta. Olha que há
um crescente número de crianças sem pais, há escolas sem disciplina, vencimentos
sem trabalho, direitos sem responsabilidade, só para mencionar alguns problemas
gritantes. Agora, quero saber como é que sabes, meu amigo, que não existe nada
além do céu estrelado?
– Não sei se te entendo correctamente – disse Aquiles.
– Na nossa conversa anterior debatemos sobre o problema de justiça no nosso país.
Fostes de opinião de que tudo o que acontece é premeditado ou pré-determinado.
Sendo assim, uma pessoa pode matar outra sem sofrer as consequências dos seus
actos. Uma pessoa que foi morta a tiro “escolheu” a sua forma de morrer e, portanto,
aquele que a matou não deve sofrer as consequências porque foi apenas o móbil ou
instrumento que serviu para consumar a morte de tal pessoa. Ora, tínhamos à nossa
disposição um exemplo concreto, isto é, o que recentemente se passou no país. Isto
não é muito saudável para um país cuja tradição…
– Sei o que queres referir, neste momento. Uma situação concreta é o assassinato
de uma pessoa mesmo tendo-se passado já muitos anos. Não vejo motivo algum
para se gastar tanto dinheiro para fazer um trabalho impossível como por exemplo,
encontrar os motivos de um assassino. Olha que já vão alguns anos desde a morte
que agora temos em mente. Não temos necessidade de reconstruir e encontrar os
indícios necessários para prosseguir na investigação. O melhor caminho a tomar é
arquivar o processo. Há coisas mais importante a fazer nesta terra – bradou Aquiles
categoricamente, depois de ficar calado por um momento.
Instalou-se um silêncio e entreolharam-se. Todos fizeram um esforço hercúleo para
se conterem. Diogo encheu-se de uma santa paciência e rompeu o silêncio instalado.
– Onde estão a justiça e a dignidade humanas para com os familiares deixados?
Onde se coloca a responsabilidade pelos males sociais que assolam esta terra? É a
lei do criminoso que impera nesta sociedade ou a força da nossa Constituição? –
Pergunta o Diogo com fúria a faiscar dos olhos.
– Faço o que puder para salvar o poder. Pareces uma caixa-de-ressonância a emitir
o som dos que fazem barulho. Não há sofrimento que dure muito tempo...

Domingos Barbosa da Silva 180


A estranha morte de um político

Diz-se que a tolerância é o atributo dos fortes. Aquiles não é uma pessoa tolerante
e não poupa o seu melhor amigo. O diálogo entre Diogo e Dário atingiu o seu ápice
e a comunicação já não era mais possível. Aquiles intrometia-se sempre na conversa
dos dois a ponto de desviar do essencial – de um debate sobre virtudes. Não é
possível construir tolerância sem possuir a capacidade de compreender as
limitações dos outros. Uma pessoa intolerante torna-se mais angustiada e instável
perante os comportamentos dos outros que têm uma opinião diferente, possui
menos capacidade de perdoar, pois ser intolerante é um sinal de fraqueza humana.
Aquiles tem todos os dotes de intolerante, mas superficialmente, aparenta ser forte
e inteligente.
Diogo deu sinais de desconforto no grupo de amigos, que além de terem ideias
políticas coincidentes, também pertenciam à mesma seita religiosa. Mas, para
Aquiles era necessário manter o grupo coeso e faria tudo para sacrificar os seus
desacordos.

Domingos Barbosa da Silva 181


A estranha morte de um político

CAPÍTULO XXVIII

Domingos Barbosa da Silva 182


A estranha morte de um político

O guardador de Projectos

Diogo não se sentiu bem quando recebeu ordem para cuidar do manuscrito34 com
o projecto do Renato até que uma segunda ordem fosse dada. Ele estava cheio de
medo e não sabia como tratar os documentos e onde os ia guardar. Numa situação
destas, o próprio bater das asas de uma borboleta podia causar um tornado, o voar
de uma mosca podia gerar um terramoto, o próprio respirar podia causar uma
avalanche. Assim descrevem os matemáticos: uma pequena variação no lado
esquerdo de uma equação causa variação no lado direito.
Diogo queria telefonar à polícia para dizer algo sobre a sua situação. Mas, que
consequência teria sofrido? O melhor é estar calado. O melhor é fugir e esquecer
tudo. A quem poderia telefonar? Quem podia tratar do assunto com a seriedade
necessária? Não confiava em ninguém para pedir conselhos.
Recebeu um telefonema enquanto cogitava acerca dos documentos que tinha
retirado do porta-luvas do veículo que tinha transportado Renato a Quebra-Canela.
Escutou silenciosamente o que a pessoa tinha a dizer. A sua voz era como um
barítono suave:
– Senhor Diogo, poderia vir ao meu escritório amanhã cedo? Preciso de uma
interpretação nos documentos de Renato – acrescentou.
– Aquiles, eu sou jurista, não sou linguista!
– Não importa o que és. O nosso segredo é que conta aqui. Estou desesperado e
preciso de tua ajuda e dos teus conselhos!
– Seria melhor contactar uma pessoa com mais interesse e expediente no assunto.
– Senhor Diogo, não estará um jurista interessado em assuntos criminais?
– Depende da situação e do assunto a tratar. Aqui um conservador ou um
bibliotecário faria melhor trabalho – argumentou Diogo.
- Amanhã às oito horas!
O telefone desligou-se do outro lado da linha e Diogo ficou a olhar demoradamente
para o auscultador. Era uma ordem dada e não podia sequer questioná-la.

34 Não há notícias sobre os paradeiros de Aquiles, Diogo e Dário desde os fins de 1989.

Domingos Barbosa da Silva 183


A estranha morte de um político

Domingos Barbosa da Silva 184


A estranha morte de um político

Parte II

Domingos Barbosa da Silva 185


A estranha morte de um político

CAPÍTULO XXIX

O ano que mudou o mundo e o futuro de Cabo Verde

Domingos Barbosa da Silva 186


A estranha morte de um político

Aconteceu há 30 anos e terminou como a maior parte dos crimes deste género. Foi
a 29 do mês de Setembro do ano de 1989, uma sexta-feira agoirada.
A verdadeira história do que aconteceu na praia de Quebra-Canela nunca foi
devidamente contada. Na mente de muita gente ficou a imagem icónica do autor de
Porton d´nós Ilha, cantando no alto Cutelo das nossas ilhas, olhando para a frágil
estrutura sobre a qual ainda hoje se encontra erigida a Administração Pública,
mirando o Artigo 4º da Constituição da Primeira República, ouvindo os rumores
vindos lá do Muro de Berlim, da gente batendo com marretas, pedindo a liberdade.
E não tardou que o “Muro” do Artigo 4º da Constituição de Cabo Verde e o de Berlim
fossem abaixo, simbolizando o fim de uma era, uma era conturbada e turbulenta.
Este foi, verdadeiramente, o ano que mudou o mundo, marcando o fim da Guerra
Fria e o início de uma época de globalização e livre mercado.
Trinta anos depois, os amigos de Renato procuram desconstruir os mitos que
cercaram o acontecimento, à procura da verdadeira história por detrás das notícias
dos jornais, das versões oficiais, para mostrar os efeitos do assassinato nos dias de
hoje. No ano de 1989, houve um fervilhar de acontecimentos que levaram à queda,
não só, do Artigo 4º, mas também, ao colapso do império soviético, à morte de
Renato Cardoso, entre muitos outros casos. Os ideais comunistas não souberam
pactuar com as necessidades da sociedade de consumo e acabaram por se suicidar
ou ser devorados por essa mesma sociedade.
Foi um ano de acontecimentos políticos que podemos sintetizar como se segue:
• A Cortina de Ferro caiu;
• O Protesto na Praça da Paz Celestial (Tian'an Men), mais conhecido como
Massacre da Praça da Paz Celestial, ou ainda, Massacre de 4 de Junho que
consistiu numa série de manifestações lideradas por estudantes na República
Popular da China;
• O 9 de Novembro de 1989, a queda do muro de Berlim;
• O 7 de Dezembro de 1989. Surgia na República Democrática Alemã (RDA) a
primeira mesa-redonda de discussão política. A tentativa de reformar o
sistema político foi atropelada pela reunificação das duas Alemanhas;
• O homem forte da Solidariedade polaca, Lech Walesa, foi visto nas Portas dos
Estaleiros Gdansk vitorioso, reivindicando o direito à liberdade do seu povo;
• O pontapé de saída e o início da democracia cabo-verdiana, desencadeada
pela morte de Renato Cardoso;
• A barbaridade voyeurista política na Roménia;
• A ditadura de Pinochet terminara e o povo respirou de alívio;
• Morreu o imperador japonês.

Domingos Barbosa da Silva 187


A estranha morte de um político

Estes e outros acontecimentos fizeram com que o mundo tenha mudado


radicalmente. Em Cabo Verde, os primeiros passos em direcção à democracia, foram
dados.
No rescaldo do caso Renato Cardoso, todos os amigos continuam a questionar sobre
o que aconteceu naquela tarde sangrenta. Todos continuam a falar do caso, como
se fosse uma ferida profunda e crónica.
Numa manhã quente de verão, Fátima acordou e ficou deitada durante um
momento a ouvir o ruído que vinha das ruas vizinhas, levantou-se a espreguiçar e
depois dos seus rituais matutinos, dirigiu-se à cozinha. Depois de preparar uma
grande chávena de café com leite, telefonou para saber o que é que a sua amiga
tinha a contar sobre reunião relativa à morte de Renato.
Do outro lado da linha, Celeste, com a vivacidade de quem tinha acordado há já
várias horas, contou detalhadamente, à amiga, a conversa que tiveram durante a
reunião com alguns amigos acerca do caso. Depois de um momento em silêncio
desabafou:
– Apesar dos anos passarem rapidamente, há nomes que não me abandonam no
meu dia-a-dia. Renato Cardoso é um deles. Foi um amigo de que me orgulho
particularmente. Continuo a estranhar que os cabo-verdianos não assinalem
devidamente a sua capacidade de trabalho, a sua inteligência brilhante e as suas
lutas para que o país pudesse hoje orgulhar-se dos caminhos que já percorreu, do
presente notável de que desfrutam e as esperanças de um futuro ainda mais risonho
que ele procurou imprimir em nós. Com o passar dos anos, fica-se com a impressão
de que ainda há quem tenha medo da memória do Renato. Há quem tenha medo de
evocar o seu nome e a sua ausência. Penso que estamos todos a cometer uma
injustiça.
– Sabes uma coisa. Eu tenho o grande privilégio de ser amiga do liceu, colaboradora
e, além disso, admiradora do Renato. Eu conhecia-lhe as qualidades porque
trabalhava de perto com ele. Perfilho a mesma ideia que ele tinha quanto à vida, à
lida e à política. O criminoso que matou Paín não foi, devidamente, investigado e,
por esta razão, penso que há por detrás dessa morte uma meditação prévia que,
possivelmente, tem a ver com a evolução que a política no nosso país teve nos anos
seguintes. Alguém me contactou para me convencer que se Renato estivesse vivo, o
MpD nunca teria ganhado as eleições de 1991.35 Isto deixou-me confusa! E, também,
que o encontro com o então Presidente da República, foi duro demais para a política

35Com a devida permissão, publicado na Internet – os amigos de Renato


Cardoso.africandar.blogspot.com/2009/07/renato-cardoso-e-os-seus-amigos.htlm

Domingos Barbosa da Silva 188


A estranha morte de um político

vigente de então, o que resultou numa forma de vingança. Engoli o peixe pelo rabo,
mas não aceitei os argumentos usados na altura e nem fiquei convencida. Parece-
me que essa pessoa queria desviar as minhas atenções e baralhar as ideias que tenho
quanto à morte do malogrado. Esse alguém, porém, acrescentou que o Renato
pressentia que alguma coisa lhe iria acontecer por aqueles dias. Na quinta-feira
anterior ao assassinato tinha telefonado a tal pessoa, pedindo-lhe para ir à Praia:
queria falar com ela porque estava com "medo" depois de uma reunião que tinha
tido com o Presidente da República de então. Isto coincidiu com as informações que
eu tinha – insistiu – e continuou: Se eu fosse a mulher ou irmã dele, faria tudo para
saber quem está por detrás da morte do nosso grande amigo – disse Fátima.
– Acho que vale a pena insistir no que estás a pensar. Todos nós temos o direito de
saber o que se passou com ele. Eu lembro-me, aquando da sua vinda para Cabo
Verde, do teu reencontro com o Paín. Devemos exigir que a sua memória seja
respeitada. Agora mesmo estava a lembrar de uma conversa que tive com uma
amiga do peito – prosseguiu Celeste. Ela disse-me o seguinte: as várias versões sobre
o seu assassinato nunca me enganaram ou convenceram. Eu tive o privilégio de ter
trabalhado com o Paín (Renato) nas vésperas da sua morte e sei, porque ele me disse,
que algo que o estava a atormentar, já tinha sido esclarecido. Tinha tido um encontro
sobre isso. Ele prometeu vir beber um Gim tónico comigo no domingo para
comemorarmos, também, o projecto sobre administração pública que acabáramos
de traçar com um expert das N.U, Guido de Weerd.36 Nunca me esqueço daquela
manhã, do toque daquele telefone (eu ainda deitada) e da voz do meu marido
anunciando-me o acontecimento. Os meus soluços continuam vivos aqui no meu
peito e lamento não poder dar a vida ao meu amigo. Fiz um poema que nunca difundi
porque não sou poetisa e, também, porque as vozes sonoras não pertencem a todos.
Não interessa, fi-lo para ele.
Sei, também, que o Renato não pode estar feliz, pois ele tinha todo um projecto de
vida que não escondia e que fazia questão de anunciar: eu não pretendo morrer, nem
vou imigrar, a não ser que me dêem um tiro e eu não possa fazer nada... foi o que
ele dissera quando o técnico lhe disse que o país precisava dele para defender o
Projecto acabado de assinar...37 – Disse.
O poema de que fala Celeste é o seguinte, escrito no dia 2 de Outubro de 1989, que
transcrevemos com a devida autorização da autora. 38 Soa assim:

36 Ibidem.
37Ibidem.
38Ibidem.

Domingos Barbosa da Silva 189


A estranha morte de um político

A ti meu amigo

A todo o momento
Esperei
Ver-te levantar daquele caixão
E dizeres:
-"Bzôte bá pudiab
Um ca morrê né nada"!
...Mas...nada!
Ali, naquele local
Onde foram deixar teu corpo
Tão escuro, tão escuro...
Adivinhei mais que "senti"
Terra caindo em cima daquele caixão
Esperei, acreditei,
Que me dissesses: Aqui estou!
E nada!!!
E pensei:
Decepcionas-me deveras!
Porém, antes de deixar o local
Vi uma estrela, uma única
Lá bem alto no Céu
E compreendi o teu sinal.
Vi que ali estavas
Bem vivo ainda,
Brilhando, brilhando sempre.
Parti tranquila, limpei os olhos.
Este mundo não te merece
Esta coisa tão podre,
São cacos onde temos de continuar
Pagando as nossas dívidas...
Tu, meu amigo, brilhas em paz!
Tu, meu amigo, mereces pureza
Que tanto tentaste dar
E não souberam receber.
Tu, querido amigo,

Domingos Barbosa da Silva 190


A estranha morte de um político

Continuas vivo em tudo que deixaste


E até no que não deixaste.
Amigo meu, estrela nossa
Brilha! Brilha! Ilumina-nos!
E ensina-nos merecer
Esse caminho!
Até lá amigo, que saudades!!!
Quanta vontade de te falar e não poder!!!
Por um minuto sequer
Volta amigo, volta!!!

Domingos Barbosa da Silva 191


A estranha morte de um político

CAPÍTULO XXX

O pequeno mundo de Djonzinho

O pai do Djonzinho dizia sempre que o mundo tem pé comprido. Djonzinho não sabia
o significado da expressão, mas hoje compreende-o melhor. Ai, se o mundo fosse
mais justo! Toda a observação do comportamento humano é pouca para iluminar a

Domingos Barbosa da Silva 192


A estranha morte de um político

mente dos homens. De qualquer maneira, o pai tinha razão! Entretanto, a razão dele
não é a mesma que a do Djonzinho! Mas este concorda com o pai.
Procurou por toda a parte, na psicologia de Jung, Freud, Kant e Spinoza, não
encontrou qualquer coisa que lhe esclarecesse sobre o comportamento dos mais
achegados, amigos, inimigos e dos políticos quanto à morte do Renato. Os seus pais
ensinaram-lhe a arte de comover, de entrar na pele dos outros, de simpatizar com
os mais humildes. Nené de Canquinha era amigo deles e vinha com conselhos que
serviam para os filhos. António do Rosário, o padrinho de Djonzinho, era outro cuja
postura metia respeito, tanto na sua própria casa, como na dos outros. A influência
de amigos dos pais do Djonzinho, serviu para lhe inculcar na mente o respeito pelos
outros, o valor da vida e a forma de vivê-la. Aconteceu, muitas vezes, ter pensado e
sonhado estudar a “arqueologia” do espírito para esgravatar e analisar os
cromossomas dos antepassados desses amigos para poder colmatar o vazio
existente entre eles e a nova geração que nem se importa com a vida dos seus
melhores amigos. Parece que se adaptou a uma psicologia de mesa de cozinha. O
Djonzinho está, possivelmente, muito embriagado e ocupado com o passado para
evitar pactuar com a realidade presente ou futura. Tenta compreender a psicologia
moderna, mas não mergulha suficientemente a fundo para a entender. A psicologia
de profundidade (cf. C.G Jung), neste sentido, é como se fosse uma escavação
arqueológica na mente colectiva ou individual dessa gente. Não encontra a
justificação suficiente do pensar moderno. Será que é um pensar moderno? Ou um
premeditado comportamento abonado pelo silêncio que o medo impõe? Precisa de
uma escavação profunda na gruta da alma. Quanto mais o Dozinho interpreta a
psicologia acima referida como uma escavação na caverna da alma, quando mais lê
Freud e Jung, tanto menos se compreende a si mesmo. Fica-se como um peixe que
não tem a mínima ideia de que vive num aquário. Ou, talvez, ele não queira
compreender. Terá, certamente, as suas razões. Não tem os pré-requisitos para ser
um arqueólogo da alma e nem, tampouco, um psicólogo de gema.
O pai do Djonzinho já faleceu. O nome de casa é o nome familiar e afectuoso. É o
nome morábi de muita gente e Djonzinho merecia tal nome, o nome que lhe dava o
rótulo de homem que é amado, que virá a amar o povo e que por ele, também, é
amado. O nome de casa atribuído a uma pessoa, em Cabo Verde, exprime, acima de
tudo, a familiaridade, a amizade, a capacidade de adesão sentimental a problemas
e situações alheias e de sintonia afectiva com o seu semelhante. O pai de Djonzinho
tinha um convívio amigo e familiar com as pessoas e até com as coisas, o que lhe
facilitava uma vontade irreprimível de diálogo.
Umas vezes, chamavam-lhe de Djonzinho Branco e outras de Brancão ou B. Branco.
O B de burro. Estes nomes de casa tornaram-se enfadonhos e até marginalizantes.

Domingos Barbosa da Silva 193


A estranha morte de um político

Os amigos e colegas chamavam-lhe de Burro Branco quando a situação lhes era


propícia. Ele não gostava de ser tratado assim. A palavra “branco” tornou-se um
conceito detestável para ele. Preferia, então, refugiar-se na solidão, o que veio
justificar a sua necessidade de ter sempre um pouco de tempo sozinho para reflexão
O Djonzinho lembra-se das palavras que ecoavam nos becos como um barítono.
Corria atrás das pessoas, que lhe provocavam, com nacos de pedra na mão. Depois,
crescendo, adaptou-se ao nome e já ninguém se importa em usá-lo mais. Assim caiu
definitivamente em desuso. Djonzinho voltou a ser, somente, Djonzinho. Os amigos
voltaram a respeitá-lo, a pedir conselhos, a colaborar com ele e até a convidá-lo para
palestrar nas festas. Renasceu nele, assim, a capacidade de simpatizar com os
outros, de valorizar a camaradagem e adocicar os momentos com toques de violão
e canções improvisadas.
Muitos anos depois, acorreu à sua mente um monte de coisas da meninice, isto é,
do passado. Uma das ocorrências que já se encontra nos arquivos subconscientes é
o caso de Quebra-Canela. Estendeu-se, durante muito tempo, na sua consciência
como um pano de retalhos onde cada nesga reflecte as pegadas, as lembranças das
tardes corriqueiras, o espairecer no ruído das ondas, a leitura dos livros liceais, o
decorar das palavras francesas, o correr dos colegas em direcção às ondas, a
pergunta de uma colega ao lado e os distúrbios causados pelo chilrear das aves. Era
então uma Quebra-Canela de alegria e satisfação.
Mais tarde, Quebra-Canela tornou-se um lugar sombrio e de tristeza para o
Djonzinho. Não só porque o hediondo acto39 foi cometido ali, mas porque a estância
se tornou mágica, assombrada e triste. O pior assombro que atingiu a baía de
Quebra de Canela foi o silêncio de todos os que recordam a bala mortífera que
atingiu um homem do povo. Não era preciso ser um homem popular. Podia ser um
qualquer. A vida de um equivale à vida de um outro, mas a do Renato, toca-nos
excepcionalmente.
Tudo ficou mais claro quando, um dia, um amigo de infância telefonou dos Estados
Unidos da América e disse ao Djonzinho que uma das pessoas que, possivelmente,
matou Renato, se encontrava no mesmo Estado que ele. A pessoa até foi
confrontada com algumas perguntas, mas esquivou-se delas.
– Djonzinho, gostaria de investigar sobre esse assunto, mas não tenho recursos
para tal. – Disse.

39 O assinato do Renato Cardoso

Domingos Barbosa da Silva 194


A estranha morte de um político

– Não sei se as autoridades nos deixem fazer qualquer coisa do género. –


Respondeu Djonzinho.
– Djonzinho, se não nos deixarem, provam que ainda não estão politicamente
maduros.
– Mas o que lhes importa a maturidade política? – É bem possível que estejam
interessados em esclarecer o caso, mas não para repor a honra de Renato. –
Retorquiu. – O financiamento é um dos obstáculos gigantes à nossa frente, mas há
outros empecilhos que são mais psicológicos do que físicos. Receio ambos –
acrescentou.
Ouve um silêncio prolongado na linha telefónica.
– O que mais ensombra o caso é o facto de o Shaitan estar envolvido. Soa-te bem
aos ouvidos esta palavra? O Shaitan é a palavra árabe que significa Satanás. Muita
gente não acredita na existência do Satanás e no seu poder de fazer algo. Nem o
Tribunal aceita argumentos, em que, entra Shaitan, bruxaria e feitiçaria, porque só
acredita nas coisas profanas e na ciência. Acho que estão certos. Mas existe uma
coisa que se chama o Mal que contrapõe outra que se chama o Bem! Há pessoas
com capacidades extra-sensoriais que ajudam os polícias e os tribunais a resolver
casos complicados! – Continuou Djonzinho.
– Djonzinho, queres-me ajudar neste assunto? – Perguntou num tom brasileiro.
– Caro amigo, eu sou um investigador privado. A minha experiência ajudar-te-á
muito, mas por onde é que vamos começar? Ninguém mais quer saber do
assassinato. O caso incomoda a muitos e a mim também, mas a vingança pode vir a
ser um mal maior para quem se atrever a mexer nesse assunto. Em meios pequenos
há essa tendência de marginalizar alguém com ideias originais. Temos de, pelo
menos, ter anuência de alguém próximo do poder – acrescentou o amigo com
hesitação e com ânsia na voz.
O Djonzinho tem um relacionamento tenso com os telefones. São extremamente
invasivos nos nossos afazeres. Encontram-te em qualquer lugar e exigem a tua
resposta imediata. Sem qualquer forma de respeito, entram em qualquer conversa,
mesmo interrompendo um beijo, um diálogo, uma boa leitura, um banho ou um
programa televisivo, etc. É possível que alguma vez tenha estado de pé, por meia
hora ou mais, numa fila esperando a sua vez para ser atendido por uma cara
relutante e aborrecida atrás de um balcão. Podemos apostar e jurar que, um
telefone, que de repente tocasse, roubar-lhe-ia o seu lugar na bicha
Um telefonema de longe veio colocar o Djonzinho no foco da luz com penumbras de
medo. O tempo passou como um relâmpago. Suspendeu a respiração e ficou de pé

Domingos Barbosa da Silva 195


A estranha morte de um político

por alguns segundos. Paralisado como uma pedra. O coração palpitava como os
tambores nas vésperas de São João ou de São Filipe. Sentia o bater no peito, nos
ouvidos, em toda a rede das veias pulsatórias e artérias do seu corpo. As mãos e os
joelhos começaram a tremer. Gotas de suor fizeram regos nas diferentes partes do
corpo e a camisa ficou ensopada debaixo dos braços. Foi como que se o cérebro
deixasse de coordenar as outras partes do corpo.
A luz do sol da meia-noite do polo norte enviou seus raios através das frinchas das
persianas como que para lhe avisar do seu próprio paradeiro. Uns passos ligeiros
trouxeram-no para o mundo das coisas. Meu Deus, onde estou? Homem, o que te
deu na cabeça para me telefonar e recordar-me do Renato? – Raciocinou.
– Papá, o que se passa contigo – perguntou o seu filho.
Muito hesitante, foi sentar-se numa poltrona. Os joelhos mal o carregavam. Sentiu
um fio de suor frio escorrer-lhe pelas costas. A imagem do corpo de Renato, com um
furo no peito, invadiu-lhe. Não estava a cheirar. Ainda não estava. A pele
acinzentada, os olhos vítreos abertos fixando o nada. Tinha o sangue coagulado
sobre a camisa e as mãos cruzadas sobre o abdómen. Como a morte pode
transformar um corpo vivo em algo do género? A morte rouba ao corpo a sua alma.
Começou a imaginar as bactérias de putrefacção. A morte roubou-lhe também a cor,
o fôlego, o olhar penetrado e os sentidos. O cheiro que daí advém, o nada. Alguém
o matou. Mas quem foi a pessoa sem coração? Isto é lógico, alguém o matou.
Ninguém morre desta forma por causas naturais. Djonzinho procurou palavras
adequadas para não cair no irracional. Não sabe o que dizer. Morte ritual? Eliminar
mais um que incomoda? Uma paixão tão excessiva que culmina num assassinato?
Um amigo da onça envolvido? Tudo foi tão rápido, tão fora de série, como se o
agente da casa funerária e o padre já lá estivessem mesmo antes da sua morte e
fossem buscar a roupa e a água benta para os últimos rituais que ficariam entulhados
no esquecimento colectivo do povo.
Depois o Djonzinho encontrou-se sozinho, de pé, com os olhos boiados de lágrimas,
a observar o amigo do povo estirado na maca hospitalar, coberto de sangue
coagulado e um grupo de gente a choramingar à sua volta. Depois, foi Djonzinho a
tomar as decisões. Aproximou-se do corpo de Renato, pediu à esposa dele ajuda
para fechar-lhe os olhos. O seu pensamento vagueou pelo mausoléu que vai ter ou
não como a sua última morada. Como se sentisse o pingar ou o bater colectivo das
futuras inquietações estalagmíticas,40causadas pela sua morte, formando concreção

40Em sentido inverso da estalactite. Estalactite é uma formação no tecto de uma gruta, crescendo
para baixo, em direcção ao chão, devido à deposição lenta e contínua de carbonato de cálcio

Domingos Barbosa da Silva 196


A estranha morte de um político

calcária no solo da gruta que fica quando o corpo se torna em terra. No fim, aquela
imagem desapareceu atrás das lágrimas vertidas por todos os seus amigos. Ficou um
silêncio que incomoda.

arrastado pela água que goteja do tecto. Quando esta formação cresce a partir do chão em direcção
ao tecto chama-se estalagmite.

Domingos Barbosa da Silva 197


A estranha morte de um político

CAPÍTULO XXXI

A primeira audiência

Nesta primeira audiência, vi os jurados a sentarem-se nos lugares marcados no lado


direito do auditório. Observei com muita atenção as expressões faciais deles ao
entrarem pela porta lateral. Queria saber de que modos olhavam para a testemunha
em relação ao suposto arguido que se encontrava sentado com os olhos fixos no
chão. Para uma pessoa experiente, muito se pode saber através de um olhar de
relance ou de um olhar penetrante e julgador dos jurados. Tinha a lista dos jurados
à minha frente. Queria saber os nomes de cada um deles e os meus olhos saltitaram

Domingos Barbosa da Silva 198


A estranha morte de um político

entre os rostos nos lugares sentados e os nomes escritos no caderno que trazia na
minha pasta. A Juíza estava sentada na tribuna com os olhos fixos nos seus papéis.
Ela perguntou aos magistrados se tinham algumas questões novas ou pendentes
para esclarecer antes de começar a sessão. Como não havia, virou-se para os jurados
e magistrados, correndo a vista pela sala.
– Meus senhores, estamos prontos para começar. A audiência vai começar com as
primeiras alegações por parte do Ministério Público já que este último vela pela
aplicação e cumprimento das leis.
O representante do Ministério Público (MP) levantou-se e dirigiu-se aos presentes.
– Estamos aqui por um motivo. Para descortinar um caso muito intricado. O caso
Renato Cardoso. Ele só tinha 36 anos e foi baleado em Quebra Canela por motivos
que não sabemos. O homem alegadamente acusado por este crime hediondo está
sentado a uns poucos metros de mim. Há, no entanto, muitas dúvidas relacionadas
ao acusado. O assassino roubou-lhe tanto o passado como o futuro. Roubou-lhe tudo
e nós ficamos mais pobres. A nossa sociedade ficou mais pobre. É responsabilidade
do Estado provar se este homem aqui tido como réu é, de facto, o assassino.
Abanou a cabeça para sublinhar o que acabou de dizer, voltando-se em seguida para
a acompanhante do Renato que se encontrava sentada ao lado do seu advogado e
continuou:
– Entretanto, antes de fazer um juízo de valor, temos de ouvir a testemunha
principal neste caso e os magistrados envolvidos no caso.
Virou-se para a Juíza, meneou a cabeça sem dizer mais nada e foi-se assentar. A Juíza
dirigiu a atenção para o advogado de acusação e disse:
– Muito bem, senhor advogado de acusação. Pode apresentar as suas alegações?
O advogado de acusação, vendo que a acompanhante deixava transparecer calma
de quem nada tem a temer, viu logo que tinha à frente um adversário forte, quer
dizer um osso duro de roer, debruçou-se sobre a mesa, enfrentando a única
testemunha, e decidiu que tinha de aplicar logo o chamado tratamento de choque
para lhe quebrar a impressionante resistência que trazia colada ao seu semblante.
Depois levantou-se, deu uns passos em direcção à testemunha, sentada junto ao seu
advogado de defesa, sentou-se parcialmente sobre um canto da secretária, de modo
a ficar a olhar para a sua opositora, desviou o olhar para o público e atirou
suavemente:
– Senhora testemunha, que fique bem claro que o que vai sair da minha boca neste
momento não deve ser tomado como ameaça ou qualquer forma de pressão da

Domingos Barbosa da Silva 199


A estranha morte de um político

parte deste tribunal. A senhora tem três hipóteses: dizer a verdade, manter as
declarações anteriores ou recusar-se a prestar declarações, que é um direito
inalienável que lhe assiste. Neste momento, as nossas conclusões lógicas e o cenário
do crime apontam que daqui sáia condenada por ser uma possível coadjuvante num
auto hediondo.
Pode-se perguntar aqui se a testemunha em apreço deve ou não ter um defensor
numa audiência deste género. Partindo do princípio que estamos perante uma
situação em que se encontra envolvidos vários motivos e
baseado numa interpretação teleológica do Direito, que diz que um Princípio
jurídico convive no meio de “imperativos e permissões”, e tendo em conta a situação
em que se vivia na altura, o conceito de Principio jurídico deve prevalecer. Ao
defender que o princípio da não auto-incriminação se
aplica à testemunha e considerando que algumas leis internacionais estatuam,
implicitamente, que a testemunha poderá depor acompanhada de seu advogado, se
este último, em seu íntimo, temer que as respostas do seu cliente poderão auto-
incriminá-la. O advogado poderá, por isso, intervir toda a vez que pressente algo que
vai contra seu/sua cliente. Portanto, o advogado poderá protestar verbalmente ou
por escrito, na audiência ou sessão, perante qualquer juízo, tribunal ou
autoridade, contra inobservância de preceito de lei ou regulamento.41
O advogado da acompanhante sorriu com um ar divertido em direcção ao acusador.
Os ouvidos da audiência ficaram afinados. O defensor apressou-se, pediu licença e
pôs-se de pé.
– Meritíssima Juíza! – Exclamou o advogado de defesa. Se me permite, gostaria de
dizer que o senhor que representa a acusação só deve estar a brincar, porquanto não
tem provas para acusar ou prender o meu cliente. Tendo um réu na nossa presença
não podemos transformar uma testemunha numa ré – intrometeu ele.
– Desculpe: O senhor já leu os jornais e o processo? – Perguntou a Juíza.
– Sim, quero dizer...
– Então, por favor senhor doutor, não fale do que não sabe. Só sabe o que o seu
cliente lhe contou. Aqui vamos esgravatar mais a fundo para podermos fazer um
juízo de valor – acrescentou a Juíza.

41 https://sauloadv.wordpress.com/2015/05/03/o-direito-da-testemunha-de-depor-na-presenca-
de-um-advogado-5

Domingos Barbosa da Silva 200


A estranha morte de um político

A Juíza anotou qualquer coisa num caderno e depois voltou-se para os juízes,
avisando-os acerca do impacto da leitura dos jornais e das notícias na decisão final
de uma audiência ou de um julgamento:
O advogado da testemunha principal acomodou-se no assento, ajeitou a sua gravata
e pôs-se de pé.
– É verdade. Mas não se esqueça do princípio da presunção da inocência, isto é, o
princípio da não-culpabilidade, segundo o qual toda a gente é inocente até que se
prove o contrário. É um princípio jurídico de ordem constitucional, aplicado segundo
o direito penal, que estabelece o estado de inocência como regra em relação ao
acusado da prática de infracção penal. Está previsto expressamente na Constituição
da nossa jovem nação, regras que preceituam que "ninguém será considerado
culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória". Isso significa
dizer que, somente após a conclusão do processo em que se demonstre a
culpabilidade do réu, é que o Estado poderá aplicar uma pena ou sanção ao indivíduo
condenado. Devo aqui relembrar ao senhor doutor que não temos, neste momento,
uma ré à nossa frente! Só temos um réu – disse virando a cara para o senhor
advogado de acusação.
– Muito bem senhora Juíza, tem muita razão neste aspecto. Peço desculpa por ter
sido bastante precipitado e usado palavras menos corretas nesta ocasião, e fazer um
juízo de valor apressado, mas se uma pessoa que seja convocada a testemunhar
mentir durante uma audiência, pode ser posta na prisão por falso testemunho! O
que também se encontra, explicitamente, na Constituição da nossa República. Disse
que as conclusões lógicas apontam para uma situação penosa. Não significa,
necessariamente, que as conclusões sejam verdadeiras, mas apontam... caso
continue a esconder algo ou a mentir perante este Tribunal.
O Djonzinho estava sentado a uns metros da mesa do MP quando viu a expressão
incómoda no rosto do defendente. O MP não pôde ficar calado perante a situação
embaraçosa em que o defendente se colocou, virou-se então, outra vez para a
testemunha.
– Senhora testemunha, tinha relações passionais com o malogrado político…?
A testemunha ficou irritada pela pergunta e reagiu imediatamente sem deixar que
o MP a completasse.
– Excelência, deixe-me dizer uma coisa, se tinha ou não isto faz parte da minha vida
privada e não pertence à esfera pública. Não quero falar sobre o assunto, se me é
permitido.
– Não me parece que seja muito privado já que se trata de uma relação com uma

Domingos Barbosa da Silva 201


A estranha morte de um político

pessoa pública – contrapôs o representante da acusação. – Mas, é um direito que lhe


assiste – acrescentou.
– A minha amizade era puramente platónica, se os senhores querem saber.
A Juíza pediu contenção nas palavras e tentou direccionar o tribunal para o caso em
apreço:
– Comecemos pelas alegações dos advogados da acusação. Estas alegações não
podem ser tidas como provas. Servem para a defesa e a acusação dizerem ao júri o
que esperam que as provas demostrem. Os magistrados irão ouvir este resumo
durante a audiência e o julgamento. Caberá ao conselho, apresentar posteriormente
as provas e as testemunhas a partir das quais o júri fará as suas deliberações finais.
– Certo, meritíssima. As provas são importantíssimas. Vamos então a elas.
– De que provas está a senhora a falar – perguntou o advogado de defesa.
O advogado de acusação levantou-se do lugar onde se encontrava, avançou para a
tribuna que se situava entre a mesa da defesa e a bancada dos jurados.
– Ora bem, passemos adiante, a senhora possui uma arma, uma pistola, um
revólver?
– Arma, como? O senhor está a pensar que fui eu que atirei contra o meu amigo?
Nunca tive uma – asseverou a testemunha – e nem tenciono adquirir nenhuma –
acrescentou.
– Conhece a senhora um homem de nome, Nero Bettencourt?
– Nunca ouvi este nome!
– Mas sabia que foi encontrado um buraco feito por uma bala de calibre 6,35 no
peito do seu amigo de passeio? – Inquiriu o advogado de acusação.
– Disto sei muito bem por que foi na minha presença que tudo aconteceu, se foi um
revólver de tal calibre não sei. Sei que a partir daquele momento, não me recordo de
nada nem vos posso descrever o mais próximo do real o que aconteceu – disse com
uma calma impressionante.
– A única coisa que queremos aqui é descobrir a verdade, senhora testemunha.
Peço o favor de nos descrever, com todo o pormenor, o que se passou nesse dia? –
Pediu o advogado de acusação.
A depoente pensou rapidamente se recusaria ou não prestar declarações. Prestando
declarações dava a impressão de que não tinha nada a temer. Não prosseguindo a
diligência, ficaria sem saber o que o representante da acusação tinha contra si.

Domingos Barbosa da Silva 202


A estranha morte de um político

Então, resolveu prestar declarações. Olhou, demoradamente, para as anotações que


tinha à sua frente. Suspirou e bufou.
– É evidente que quero expor com todo o pormenor tudo o que eu recordo. Quem
não deve não teme. Fazendo isto, estou também, a prestar um serviço em prol do
meu amigo falecido.
– A senhora disse-nos que no momento do acontecimento se sentiu, também,
ameaçada e perseguida pelo homem alto, preto e forte, correndo em direcção às
ondas para evitar ser apanhada. Como se explica que o homem alto, preto e forte
não tenha disparado um tiro contra si para evitar que alguém, mais tarde, venha
testemunhar contra ele? Não teria a senhora um contracto com o assassino?
O advogado de defesa remexeu-se no seu assento, preocupado.
– Protesto, meritíssima. O colega está a insinuar algo aqui e a direccionar a
testemunha, levando a tirar conclusões que não lhe compete.
O advogado de acusação retirou a questão antes que a Juíza aceitasse a objecção.
Não fazia sentido pô-la do lado da defesa diante do júri.
– Não sei explicar. A mim também me ocorreu essa ideia! Eu fiquei desorientada a
ponto de desmaiar. Não lhe consigo explicar mais do que isto, sua excelência –
respondeu a testemunha.
– Muito bem. Explique-me como é que tendo desmaiado e estando um pouco
desorientada, conseguiu aperceber-se da iminência do perigo de modo a correr e
fugir de uma morte certa com um homem armado no seu encalço, tendo este, depois,
desistido da perseguição e desaparecido como fumo sem sequer um ferimento que
comprove tal perseguição? – Interrogou o acusador.
– Não sei explicar. Foi uma sorte. Deve ser o instinto de sobrevivência que acordou
em mim. Mais não lhe sei explicar. Estava confusa e queria, certamente, safar-me
dele.
A testemunha principal pareceu reflectir sobre as questões do advogado da
acusação e viu que este tinha estabelecido uma rede incriminatória da qual ela se
estava a tentar esgueirar-se. Sentiu também, que todo o mundo tinha os olhos
postos sobre ela e que só ela possuía o código secreto e muito bem selado. Porém,
não tencionava abrir a mão dele. Havia necessidade de impressionar o acusador, o
MP, os jurados, a Juíza e os investigadores, convencendo-os de que guardava uma
esplêndida imagem do malogrado e que esta imagem permanecia indelével no seu
íntimo mais puro. Não podia, de modo algum, entrar em contradições. Era
necessário pensar coerentemente e fazer o máximo elogio ao amigo perdido.

Domingos Barbosa da Silva 203


A estranha morte de um político

Fazendo isto, tinha a certeza de que os presentes haviam de julgá-la segundo o


exposto e não segundo os zunzuns do povo.
– Vamos repetir: por que razão o assassino não atirou contra si? Que interesse
tinha ele de deixar a senhora viver, uma vez que, sabia a fatal consequência que isto
acarretaria? – Repetiu o advogado de acusação.
Estava ali uma armadilha e a testemunha – a acompanhante – sabia perfeitamente
de que tipo. Aproveitou o silêncio que se seguiu para olhar para o seu advogado que
trazia os olhos especados nos dela. Mas este não podia socorrê-la, porquanto o
interrogatório estava a ser conduzido de acordo com a legislação em vigor, com
todos os direitos, liberdades e garantias. Só ela tinha a chave do acontecido. Só ela
era capaz de dar por concluído o processo, mas isto era um risco muito grande e
colidia com as directivas de quem encomendou o assassínio. A testemunha fez uma
expressão de quem quer lembrar-se de algo e acabou por responder.
– Não sei, excelência. Juro que não sei.
– Não sabe ou não quer explicar? – Perguntou o acusador.
0 advogado de defesa começou a sentir-se um pouco inquieto, uma vez que,
compreendeu a expressão no semblante da sua cliente e anteviu a consequência
que podia advir da resposta desta. Pediu ao representante do MP e à Juíza que lhe
concedesse meia hora de pausa para oxigenar os pulmões e colocar em ordem as
suas intricadas e atulhadas ideias. Durante o intervalo, a testemunha recuperou a
sua segurança psicológica, o que não foi bom para quem conduz o interrogatório,
pois desvia as atenções e favorece em demasia quem se encontra sob inquirição.
Depois de um curto intervalo, já com os pensamentos arrumados e compreendendo
a situação, e vendo que o interrogatório decorria com toda a observância do
estipulado na Lei, o advogado de defesa interveio para desviar do assunto:
– Senhor representante do MP. Queira desculpar a minha intervenção neste
momento. Não está, o senhor advogado de acusação, a insinuar que a minha cliente
participou directamente na morte do político que ela e toda gente amam?
– É isto mesmo, senhor doutor. Está muito patente no que foi dito. Deixe-me que
lhe diga que o senhor tem o direito de intervir quando achar que a pergunta foge ao
que está legalmente estabelecido. Contudo, estamos perante um caso policial e
quem faz a pergunta é a polícia ou um representante deste. Caso contrário, temos
os valores completamente invertidos. Às vezes, é preciso fugir do legalmente
estabelecido para revolver o que esta dentro de nós, mesmo não sendo polícia. Aqui
é o Tribunal que indaga e inquire.
– Desculpe, excelência. Eu só perguntei.

Domingos Barbosa da Silva 204


A estranha morte de um político

– Foi esse o mal, senhor doutor. Há perguntas desnecessárias que se deve ter a
decência de não ser feito. Neste caso, é a polícia ou o Tribunal que pergunta. O
senhor não devia ter perguntado. O que aconteceu em Quebra-Canela, tanto podia
ser um acidente como um homicídio. Ninguém vai para a cadeia por ter ocorrido um
acidente à sua frente, porque um acidente não é crime se não for premeditado ou
pré-arranjado. Um homicídio é outra coisa e, por isso, devemos ir ao fundo da
questão. Podem continuar os interrogatórios, senhor doutor? – Disse o
representante do MP.
– Obrigado, excelência.
O advogado de acusação retomou o fio da meada, virando-se para a testemunha
que se encontrava mais relaxada:
– Porque demorou tanto tempo a pedir ajuda quando já não estava a ser
perseguida? – Indagou.
A testemunha encontrava-se um pouco mais tranquila do que quando começou o
interrogatório depois do intervalo, pois tinha entrado nas portas da Justiça com a
firme convicção de que ia chegar, ver e vencer, mas o acusador tinha naquele
instante aberto uma brecha na sua muralha defensiva e fê-la sentir-se, por isso,
desanimada, fragilizada e com vontade de explodir, mas explosão, neste momento,
não lhe ajudava nada. Era um factor arriscado. Sentiu que o chão estava a fugir-lhe
debaixo dos pés, mas conseguiu dominar-se um pouco. Levantou os olhos para o seu
interlocutor e respondeu:
– Se não se importa, não respondo a essa pergunta, excelência.
– Compreensível, estando no seu lugar. Perder a concepção do tempo e espaço
nessa situação é normal e a senhora tem todo o direito de negar a responder. Não
importo, não. É um direito que lhe assiste sempre.
O advogado de acusação sentiu que os olhos do defensor a procuravam e foi ao
encontro deles. Deparou-se com o olhar espantado do mesmo. O MP, guardião da
Justiça, também não se deixou distrair pelos olhares. Reparou que a testemunha
estava a transpirar profusamente e a palidez do rosto era acentuada. O acusador,
por isso aproveitou a oportunidade para atacar de novo. Atacou mesmo. A acusação
notou o efeito das suas palavras e reparou que, tanto a testemunha como o seu
advogado, fitavam o chão, como se ali procurassem resposta para as perguntas do
advogado de acusação. Olhou de novo para a testemunha e para o seu defensor,
perguntou:
– Minha senhora, o que me responde sobre o desfecho do que se passou em
Quebra-Canela no dia 29 de Setembro de 1989?

Domingos Barbosa da Silva 205


A estranha morte de um político

– Se não se importa, excelência, não respondo também a esta pergunta.


– Não me importo. É um direito inalienável que lhe assiste a todo o momento.
– Fico agradecida.
– O que é que se lembra dos últimos momentos em Quebra-Canela naquele dia
fatídico?
– Muito pouco – respondeu com os olhos marejados de lágrimas.
– Sente-se culpada em ter levado o seu melhor amigo ao encontro de uma morte
certeira?
– Por um lado, sim, por outro, não. Fico com algo a escorrer-me pelas costas
dizendo que não devíamos ter ido para lá. Devíamos ter escolhido um outro lugar.
Depois, penso se a sua morte estaria assim escrita no livro do destino. Por outro lado,
não posso aceitar um sentimento de culpa por eu não ter imaginado uma situação
destas. Não o arrastei para lá. Foi uma decisão conjunta.
O MP encarou o defensor, depois de o escriturário ter lido o auto. Olhou para a
testemunha e depois para ambos os advogados e disse com a cara virada para o
defensor:
– A sua cliente fica detida, no seu domicílio, a partir de hoje e até que tenhamos
mais esclarecimento sobre o caso que estamos a averiguar. O caso é muito complexo
e precisamos de mais tempo para tomarmos uma decisão.
O advogado de defesa dirigiu-se para a sua cliente e balbuciou algumas palavras ao
seu ouvido. Depois, informou ao representante do MP de que não ia admitir tal
conclusão. Porém, consultando a Juíza, ficaram de acordo que as decisões estavam
tomadas e não havia um vim, vi e venci (lat. veni, vidi, vici). Entretanto, não demorou
muito até que, por um despacho qualquer de um departamento que achou por bem
anular a prisão preventiva, se constatasse que poucos dias depois, a testemunha
circulava pelo país como uma pessoa livre. Ela nunca confessou o crime e não foi
julgada nem condenada, apesar dos argumentos expostos que apontam a favor de
um conluio no assassinato de Quebra-Canela que envolveu a estranha morte de um
político. Pelo menos é o que se dizia nos meios de comunicação do país.

Domingos Barbosa da Silva 206


A estranha morte de um político

Domingos Barbosa da Silva 207


A estranha morte de um político

CAPÍTULO XXXII

A audiência de Badiu Boxero

Muito antes de a Juíza chamar o júri para entrar, o advogado de defesa do presumido
réu, levantou-se do seu assento, aproximou-se da tribuna e pediu ao tribunal um
veredicto no sentido da absolvição do seu cliente. Disse que o Estado falhara na sua
obrigação de apresentar provas capazes de atingir o critério para além da dúvida
razoável. Badiu Boxero já se encontrava a caminho da sala de audiência quando a
Juíza levantou a mão para o advogado de defesa e pediu que o guarda não deixasse
entrar o réu até que ela sinalizasse com a mão.
Chamou a acusação e a defesa para uma consulta e depois mandou-os sentar.
- O tribunal considera que os indícios apresentados pela acusação ainda não são
suficientes para a deliberação do júri. Senhor advogado de acusação, está preparado
para o trabalho em curso?
- Estou, excelência.

Domingos Barbosa da Silva 208


A estranha morte de um político

- Muito bem, vamos deixar entrar os jurados e depois o réu.


Ela fez um sinal ao guarda para que mandasse entrar os que estavam à espera no
corredor.
– O senhor tem algum depoimento de abertura, senhor advogado de defesa?
– Tenho, excelência
– Muito bem, vou passar-lhe a palavra em seguida.
Os jurados entraram e ocuparam os seus respectivos lugares. Depois de dar as boas-
vindas aos jurados, a Juíza entregou a sessão ao advogado de defesa.
– Senhoras e senhores, membros do júri, muito bom dia. Vamos começar uma nova
fase do julgamento do caso Renato Cardoso, em que trouxeram ao banco deste
Tribunal um suposto réu que encontraram nas proximidades da praia de Quebra
Canela, depois de muito tempo passado, para com ele justificar a morte de um
grande político. Entramos na fase de defesa e vamos contar-vos o nosso lado da
história para contradizer o que a acusação vos ofereceu nos últimos meses. Espero
que oiçam com muita atenção os argumentos da defesa e que vos permita ver o
cenário global do que se terá passado na praia de Quebra Canela a 29 Setembro de
1989. Se ouvirem e observarem bem e com atenção, verão a verdade emergir.
Este caso – continuou o magistrado – trata de uma coisa: dos segredos mais obscuros
no sistema jurídico cabo-verdiano de onde só se vislumbra um ténue vestígio pela
apresentação da acusação. Hoje, vão conhecer a verdade crua e nua: que o Badiu
Boxero é, aqui e hoje, a vítima que vai servir de bode expiatório durante as
audiências.
A Juíza compreendeu que a defesa chegou a um ponto parágrafo e olhou para a
mesa de acusação. O advogado de acusação levantou o olhou ao seu redor e ajeitou
a sua gravata.
– Meritíssima. Este julgamento é sobre um monstro que assassinou um homem do
povo e deixou um vazio na nossa sociedade. Este julgamento é, também, sobre a
honra de uma família e de uma nação inteira. Um monstro que orquestrou um plano
para matar, esconder o crime e depois apontar o dedo a uma pessoa inocente – o
meu cliente.
Ao proferir a última frase apontou para Badiu Boxero num jeito acusatório.
– Badiu Boxero, importa-se de se levantar? – Pediu o acusador.

Domingos Barbosa da Silva 209


A estranha morte de um político

O arguido pôs-se de pé, com a face virada para os jurados com um sorriso inocente
atravessado na cara, os dentes saltitados na boca, o corpo delgado e curvado e olhos
de carneiro mal morto a inspeccionar fixamente os jurados.
O advogado de defesa agitou a mão do seu assento e pôs-se de pé.
– Meritíssima, este homem é inocente. Está apenas a servir de bode expiatório. É
um inocente apanhado num plano orquestrado para esconder um dos piores crimes
de sempre desta moderna nação.
O defendente sentou-se enquanto a Juíza anotava algumas palavras no seu caderno
de notas. Ouvia-se um burburinho na sala que depois acalmou. A Juíza virou-se para
a mesa da acusação e fez um sinal ao advogado ali sentado para prosseguir a sua
inquirição.
– A mesa da acusação tem algo a acrescentar a isto?
O senhor advogado de acusação pôs-se de pé, olhou para os jurados e depois para
Badiu Boxero.
– Bom dia, senhor eehhh...
– Mi nha nomi ê Badiu Boxero
– Bom dia, senhor Badiu Boxero.
– Eehh senhor gó pamodi? Ca tchuma´m senhor!
Ouve-se outro burburinho na sala. O senhor da mesa de acusação pediu licença para
se aproximar do seu interlocutor e confrontá-lo de perto.
A Juíza apontou a marca no chão e disse:
– Não mais do que aquela linha, por razões de segurança!
– Badiu Boxero: o senhor frequenta a zona de Quebra Canela todos os dias, não é?
– Quebra Canela, não. Mi nha zona é praia Gamboa. Lá é todos os dias. Quando há
sol, deito-me debaixo do Pontão de praia Gamboa. Quebra Canela, não. Lá, só de vez
em quando. Quando houver negócios.
– O que faz todos os dias na praia da Gamboa?
– Biihh! Assunto privado.
– Senhor Badiu Boxero. Estamos no Tribunal e temos de ser francos um com o
outro. Responda à pergunta. O que faz todos os dias na praia da Gamboa?
– Estou a ser franco! Assunto privado, já disse.

Domingos Barbosa da Silva 210


A estranha morte de um político

O advogado de acusação detectou algumas dificuldades e pensou em mudar de


táctica. Suspirou fundo e deu uma olhadela em direcção à Juíza que encolheu os
ombros e pediu-lhe para continuar.
– Onde mora o senhor?
– Na praia da Gamboa.
– O senhor usa drogas?
O advogado de defesa levantou-se e protestou.
– O senhor advogado de acusação está a abusar do meu cliente. A pergunta é
irrelevante.
A Juíza pensou no protesto durante alguns segundos e disse:
– Vou permitir que Badiu Boxero responda às perguntas.
– O senhor usa drogas?
– Sim senhor. Uso pedra, cristal, cocaína e padjinha.
O advogado de acusação recompôs-se da situação, sorriu para os presentes e atirou
sobre o réu.
– O senhor Boxero lembra-se do que aconteceu no dia 29 de Setembro na praia de
Quebra Canela?
– Biihh! O senhor está a brincar. Eu sou toxicodependente. Sabe o que isto
significa? Nho ê propi brajero!
O advogado de acusação prosseguiu como se nada ouvisse, como se não tivesse
acabado de levar um murro no estômago.
– O senhor sabe usar armas de fogo?
Objecção meritíssima. Ele está de novo abusar do meu cliente – disse o advogado de
defesa.
– A mesa de acusação pode continuar – interveio a Juíza.
– O senhor Badiu Boxero sabe usar uma pistola?
– Não sei dizer. É possível, se me ensinar.
– O senhor tem uma pistola em casa?
– Biihh! Nha dinheiro é para drogas.
– Obrigado, meritíssima. Não tenho mais perguntas.

Domingos Barbosa da Silva 211


A estranha morte de um político

O olhar do advogado de defesa percorreu a sala. Parecia que todos estavam na


espectativa que o Badiu Boxero dissesse mais alguma coisa que o pudesse
incriminar.
A mesa de defesa de Badiu Boxero estava a apreciar o náufrago do outro lado que
não tinha argumentos incriminatórios para fazer cair o Badiu Boxero. O defensor
levantou-se e aproximou-se do seu cliente, penetrando-o com o seu olhar.
– Boxero, no dia em que foste preso nas proximidades de Quebra Canela, o que é
que foste lá fazer?
Badiu Boxero coçou a cabeça e olhou para cima com os seus olhos de carneiro mal
morto. Pôs o dedo indicador sobre a têmpora e olhou para o lado direito onde não
se encontrava ninguém.
– Não me lembro bem!
– Mas o senhor lembra-se dos polícias que o arrastaram para dentro do veículo
naquele dia?
– Ah, isso sim. Aquele estupor que me bateu...
– Porque achas que te bateu?
– Eu perguntei-lhe se foi ele que me mandou um bilhete para vir até cá comprar
crack.
Puxou do bolso das calças e tirou um pedaço de papel amarrotado com algo escrito.
Estendeu o pedaço de papel ao seu interlocutor. Este leu o bilhete e entregou-o à
Juíza. Depois de um momento de silêncio voltou às perguntas.
– Disseram-te porque te bateram?
– Não. Acho que deve ser por causa da pergunta.
– Que pergunta foi essa?
– Sobre a compra de crack, droga.
– O que significa compra de crack!
– Significa, compra de droga.
– E depois, o que fizeram contigo?
– Levaram-me para a esquadra da polícia e continuaram a bater-me sem dizer por
que me estavam a castigar. Mais tarde, disseram-me que eu tinha assassinado um
homem na praia de Quebra Canela há uns meses.
– É o que fizeste?

Domingos Barbosa da Silva 212


A estranha morte de um político

– O quê? Eu nem sei se foi morto um homem naquela praia. Sou toxicodependente,
doutor, e uso muitas drogas, incluindo álcool. Mas matar alguém, não... A única
coisa de que me lembro bem é de um miúdo me ter levado um bilhetinho num dia
em que eu estava a descansar debaixo do Pontão da praia Gamboa. Levantei-me
logo a correr para as proximidades da praia de Quebra Canela à procura de drogas.
O que encontrei foram os polícias que me começaram logo a bater e algemaram-me
as mãos por detrás das costas.
O defensor olhou para os jurados, mordeu os lábios, fechou o punho e esfregou-o
na sua própria nuca. Sacudiu a cabeça durante um momento e olhou para a Juíza.
– Meritíssima, não tenho mais perguntas.
Isto era um verdadeiro desastre para a acusação. O defensor olhou para a mesa de
acusação para se certificar de que esta se apercebia da péssima situação em que se
encontrava e depois virou-se para Badiu Boxero com um sorriso leve na face,
dizendo-lhe baixinho: arranjaram-te uma armadinha.
Badiu Boxero não entendeu patavina.

Domingos Barbosa da Silva 213


A estranha morte de um político

CAPÍTULO XXXIII

A audiência final – o julgamento

Na audiência de instrução e julgamento, foi utilizado o sistema de Cross


Examination, isto é, as perguntas foram feitas directamente pelas partes e, no final,
a Juíza fez as suas perguntas (questionamento suplementar); mas mesmo assim,
houve um preponderante interrogatório da parte da Juíza quanto à acompanhante.
A parte que se dedicou ao réu, foi também, aqui, dada menos atenção naquele dia.
As perguntas foram divididas em duas partes, primeiro sobre a vida pessoal do
suspeito e sobre o que ele sabia ou não sobre o crime. Depois, a testemunha
principal foi interrogada sobre o que sabia e não acerca da situação, o que viu
naquele dia fatídico do assassinato.
Depois da abertura, seguiu-se a fase de instrução preliminar (formação da culpa ou
judicium accusationis) na seguinte ordem:

Domingos Barbosa da Silva 214


A estranha morte de um político

• A audiência das testemunhas arroladas no assassinato.


• A audiência dos especialistas em matéria de Lei.
• A confrontação das testemunhas com o réu.
• O reconhecimento de pessoas ou coisas envolvidas no assassinato.
• O interrogatório do acusado ou réu.
• A mutatio libeli. (A mutatio libeli ocorre quando a Juíza ou o juiz, com amparo
nos factos apurados, verifica o elemento não exposto, explícito ou
implicitamente, no acto acusatório, apto a refutar a qualificação jurídica
proposta).
• A desclassificação das testemunhas e do réu.
• A sustentação oral pelas partes, primeiro o Ministério Público e, depois, a
defesa).
Apenas algumas das testemunhas que compareceram foram ouvidas, respeitando a
ordem: primeiro as da defesa e depois as da acusação. A Juíza proferiu a decisão em
audiência. Na fase final, isto é, durante a formação da culpa ou judicium
accusationis, o Ministério Público foi ouvido antes de a Juíza pronunciar a decisão
final. Aos restantes factos não foi dada muita atenção por serem extensos e
complicados.
Naquele determinado dia, mais de dois meses após o assassinato, a porta do
Tribunal estava apinhada de gente. O salão estava superlotado e as pessoas
encontravam-se de pé por todos os lados e, pouco antes das dez horas, depois do
porteiro ter aberto a porta, as pessoas invadiram o local mostrando um interesse
enorme pelo assunto. A primeira coisa que a Juíza observou foi a superlotação e
pediu que as pessoas se mantivessem em silêncio durante o julgamento
Os Serviços Oficiais foram tão eficientes que tudo correu bem e de forma ordeira. O
funcionário carimbou os documentos, um por um, com o carimbo em uso no
Tribunal e passou-os a Juíza. Depois, encarou toda aquela multidão que, do outro
lado da sala, aguardava com expectativa, o início da audiência. Ficou chocada ao ver
tantos rostos interrogativos olhando na sua direcção. Dirigiu-se para o seu assento
e, de repente, parou um momento antes de se sentar. Percorreu com o olhar toda
aquela gente, na esperança de ver algo que lhe chamasse a atenção quanto ao
comportamento do réu ou de alguns suspeitos. O réu envergava uma camisa branca
e um fato elegante. Apresentava-se sempre bem-trajado e não falava muito.

Domingos Barbosa da Silva 215


A estranha morte de um político

Depois das formalidades legais terem sido apresentadas, a Juíza fez uma introdução
consistente com os indícios próximos e distantes relacionados com o assassinato.
Ela era uma pessoa experiente na vida e nos trabalhos da Justiça. Trazia em mente
a descrição da situação transmitida pelos meios de comunicação e aquilo que lera
nos inquéritos policiais feitos e no semblante a imagem do prato da balança da
Justiça. Penetrava um olhar seguro no ambiente contagiado pelo silêncio. Um
silêncio que se sentia como uma pressão atmosférica muito alta e deixava um
ambiente perturbador. Ordenou que todos se sentassem e deu início aos actos.
As pessoas olharam na direcção do réu que tinha a cara voltada para o chão. A Juíza
pediu a todos que se levantassem de novo. Pediu desculpa por ter começado com
atraso e disse:
– Estamos aqui, minhas senhoras e meus senhores, para continuar o nosso
julgamento – dizia. Faremos o nosso melhor possível, com as informações que temos
e outras que vamos apurar no decorrer desta audiência, para trazer a limpo a
verdade dos factos. Sim, a verdade é a nossa razão principal de aqui estar. Temos
um réu à nossa frente e várias testemunhas. Vamos ouvir algumas, embora a nossa
atenção até agora, tenha sido concentrada no réu. Mas hoje, a testemunha principal
vai ser de novo ouvida durante esta audiência. Ela é a testemunha por excelência e,
portanto, para esclarecimento de todos, não é considerada neste momento, arguida
ou ré.
Vamos, portanto, dar continuação ao processo de julgamento do caso Renato
Cardoso. De acordo com o que apuramos das investigações e das conclusões tiradas
da sua relação com o malogrado, a acompanhante (a testemunha principal) é, assim
como muitas outras pessoas aqui presentes, uma testemunha muito importante
para a resolução do caso. Assim, embora até este momento, ninguém saiba indicar
quem foi o assassino, uma pessoa que presenciou os acontecimentos, deveria saber
identificá-lo. Se foi sua coadjuvante; se viu o homicida; se conhece os motivos do
assassino; se reconhece no réu, aqui sentado à nossa frente, algum sinal que se
coadune com a sua observação no local do assassinato que nos elucide de tudo o que
seja possível para aclarar a verdade, etc. Estamos aqui, precisamente, para apurar e
constatar estes factos – explicou a Juíza.
O advogado defensor da testemunha principal levantou a mão.
– Excelência, a minha cliente não tem a ver com a morte do malogrado, apesar da
sua boa relação com o finado – disse o advogado da acompanhante. – Para dizer a
verdade ela não sabe neste momento ao certo quem o matou. Está cheia de dúvidas.
Sabe que houve confrontos perigosos em que ela também esteve em perigo e que a

Domingos Barbosa da Silva 216


A estranha morte de um político

estatura do réu coincide com a do seu perseguidor. Além disso, temos um suspeito à
mão que deve ser julgado antes de mais nada – disse.
– A testemunha principal estava com Renato, na praia de Quebra-Canela, na tarde
e no momento em que foi atingido pela bala mortal, como se explica o facto de não
saber de nada quanto à morte do malogrado? O senso comum interroga
constantemente: como é possível não saber? Como? Como é possível que seja de
outra forma? Não estou a julgá-la. Estou a pensar alto.
– Excelência, ela estava com ele e todo o mundo o sabe – entremeteu o defensor.
O representante do Ministério Público, depois de observar o tom e o caminho pelo
qual a audiência ia enveredar, interveio para apaziguar os ânimos nos presentes.
– Este Tribunal não deve e não pode tirar conclusões apressadas, mas precisa saber
mais sobre o caso já que estavam juntos na altura da morte. O que lhe disse antes
da sua morte? O Tribunal ouvir-lhe-ia com gosto a respeito disto, se no-lo pudesses
relatar com precisão. Sabemos que morreu por ter sido atingido por uma bala
mortífera, quanto ao resto, ninguém nos tem sabido dizer nada. E, além disto, não
se percebe a razão de ele não ter pronunciado nada sobre a situação nas últimas
horas antes da sua morte.
– É verdade, meritíssima. Já se fazia escuro quando apareceu um vulto mascarado
que se atirou sobre eles, o que causou pânico – disse o defensor.
– Por que foram para Quebra-Canela e de que assunto iam os dois tratar, uma vez
que, tanto a acompanhante quanto a vítima, eram casados – interrogou a mesa de
acusação.
– Bem, a minha cliente, foi uma antiga amiga, colega de Renato! No momento do
ataque, as suas relações eram puramente de ordem platónica. Não havia nenhum
relacionamento íntimo, como muitos suspeitam. Renato tinha-lhe telefonado dias
antes e convidou-a para uma leitura séria sobre um trabalho que ia ter grande
impacto na política nacional. Além disso, confidenciou-lhe que ela era a única pessoa
com o direito e acesso a tal documento. Ele precisava de alguns conselhos!
– De que trabalho se tratava? – Inquiriu. – Pedimos ao defensor, a gentileza de nos
contar tudo o mais exactamente possível, se, por acaso, nenhum compromisso o
impedir – acrescentou.
– Vou tentar pôr-vos a par de tudo, pois sempre foi, para mim, a coisa mais
agradável, lembrar-me de Renato e da sua maneira de ser e ver o mundo. A minha
cliente não teve tempo de ver os papéis, mas soube que se tratava de um projecto
nacional, bem trabalhado, que visava uma mudança na estrutura política no país.

Domingos Barbosa da Silva 217


A estranha morte de um político

Era isto. Todos os rumores que circulam ou que circulavam à volta disso são
incoerentes e descabidos. Um homem daquele calibre não pode ser morto pela sua
melhor amiga, acrescentou o defensor.
– Todos os que aqui estão vão escutar-te com todo o interesse deste mundo e
parece-nos que temos os mesmos sentimentos e a mesma admiração pelo
malogrado. Portanto, agradecemos os vossos esforços para nos contar tudo, o mais
minuciosamente que puderem, começando por nos dizer de que rumores fala o
defensor – inquiriu o Tribunal.
– Bem, segundo os rumores de que, por ter sido a antiga namorada, em quem tinha
muita confiança, era fácil criar uma situação semelhante a que foi criada nos meios
de comunicação de massas. O facto de o marido ter aconselhado a esposa a não
manter qualquer relação com Renato, induz em interpretações erradas que os meios
de comunicação de massas do país têm explorado a este respeito. Todas estas
questões são afastadas quando temos um arguido. Perguntamos, portanto, porque
é que não se faz justiça já que temos um suspeito no caso? – Questionou de novo o
defensor.
– Vamos colher mais informações antes de fazer qualquer juízo de valor acerca do
arguido. Contudo, gostaríamos de saber como descreve, a sua cliente, os momentos
à volta do ataque – interveio de novo o Ministério Público.
A acompanhante saltou do seu lugar, pondo-se de pé e, sem pedir autorização ao
seu advogado, abriu-se para com os jurados:
– Os momentos em que estive com ele e que precederam ao ataque, foram
extraordinários. Mas os que se seguiram depois, foram de confusão e pânico. Assistir
a uma situação tão confusa que envolveu um amigo que me era tão caro, sem ter a
possibilidade de o defender, era e continua a ser uma grande tristeza.
A Juíza advertiu a todos que não se pode falar directamente aos jurados.
– O que nos pode dizer mais sobre a escolha do local do vosso encontro? – Inquiriu
o lado da acusação?
O defensor pediu à acompanhante para pronunciar algum parecer sobre a escolha
do local, mas para fazê-lo resumidamente.
– Bem, o Renato e eu tínhamos o costume de, nas vezes que nos encontrávamos,
fazer uma proposta sobre o local de encontro e Quebra-Canela é um dos lugares
preferidos. Alguns dias antes, porém, reunimo-nos um pouco mais tarde, dado que
ele tinha um encontro importante, marcado com o Presidente da República e tinha

Domingos Barbosa da Silva 218


A estranha morte de um político

de se preparar. No último encontro, combinámos entre nós o lugar habitual, mas eu


preferi, dessa vez, ir buscá-lo de carro e fomos para Quebra-Canela.
– Mais se acrescenta que o caso é terrível, eu nem consigo conceber a ideia de que
hoje Renato não está mais entre nós e que a minha cliente perdeu um amigo tão
estimado e leal. Há tantos rumores quanto aos motivos da sua morte. Não consigo
ver a lógica – intercedeu o defensor.
– A acusação acha que rumores a que se está a referir, são adequados ao caso.
São lógicos para qualquer pessoa. Também a nós, nos ocorreram esses motivos. E
mais se acrescenta, as investigações apuradas, obrigaram-nos a deixar de lado os
factos incertos, para só pensar no que temos diante de nós. Não acreditamos que,
sendo melhor amiga, tenha perpetrado um acto horrível como este. O que não se
compreende são os arranhões que a sua cliente tem, senhor defensor. Não se pode
entender o por quê de ela se ter apresentado toda molhada após o tiro e, além disso,
não saber algo concreto sobre o assassinato, não reconhecer o réu que aqui temos
para nos poupar o nosso precioso tempo.
– Ela foi perseguida durante muito tempo. Procurou defender-se a todo o custo. Foi
igualmente atacada e escorregou por entre as pedras. Eis a causa dos arranhões.
Lutou muito tempo entre a rebentação das ondas, os calhaus e a praia, para fugir.
Lutou muito com o mascarado para se salvar e, por isso, demorou muito tempo até
conseguir pedir socorro. Ela já se tinha pronunciado sobre o réu presente, dizendo
que é o mesmo que atirou sobre Renato.
Os olhos do réu arregalaram-se. Ele abanou a cabeça como sinal de desaprovação.
– Sabendo que existe uma testemunha ocular, uma pessoa que presenciou e ouviu
tudo, achamos que o assassino ou assassina deveria tentar eliminar todos os
vestígios que pudessem incriminá-lo (a) o mais rápido possível. Aqui, notamos a sua
enorme preocupação com o réu que temos à mão e o facto de não se lembrar de
mais nada, mas, no entanto, recorda-se bem do réu. Questionamos o facto de ele
não ter baleado a acompanhante logo a seguir – expôs o advogado de acusação.
Seguiu-se uma pausa. Muitos permaneceram sentados. Outros agruparam-se num
canto do salão. Os olhos dos familiares pareciam furar o peito da acompanhante.
Uns fitavam o tecto como erguidos em súplica, pedindo a protecção divina, o alívio
às suas dores face à desgraça. Uns, pensando em como é possível que uma pessoa
possa não saber nada do crime e do que por detrás dele possa estar, tendo estado
no local e presenciado tudo. Pouco se pode avançar nas pesquisas se nenhum indício
for fornecido. Se não se analisar os arranhões, as pegadas, a mordedura, a impressão
digital, o cabelo, as roupas, o cuspo, não se pode obter provas indiciosas. Um crime
perpetuado na penumbra, onde um buraco no peito cheirava a pólvora quente,

Domingos Barbosa da Silva 219


A estranha morte de um político

devia ser devidamente investigado e só um surdo não ouvia o estalar do revólver. A


investigação criminal deve ser uma das mais privilegiadas áreas da polícia nacional,
pensam muitos. Isto é um grande desafio nacional. São necessárias reformas para
que a polícia seja vista como instrumento ao serviço dos interesses da sociedade.
Fátima, que se encontrava sentada ao lado da Marta, balbuciou umas palavras ao
ouvido da amiga: imagina a sociedade cabo-verdiana sem uma polícia de
investigação criminal eficaz! Pensa que da Brava a Santo Antão, em toda essa costa
cabo-verdiana, há criminosos que aproveitam de forma tranquila e despreocupada,
a ausência de trabalho eficaz da polícia criminal, enriquecendo no tráfico de drogas,
com pessoas que vão saindo e entrando no país, através do mar, sem que as
autoridades delas tenham conhecimento! Tudo isso, é um tremendo desafio à nossa
jovem nação, com terreno fértil para tudo, para o desenvolvimento e para a
criminalidade, para a paz nacional que a nossa Cesária canta e para o medo e dor
que os nossos criminosos espalham entre nós. Portanto, aqui tudo é fácil fazer; matar
sem sofrer as consequências; roubar mesmo à luz do dia; roubar, principalmente, a
liberdade dos outros. Precisamos combater a criminalidade, o desemprego e
promover a justiça neste país.
O raciocínio foi interrompido com a entrada dos jurados.
– Vamos retomar o nosso trabalho – disse a Juíza. – Especula-se, como foi
observado há pouco, que o marido da acompanhante a tenha chamado à atenção
para não manter relações próximas com Renato. Como é que se explica este chamar
de atenção e qual é a relação que a acompanhante mantém com o seu marido nos
dias que correm? Esteve ou não o seu marido na capital no dia do assassinato? –
Perguntou.
O advogado de defesa pediu a palavra e foi directo à questão colocada.
– Senhora digníssima Juíza, trabalhos deste género não se baseiam em
especulações, mas em factos. Deve-se realizar todas as pesquisas possíveis e, para
tal, esforçar-nos-emos juntamente com os senhores, para que o assassino seja
apanhado e punido o mais breve possível. Porém, tem de basear-se em factos e não
no que se ouve dizer ou em rumores banais. Devemos, paralelamente com o trabalho
feito para nos colocar um réu aqui, investigar mais para sabermos se há mais
suspeitas, se houve cúmplices, se este réu é o verdadeiro atirador – disse.
O advogado de acusação levantou-se e virou-se para os jurados e para a Juíza e disse:
– Digníssima, gostaríamos de saber o que o Ministério Público acha da situação até
aqui descrita, se não constituir um estorvo para este Tribunal.

Domingos Barbosa da Silva 220


A estranha morte de um político

A Juíza virou-se para o representante do Ministério Público e assentiu com um gesto


leve.
– O Ministério Público acha que estamos perante uma testemunha de capital
importância, pelo menos, assim a chamamos provisoriamente, que conhece a
verdade e não fala. Estará o que foi dito sopesado no prato da balança da Justiça?
Mesmo que não esteja, sabemos muito bem que o amor carrega, em si, um venenoso
gérmen de ódio, duro, cru e brutal que fere como o abrolho. Daí se pondera, talvez
erradamente, que há qualquer elemento passional envolvido no caso. Está o seu
marido envolvido? Ou terá contratado alguém para executar a vítima? Há uma
relação íntima entre a violência e a honra, antropológica e culturalmente falando. A
honra é uma virtude muito apreciável em quase todas as sociedades, mas ela cria
conflitos tanto com o passado como com o presente e com o futuro, porque tem os
seus lados negativos. Ela tem qualificado milhares de crimes no nosso tempo e no
passado. No nosso país, a honra é uma virtude muito apreciada, principalmente,
quando se refere a relações entre esposa e marido. Há, portanto, aqui,
possivelmente, indícios próximos e distantes no exercício da honra ligado ao
assassinato. Não é preciso ir muito longe para provar o que estamos a dizer. Aqui
mesmo, em Cabo Verde, encontramos casos de assassinato de esposas infiéis, bem
como, de seus respectivos esposos/amantes. Noutras culturas, esse possui uma
atenuante na lei por ser considerado defesa da “honra” do marido/esposa traído/a.
Nós, em Cabo Verde, consideramos este crime como hediondo e é severamente
punido pela lei – esclareceu.
A maioria das pessoas que lê os jornais que seguiram o acontecimento, pensa que a
acusação anda atrás da pessoa certa e que conhece os meandros do assassinato.
– Os senhores estão a raciocinar como se entrasse um elemento de vingança no
caso. Nisto temos a acrescentar que a interrogada nega todas as possíveis acusações
a si imputadas – reagiu o advogado de defesa da acompanhante.
– É um direito que lhe cabe em não responder, mas, presumimos que a
acompanhante está a esconder muitas coisas. Está a esconder algo ou está a
proteger alguém. Embora prazeroso para quem minta, não o é para aquele que é
vítima da mentira. Mentir, neste caso, é algo imoral. Imoral principalmente quando
a mentira é aplicada a uma situação de homicídio. Falso testemunho pode tramitar
em prisão! – Interveio a acusação.
A equipa de acusação ficou ansiosa em ouvir mais alguma coisa do MP, mas
contentou-se com o que foi pronunciado.
– Que prazer tem a minha cliente quando se sabe que ela é a maior amiga do
malogrado? Quando a sua própria vida se encontrava no fio de uma espada? Ou na

Domingos Barbosa da Silva 221


A estranha morte de um político

boca de um revólver? O Tribunal está a tratá-la como masoquista quando dá a


impressão de que ela sente prazer em mentir, castigar e matar numa situação
destas?
A Juíza interveio dizendo que o tribunal está apenas a levantar hipóteses para servir
de base para o julgamento.
– Não estamos sequer a pensar em actos masoquistas, nem de suspeitas. Estamos
apenas a analisar as possibilidades de existência de indícios próximos e distantes, no
caso de se tratar de um crime de honra. Este tipo de crime designa actos de extrema
violência, geralmente homicídio, perpetrados por membros de uma família,
geralmente contra um indivíduo do mesmo núcleo familiar, pelo facto de
considerarem a sua conduta imoral e nociva para a honra da família. Neste caso, é
uma mulher que está em apreço, uma amiga íntima, fenómeno não muito raro na
nossa sociedade. Os motivos pelos quais este crime é observável hodiernamente, são
diversos: recusa da mulher em aceitar um casamento imposto pela família;
ineficiência na esfera doméstica; pretensão de divórcio; adultério ou o facto de ter
sido vítima de violência sexual; ciúmes; quando os homens arranjam 2-3 mulheres e
a esposa vai contra esse comportamento, etc. Cada um destes factores é considerado
um atentado à honra familiar e o modo privilegiado de restabelecê-la é eliminar o
membro que a denegriu. Repugna até os mais insensíveis, mas para muitos, parece
ser a solução mais apropriada. Se ela não casar comigo, ninguém vai tê-la, se ela não
me quer, ninguém a vai querer. Ela foi criada só para mim, se não serve para mim,
não vai servir para mais ninguém, e assim por diante. As palavras da acompanhante
podem ser doces como mel e, ao mesmo tempo, amargas como fel, senhor defensor.
Os indícios distantes mordem, penetram e devoram a consciência nacional, atingem
e explodem o coração da família do malogrado. Queremos que nos forneça
informação que nos permita condenar a pessoa certa.
A acompanhante aproximou-se do seu advogado e segredou-lhe qualquer coisa, o
que este assentiu com um gesto positivo, acenando a cabeça. Pediu licença à Juíza e
pregou o olhar nos que estavam a julgá-la. Levantou-se com a firmeza de uma leoa
e explodiu numa contraposição:
– Meritíssima, se me permite, vou dizer algumas palavras para todos.
A Juíza assentiu de deferiu o pedido da acompanhante.
– Os senhores magistrados estão a tentar convencer os jurados a condenar-me ou,
pelo menos, a suspeitar de mim por um crime que não cometi. É injusto. Neste
momento sinto o coração vazio, cansado e desanimado depois de ouvir tantas
acusações contra a minha pessoa. Os meus dias continuam a ser todos iguais na

Domingos Barbosa da Silva 222


A estranha morte de um político

minha consciência, mas partilho as insatisfações acerca das investigações até com
as pedras da calçada, o facto de não ter ainda na mão um criminoso ou o que temos
não ter confessado o crime. Estou a travar uma batalha contra o nada que me quer
fazer ajoelhar perante uma situação onde ninguém consegue demonstrar a minha
culpa. Metam-me na prisão se assim quereis! Estou a ser tratada como uma
criminosa ou, pelo menos, como suspeita. Se os senhores acharem que sou culpada,
quero a partir de agora, que me tratem como ré deste caso e deste Tribunal. Já fui
suficientemente chamada de assassina. E, se o amanhã vos convencer da minha
inocência, vivereis o resto da vida com a consciência pesada. E, se amanhã vos
entregar na mão o desgraçado assassino num piscar de olhos, terão a certeza de que
este facto vos marcará para todo o sempre? E se o réu à nossa frente vier a confessar
a sua culpa?
Sei que são tantos a chorar por uma vida perdida, uma vida que tanto significou para
a minha pessoa, mas principalmente, para os familiares e para a nação. Seriam
tantas as fontes de bocas sequiosas e de calor humano que pudessem ser saciadas
pelo trabalho intelectual do malogrado. Eu padeço de igual modo os cilícios da
sociedade, da família e dos amigos. Os senhores estão a tocar, sem permissão
alguma, a corda da minha pungente dor, a aumentar o volume de tudo que entra
agora de rajada pelos meus sentidos que estão prestes a explodir, a provocar a febre
que irradia dos meus poros, uma sensação indescritível e a desonrar o meu nome em
público. Senhores jurados, sou completamente inocente. Podia, também, estar
morta neste momento. Ainda vejo a silhueta do mascarado à minha frente! A
perseguir-me o tempo todo. Imaginem! Procuro enterrar tudo o que aconteceu por
tão doloroso ser, por me seguir para onde quer que vá, para não mais ter de recordar
aquela paisagem e tudo o que lá aconteceu. Não vos posso descrever o que sinto
porque não encontro palavras adequadas, provavelmente não hei de encontrá-las
em lado nenhum. Devem estar guardadas no meu íntimo, num lugar que nem eu sei
o código de entrada. Se têm uma justiça a fazer, há que acalmar ideias acusatórias
contra mim, voltar à realidade e agir no sentido de não mais perder tempo e conduzir
uma investigação mais aprofundada, agora com mais força de raciocínio e sentido
de responsabilidade. Sabem, senhores, os tesouros desta vida são as insignificâncias
que nos atropelam todos os dias e teimamos em não ver. As inquirições no lugar do
tiroteio não são uma dessas insignificâncias, antes pelo contrário. Do nosso encontro
resultaria, certamente, algo de muito útil para esta Nação. Mas infelizmente, não
tivemos essa oportunidade. Agora é o momento de cuidar dos valores que Renato
incutiu em nós, regar a sua alma com compreensão de um sábio, alimentá-la com
confiança, deixar florir nela a coragem, com a paciência de Job e colher o fruto da
sua sabedoria, do seu esforço e do seu trabalho para que se multipliquem em
esforços contagiantes.

Domingos Barbosa da Silva 223


A estranha morte de um político

O suposto réu tirou a cara do chão e reparou que todos tinham os olhos pregados
na acompanhante. A Juíza ficou impaciente depois de ter ouvido o longo discurso.
Virou-se para o representante do MP e não disse nada. Depois o advogado de
acusação pediu a palavra para um comentário.
– Como inspira piedade, minha senhora! Que quer obter deste discurso quando os
pratos da balança pesam a seu desfavor, isto é, contra si? Quando a tríplice
encruzilhada, os olhos do mundo, o seu encontro e as suas relações com o
malogrado, apontam para si como a única testemunha credível! A senhora não quer
colaborar e está a comportar-se como uma vítima em todas as suas intervenções.
Até agora a senhora é considerada testemunha e declarante. Mas há algo não dito
até agora. Se não foi dito é porque alguém está a proteger outros. Está com medo
da verdade. Parece-nos, que o que pede só Deus é capaz de conceder – disse.
A testemunha principal levantou-se e pediu palavra à Juíza para fazer um
comentário.
– Neste caso alcançareis o que desejais. Culpar-me por um crime que não cometi.
Isto é ver a Justiça cometer assassínio – acrescentou a testemunha principal.
– Não nos agrada dizer coisas sem sentido e o que não pensamos. Bem sabe que o
seu discurso não lhe assegura a felicidade na vida e nem lhe garante uma liberdade
imediata. – Disse o representante do MP.
– Oh, meu Deus! Até quando a figura feminina continuará a ser vítima das mais
inimagináveis e hediondas injustiças? – Retorquiu a acompanhante
A testemunha principal aproximou-se do seu advogado de defesa. Confidenciaram
de novo algumas palavras depois de terem pedido a autorização da Juíza. O
advogado de defesa virou-se para os jurados quanto se estabeleceu um silêncio
sepulcral e disse:
– Senhores, digníssimos jurados. Excelências. Durante esta audição trataram a
minha cliente como se fosse uma ré, embora tenhais também feito declarações que
dizem o contrário. A justiça não se faz com o coração, nem com argumentos
baseados em adivinhações e conjecturas fáceis. Pesa sobre este Tribunal
preconceitos femininos de uma sociedade pouca organizada, que não protege uma
inocente para pura e simplesmente acautelar as suas instituições incapazes de
investigar um crime quando tinham à sua frente dezenas de possibilidades de
recolher indícios de toda a ordem. Pedimos que se dê tempo ao tempo, para que as
instituições atinentes se concentrem nos indícios que ainda se encontram ali fora,
antes de fazer um juízo de valor apressado e perigoso, muito perigoso para o nome
da Justiça. Porém, aconteça o que acontecer nesta audiência e no julgamento final,

Domingos Barbosa da Silva 224


A estranha morte de um político

recorremos, primeiro, ao vosso bom senso, solicitando a este Tribunal, que a nosso
ver, anda às apalpadelas, como quem anda às escuras num apartamento
desconhecido, que declare a minha cliente inocente, caso estiverem a tratá-la como
ré deste Tribunal. Deixem, meus senhores, que a ciência tome conta deste processo
para nos apresentar os indícios capazes de nos fornecer informações que nos
ponham na pista certa. Posto isto, e se as coisas correrem pelo vosso lado,
recorreremos, em segundo lugar, às entidades mais altas para que oiçam as nossas
vozes. E mais, se julgais com o coração, não esqueçais de que o coração do homem
é um templo de onde deve sair coisas com afecto e amor. Quando as suas portas se
encontram fechadas para um homem ou uma mulher, ele também está fechado para
Deus. Tenho por mim uma consciência pacificada porque uma alma limpa e uma
consciência limpa são como pão e vinho para o corpo. É o que tenho para vos dizer
neste momento.
– Pois bem, senhor defensor, nada ocultaremos do que pensamos. Na nossa
opinião, a senhora que se encontra ao seu lado, foi cúmplice no crime ou foi quem o
organizou, embora não o tenha cometido com as suas próprias mãos. Temos até
agora poupado nas palavras que a colocam na posição de ré, temos-lhe dado o
benefício da dúvida desde que iniciámos esta audiência para não cair
apressadamente em erro. Portanto, temos virado a nossa atenção, talvez
erradamente, para o réu presente e para outras questões. A sua cliente, devia estar
trancada atrás das portas da prisão neste momento, porque há razões de sobra para
o fazer. Entretanto, dado à natureza do crime, julgo ser pertinente e sensato
recomendar a todos o arquivamento do processo até o apuramento de mais provas
concretas, para não cair no precipício que a dúvida cria.
– É muito sábio o modo como procedeis no assunto, senhores doutores. Estamos
aqui para nos defender e continuamos a fazê-lo, no meio da desgraça que nos assola
e aflige. Porém, não queremos permanecer sob a afronta de semelhante suspeita e
profunda injúria. Aprendemos muito cedo que não se deve acusar alguém
simplesmente por vagas suspeitas ou por ouvir dizer.
A Juíza, depois de consultar todos os jurados e pedir a todos para se aproximarem
da tribuna, esclareceu alguns pontos importantes apurados até o momento. Depois
de todos terem regressado aos seus respectivos lugares, a mesa de acusação pediu
a palavra, mas não lhe foi dada a oportunidade porque a atenção estava virada para
a mesa de defesa. A Juíza olhou para a acompanhante e disse:
– Alguém muito próximo de si sabia que este réu tinha qualquer delito anterior e
que a suspeita cairia mais facilmente sobre ele. A coisa, segundo nos parece, foi
arranjada de tal maneira que criou confusão na cabeça de toda a gente. Porém,

Domingos Barbosa da Silva 225


A estranha morte de um político

devemos recordar a todos de que simples indícios não são provas para condenação
e que o próprio “dominus litis”42 pede a absolvição do réu aqui presente. O indício
não é meio de prova, mas sim, fonte de prova indirecta. Nós não estamos perante
vagas suspeitas, mas sim, diante de um quadro de razões e indícios que qualquer
cidadão comum pode deduzir. Entretanto, achamos por bem adiar, por um tempo
indeterminado, este trabalho, dar tempo ao tempo, elucidar mais esse mistério e
reforçar os indícios. Mas não esqueçais, meus senhores, que onde o corpo anda,
também anda a sombra. A sombra da insatisfação, a sombra do protesto calado, a
sombra da desgraça, a sombra do medo e do infortúnio. Da mesma maneira, a
verdade é acompanhada pela mentira. Ficais, por enquanto, com os benefícios da
dúvida. Além disso, não existe transparente juízo de certeza para acusar o réu
presente de homicídio em causa nem de atribuir cumplicidade à acompanhante. Por
isso, o veredicto tem de ser o de inocente. Voltemos a repetir: este Tribunal não pôde
apurar um juízo de certeza e por este grande motivo o processo vai ser arquivado e
o réu fica livre como um passarinho – concluiu a Juíza.
Houve sussurros que faziam-se ouvir à distância, os olhares penetravam o espírito
dos presentes e adivinhava-se o pensamento dos mais chegados da família, pondo
e sobrepondo sombras de dúvidas. No entanto, o defensor sublinhou a necessidade
de evitar que se crie na sociedade demasiado orgulho que muitas vezes produz o
tirano. E acentuou que, quando excessos de imprudências em vão se acumulam em
indivíduos que têm o poder nas mãos precipitar-se-á do auge do poder num abismo
de males sociais, de onde não mais se poderá sair. O defensor prometeu continuar
a trabalhar para que ninguém neste país sofra injustiça. Estamos num bom caminho
– pensou, pois, os jurados mostraram competência e maturidade nas decisões
tomadas. Fortaleceram o valor do trabalho judiciário, valorizaram o trabalho da
polícia e a estratégia de combate ao crime, ao tomar uma decisão acertada e
justiceira. Mas o defensor também compreendeu a insistência do Tribunal em
aclarar o problema o mais urgente possível, a preocupação de proteger toda a
sociedade e as suas instituições e que levaria entranhado na alma, as lembranças de
um clima de debate saudável e ponderação na tomada de decisões. Deu um abraço
de vitória à sua cliente, votou-lhe um riso interior, olhou algum tempo para o papel
que tinha na mão e mentalmente para os jurados e pensaram os dois: veremos mais
tarde. Os dois entreolharam-se uns segundos, sem dizer nada, como se lessem na
alma um do outro. Ambos vieram ao mundo com profundas rugas de sabedoria no

42Costuma-se fazer referência ao Ministério Público com duas expressões latinas: “dominus litis” e
“custos legis”. “Dominus litis” significa “dono do litígio”, ou seja, titular da acção, aquele que tem
legitimidade jurídica para ajuizá-la. A expressão refere-se em geral à acção penal, de que o MP é,
quase sempre, o titular privativo.

Domingos Barbosa da Silva 226


A estranha morte de um político

espírito. No entanto, a justiça não se faz apenas balançando os pratos da balança,


pois ela não é de modo nenhum, uma divisão equitativa de bens. Ela é mais uma
reguladora dos direitos e deveres, servindo para punir os que roubam dos outros a
sua liberdade de existir, de pensar, de expressar, de possuir e de agir.
Marta colocou os cotovelos sobre os dois joelhos e apoiou a cabeça entre as suas
duas mãos feitas em forma de conchas. Reflectia profundamente em como a culpa
e a inocência se transformaram em conceitos vazios, opacos, quando o poder, a
arma, o nepotismo, o oportunismo e a injustiça mostram seus rostos graníticos. O
injusto manda e determina que no seu tribunal todos os culpados são inocentes e
procuram um inocente para culpar. O que chamam de justiça não é mais do que a
cara petrificada da injustiça, o que chamam de concórdia não é senão o rosto
granítico do silêncio amordaçado. A acompanhante explicou que foi perseguida e
procurou fugir. Quanto tempo levou a perseguição e como se justifica que, tendo
sido o malogrado atingido pelo tiro mortal, ele tenha ficado estendido no chão
durante o tempo de perseguição sem ter podido pedir ajuda, sendo que, só veio a
falecer mais tarde e não de imediato no local? Estranha discrepância de ideias e
narrações. Se o tiro foi dado enquanto estavam frente a frente, a intuição leva-nos
a crer que foi na presença da acompanhante que ocorreu o assassinato. Mantenho
a minha opinião, ela sabe quem foi o assassino.
Virou-se para Fátima e questionou o adiamento ou o arquivo do processo. Será que
tudo isto fica enterrado na história das nossas ilhas, na subconsciência do nosso
povo, no silêncio caprichoso dos nossos governantes e no medo colectivo da nossa
gente? Como isso é possível? O que pensar do período em que a acompanhante
estaria a correr para evitar que o assaltante a apanhasse, sem lhe ocorrer o perigo
ou a ideia de ele ter na mão um revólver que poderia utilizar para se desfazer da
única testemunha do acontecimento! Na linha deste raciocínio, acrescenta Marta,
houve provavelmente, uma espécie de colaboração a alto nível ou uma outra a baixo
nível, ou ambas as formas, arregimentada pela própria acompanhante e pelos seus
coadjuvantes. Se, por um lado, ela não estivesse directamente envolvida na morte,
por outro, deveria saber ou pelo menos desconfiar e descrever a situação com mais
pormenores do que tem feito para se defender melhor do que tinha feito até então.
Os arranhões, a roupa molhada, as corridas e defesas, o perseguidor, os pedidos de
ajuda e o caminho que o processo tomou, levam-nos a crer que há muitos desvios
do normal, da realidade. Qualquer um diz: ela é a culpada, meta-a no calabouço.

Domingos Barbosa da Silva 227


A estranha morte de um político

Mas vamos dar-lhe o benefício da dúvida, por que não possuímos a capacidade de
adivinhar e isto é bom para ela.43

CAPÍTULO XXXIV

Marta e Fátima (10 anos depois)

Nos fins dos anos 80 e começo dos anos 90 houve, um baralhar de religiões no
pequeno espaço geográfico cabo-verdiano. O que mais se destaca aqui é um
pequeno agrupamento de aderentes a um deus antigo do tempo da Babilónia.
Nunca se ouvia falar de tal deus nas nossas ilhas. Era o deus dos assírios. Esse deus
era adorado por um grupo de cabo-verdianos. Alguns juntaram-se ao grupo pela
atracção e por afinidade do nome Pazuzu. Aquiles liderava o grupo que, pouco a
pouco, se tornou uma comunidade de 8-10 pessoas. Era um ateu ferrenho, aliás, era
um agnóstico como preferiam alguns chamá-lo. Pazuzu era tanto o deus dos assírios
como o dos babilónios. Era o deus mais venerável desses povos durante os primeiros

43Esta audiência foi inspirada numa obra clássica – Édipo – de Sófocles que se encontra no –
http://www.dominiopublico.gov.br/

Domingos Barbosa da Silva 228


A estranha morte de um político

milénios antes de Cristo. Para os que tiveram a sorte de visitar o Museu de Louvre,
como Aquiles, devem ter já travado conhecimento com o deus mitológico dos
assírios e dos babilónios.
Como esse deus teve impasse no país, não se sabe e as influências babilónicas não
têm precedentes na nossa terra. Pazuzu era o rei dos demónios e dos ventos, filho
do deus Hanbi, sendo este um deus cruel e maldoso, senhor de todos os espíritos
malignos que povoam a terra e/ou o inferno. O filho saiu o pai, isto é, Pazuzu não
poderia ter saído muito diferente do pai. Representava também, o vento de sudeste,
transportador da tempestade, da carência e da seca. E como a seca é um fenómeno
periódico em Cabo Verde, os aderentes a este deus deviam ter sido influenciados
por um tal fenómeno.
Este deus é normalmente ilustrado com uma combinação de vários animais e
algumas partes do corpo humano. Por exemplo, cabeça de leão ou de cão, de falcão,
pares de azas, com rabo de escorpião e um pénis serpenteado, com a mão direita
apontada para o céu e a esquerda para baixo, indicando o céu e o inferno,
respectivamente.
A veneração a esse deus parece ter muito a ver com a onda de profanação da Igreja
Católica na altura e deve-se à coincidência que têm os acontecimentos climáticos no
nosso país com o que o deus Pazuzu representa. O vento de sudeste traz a seca e a
fome durante a estação seca, a miséria e gafanhotos durante a estação das chuvas.
Na falta de um Deus dos cristãos que os protegesse, descobriram um deus do
satanás que coincidiu com o Pazuzu, por este os satisfazer melhor na altura.
Dois ventos que sopravam alienadamente de direcções diferentes. O mesmo deus
era associado ao vento frio de nordeste e representava uma força que combatia o
poder dos deuses ruins, como o seu odiado inimigo Lamashtu. Este era um demónio
feminino que ameaçava as mulheres quando estavam a dar à luz. Era um deus que
causava desgraça às mães e às crianças durante o parto porque adorava beber o
sangue dos recém-nascidos. Apesar de Pazuzu possuir um espírito mau, ele
exorcizava outros espíritos maus, protegendo assim, os homens das pragas e
infortúnios causados por outros deuses numa forma concorrencial. Portanto,
Pazuzu, era, ao mesmo tempo, um antagonista dos demónios e um ajudante dos
que estão a ser alvo de outros demónios. Era oportunista e hipócrita.
Segundo Aquiles e seus amigos, Nero estava a ter uma ajuda especial do deus
Pazuzu, protegendo Judith e Daniel e todos os seus colaboradores. A palavra Pazuzu
significa, nalgumas das ilhas de Sotavento, o ar ou sopro que sai do ânus sem fazer
ruído (um peido silencioso). É muito difícil identificar o dono de um pazuzu deixado
no meio de muita gente. O “criminoso” fica livre porque tanto um como o outro

Domingos Barbosa da Silva 229


A estranha morte de um político

pode largar um pazuzu no meio de camaradas sem que alguém identifique a origem.
Nero estava a ser possuído pelo Pazuzu, o espírito mau, que o livra de todos os
“perigos” que a justiça representa. A morte de Renato foi um grande pazuzu
espalhado no meio social cabo-verdiano. O seu assassino ainda está por descobrir.
Fátima conhecia muitos dos membros da igreja satânica e sabia algo do que se
passava lá dentro. Já tinha dado muitos passos para esclarecer sobre a morte de
Paín, mas sem resultado. Estariam os membros dessa igreja envolvidos na morte do
amigo e, ao mesmo tempo, na onda de profanações da Igreja Católica? Os
pensamentos dela decorreram sobre a sanguinária morte, sobre os problemas que
se situam no âmago social e não encontrava um remédio universal para os resolver,
porque não havia liberdade de expressão naquele tempo. Ela, não gosta de ver
sangue a correr e só a ideia de um tiro que faz jorrar sangue dum amigo a faz pensar
no sangue a esguichar na sua cara como uma língua de fogo. O povo da Babilónia
considerava o sangue como o espírito sagrado. O próprio Sócrates asseverava que o
segredo da vida se encontrava no sangue e que o corpo humano era principalmente
constituído pelo sangue, juntamente com alguns outros elementos como a água, sal
e bílis. Se o sangue fosse envenenado ou afectado por alguma doença, o corpo
humano morreria com isso. Fátima não pôde aguentar a ideia de viver uma vida
inteira sem ter uma resposta convincente sobre a morte dum amigo leal, nem
encontrar um lenitivo para a sua dor. A sua mãe ensinara-lhe que a justiça é um
conceito feminino e que a feminidade tem muita contribuição a dar na sociedade.
Assim resolveu agir de maneira diferente.
– Escrevi uma carta ao senhor Presidente da República, na altura, pedindo
esclarecimento sobre o tipo de conversa que teve com o nosso amigo comum. Não
para lhe pedir satisfações, mas para podermos chegar mais perto das causas do
assassinato. Nunca tive uma resposta, e nem sei se a carta chegou ao seu destino ou
dobrou a esquina dos Correios. Se bem que era de esperar. Tinha enviado uma cópia
aos meios da comunicação da capital e nem um fumo de lá saiu – disse Fátima muito
preocupada.
– Não era de esperar mais. Também falei com o chefe da redacção do maior jornal
do país. Sabes o que ele me disse? Que estava a perder o meu tempo! Pediu-me para
contactar a acompanhante e pedir explicação à polícia que investigou o caso –
queixou Marta.
Fátima e Marta entreolharam-se. Ficou uma impressão palpável no ar que dava a
sensação de que houve uma conspiração naquela calapitcha44 toda. As duas
comentaram algumas passagens durante o julgamento, principalmente quando

44 Atrapalhada, mistura de muitas coisas.

Domingos Barbosa da Silva 230


A estranha morte de um político

alguém disse que receava que a acompanhante, segundo uns zunzuns,


possivelmente, fazia todo o possível para esconder alguma verdade. Portanto, fugir
da verdade dos factos e, ao mesmo tempo, ficar livre de futuras investigações. As
duas amigas andavam com a cabeça cheia de dúvidas. A dúvida é, às vezes, uma
chatice, mas outras vezes, elas podem ser úteis. Depois do almoço num restaurante,
as duas foram passear juntas. À tardinha, estavam de volta ao apartamento da
Marta, tentando ajustar-se ao que lhes acontecera durante a discussão do dia. Elas,
sentiam-se como almas perdidas e uma sugestão da Fátima para investigar os
paradeiros de Aquiles, Dário, Nero e os outros nomes mencionados no decorrer das
investigações e julgamento, viria dar qualquer ajuda e esclarecimento às suas
dúvidas. Marta sentiu o sangue correr-lhe friamente no peito. Ela era livre de pensar
como quisesse e conhecia bem a sua amiga. A liberdade era uma coisa que elas
sempre sentiram sem se dar conta disso. Elas sempre puderam levar uma vida
satisfatória e sem restrições algumas. Foram habituadas a aceitar a segurança e a
liberdade como uma espécie de direitos que já lhes assistiam desde o nascimento.
Por isso é que se tornaram amigas do falecido Renato. Sentiam-se impotentes
perante a situação. Recordar o julgamento era como se sentissem, pela primeira vez
nas suas vidas, defronte a um poder de autoridade despersonalizada, a um poder
que não podiam resistir, com quem não podiam fazer um acordo. Descobriram que
afinal não eram livres e que não estavam em segurança, principalmente se se
atrevessem a meter-se e interferir-se no que se passou e onde não foram chamadas.
Marta, depois de muito pensar, virou-se para a amiga e disse com um olhar
penetrado e pensativo:
– Mas tu sabes que Aquiles se encontra em França e é um grande empresário!
– Não estranho isto. Sei também que o Diogo foi atropelado por um camião na Rue
des Moines, 75017, Paris, na França. Quem me disse foi o Roberto – asseverou
Fátima.
– A Judith é que não sei onde se encontra, mas vou investigar o seu paradeiro logo
que que for possível. Caramba, temos de fazer qualquer coisa para juntar os fios dos
acontecimentos dos últimos anos. Não podemos esquecer de pedaços da história da
qual nós fazemos parte integrante – Marta abanou a cabeça como um sinal de
desespero.
– Sei que não se encontra no país. O que podemos indagar é se haveria algum caso
antecedente à morte de Renato e onde haveríamos de começar? Mais não especulo
– asseverou Fátima e continua – o que se constata, pela boca do povo, é que existe
um assassino que se pensa que trabalhava por contracto e de elevado
profissionalismo. Um assassínio em Quebra-Canela, um assassínio na Rue des

Domingos Barbosa da Silva 231


A estranha morte de um político

Moines, 75017, Paris, um assassínio em Massachusetts, um carro que explodiu em


Espanha, ligados todos aos membros da Congregação do Templo da Babilónia (CTB),
dá que pensar. No entanto, ninguém, nem uma única pessoa no nosso país, se dignou
associar o acontecimento à morte do nosso amigo ou identificar um denominador
comum relacionado com tal! Falta fazer um inquérito minucioso sobre a afiliação
desses indivíduos mortos na CTB (congregação Pazuzu). Sabemos que Aquiles dirigia
a congregação. Sabemos, também, que Aquiles era a pessoa chave na coordenação
de tudo o que se relacionava com a morte do nosso amigo.
– Esta é, então, a lista provisória das baixas que temos tido. Entre os envolvidos,
encontram-se os seguintes: Renato, Diogo, Sombra, Penumbra, etc. São, com
excepção de Renato, todos satanistas, segundo a lista dos membros. O que não se
compreende é porque os satanistas liquidam satanistas – queixou Marta.
- É como nos casos que envolvem narcotraficantes. Qualquer despiste de um
membro activo, acaba com a eliminação do mesmo.
A veneração de Satanás era um fenómeno muito recente na sociedade cabo-
verdiana. Arranjavam missa negra em que os rituais e símbolos de valor cristão eram
menosprezados e distorcidos. Matavam fetos, queimavam igrejas e participavam em
orgias sexuais, simplesmente para contradizer os valores cristãos. Um satanista é
por definição um indivíduo que acredita em Satanás como único guia existencial. É
mais uma filosofia do que uma religião. O lema principal de um satanista é: fazer
como quiser. O individualismo, o materialismo e hedonismo são dominadores
comuns dos satanistas. Hedonismo é uma palavra grega derivada de hedoné que
significa prazer, e é um antigo pensamento ético-filosófico que considera o prazer
como único fim, isto é, o ideal supremo da vida. Por outras palavras, uma doutrina
que considera que o prazer individual e imediato é o único bem possível, princípio e
fim da vida moral. Portanto, em primeiro lugar, os satanistas cultivam o ego e o
individualismo. O cristão ama o seu próximo como a si mesmo, mas o satanista que
é individualista, ama a si mesmo acima de tudo.
– Marta, minha querida amiga. Cada dia que passa e a cada discussão que temos,
surgem coisas novas. É um passo de cada vez, um passo seguro na direcção certa.
Isto é uma vitória para nós. Vitória psicológica, claro, mas é uma vitória.
– Estou a ver isto, Fátima. Depois de ter aparecido uma mulher que é um génio em
questões financeiras e amiga íntima de Renato, surgiu uma situação embaraçosa
para todo o mundo cabo-verdiano. É muito possível que outros satanistas estejam
envolvidos. Disto penso que não há dúvidas. Cobriram todas as pistas, todas as suas
malditas pistas. Penso que os investigadores não fizeram o necessário para

Domingos Barbosa da Silva 232


A estranha morte de um político

descortinar as pistas. Podemos dizer que as condições de provas foram adulteradas


completamente.
As duas ficaram a entreolhar-se e a imaginar como foi simples o assassinato. E como
seria simples descobrir o assassino caso os agentes de investigação e o médico
legista persistissem um pouco mais. Tiveram uma sensação estranha, arrepiante e
esquisita. De repente, a luz da cidade apagou-se e ficaram quietas. Depois, ficaram
num silêncio prolongado.
– Então, satanistas matam satanistas, um caso estranho! É possível que estas
pessoas todas também frequentassem igrejas tradicionais. Mas há pessoas que
pensam e admitem que a teologia permite que uns matem os outros. Porque já leram
isto na Bíblia sagrada. A imagem que têm de satanás e do inferno surgira-lhes de
diversos lugares da Escritura Sagrada e interpretam tudo à sua maneira.
Mencionamos algumas das passagens:
Houve então uma guerra nos céus. Miguel e seus anjos lutaram contra o dragão, e o dragão e os
seus anjos revidaram.. Mas estes não foram suficientemente fortes, e assim perderam o seu lugar
nos céus. O grande dragão foi lançado fora. Ele é a antiga serpente chamada Diabo ou Satanás,
45
que engana o mundo todo. Ele e os seus anjos foram lançados à terra.

- Há coisas que não compreendem da Escritura e, por isso, usam alguns versículos
da Bíblia para justificar o assassinato. Mas Jesus anulou tudo aquilo quando veio ao
mundo. Foi Ele que nos ensinou a amar os nossos inimigos e a dar outra face – disse
Marta.
– Sim as palavras podem ser poderosas. Tão poderosas e perigosas que extremistas
as usam para matar indivíduos inocentes. Eu não compreendo esta maneira de
pensar. O Satanás é, para mim, uma das figuras mais discutidas na teologia.
– Aprendi muito cedo que Satanás antes era um anjo – pensou Marta.
– Não apenas um anjo, mas um arcanjo expulso do céu. Job identifica-o como filho
de Deus – acrescentou Fátima.
– E príncipe do inferno. No livro de Moisés não existe a palavra satanás. É só ler a
Bíblia – disse Marta.
– Mas...estou a pensar, de onde veio o satanás desse grupo infame?
– Não só da Bíblia Sagrada, mas também, das religiões do Oriente – replicou Marta.
– Já me tinhas explicado isto, agora lembro-me.

45Apocalipse, capítulo 12, versos 7-9.

Domingos Barbosa da Silva 233


A estranha morte de um político

– Algumas pessoas responderiam que satanás é uma necessidade teológica em


contradição ao Deus misericordioso, todo-poderoso. Outras responderiam que é uma
criação mitológica. Por exemplo, os judeus no exílio travaram conhecimento com o
ensinamento do profeta iraquiano, Zaratustra, o chamado zoroastrismo que inclui
um diabo – a raiz do mal – ou o tal chamado Angra Mainyu. Essa figura personificada
foi misturada com os reis, deuses e demiurgos babilónios e daí surgiu o conceito que
temos hoje de satanás. A primeira vez na história que satanás foi mencionado como
um representante do mal é na I Crónicas onde ele aconselhou David a contar a
população israelita. Portanto, o conceito de satanás aparece em vários versículos
bíblicos que, possivelmente, também influenciaram estes nossos satanistas.
O inferno, desde o profundo, se turbou por ti, para te sair ao encontro na tua vinda: despertou
por ti os mortos, e todos os príncipes da terra, e fez levantar dos seus tronos a todos os reis das
nações. Estes todos responderão, e te dirão: tu, também, adoeceste como nós, e foste
semelhante a nós. Já foi derrubada do inferno a tua soberba, com o som dos teus alaúdes; os
bichinhos debaixo de ti se estenderão, e os bichos te cobrirão. Como caíste do céu, ó estrela da
manhã, filha da alva! Como foste lançado por terra, tu que debilitavas as nações. 46

Os satanistas tornaram-se cegos.


Para zombar dos cristãos. E Renato era
um deles, um cristão – acrescentou
Marta, continuando – o
curioso é que os manuscritos de Renato
desapareceram. Os projectos que tinham
ficaram na escuridão.

46 Profeta Isaías, capítulo 14, versos 9-12.

Domingos Barbosa da Silva 234


A estranha morte de um político

Domingos Barbosa da Silva 235


A estranha morte de um político

CAPÍTULO XXXV

Anno vigesimo

Tendo sido morto um dos rostos mais proeminentes da sociedade cabo-verdiana, há


mais de vinte anos, o país ainda se encontra manchado de sangue de Renato e o
assassino se encontra solto no meio de nós. Impõe-se ainda, a necessidade de
procurar o culpado e puni-lo, seja quem for. Porém, ressurge sempre na nossa
mente a pergunta que se impõe a toda a sociedade cabo-verdiana: onde se encontra
o assassino; como descobrir o culpado de um crime tão antigo mas tão brutal e
inesquecível; que pista existe hoje; qual o móbil; porque não se colheram os indícios
necessários na altura própria; porque deixaram de o fazer; que diz o arquivo sobre
o dia da morte; por que disse a comunicação social nacional que o crime não foi por
motivos políticos sem uma investigação prévia e profunda; qual a sentença popular
ou a sentença do povo; por que não confessou a acompanhante; qual é a opinião

Domingos Barbosa da Silva 236


A estranha morte de um político

política sobre o assunto? E porque é que o próprio Renato não disse mais sobre
quem o baleou ou o mandou matar? Por que tudo caiu no silêncio? Qual é a
verdadeira razão do assassinato? Quem ganhou com a morte de Renato, a curto e a
longo prazo?
Fátima telefonou à Marta numa terça-feira, o dia em que completou vinte anos após
a morte de Renato Cardoso. Era ainda cedo e o tempo prometia chuva. A ferida ainda
não tinha cicatrizado no espírito das duas amigas. A sua intuição feminina dizia-lhes
sempre que, aqui mesmo no país, se encontrava tudo que seria preciso para apanhar
o assassino. Tudo o que se procura será descoberto e aquilo que se descura escapa
às mãos da Justiça. Se nenhuma comprovação for apresentada, se a companheira
de passeio não viu qualquer coisa que possa esclarecer à sociedade civil a respeito,
uma breve revelação indiciária poderia facilitar muitas coisas. Mas como revelar
indícios após vinte anos? Uma coisa é certa: há um assassino solto no nosso meio.
Se não estiver no nosso meio, ele ou ela, encontra-se a gozar de alta protecção e de
uma certa imunidade num país estrangeiro qualquer ou simplesmente vive,
aparentemente, descontraído/a, provavelmente com uma certa dose de imunidade
que o/a coloca em cima da lei, mas com uma consciência perturbada em qualquer
lugar do mundo.
– Mas ó filha, como e para quê teria o homicida praticado uma acção dessas, se
não fosse feita mediante subornação? Para quem fez isso? Não paro de pensar nisso.
Não paro de ouvir uma voz íntima e crítica a segredar-me nos ouvidos. É a voz do
silêncio que vibra no fundo escuro, cujo lugar não sei explicar, uma voz clara,
pertinente e persuasiva, que propaga no meu ser como ecos do passado, como o
radar que toca a minha mente e volta ao ser, constantemente – sublinhou Marta.
– Olha, também a mim me ocorreram essas perguntas todas. O que estranho é que,
depois do assassinato, ninguém pensou seriamente em descortinar o que aconteceu
ou castigar o criminoso. Pouco interesse despertou na nossa sociedade. Nem mesmo
os mais achegados! Sinto muita pena de dizer isto! O que impediu uma investigação
aprofundada do que se passara? Acho que alguém instigou a outrem para deixar de
lado os factos incertos para só pensar no que está para diante. É a maneira mais
cómoda de resolver problemas, arquivando o processo. Tanto a culpa como a
consciência já se tornaram conceitos vazios – reclamou Fátima.
– Certamente, mas não se tem onde pegar. O que acontece se voltarmos à origem
desse crime e o pusermos em evidência? O que perderíamos com isso? É do interesse
do povo cabo-verdiano encontrar e punir o assassino pelo crime cometido, quem
quer que tenha sido o matador. Tudo isso é um flagelo que nos tortura diariamente,
pois temos o espírito perturbado pelo horror e pelo desespero que nos atormenta.

Domingos Barbosa da Silva 237


A estranha morte de um político

Decerto que as pistas estão destruídas, o culpado já se encontra conciliado consigo


mesmo. Oxalá que a sua consciência o esteja a martirizar.
– Querida Marta, que será feito se ninguém se preocupar com um caso destes? Ai
de nós, quando todo Cabo Verde se encontra atingido pelo contágio do assassinato,
sem que chegue a nós recurso algum que nos possa valer e tirar desta cilada de más
práticas, sem que se veja uma só lágrima derramada e sem ninguém que se preocupe
em encontrar o culpado! Penso que pouco avançaremos nas nossas pesquisas, se
não nos apresentam alguns indícios. Há, possivelmente, tantos entre nós que sabem
quem foi esse assassino, mas silenciam e deixam de indicar um amigo, por mero
temor ou por amiguismo, mas continuam a ser uma nódoa infamante na sociedade
cabo-verdiana. Cabo Verde continua de luto e continuará até ao dia em que se
encontrar o culpado.
– As tuas palavras são sensíveis e merecem respeito da minha parte. O que te posso
dizer é que, até hoje, não apareceu nenhum testemunho ocular a não ser a
acompanhante. Mas devemos estar cientes de que quem não tem medo de cometer
um crime desse calibre, não se deixa impressionar por palavras sensíveis e simples.
A verdade para um assassino, para uma pessoa de mal ou para um tendencioso, não
têm força alguma – disse Marta e continuou: enquanto os interesses políticos
comandarem a investigação da morte do nosso amigo, vamos continuar a discutir
nos jornais, na rádio, na televisão, nas ruas, nos cafés, nas escolas, etc., mas não vai
ser fácil para nós fazer muita coisa. A política que não respeita os direitos individuais,
tem o infeliz efeito de boomerang da repressão contra os adversários. Os que entram
no poder vingam-se dos que saem. Os que saem procuram sempre apontar o dedo
quando aqueles voltam costas. Ficamos aterrorizados e somos guiadas para o
precipício pela insana maldade dos assassinos. O medo toma conta de nós como se
estivéssemos a ser tomados pelo espírito das trevas, pelo terror que ensombra a
sociedade. Mas nós não nos vamos dar por vencidos apesar do tempo estar a
trabalhar contra nós. Hoje funciona a democracia. Hoje estamos mais livres. Mas
esta liberdade não nos livra de um julgamento tendencioso e nem nos ajuda na
resolução de muitos crimes porque a sociedade já se tornou permissível e tudo anda
à lassez-faire e laissez passer.47

47 Laissez-faire e laissez passer significam a mesma coisa no sentido empregado aqui. Usa-se em
francês para significar literalmente "deixar fazer", e “deixar passar” sem interferência do Estado. o
Estado deve "deixar o mercado fazer", sem interferir no funcionamento deste,

Domingos Barbosa da Silva 238


A estranha morte de um político

– Na cabeça da maior parte das pessoas, desenha-se mapas de Quebra-Canela no


momento e dia da queda do nosso amigo. Os mapas são todos parecidos, mas as
explicações das causas do assassínio são diversas. Para quase todos, foi um crime
autorizado por alguém. Um crime que ensanguentou Quebra-Canela, a mergulhou
num silêncio sepulcral e perturbador, possivelmente um crime coagido por uma
intolerância radical da época, o que confirma a suspeita de que estavam a ser
ameaçados alguns dos seguintes valores:
a) a segurança individual
b) a segurança da família
c) a segurança da sociedade
d) a segurança do Estado/partido
e) o interesse próprio
Portanto, foi um crime que lesa a humanidade, isto é, um crime contra a humanidade
que em termos de direito internacional, descreve actos de perseguição, agressão ou
assassinato contra um individuo ou grupo de indivíduos ou expurgos, assim como, o
genocídio, passíveis de julgamento por tribunais internacionais por constituírem a
maior ofensa possível – concluiu Fátima.
As duas amigas tinham um olhar sereno e um raciocínio seguro no que toca à morte
de um grande amigo comum. Além de ser amigo, era um Secretário de Estado da
Administração Pública, um grande conselheiro tanto para os grandes como para os
pequenos. Elas pareciam tocar o íntimo de muita gente, mas não conseguiriam
penetrar no âmago dos poderosos para saber de que lado estão, na situação que
lhes causa infelicidade, já passados vinte anos. Até hoje, não se pediu contas a
ninguém dos actos cometidos, muitos até continuam impávidos, a mover-se pelos
interstícios do poder, de braços cruzados, como que se nada tivesse acontecido. É
duro confrontar-se com esse comportamento, pois trata-se de uma vida roubada
por mãos assassinas e, por isso, devia ser dada melhor atenção.
Fátima quase que não escutava Marta. Estava mergulhada no cenário do crime.
Quando Marta lhe pegou no braço, voltou ao mundo real. Viver é um processo de
decidir como uma pessoa gosta de estar na sua vida. Djonzinho gosta de ser parte
activa na tomada de decisões. Por isso, não se cansa de participar e contribuir para
que as coisas públicas sejam bem geridas, incluindo a justiça, a ordem e os direitos
das pessoas. Quer estar presente na vida deste país. Quer que o seu país seja
transparente em tudo. Pois, querer é o maior poder humano. Quando uma pessoa
não sabe o que quer nunca alcançará o que deseja. Portanto, o Djonzinho quer dar
a sua contribuição, juntamente com os outros do grupo, exprimindo as suas

Domingos Barbosa da Silva 239


A estranha morte de um político

opiniões, pedindo às pessoas interessadas no assunto que os ajudem a


desassombrar o caso. O caso de há tantos anos.

CAPÍTULO XXXVI

A investigação – uma responsabilidade do Estado


Fátima não se conforma com o modo como as investigações são feitas no país
inteiro. Há uma lacuna a preencher que deixa muito a desejar. Exausta, suspirou
profundamente, levantou-se do assento e ergueu o indicador direito em direcção à
Marta, sacudindo-o, mas sem dizer nada. Continuava a não confiar por completo na
protecção dos dados recolhidos e no caminho que eles irão ter. A investigação no
nosso país está ainda constrangida e acanhada, pensou ela. O proteccionismo reina
na terra. Há situações de assassinatos em que todo o povo conhece o assassino, mas
as autoridades pouco fazem para desvendar o caso. Elas ficam prostradas à espera
de outros crimes e de outros assassinos, ao que se junta uma fraca capacidade
financeira, até que o assassino encontrar a possibilidade de fugir para longe, onde
as forças jurídicas do país nada podem fazer contra ele. Isto é o resultado da política
do laissez-faire et laissez passer. Qualquer busca ou investigação na área criminal
não está bem enquadrada em instituições credíveis, pois são levadas a cabo, por

Domingos Barbosa da Silva 240


A estranha morte de um político

esforços voluntários individuais que se afogam na falta de verbas e acabam por ter
um destino no fundo das gavetas. Na maioria dos casos, são afogados pela tacanhez
política que nem às gavetas chegam. Daí a falta da sua acessibilidade à comunidade
e o facto de se tornar um hábito de como camuflar as coisas que deveriam ter alta
prioridade num país democrático. Fátima apontou de novo o dedo para Marta e
disse:
– A investigação em Cabo Verde deve ser assumida como sendo responsabilidade
do Estado democrático. É um factor importante no desenvolvimento do país. As
autoridades competentes deste país devem assegurar que haja uma investigação
compreensiva, transparente e completa de modo a levar os culpados deste e de
quaisquer outros crimes à barra da justiça, sem demora, dado que a Constituição
desta nação nos garante este direito de protecção individual e da família. Isto é
importante para um país que se diz democrático.
– Além disso, minha amiga, a investigação deve ser feita imparcialmente. Deve-se
criar um departamento com a missão séria de promover projectos de investigação,
independente de outras instituições. Temos essa tendência insular, aliás mesquinha,
típica de países pequenos, de deixar a penumbra do medo assombrar o pensamento
livre dos indivíduos e marginalizar as pessoas que trabalham com afinco para
descortinar um crime, seja ele de cariz social, económico, passional ou político, etc.
Acho que o Ministério Público devia ter uma posição firme no sentido de que a
investigação criminal estivesse aberta a todas as instituições do Estado, inclusive as
privadas, assim como, todas as que são capazes de colher informações que possam
ser úteis no cumprimento da acção penal. Temos de ter sempre instituições
independentes que certificam que ninguém está acima da lei. Isto não aconteceu no
caso do nosso amigo comum – reafirmou Marta.
– Sim, de acordo. Deve ser da competência da polícia judiciária a primeira parte da
investigação, incumbindo a segunda, ao Ministério Público. Uma limitação do
inquérito policial conduz a uma posição de insuficiência, de mediocridade, uma vez
que, as investigações não devem ser realizadas apenas por uma entidade. Digo isto
porque uma outra entidade pode apresentar denúncias, independentemente da
existência de um inquérito policial. Uma investigação criminal dev e ser muito mais
ampla que uma actividade da polícia judiciária. Uma actividade de investigação deve
ser regrada, isto é, deve haver uma norma legal que regula, precisamente, como
deve agir um órgão em procedimento investigatório, com um esquema de controlo
para certificar que tudo está a ser feito de acordo com as leis e com as regras
policiais. É isto que se faz aqui no país? Penso que não. Temos exemplos de sobra.
Pondo isto, pergunto agora: qual é a contribuição que devemos dar neste sentido?
Qual é o nosso dever moral quanto a isto? A força da Constituição devia muito bem

Domingos Barbosa da Silva 241


A estranha morte de um político

ser suficiente, mas essas coisas da ascensão do Partido ou de grupos de indivíduos


sobre o Estado, impedem-nos de avançar – desabafou Fátima.
As duas serenaram e, passados alguns segundos, Fátima assoou-se ruidosamente a
um lenço de papel que retirou da algibeira. Concordaram em não se entregarem ao
desespero do momento e da situação. O tempo havia de mostrar-lhes se estavam
enganadas, por muito que quisessem o contrário. Impossibilitada de continuar a
conter as lágrimas, Fátima continuou a conversar com a amiga que, também, sentia
lágrimas a escorrer-lhe pela face. Era quase meia-noite, quando o ruído do outro
lado da rua prosseguia sem interrupção. Houve, depois um momento de mutismo,
mas de resto reinava um silêncio agitado, onde se ouvia o engolir seco de
impaciência nas gargantas de ambas. O mutismo prolongou até ao momento em
que um barco assinalou a sua partida. Depois, um sorriso surgiu na face da Marta,
mas o sorriso dela denunciava uma tristeza latente. Lágrimas que secaram pelo
passar do tempo. A visão do dia do enterro do amigo era algo que lhe permanecia
bem presente na memória, com uma voz interna que ressoava constantemente na
sua mente e um imenso silêncio que ecoava aos ouvidos, mais intenso do que o
sonido duma trovoada. Marta virou-se para a amiga e quebrou o silêncio
perturbante:
– Deves estar a recordar o discurso feito, no acto do enterro, por um ferrenho crítico
de Renato? E além disso, foi numa sexta-feira que foi morto. Uma sexta-feira
agoirada!
Fátima, virou a cara, surpreendentemente, para Marta e arregalou os olhos.
– Oh, criatura de Deus, isto é superstição! Não creio que tu acreditas nela. Eu sou
da opinião de que a coisa foi arranjada. E bem arranjada! O que não compreendo é
como é que uma pessoa pode pensar ser justo eliminar uma outra por esta ser
incómoda ou por existir um preconceito social numa sociedade fechada em si mesma
onde o colectivo condena os que quebram as regras de jogo, isto é, as regras e
normas estabelecidas. Para mim, todas as criaturas humanas têm o direito de viver
livremente. Todas têm um propósito aqui na Terra. De facto, estou a lembrar do
discurso fúnebre feito naquele dia! Ó meu Deus, estou a ficar louca – desabafou
Fátima.
– Sim, esse homem tinha uma alegria enorme de viver e de dar a sua contribuição
à sociedade. Se alguma pessoa se sentia incomodada com a sua presença, esse
alguém é que o matou ou o mandou matar. Os motivos podem ser diversos.
Podemos, mais uma vez, apontar alguns deles: o passional; o económico e o político.
O motivo passional é do que mais se fala, por razões óbvias. Como já dissemos numa
outra passagem, esse é o móbil (motivo) principal apontado pelos meios de

Domingos Barbosa da Silva 242


A estranha morte de um político

comunicação e pelas pessoas nas ruas. Os motivos económicos e políticos são duas
faces da mesma moeda, de que menos se fala. Por quê? Recordemos que na altura
do assassinato não havia liberdade de expressão. Vivia-se, repitamos, com medo.
Renato era capaz de competir tanto para o lugar de Primeiro-Ministro como para o
de Presidente da República. Além disso, defendia o pluripartidarismo ou o pluralismo
político, com muito afinco e muita determinação. Portanto, era uma pessoa que
tinha consciência das suas obrigações, que atribuía grande importância aos seus
ideais, que era capaz de dizer claramente as suas opiniões aos que com ele
conviviam, aos que só pensavam em defender os seus territórios económicos e
políticos, pensando que algo mais além do que aquele limitado território privado,
não existia. Era capaz de dizer distintamente e com convicção: os senhores estão
apenas a lidar com coisas mundanas; estão a roubar o direito de expressão a esta
nossa gente; estão a servir de luz e guia para iluminar um povo humilde que sabe
como ultrapassar as suas dificuldades apenas com uma lanterna na mão apalpando
algo que é maior que si mesmo, algo que ascende todas as coisas passageiras da
vida. Mas a vossa luz é ténue e o vosso guia anda às palpadelas. Eu quero fazer o
meu dever, lutar por uma vida melhor para todos. Mas qual era a resposta que uma
pessoa como Renato recebia? Se o senhor Renato tivesse passado pelo que
passámos, pelas nossas experiências e pelo trabalho árduo executado debaixo de
condições péssimas, veria que o que passámos também tem valor e um significado
maior ou melhor que os seus feitos! E Renato ripostava por sua vez: meus caros
amigos, não podemos viver eternamente lamentando e evocando o passado,
referindo-nos aos feitos heróicos do pretérito. Vamos encher a taça de convívio para
limpar o HOJE dos preconceitos e mitos de ONTEM e do medo do futuro, porque
ninguém o conhece; não existe nada debaixo do sol que impeça o homem de
ultrapassar a linha traçada por vós, uma linha, que só vós mesmos podeis dizer, ser
intransponível e incontornável!
– Bem, compreendo onde queres chegar. Sabemos que, tanto Renato como os seus
críticos, procuravam um ideal. Mas são ideais diferentes. Renato procurava valores
comuns e uma vida melhor para todos, eles procuravam o poder, a utopia, o dinheiro,
o prazer, a riqueza e, cada um, com os seus motivos, cada um com os seus meios
para atingir o fim procurado. Um a contradizer o outro, embora todos estivessem a
caminhar para uma meta específica, a curto ou longo prazo e com algumas
dificuldades. Um dia, compreenderão quem, afinal, serviria melhor ao povo destas
ilhas, um povo massacrado e oprimido, que sofre as penúrias da comunidade. Temos
uma tendência nata de acusar os outros pelos seus males cometidos porque
pensamos que nós estamos a fazer a fazer o bem e o justo. Este modo de pensar não
resolve conflitos de pensamentos. A pessoa que consegue ultrapassar todas essas
coisas mesquinhas que engendram conflitos, a pessoa capaz de ultrapassar as

Domingos Barbosa da Silva 243


A estranha morte de um político

barreiras dos conflitos, conseguiria tolerar e compreender tudo e todos, e não se


sentiria agitada contra as ideias que não estão de acordo com o seu próprio ideal,
saberia respeitar o pensamento de cada um. Uma pessoa assim, seria indicada e
digna para dirigir a nação. Uma pessoa que não encara os demais com desprezo por
não pensarem igual a si, veria que no fundo de cada indivíduo, existe uma centelha
divina que tenta acender a chama no combustível do motor que o transporta para o
seu ideal, para um fim maior que a si mesmo. Disse Fátima.
Travou-se um silêncio entre as duas.
– Pára com isto. Estás a levar-me para além dos confins da terra. Estou cansada e
não quero ouvir mais. Devemos é ir à rádio pedir uma ajuda na reabertura do
processo que foi encerrado. – Desabafou Marta .
– Tenho muito medo, confesso-te – admitiu Fátima, continuando – sabes que,
quando os homens se juntam, em quaisquer circunstâncias, para defender o seu
deus, tornam-se sanguinários e comportam-se como que desprovidos de toda a
razão humana.

Domingos Barbosa da Silva 244


A estranha morte de um político

Domingos Barbosa da Silva 245


A estranha morte de um político

CAPÍTULO XXXVII

Djonzinho num simples raciocínio

Morreu um homem político. Para muita gente, esta foi a história mais mal contada
no final do último século. Parece ser também uma história apaixonante que
submergiu na onda da praia de Quebra-Canela na tarde de 29 de Setembro de 1989.
Leitores, ouvintes e telespectadores de todo o mundo, acompanharam-na através
da comunicação social, como se fosse a morte de um cowboy. Ainda hoje se ouve o
eco do tiro que aconteceu naquela praia, casual e esporadicamente. Porém, nem
casual nem esporadicamente se sabe o que é feito do processo, das investigações
do assassinato do político e do homem Renato Cardoso. Para a Polícia Judiciária, foi
uma investigação fácil e célere, nada difícil por que excluíram logo no princípio um
factor importante. A morte não foi motivada politicamente, dizia um comunicado
oficial. E isto contribuiu para que às questões políticas fosse dada pouca atenção.
Houve pistas verdadeiras e falsas. Houve arguidos, suspeitos, mas o que é feito das
provas de sangue, do ADN, das mordeduras, dos arranhões e dos resultados do
detector de mentira? Ficou uma lacuna nos argumentos sobre os motivos. Ou talvez
não. Mas se sim, vista sobre uma perspectiva criminal, para muita gente entendida

Domingos Barbosa da Silva 246


A estranha morte de um político

no assunto, parece que o destino já se encontrava escrito ou traçado nos anais da


história cabo-verdiana há muito tempo. Todos os esforços do Tribunal cabo-
verdiano para incriminar o único arguido foram inúteis. Todas as tentativas soaram
a falso. Não podemos encontrar a verdade onde ela não está. As investigações foram
superficiais e de segunda categoria, o que só podia resultar em nem verdade nem
consequência. Investigações defeituosas que fizeram tremer a reputação do nosso
país, porque os criminosos se encontram longe da alçada da Polícia Judiciária, longe
da condenação popular, no conforto dos seus lares, mas, provavelmente e
penosamente, julgados pelo Tribunal da Consciência.
Qual foi a razão que levou as Forças de Segurança e Ordem Pública (FSOP) a declarar,
sem prévia investigação, que os motivos não foram políticos? Porque não declarou,
então, que foi passional depois de ter excluído um dos mais prováveis motivos?
Palavras pesadas removeram as culpas, baralharam o julgamento do tribunal e do
povo e silenciaram-no. De qualquer maneira, essas palavras pronunciadas
convincentemente, soaram como verdadeiras, serviram as intenções e deixaram
lacunas. O que nos preocupa ainda, é o resultado das investigações. Quanto a isto,
estamos no mesmo lugar, na mesmice, com as nossas dúvidas, com as nossas
interrogações, em tudo, igual às outras centenas e centenas de mulheres, homens e
crianças que desaparecem em todo o mundo sem os seus familiares saberem a razão
e quem foi o autor ou foram os autores dos crimes.
Assim, podemos afirmar sem qualquer margem para dúvidas, que é um erro capital
teorizar sobre coisas sérias antes de possuir todos os indícios, porquanto tal erro
distorce o nosso raciocínio e induz o povo a pensar em mistérios que não existem.
Feitiçaria, destinos, fatalidades?
O nosso raciocínio encontra ressonância nos meios de comunicação de massas, nos
argumentos de pessoas informadas e na boca do povo. Perguntas como: Porque é
que Renato Cardoso foi excluído da delegação que ia acompanhar a primeira visita
oficial do Primeiro-Ministro cabo-verdiano aos Estados Unidos dias antes da sua
morte? Vejamos o que foi escrito nos meios de comunicação de massa:
Renato tinha grandes expectativas sobre esta visita e estava visivelmente satisfeito. De repente,
creio que menos de uma semana antes, telefonou-me, eu diria muito chateado, creio mesmo que
apreensivo, dizendo-me que afinal tinha sido excluído da delegação por razões que ele disse
desconhecer, mas que presumia quais seriam e que não me podia dizer pelo telefone, só quando
nos encontrássemos pessoalmente falaríamos sobre o assunto. Depois veio a morte dele, em

Domingos Barbosa da Silva 247


A estranha morte de um político

circunstâncias que não foram desvendadas. Coisas do destino. Se ele fosse nessa delegação não
teria morrido.48

Quem autorizou a exclusão de Renato do penúltimo Congresso do PAICV antes da


mudança política? E porquê?

Vejamos:
[...] neste aspecto, ele teve uma grande desilusão aquando do penúltimo Congresso do PAICV
antes da mudança e em que ele, nitidamente, contava ou esperava que, dado ao desempenho
dele no Governo e, digamos, a contribuição que ele dava ao partido, pudesse ser eleito para a
Comissão Nacional do PAICV. 49

O antigo Primeiro-Ministro, Carlos Veiga, elucida-nos sobre o seguinte facto:


O conhecimento pelo aparelho partidário dessa sua influência junto de Pedro Pires, criou
problemas a Renato Cardoso, que, estrela claramente ascendente no universo do PAICV, passou
a ser visto com desconfiança e hostilidade política por pessoas relevantes nesse aparelho,
receosos de uma sua muito provável ascensão até à cúpula do partido. Segundo ele, chegou a ser
barrada a sua participação no congresso do PAICV com argumentos processuais esfarrapados.
Renato fez-me ciente desses problemas e que decidira colocá-los ao Secretário-geral do PAICV,
Aristides Pereira, com quem teve uma audiência na própria tarde desse fatídico dia 29 de
Setembro de 1989, em que foi assassinado. À saída da audiência telefonou-me a dar
conhecimento de que o encontro com Aristides Pereira decorrera muito bem e que estava mais
aliviado. Horas mais tarde, um telefonema do Admilo Fernandes, nosso amigo comum, alertou-

“O velho combatente recorda, então, que Renato Cardoso tinha adversários


internos no PAICV que, inclusive, coercivamente, o teriam impedido de
participar no III Congresso realizado no ano anterior”
me de que Renato tinha sido baleado e estava no hospital em estado grave. 50

O Jornal Terra Nova, por sua vez, diz:


“Terra, bô sabe”? – Renato Cardoso foi assassinado!
O mínimo que se possa dizer do comunicado do Governo, a propósito do assassinato do Secretário
da Administração Interna, Dr. Renato Cardoso, é que o Conselho de Ministros e a Polícia foram
precipitados ao porem de lado, tão cedo, a hipótese de crime por motivo de ordem política. Por

48 José Luís Fernandes Lopes, Artiletra de Novembro/Dezembro de 2014, A viagem que não
aconteceu.
49 Idem
50 Dr. Carlos Veiga – Artiletra de Novembro/Dezembro de 2014

Domingos Barbosa da Silva 248


A estranha morte de um político

um lado, não se conhece ainda a identidade do killer. Por outro, é sabido que o Dr. Renato
Cardoso, talentoso reformista do regine, vinha enfrentando sérias dificuldades para levar avante
as suas ideias de reforma. A esse propósito, constou que no mesmo dia em que viria a encontrar
a morte, teria sido recebido pelo Presidente da República, a quem teria exposto sua intenção de
demitir-se. Verdade? Faça-se uma investigação séria e diga-se toda a verdade sobre o caso. A
Terra tem que saber.51

Depois de muito silêncio nos meios de comunicação de massas, os burburinhos não


se inquietaram:
"Badiu Boxero – um ano depois"

Os primeiros detidos levados à esquadra – aqui pertinho da minha casa – eram na sua maioria
voyeurs que frequentavam o lugar do crime...
Estava eu dizendo, a polícia quando não encontra um criminoso, atira-se logo a um. Como
queriam arranjar provas a todo o custo, não tiveram desfaçatez nenhuma em apresentar estas
duas grandessíssimas provas: "Badiu Boxero era um desempregado e dormia na Praia de
Gamboa". Ainda bem que não foi na Praia da Gamboa o crime, senão a polícia nem precisaria de
uma só prova. Aliás, uma vez que – "dizem" – a Judiciária Portuguesa não deparou com vestígios
nenhuns na Quebra-Canela, temos todo o direito de duvidar se o crime teria sido praticado
mesmo nesta praia.52

O “Voz di Povo” extrai dum texto de Aristides Pereira o seguinte:


… E de um momento para o outro vemos o desaparecimento dessa figura que para além do mais
era um homem de cultura intimamente ligado aos valores ancestrais da cultura do nosso povo,
portanto reunia condições excepcionais para no momento de render a guarda, a geração dos
combatentes da liberdade que participaram e que deram toda a sua vida à luta de libertação
nacional poderem estar tranquilos e seguros de que a obra realizada terá continuidade. No
entanto nós estamos numa luta que continua, a luta de libertação nacional e que é a luta de
reconstrução do país e, como em todas as lutas, há baixas, há sofrimentos, há sacrifícios. (…) 53

O réu é ”alto, preto e forte”

Ainda, o jornal “Voz di Povo”, assegura:

51 Jornal Terra Nova, dia 1 de Outubro de 1989.


52 Vadinho Velhinho - "Opinião", Outubro, 1990 e Artiletra de Novembro/Dezembro 2014.
53 Voz di Povo, 3 de Outubro de 1989 – extracto de um texto de Aristides Pereira, Presidente da

República de Cabo Verde.

Domingos Barbosa da Silva 249


A estranha morte de um político

O réu foi absolvido! ”Badiu Boxero” foi absolvido a meio da manhã de ontem, por entre palmas
da assistência, que no final da audiência não lhe regateou abraços, provas de contentamento pelo
desfecho dum julgamento atentamente seguido pela opinião pública. Também a testemunha e o
conjunto de declarantes não sofreram qualquer sanção, pelo que o processo foi arquivado. 54

Em Quebra Canela a verdade faleceu e faleceu a verdade num mundo inspirado


pelos padrões do comunismo, materialista e ateísta, onde os poderosos estavam
sempre satisfeitos por satisfazerem os supostos interesses do seu povo. A verdade
e a honestidade não valem de nada no mundo materialista, pois não trazem
vantagens materiais. Os bons princípios valem zero, pois as vantagens materiais
dominam tudo e todos – um método usado durante a Segunda Guerra mundial –
matando as pessoas ricas, ficam as riquezas como prémios para os assassinos e
polícias secretas. Tudo o que se traduz em dinheiro domina tudo, ponto final. O
Hitler entregou os judeus nas mãos dos muçulmanos e de homens assassinos,
premiando-os com os bens deixados pelos próprios judeus.
Não é preciso discussão nem debate no mundo materialista. As palavras que se usam
não são consideradas argumentos, nem instrumentos de persuasão. São apenas
usadas para acabar com qualquer tipo de persuasão ou para acabar com uma
discussão. Sendo assim, é o poder que manda e este é o caminho mais curto para a
corrupção, porque o poder exagerado corrompe, cega, marca distância do povo.
Corrompe e cega os que o têm. Corrompe e cega os que procuram influência e
amizade junto dos que têm poder. Formam, assim, uma elite influente, poderosa e
rica à custa dos outros que são considerados ineptos. Junto aos poderosos estão os
meios de comunicação de massas como mão direita dos que estão no poder. Estes
pensam que quem tem poder tem direito! Os detentores do poder fazem parte das
elites. Estas controlam tudo que se escreve ou se diz. Os jornalistas, a televisão, os
periódicos, as rádios, os jornais, aquando da morte do Renato, pertenciam quase
todos aos que estavam no poder. Contraíram um pacto de silêncio, de sigilo e de
segredo profissional, negaram a cobrir um tema que, segundo os poderosos, não era
de interesse político e nunca se atreveram a falar dele. Quem se arrisca a contradizer
os poderosos, sofre consequências desastrosas que o arremessa à margem da
sociedade. Quem por descuido não bate palmas aos poderosos, fica registado no
livro negro e corre o risco de perder o seu pão de cada dia e até a vida, como
aconteceu no caso em apreço.
Esta é a razão pela qual ditadores, juntas militares, tiranos e partidos únicos, ao
longo da História, procuram censurar o debate e sufocar a livre disseminação de

54 Voz di Povo, 1 de Dezembro de 1990.

Domingos Barbosa da Silva 250


A estranha morte de um político

opiniões e informação. Preferem manter os outros no obscurantismo vendendo uma


imagem demagógica à população desmoralizada para ficarem mais à vontade.
Qualquer um que se atreva a mexer na estrutura do poder deles, paga caro pelo seu
atrevimento. Isto acontece com qualquer um que se atreva a desestabilizar a
estrutura sobre a qual se encontra montada uma demagogia, isto é, uma acção
política em que se procura conquistar o apoio do povo através de manipulação das
emoções das massas populares, em vez de usar argumentos racionais e lógicos.
A força directriz “omnipotente” pensa ter solução para todos os problemas sociais e
cresce como um tumor dominante no organismo social, convencida de que não
existem remédios ou alternativas na vida para curar as células cancerosas da
sociedade, mantendo a maioria da população num estado contínuo de medo e de
ansiedade. Esta mesma força directriz e omnipresente, tem medo das ideias dos
outros, do conhecimento dos outros, por isso, fecham o povo no casulo do medo
com uma venda nos olhos, isolados do mundo iluminado, à laia da idade das trevas.
Criam escolas para “educar” ignorantes por toda a vida!

Domingos Barbosa da Silva 251


A estranha morte de um político

CAPÍTULO XXXIII

As espectativas de Marta
Djonzinho sempre sonhara fazer justiça ao seu admirado amigo. Desde o dia em que
Marta lhe contou o conteúdo dos seus sonhos, não arredou os seus pensamentos
da solução dos problemas relacionados com a morte de Paín. Os sonhos da Marta
eram intrincados e continham impossibilidades lógicas. Eram uma maneira de
contornar os intricados problemas. Não lhe saiam da mente e, pouco a pouco,
aqueles sonhos foram absorvidos pelos seus próprios sonhos. Então, Djonzinho
escutava com atenção o que Marta relatava sobre a possibilidade de encontrar o
assassino de Renato mesmo passados muitos anos. Os recônditos da mente dele
estavam povoados desses sonhos e o homem queria encontrar uma resposta
científica.
Marta era uma das amigas de Renato e é licenciada em criminologia. Juntou-se ao
grupo formado por poucos indivíduos, a pedido dos seus próprios constituintes, para
fazer a investigação do local do crime, muitos anos depois do assassinato. Ela sabia
que era uma impossibilidade que não cabia na lógica dos seus amigos mais
chegados. Sonhou com Quebra-Canela e imaginara em transformar essa
impossibilidade em possibilidade.

Domingos Barbosa da Silva 252


A estranha morte de um político

Imaginou que, no dia em que completou 20 anos o episódio de Quebra-Canela, ela


foi ao lugar do crime e marcou uma circunferência com o triplo da área da tenda à
disposição. À busca de uma agulha no fundo do Atlântico, cogitou ela sem dizer nada
a ninguém. Os dias foram passando e a idade também. Qualquer pessoa que tivesse
viajado o suficiente em direcção às terras do oriente, onde o sol nasce, é capaz de
experimentar um sentimento de ter perdido um dia da sua vida. Fechou os olhos
para restituir esse tempo perdido. As pálpebras estavam a pesar-lhe uma tonelada
sobre os olhos quando ela começou a abri-las. No dia seguinte ela foi ter com o
Djonzinho e contou-lhe tudo.
Durante uns minutos, o Djonzinho ficou em silêncio a imaginar o que se passava na
cabeça da Marta que tinha muita experiência em criminologia. Fechou, também, os
olhos numa retrospecção rápida e acabou por imaginar um buraco negro dentro do
esquecimento colectivo do povo. Para certificar-se da sua própria existência, abriu
os olhos num cogito ergo sum55 – num acto-reconhecimento. Estava ali,
mnemonicamente, perto da Marta, da Fátima e do Roberto.
Imaginou e entrou nos sonhos dela, pensou como se fosse um simples investigador
com a função delegada pelo grupo para controlar os achados e sistematizá-los. O
seu relógio de pulso marcava 14h13 e descrevia um círculo num tique-taque
constante. Já estava acostumado ao relógio porque é um daqueles que não era
controlado pelas ondas da rádio enviadas de Hamburgo na Alemanha. Muitas vezes,
parava vinte e quatro horas para depois recomeçar a trabalhar. Porque não parar da
mesma maneira o tempo? – Perguntou a si mesmo. Quem é que determinou que
são todos os outros relógios do mundo que estão certos? Será que o tempo se deixa
aprisionar pela nova tecnologia? Era doido em aprofundar as coisas à sua maneira,
mas parecia-lhe que isto se deve à sua profissão de investigador científico. Sentiu-se
como se a Terra deixasse de rodar sobre si mesma, as casas se desmoronassem, as
montanhas resvalassem e as rochas caíssem numa avalanche sem igual.
Ainda a imaginar o cenário do sonho de Marta, no momento em que todos estavam
a meditar, cada um para seu lado, pareceu-lhe verosímil o que a Marta contou.
Assim, esta compreendeu que estava a filosofar e deitou um olhar curioso na
direcção de Djonzinho, mas não comentou nada. Piscou-lhe o olho esquerdo.
Djonzinho pegou no lápis e no caderno de anotações onde escreveu algo para que
não lhe escapassem os detalhes. Nos livros sobre investigação, encontram-se
recomendações úteis sobre como colher informações em casos criminais. O registo
detalhado do achado é a chave para uma correta interpretação e compreensão. A
paciência e a minuciosidade são as principais virtudes na ciência da investigação.

55 Penso, portanto, existo(René Descartes).

Domingos Barbosa da Silva 253


A estranha morte de um político

Notou a hora exacta em que chamou o Roberto para consultar o primeiro achado.
Este olhou para ele e disse:
– Djonzinho, precisamos de algo para aumentar isto. Lá no escritório temos um
lente de aumento. Vai lá buscá-lo sem demora. Traz, também, a máquina fotográfica
que se encontra ao lado do computador, dentro da caixa com o aparelho que serve
para estabelecer a idade do achado. O datador C 14. Traz tudo.
Djonzinho entrou de novo na imaginação de Marta, fechou os olhos por uns
instantes e viu-se a bater freneticamente com os dedos no volante quando passava
por Chã d’Areia e avistou um grupo de gente que cruzava a estrada. Matutava sobre
o vaivém de pessoas e questionava para onde iam todos, quem são e porque
estavam ali naquele determinado momento. Olhou para o relógio que marcava
14h23 e tirou do bolso um lenço amarrotado para limpar o suor. Desejava que o
caminho estivesse livre somente para ele. O tempo andava depressa e ele precisava
do caminho livre. Estava a sentir-se como um doido a desafiar outro doido atrás das
paredes da prisão. Tomou consciência de que se mantinha parado no trânsito, com
o coração a bater-lhe no peito como um tigre aprisionado. Procurava combater a
fadiga que se apoderava dele. Passou-lhe pela mente o atropelamento de um grande
homem de letras em São Vicente, de outro em Algés em Lisboa e de tantos outros.
Imagens caleidoscópicas verteram-se-lhe sobre os sentidos. Um homem morto no
chão, sangue, gente que se junta, um camião enorme, polícias, cães. Pediu a nossa
senhora da Graça para lhe dar a paciência necessária. Aquela paciência de Job que
reveste de esperança muita gente. Sentiu-se aliviado, depois de alguns minutos, e
compreendeu, em poucos minutos, que dentro de si morava muita coragem e
paciência. Ouviu uma voz que dizia:
– Que demora, Djonzinho – comentara Marta agora contente ao vê-lo chegar.
Djonzinho não disse nada. Com serenidade, sentiu o olhar dela e os movimentos da
sua mente incidirem sobre ele. Não faz mal, murmurou ela dentro de si. Trabalhou
para o Estado durante muitos anos e, por isso, conhece a fundo, a paciência e a
impaciência de muita gente quando as coisas não andam bem. Marta também era
uma funcionária do Estado. Este tem a mágica tendência ou o efeito de transformar
os indivíduos em obedientes e conformistas de gema, indiferentes aos problemas
dos outros, auto-suficientes e meros titulares de cargos públicos. Estes sentem-se
como sendo o próprio Estado, tornam-se uno com o sistema. Confundem-se com o
todo, como se fossem o próprio sistema. O que não está longe da realidade do nosso
país.
Porém, neste momento, o sistema deve ser posto de lado. Com os olhos fechados,
o Djonzinho reflectia sobre o estado de espírito da Fátima que, pelos vistos, estava

Domingos Barbosa da Silva 254


A estranha morte de um político

impaciente. Olhava para Marta como quem aguarda algo libertador. Algo que
ajudasse o grupo a dar mais um passo na investigação, ficando mais perto do que
realmente aconteceu.
A voz da Marta soava amena, pingava de algo açucarado, quando pediu a atenção
de todos. Os seus olhares colaram-se ao dela durante alguns segundos. Depois disse:
– Minha gente, estamos a fazer um trabalho sério e, neste momento, ocorreu-me
à mente a necessidade de incluir no nosso grupo um agente de investigação policial
competente – pensou ela, e acrescentou – o Zé de Canjinha é a pessoa mais indicada
neste momento. Este trabalho exige muita paciência de todos nós. Ele é capaz de nos
servir e dar mais coragem.
– Não sei, Marta. Temos de ter cuidado com os servidores do Estado. Nem sempre
são neutros na tomada de decisão. O Zé é, de facto, uma pessoa íntegra, mas todo
o cuidado é pouco – comentou Fátima.
– Roberto, o que dizes tu sobre isto? – Perguntou o Djonzinho.
– Acho que devemos esperar um pouco, aprofundar as nossas investigações,
remoer os resultados encontrados sem alarmismo que põe termo ao nosso trabalho.
O envolvimento do Zé pressupõe o envolvimento dos meios de comunicação e vai ter
um grande impacto no nosso trabalho num sentido negativo – assegurou Roberto.
A imaginação de Marta reflectia os seus sonhos e, assim, continua as escavações
sobre um monte de areia com mais de meio metro de altura que já havia sido
revolvida à procura de algum sinal ou indício da presença de algo que contribuísse
para acrescentar algo ao repertório. Parecia uma escavação arqueológica. Mas não
estava longe disso. Só que ninguém do grupo tinha experiência no campo da
arqueologia. Roberto olhava frequentemente para o seu relógio, como se tivesse
pouco tempo para estar ali. Só mais tarde, Djonzinho compreendeu que era um mau
costume dele. Mas o relógio de Roberto não era igual ao seu. O dele é daqueles que
andam de acordo com a maioria dos que recebem a onda radiofónica do relógio
atómico. Eram 14h49 quando Marta instruiu ao grupo sobre a continuação da
investigação. Anotou o horário correcto no seu caderno, o número de fios de cabelo
encontrados, um pedaço de fazenda e colocou tudo numa caixa de recolha de
amostras. Djonzinho pensou logo no que significariam tais amostras depois de tanta
gente ter pisado essa praia após tanto tempo!
A certa altura no desenrolar do pensamento de Marta, isto é, no magma estrutural
dos seus sonhos, Djonzinho imaginou-a, a instrui-los.
– Já estou esgotada por hoje e penso que todos estão cansados. Uma outra coisa
importante que nos vai dar trabalho é encontrar o manuscrito sobre o projecto.

Domingos Barbosa da Silva 255


A estranha morte de um político

Quem o tem? Onde procurar? Amanhã continuaremos. Estaremos cá às 10 horas em


ponto – assegurou ela.
Ainda na mesma tarde, Marta e Roberto analisaram as amostras com o fim de
estabelecer a data do achado para poder correlacionar com a possível idade do
assassino. O datador C14 dar-lhes-ia a esperança de estabelecer um vínculo ou uma
ligação com o passado. Seria um trabalho gigantesco porque a maior parte dos
envolvidos e suspeitos se encontravam ausentes.
Mentalmente, Marta associava ideias e recordações, imaginava a tenda no seu lugar
até ao dia seguinte. Ela, deu os passos necessários para sinalizar o local onde
decorria a nossa investigação e, também, em relação ao Zé de Canjinha e as
condições de sua adesão ao grupo de trabalho.
Isto foi o que Marta teria imaginado, teria sonhado, mas não era possível
implementá-lo, passados tantos anos. Entretanto, executar um trabalho do género
era uma boa maneira de procurar resolver os problemas difíceis que um crime
envolvia.
Os sonhos da Marta eram impressionantes e entravam sorrateiramente nos do
Djonzinho de uma forma também ela, impressionante. Na verdade, não era possível
através dos sonhos fazer uma investigação assim tão séria. Mesmo assim, eram tão
persistentes que ainda dentro da paisagem onírica da Marta, estava o Djonzinho a
traçar planos, a resolver problemas no chão arenoso de Quebra-Canela. Estava a
sentir-se feliz por organizar todo o processo de investigação. Mais tarde, depois de
o deixaram a sós a imaginar o cenário, por uns minutos, estavam todos a desceram
do veículo, passaram por umas árvores cujas raízes secas e fora da terra se
assemelhavam cobras empedernidas. O cheiro do chão molhado lembrava-os da
agricultura, das mondas, do milharal, das abóboras, das favas e das maçarocas.
Djonzinho sentiu muito o facto de a Fátima não lhe ter dito uma só palavra durante
a trajectória. Marta arremessava-lhe, de vez em quando, um olhar curioso como se
se tratasse de uma pessoa apaixonada. Ele fazia de conta que não a estava a ver,
pois ela já o tinha chamado à atenção sobre a realidade das coisas. Sempre
simpatizou com ela. Não apenas por ser elegante, mas também, por ser inteligente.
O que lhe saía da boca e do coração coadunava-se com a visão dele do mundo.
Djonzinho escutava um diálogo dentro dele, entre o agente anunciador do sonho da
Marta e ele e, ao mesmo tempo, a ver os olhos da Marta a reencontrar os seus e,
tanto a cara dela como a sua se tornaram vermelhas e embaraçadas nos momentos
de tais reencontros. Para disfarçar e desfazer a situação, ela anotou qualquer coisa
no seu caderno de notas e disse:

Domingos Barbosa da Silva 256


A estranha morte de um político

– Djonzinho, prepara o detector de metais para um rápido rastreio ou scanning do


local.
– Sim, já me tinha, também, passado pela cabeça – apressou-se a dizer.
– Então, vamos a isso. Se precisares de ajuda, conta comigo – acrescentou ela.
Mediram-se, um ao outro, com o olhar. Marta anotou a magnitude dos sinais.
– Sabes o que estou a pensar em encontrar aqui?
– Uma relíquia de oiro – respondeu Djonzinho, brincando.
– Estou a falar a sério, Djonzinho. O detector de metais assinala que aqui há algo
importante – asseverou Marta.
– Muito bem, Marta. Onde vou começar a escavar? – Perguntou.
Ela olhou para o céu. O comportamento do Djonzinho fazia-lhe confusão. Disse
algumas palavras, não dirigidas a ele, mas para algo espiritual que flutuava em cima
dela.
– Estou à espera da tua decisão. Onde vou escavar? – Tornou a perguntar.
– Nesta direcção – disse ela enquanto desenhava em círculo com cerca de um
metro de diâmetro.
Começou a fazer uma abertura com muito cuidado. O calor do dia fazia-lhe
transpirar por todos os poros. Parecia um arqueólogo a aproximar-se de um achado.
Um artefacto de grande valor. Encontrar qualquer coisa neste lugar, depois de 20
anos, pode ser considerado um milagre. A água do mar conserva muitas coisas, mas
também corrói muitas outras. A sua esperança era a de encontrar uma chave, uma
foto plastificada à la bilhete de identidade, um pé de sapato, um relógio ou um
punhal de metal maciço. A Marta seguia-o curiosamente e, de vez em quando,
passava o detector de metais por cima da escavação. O detector metálico fazia mais
ruído. Não falha. Há uma presença de algo metálico neste lugar.
– Vamos fazer uma pausa – sugeriu Djonzinho, limpando o suor na testa com as
costas da mão direita.
Marta sentou-se na areia e cruzou as pernas à la yoga. Rabiscou algo sobre o
caderno de anotações e depois, exibiu um olhar ausente. Pediu ao Roberto para dar
uma ajuda na escavação, ao que ele se prontificou sem pestanejar. Fátima olhou
para ela e depois para Djonzinho com um ar desconfiado. Esta acabou de fechar uma
caixinha de recolha de amostras e guardou os pincéis. Roberto recebeu ordens para
ter muito cuidado. Era hora de usar a mão e os pincéis. Djonzinho recebeu ordens
para auxiliar o Roberto no que pudesse. A hora da verdade aproximava-se. Todos se

Domingos Barbosa da Silva 257


A estranha morte de um político

levantaram e Marta trouxe de novo o detector de metais para mais um rastreio. Um


piiiip intenso incomodou os ouvidos de todos. Um procedimento lento e cuidadoso
vai garantir bons resultados. De novo, uma voz ecoou dentro de Djonzinho, num
diálogo.
– Djonzinho, preciso de ti – comandara Marta, num tom afável e com tibieza.
– Sempre às tuas ordens – prontificara-se em forma de continência.
– Estamos num momento decisivo na investigação. Se o achado for o que estou a
pensar, não vai deslindar o assassinato, mas ajudar-nos-á muito a avançar nessa
direcção.
– De que estamos afinal à procura, querida?
Sentiu o coração a bater ao pronunciar a última palavra, mas ela não reagiu como
ele receava. Isto deixou-o confuso e, ao mesmo tempo, receoso. Sentiu o sangue a
correr pela face. O que lhe salvou da situação embaraçosa foi o grito do Roberto que
os obrigou todos a saltar.
– Aqui está! – Gritou Roberto
– Como esperado – asseverou Marta, mostrando um gesto de vitória. – Já
imaginava isto – acrescentou ela.
– Zé, tu vais cuidar disto. Já conheces as regras de jogo. Vamos preencher os
documentos onde todos vão assinar. Mas escuta, Zé, como combinado ontem, isto é
e continua, a ser, uma investigação privada e, por isso, o envolvimento de outros é
totalmente excluído. Faz de conta que tu és um de nós – recomendou Marta.
Do pensamento colectivo do grupo, uma pistola de calibre 6.33 surgiu da areia. O
achado confirmou uma coisa que todos sabiam de antemão. Agora falta traçar uma
linha que vai ligar ao assassinato. Mas como? A arma de fogo foi encontrada um
pouco corroída com o peso do tempo. A impressão digital não era possível
encontrar! Mas a bala mágica saiu da boca da arma encontrada. Um silêncio
apoderou-se do grupo. Cada um desenhava na imaginação, a imagem do assassino
e os passos que os conduziriam ao culpado ou à culpada. Se há uma arma de fogo,
há também, um assassino solto pelas ruas do mundo. Um grande avanço nas
investigações. Foi dado mais um passo em direcção à meta.
E onde estão os documentos? Quem os tem? Onde os têm? Qual o seu conteúdo?
Mais um quebra-cabeças. No entanto, Marta tinha ideias claras quanto ao paradeiro
de um documento tão valioso. Ainda assim, o receio batia-lhe às portas do coração
e da mente que ponderavam sobre como proceder para combater o medo. Porton

Domingos Barbosa da Silva 258


A estranha morte de um político

d’nós Ilha. Uma procura no Porton d’nós Ilha. Mas o portão é grande demais para
uma vistoria minuciosa ao local.
Djonzinho sentiu alguém passar os braços sobre os seus ombros, fazendo-o
regressar ao mundo real. Estava tão embrenhado no encadeamento lógico das
aspirações da Marta que se perdeu no mundo das ideias.
Estava a reconstruir o cenário final, mergulhado no onirismo em que Marta o
colocou. Estava a dar uns retoques finais a uma investigação que nunca tinha sido
feita. Estava acima de tudo, a reconstruir algo que compensasse a psique do grupo,
algo que justificasse um trabalho inédito. Sonhos são sonhos, de qualquer maneira.
Mas são, muitas vezes, o que se encontra recalcado dentro de nós. Eles,
simplesmente, sobem à superfície da mente, algumas vezes, como uma realidade.

Domingos Barbosa da Silva 259


A estranha morte de um político

CAPÍTULO XXXIX

Estavam todos metidos no Toyota Carina de Fátima. Djonzinho estava sentado no


banco de trás ao lado da Marta. Não se sabe se por coincidência ou se pela lei da
atracção. Nas curvas, inclinava-se e ela sopesava sobre ele. Ele, por sua vez, fazia a
mesma coisa sem nenhum comentário. Fátima conduzia. Roberto, ao lado dela, ia
em silêncio. Zé falava como se fosse pago para fazê-lo e contava o que se tinha
passado no último fim-de-semana na esquadra policial. O grupo escutava-o ou dava
a impressão de o escutar com grande interesse. Quando o Zé terminou, deu com a
Marta e com os outros mergulhados nos seus pensamentos. Djonzinho aproveitou
para examiná-la, ou melhor, mediu-a da cabeça aos pés. A sua beleza era tal que ele
receava olhar demoradamente para ela. Algo que metia respeito. Havia naquela
beleza algo de extraordinário. Procurou fechar os seus olhos para adivinhar o que se
passava atrás dos dela, atrás das suas pálpebras. Então, visualizava com nitidez o
filme projectado por detrás das suas pálpebras fechadas. Estava a reconstruir a cena
do assassinato.
Depois de muito tempo, Djonzinho balbuciou no seu ouvido. Mas ela não reagiu.
Acotovelou-a, com muito cuidado. Ela abriu os olhos e inspeccionou-o
curiosamente.
– Em que estás a pensar? – Perguntou.
– Estava a fazer uma retrospecção do achado dos meus sonhos e a ligá-lo ao
assassino.
– Já imaginava. – Comentou Djonzinho.
– Estás a adivinhar, Djonzinho? – Balbuciou num tom interrogativo.

Domingos Barbosa da Silva 260


A estranha morte de um político

A trajectória era de 15-20 minutos. Estacionaram debaixo de umas árvores com


muito pouca sombra e com a vista sobre a praça onde se situa o pelourinho. Marta
saiu do veículo e marcou logo no seu caderno de anotações, as coordenadas 14º 55
′ 00″ N 23º 36′ 15″ W, isto é, a localização geográfica da primeira cidade e
capital cabo-verdiana. Do veículo avistava-se, logo à frente, um monumento erigido
no meio da praça, rodeado de umas construções artísticas de pedras em
circunferência à distância de cerca de um a dois metros uma da outra.
Estavam a uns metros da Sede do Concelho de Ribeira Grande de Santiago, na
Cidade Velha, localizada a 15 quilómetros a oeste da Praia, com as coordenadas
acima. Foi quase uma coincidência, o facto de estarem no local, precisamente vinte
anos depois do assassinato de Renato Cardoso. Precisamente, a 10 de Junho de
2009, a Cidade foi classificada como uma das Sete Maravilhas de Origem Portuguesa
no Mundo, após um concurso de votação pública, no qual participaram 27
monumentos todos edificados por Portugal à volta do mundo. E a 26 de Junho de
2009, a Cidade Velha foi considerada pela UNESCO, Património Mundial da
Humanidade. – A Cidade Velha foi a primeira cidade construída pelos europeus nos
trópicos e a primeira capital do arquipélago de Cabo Verde, quando era chamada
Ribeira Grande. Mudou de nome, possivelmente, para evitar ambiguidade com a
povoação da ilha de Santo Antão. A cidade nasceu e desenvolveu-se por conta do
tráfico negreiro e foi capital até 1770, quando esta função foi transferida para a
Praia de Santa Maria,56 hoje cidade da Praia – continuou Marta.
– Também se diz que a Cidade Velha foi porto de parada de dois grandes
navegadores portugueses: Vasco da Gama (1497), a caminho da Índia, e Cristóvão
Colombo (1498), na sua terceira viagem para as Américas – intercedeu Roberto.
– Mais precisamente, em 2000, foi iniciado um trabalho de preparação do dossier
de candidatura da cidade a Património Mundial da UNESCO. O dossier foi
apresentado à UNESCO, em 31 de Janeiro de 2008. Neste mesmo local, encontra-se
a Igreja da Nossa Senhora do Rosário, a mais antiga igreja colonial do mundo,
construída em 1495, na Cidade Velha (Ribeira Grande), Cabo Verde – completou
Marta.
Marta, depois de ter discorrido sobre a história de um pedaço de terra inserido nas
coordenadas que apresentou, apontou para as Ruínas da Sé. Djonzinho sentiu algo
a correr-lhe pelos nervos e nas veias em direcção ao coração ou a algum outro lugar
dentro de si. Sentiu um arrepio a apoderar-se do seu corpo. O coração batia
fortemente. Sentiu agorafobia e receio de se aproximar do monumento.

56 http://pt.wikipedia.org/wiki/Cidade_Velha#cite_note-2

Domingos Barbosa da Silva 261


A estranha morte de um político

– Em 1520 foi construído o primeiro pelourinho na ilha, que hoje é este monumento
nesta linda praça. Como foi dito há pouco, – prosseguiu Marta – neste local encontra-
se a mais antiga igreja colonial do mundo, a Igreja de Nossa Senhora do Rosário, no
estilo gótico português (manuelino). A Rua Banana, que conduz à igreja, foi a
primeira rua de urbanização portuguesa nos trópicos. Vamos passar por lá daqui a
nada.
– O que significa estilo gótico ou manuelino? – Interrompeu Zé.
– Marta voltou a cara para Zé, estacou, olhou demoradamente para ele e
respondeu: o estilo manuelino é um estilo arquitectónico que se desenvolveu no
reinado de D. Manuel I e continuou após a sua morte. É uma variação portuguesa do
gótico, bem como, da arte luso-mourisca o arte mudéjar, isto é, uma mistura árabe
e portuguesa, simbolizando o poder régio daquele tempo. Portanto, o termo
"manuelino" foi derivado de D. Manuel I.
– Como é que queres correlacionar a história da Cidade velha com o assassinato –
perguntou Djonzinho depois de o calafrio ter sido minimizado.
– Djonzinho, chegaremos lá dentro de poucos minutos. Depois, tiras as tuas
conclusões. Quero vos iniciar num assunto importante para poder explicar o por quê
de cá estarmos. Pois, a Sé Catedral da cidade começou a ser construída, em
localização privilegiada, frente ao oceano, em 1555, e foi terminada em 1693,
quando a cidade já tinha perdido muito de sua importância. Foi atacada e,
totalmente, danificada por piratas em 1712, tendo ficado em ruínas, tal como hoje é
observável. Reparem nas ruínas à nossa frente. Imaginem apenas um pouco da sua
beleza no tempo manuelino. O Forte Real de São Filipe, lá em cima, que guarda esta
cidade do alto de 120 metros, foi construído em 1590 para defender a colónia
portuguesa de ataques dos estrangeiros. Aqui mesmo, temos o Convento de São
Francisco, construído em meados do século XVII, foi usado como local de culto e de
formação.
– Então, podemos dizer que aqui, na Cidade Velha, se encontra o berço da cabo-
verdianidade – intercedeu Fátima.
– Correcto, Fátima. Daqui, espalhámo-nos por toda a ilha. Daqui, partimos à
conquista de outras ilhas e do mundo. Chegámos e partimos desta cidade. Os
umbigos dos nossos antepassados estão enterrados aqui, possivelmente, onde
pisamos com os pés – completou Marta.
Marta passou para frente do grupo e conduziu -o às ruínas. Djonzinho sentiu outro
arrepio quando lá chegaram e tinha a impressão de que os outros também o
sentiram, mas ninguém se deu por vencido. O tempo pesava sobre os seus ombros

Domingos Barbosa da Silva 262


A estranha morte de um político

como uma imagem petrificada a olhar para eles. As paredes guardavam, em silêncio,
a história mal contada dos colonizadores, o destino de muitos povos, o segredo que
ninguém haveria de desvendar. Marta olhou ao redor e pediu para os outros se
aproximarem dela. Contou-lhes toda a história ligada ao local.
Depois de algum tempo a observar as ruínas, voltaram ao veículo e conduziram em
direcção à Fortaleza. Entraram pela porta principal, à direita, e num silêncio forçado
pelas circunstâncias. Começaram a vaguear, cada um na sua direcção.
– Aqui, meus amigos. Aqui, neste lugar histórico, aqui, deve estar escondido, de
uma maneira ou de outra, o que procuramos.
– Oh céus! O que procuramos numa ruína? Os ossos dos escravos? A dentadura de
um governador? O segredo dos donos dos escravos? A vergonha colonial? O destino
dos escravos ou as correntes que prenderam os seus pés na luta pela fuga? Os
protestos calados? Os chicotes da ignorância? Os penicos dos escravos? –
Questionou Djonzinho.
– Calma, Djonzinho. Segundo os zunzuns que andam pela cidade, os documentos
acerca do Projecto sobre a restruturação do poder e o Caminho para o
pluripartidarismo em Cabo Verde, estão escondidos no Porton d’nós Ilha, ou pelo
menos aqui se encontra uma pista – esclareceu Marta.
Marta arregalou os olhos, quase que caiu de costas.
– Então, é aqui o Porton d’nós Ilha? – Indagou outra vez Djonzinho.
– Há várias interpretações de Porton d’nós Ilha. A mais plausível é ser aqui onde
estamos. A capa do disco de Ildo Lobo, onde ele interpreta o Porton d’nós Ilha, está
ilustrada com a imagem deste local. Porton d’nós Ilha é considerado Cidade Velha,
por ser a primeira entrada de escravos e senhorios em Cabo Verde. Quando dizemos,
entrada, podemos também, dizer saída de escravos rumo a outras paragens, como
a nossa história relata. Vamos, portanto, dar início ao nosso trabalho, antes que seja
tarde. O grande problema é, por onde começamos? Onde procurar exactamente?
Este lugar é sacrossanto património nacional. Não podemos mexer nele. Zé, que
dizes tu sobre isto? – Perguntou Marta.
– A única coisa a fazer aqui, sem mexer em coisas santas, é vasculhar as paredes,
milímetro por milímetro, voltar as pedras soltas e colocá-las, depois, no seu
respectivo lugar, sem criminalizar os nossos actos. O meu trabalho, a minha
profissão não permite uma coisa diferente – explicou o Zé. – Mas o simples mexer de
uma pedra causa um grande problema.

Domingos Barbosa da Silva 263


A estranha morte de um político

De novo, os olhos da Marta fecharam-se. O interior das pálpebras transformou-se


numa tela de recordações. A sua face mostrou um traço dissimulado e
comprometido. Abriu os olhos e convenceu-se a si mesma. Isto aconteceu há vinte
anos, pensou.
– Vamos mexer-nos – comandou Marta. – Zé, tu fazes as anotações e certifica-te
de que ninguém mexe no que não deve mexer. Fátima, vasculha o lado de fora,
juntamente com o Roberto, através do intervalo pequeno à direita e por cima do
Porton d’nós Ilha. Djonzinho vem comigo – instruiu.
Começaram a actividade com os olhos esbugalhados à procura de algo,
possivelmente, bem protegido. Repararam no que ali estava com muito cuidado
para que tudo fosse reposto tal como estava. Debaixo das pedras saltaram
lagartixas, grilos e osgas de tamanhos diferentes. Marta e Fátima saltavam para cima
dos muros com medo dos bichinhos. Encontraram ferro-velho, pregos, latas,
ossadas, mas nem um sinal do que motivara a vinda até aqui: os documentos que
continham o projecto de Renato.
As investigações cessaram depois de a Marta ter recebido uma chamada telefónica
anónima, com ameaças e intimidações. Estavam todos parados enquanto ela falava
ao telefone. Depois houve uns instantes tensos de silêncio quando a chamada
terminou.
– Minha gente, temos de cessar o nosso trabalho – ordenou Marta. – Esta não é
a primeira vez que sou vítima de telefonemas anónimos com ameaças e truques,
estamos a ser vigiados – acrescentou.
O Zé de Canjinha, chamou-a à parte para se inteirar do que se passava. Ambos
ficaram preocupados com a descontinuação do trabalho que se encontrava no bom
caminho. Revolveu o telemóvel e constatou que não era possível identificar o
número do qual lhe haviam ligado minutos antes. Ele, como polícia, é capaz de saber
de quem veio o telefonema. O Zé, que falava como um papagaio na ida, não disse
uma só palavra no percurso Cidade Velha – Praia.
Djonzinho, ao entrar no veículo, fechou os olhos e deixou que o pensamento o
levasse de volta à praia de Quebra-Canela. Caramba, se fosse real o sonho da Marta,
estariam mais perto de uma solução – analisou dentro de si.
Mesmo assim, continuou a cogitar sobre o que se tinha passado. As provas das
amostras recolhidas durante a escavação não teriam produzido algo concreto. A
identificação da recolha resultaria, certamente, em dezenas de resultados de
origens diferentes e, por isso, não podíamos usar os resultados. Por outras palavras,
excluímos as possibilidades do teste do ADN por causa dos recursos financeiros. O

Domingos Barbosa da Silva 264


A estranha morte de um político

que restaria era fazer uma análise retrospectiva, tendo pela frente as consequências,
isto é, a morte a tiro de uma pessoa pública. De resto, se isso fosse verdade, tudo
ficaria abandonado no fundo de uma gaveta. Era um sonho muito feliz. Temos de
tirar daí algo frutífero.
Nos momentos em que a dor mais a apertava, Marta pensava que, antes de se
pensar nos aspectos morais e mentais de um assunto que apresenta grandes
dificuldades, como a morte de um amigo, tão caro e fiel, o pesquisador, se é que
houve algum, devia principiar por se apoderar dos problemas mais elementares
antes de fazer ou pensar noutras coisas. Pensou que, por mais pueril que este
exercício possa aparecer, aguça as faculdades de observação e ensina para onde se
deve olhar e o que procurar. Pela manga de camisa de um homem, pelas unhas,
pelos seus sapatos, pelas joelheiras das calças, pelas calosidades dos seus dedos,
especialmente, pelo indicador e polegar, pela sua expressão, pelos punhos da
camisa, pelos arranhões, pelos cabelos, pelo sangue, pela mordedura, pela fricção
das partes corporais com outros indivíduos ou coisas, pelos rastos ou pelas
pegadas... em cada uma dessas coisas, a profissão de um investigador é claramente
indicada. Que um conjunto delas deixe de identificar um investigador ou indagador
competente, em qualquer coisa, é virtualmente inconcebível, isto é, não cabe na
cabeça de ninguém. Marta é da opinião de que entre todos os delitos do mundo
criminal, existe um acentuado grau de parentesco. Há sempre elementos de amor,
de ódio ou inveja que culmina em vingança. Os que ficam vivos, para resolver o caso,
devem ou têm de usar um pouco de raciocínio e uma certa porção de intuição. Nos
casos complexos, como o do Paín, tinham de assegurar os indícios durante um
determinado espaço de tempo, em que o local da morte deveria ser vedado ao
público, a fim de ver as coisas de perto e com olhos de águia. A observação é de
capital importância em qualquer indagação criminológica ou científica. Quando a
observação e dedução são justapostas, quase todos os móbeis ficam um pouco mais
transparentes que até uma criança do ensino primário é capaz de os identificar. Por
outras palavras, quando a observação atempada e a dedução lógica se juntam a
métodos convencionais, as investigações adquirem transparência. Como Marta
comentou anteriormente numa conversa com a Fátima, é extremamente perigoso
teorizar antes de possuir dados concretos e indícios palpáveis porque destrói o
raciocínio. Pois, há coisas visíveis aos olhos do observador atento, treinado em
investigar assuntos criminais, mas que são invisíveis para os não treinados nesse tipo
de trabalho. Ora, se uma manada de bois ou um exército de homens tivesse passado

Domingos Barbosa da Silva 265


A estranha morte de um político

pelo local do acontecimento, nada ficaria para os que, verdadeiramente, desejassem


encontrar indícios que os conduziriam a um esclarecimento do assassinato. 57
Num lugar qualquer dentro do ser humano, isto é, no interstício entre Ego e o Eu do
individuo, existe algo que nos torna conscientes e de onde se deriva toda a
compreensão, toda a inteligência, todo o potencial para criar e inventar, mas
sobretudo, para reflectir e conceber a direcção do caminho a seguir.
Na imaginação de Marta, há uma imagem nítida com mais de vinte anos, uma
imagem de um amigo semimorto, estirado na areia, com os olhos postos no
firmamento. Com o passar do tempo, ela aproximara-se, ainda mais dele, com o
sentimento de respeito que a presença da morte sempre inspira. A imagem é tão
real, tão inserida no espácio-temporal, que até parece uma imagem real. A imagem
é de qualquer maneira macabra, triste. A última vez que ela o vira, este jazia na maca
hospitalar com os olhos vítreos fixos no tempo e no espaço ou melhor no nada.
Marta, apesar da sua coragem, sentia-se frustrada porque o medo não a deixava, na
altura, libertar todos os recursos físicos e psíquicos para fazer uma investigação mais
profunda. Sentiu-se inútil e impotente.
Onde não se vive sob a sombra do medo, há um terreno sagrado, existe uma planície
fértil pronta a produzir fortunas culturais, económicas e políticas, valores éticos e
muitos outros. Num ambiente ou estado de medo, os amedrontados sentem-se
continuamente humilhados, como se não tivessem direito à luz do próprio sol. A sua
presença na sociedade mancha os prazeres, as ganâncias e manigâncias dos que
pensam que são donos legítimos de tudo e de todos.
O amedrontado acumula dentro de si o desespero, a aflição, o azedume e o desdém.
Todo este estado de conflito interno é desterrado ou fica alojado na sua psique e
não consegue exprimir ou dar voz a este conflito, o que torna muda a sua dor, o seu
medo e atravessa todas as modalidades de sofrimento e de alegria.58
Onde os cidadãos são oprimidos, aquele que ousa exteriorizar a sua dor, o seu
estado de medo, encontra uma espada de dois gumes encostada ao pescoço.
Quando ele/ela procura sair do calabouço do medo, sem ser ferido pela espada da
tirania, da vaidade, da prepotência, do pensamento socialmente dominante e passa
para o lado dos destemidos, da liberdade e da dignidade, recupera ou melhor, liberta
a sua faculdade criadora, colocando-se ao serviço da humanidade, podendo assim,
defrontar a vida com mais calma e com confiança em si mesmo, com a alma a

57 Moreira,
José Carlos – Não há crimes perfeitos? Alfragide, Portugal. Edições ASA II, S.A., 2009.
58OscarWilde em De profundis, seguidos da balada do Cárcere de Reading, Portugália Editora,
documentos e estudos, 2008.

Domingos Barbosa da Silva 266


A estranha morte de um político

inundar de alegria, satisfação e prazer de viver, de criar e recriar o mundo. Se o preço


que pagamos pela liberdade é demasiado alto, nós poderemos vir a pagar um preço
ainda muito mais alto se nós nos permitirmos viver sob a escravidão ou o jugo do
medo.59
Quanto às investigações anteriores feitas pela nossa polícia e pela polícia
portuguesa, descurámos as provas recolhidas imediatamente depois da morte e
concentrámo-nos naquilo que podemos chamar de sexto sentido. Podemos dizer
que as circunstâncias fora do comum que às vezes ocorrem em investigações
criminais, podem constituir mais uma orientação do que um obstáculo. Assim, ao
resolver um problema deste tipo o mais importante é saber analisar os factos
retrospectivamente, tendo como pano de fundo as consequências, isto é, a morte
do malogrado. O essencial é saber pensar analiticamente. Poucas pessoas se servem
deste modo de raciocinar. A tendência que muita gente tem é de raciocinar na
direcção do tempo, isto é, para a frente, de maneira que, o processo inverso vai
sendo esquecido. Por outras palavras, há pessoas que, conhecendo as
consequências, deduzem os acontecimentos que as provocaram, recorrendo desta
forma, ao processo de raciocínio analítico ou retrospectivo. No caso em questão,
sabemos as consequências, mas os indícios são poucos e postos em dúvidas logo
após o assassinato ter sido publicado pelas autoridades competentes que
mandaram de férias as leis da Justiça. Muitos anos depois, sempre a vasculhar sobre
o assassinato na direcção do tempo, recorremos, depois de muita perda de tempo,
ao raciocínio analítico porque os acontecimentos causais, têm de ser deduzidos de
factos e não inventados a partir do nada.
O grupo sabia, também, que um travão enorme que fora colocado às investigações,
só podia ser uma ameaça vinda dos deuses da política ou mesmo da religião. Sabia
também que os homens mais perigosos da humanidade são os que se dizem agir em
nome de um deus maior, justificando assim, os actos mais bárbaros e cobardes por
si orquestrados. Para o grupo, esse “deus” tratava-se da Luz e Guia, o partido que
conhecia tudo, estava em todos os lugares, mandava e determinava em todos os
aspectos da vida. Esse deus precisava de homens corajosos (os milícias) para o
defender e o proteger em todas as suas acções.
Por que é que umas pessoas acham que têm o direito nato de pensar e decidir pelos
outros? Por que razão muitas pessoas cultas reagem de forma emocionalmente
estúpida em certas circunstâncias? Por que é que uns procuram a verdade enquanto
outros não?

59 Moreira, José Carlos – Não há crimes perfeitos? Alfragide, Portugal. Edições ASA II, S.A., 2009.

Domingos Barbosa da Silva 267


A estranha morte de um político

Para responder as duas últimas perguntas, a primeira já foi respondida no texto


atrás, vamos raciocinar da seguinte maneira: uma das razões por que muitas pessoas
procedem assim, é que, muitas pessoas, perdem contacto com os seus próprios
sentimentos ou melhor, porque os seus sistemas emocionais pura e simplesmente
se desligam do real, do senso comum. Andam, constantemente, ou em grande parte
das suas vidas, entorpecidas. Por outras palavras, andam anestesiadas e poucas
vezes são inundadas pela dor. Adquirem uma muralha psicológica que as isola e que
as mantém afastadas de emoções perturbadoras. Isto pode até ser muito bom em
certas ocasiões, mas pernicioso para as suas relações sociais porque as muralhas
psicológicas erigidas à sua volta para as manter longe da dor, também as separam
dos seus sentimentos mais profundos, como por exemplo, o amor, a alegria, a
amizade, a compaixão, a solidariedade, etc. Caso estas muralhas se desmoronarem
um dia, nesse dia são inundadas por emoções caóticas e, por vezes, destrutivas. Os
traumas emocionais putrefazem-se nos recantos mais escuros do subconsciente e,
muitas vezes, estropiam a vida emocional da vítima para o resto da sua vida. Podem
tornam-se loucos e deficientes.
Portanto, muitas pessoas passam uma vida inteira emocionalmente anestesiadas,
com a maior parte dos seus sentimentos fechados a sete chaves no seu coração,
constantemente desiludidas num mundo pouco receptivo e de pouca confiança. 60

60 Educação emocional – Claude, Steiner e Paul Perry, Cascais, Portugal, 2000 - Biblioteca
Pergaminho, pergaminho@mail.telepac.pt

Domingos Barbosa da Silva 268


A estranha morte de um político

Domingos Barbosa da Silva 269


A estranha morte de um político

CAPÍTULO XL

Roberto estava no seu escritório, numa pequena reunião de orientação com pessoal
da investigação e de vendas, quando recebeu um telefone da Marta. Era um
telefonema assustador que o fez saltar do assento. Suspirou pesadamente como se
estivesse a falar com alguém sentado no tecto do escritório. Sentou-se de novo na
sua poltrona e coçou a cabeça, atordoado. Não sabia verdadeiramente o que dizer.
Voltou a passar a mão pelo cabelo, nervoso e irritado. O telefonema da Marta
ecoava ainda nos seus ouvidos muito tempo depois de esta ter já desligado.
– Roberto, a Fátima deseja falar contigo sobre um problema muito recente e
urgente. Ela quer que nos encontremos os três daqui a uma hora.
Meia hora depois, Roberto caminhava a passos largos em direcção a um táxi, na Rua
Flor de Brava. Um momento mais tarde, estava a atravessar a toda a velocidade a
Chã d’Areia rumo ao Plateaupolis (Praia). Depois de ter saído do veículo, andou uns
minutos, sempre a olhar de um lado para outro, certificando-se de que ninguém o
seguia. Dobrou a esquina e entrou na casa da Fátima que o esperava juntamente
com a Marta. Verificou o relógio e olhou para as duas.
– Olá, Roberto – cumprimentou Fátima.
– Olá, estou mesmo curioso. O que se passa?
– Peço desculpa por te arrastar até cá, Roberto. Mas queria informar-te de que
estamos a ser vigiados. Não podemos viver desta maneira.

Domingos Barbosa da Silva 270


A estranha morte de um político

– Como é que sabes isto?! – Perguntou admirado o Roberto.


– Tenho as minhas razões para te alertar – disse Fátima num tom nervoso.
– Então o que se passa?
– Marta, podes explicar ao Roberto o que se passa? – Pediu Fátima.
Marta estava sentada na antessala, atrás de uma secretária com muita papelada por
cima e um telefone no lado direito. No pulso trazia um relógio Seiko de cor
acinzentada. No dedo anelar, trazia dois anéis de oiro. Trazia uma blusa branca com
uma saia preta e tinha no rosto um ar de preocupação. Ela pôs-se de pé e começou
a andar de um lado para outro. Depois arregalou os olhos nos do Roberto e disse:
– Roberto, tens sido seguido nos últimos dias?
– Que eu saiba, não. Não estou muito convencido disso. Não ando desconfiado de
nada, mas pressuponho agora que eu deva estar vigilante – afirmou Roberto.
– Deduziste alguma coisa sobre o bilhete daquele menino? – Indagou Fátima.
– Gostaria de poder inventar uma fórmula matemática que nos explicasse tudo
aquilo que a dedução e a intuição nos apresentam como evidente e natural nas
últimas horas. Uma fórmula contra-intuitiva levar-nos-ia a uma conclusão mais
certa. Por enquanto, não termos nada que se assemelhe, não podemos deduzir nada
sobre o bilhete entregue pelo menino ou sobre outra coisa neste contexto –
argumentou Roberto. – É bastante difícil porque não sou matemático, mas a
situação parece bastante sombria neste momento. O menino do bilhete desapareceu
sem que eu pudesse interrogá-lo. A minha dedução é que alguém muito inteligente
se encontra por detrás disto para desviar-me do caminho que encetei. O senso
comum repara muito bem no irrealismo levado aos seus extremos nas reportagens
policiais. Há falhas das autoridades desde a primeira hora. Para um observador
experiente, essas falhas contêm a essência vital do caso. A nota de imprensa,
estorvou-nos as investigações, estacionou muitas mentes inquiridoras durante horas
e dias. Por isso, qualquer pessoa realmente interessada, vai ter empecilhos no seu
caminho.
– A imprensa do país vai, certamente, ter um dia de festa com este acontecimento
e nós devemos evitá-lo. Vejamos apenas os cabeçalhos. Faleceu na Praia um homem
político…
– Uma morte não motivada por razões políticas – cortou Marta.
– Alguém vai descobrir a história mal contada, se não for amordaçado! Há sempre
alguém que se interessa por um caso como este – afirmou Roberto.

Domingos Barbosa da Silva 271


A estranha morte de um político

– Recebi um telefonema anónimo ameaçando o trio envolvido nas investigações e


mencionando os nossos nomes em especial – explicou Marta. – Temos de estar
cientes disto daqui para frente. Temos de arranjar maneiras de nos comunicarmos –
acrescentou Marta.
Roberto ficou pensativo durante alguns segundos e a andar de um lado para o outro,
abanando os braços sem dizer sequer uma palavra. Depois, estacou no meio da sala
e disse:
– Bem, temos de cuidar uns dos outros e evitar reuniões sem ter uma pessoa a
vigiar as portas.
– Bom, minha gente, tenho uns assuntos a tratar. Dou notícias logo que poder –
disse Fátima e despediu-se.
Os três separaram-se e cada um foi na sua direcção. Cada um a pensar na estratégia
a adaptar, mas sobretudo receosos nos passos que, doravante, iriam dar.

Domingos Barbosa da Silva 272


A estranha morte de um político

Domingos Barbosa da Silva 273


A estranha morte de um político

CAPÍTULO XLI

Pressentimento

Naquela tarde que se seguiu ao telefonema anónimo, Djonzinho não conseguiu


concentrar a sua atenção em nada. Além disso, as aspirações da Marta e o cenário
onírico onde progrediam as investigações, tornaram-se um pesadelo. Sentiu o peso
daqueles sonhos a estrangulá-lo. Seguida de uma noite com pouco sono, vieram os
demónios tentá-lo. Pressentiu que estava a ser seguido por muitas pessoas. Não
fazia ideia de quem estaria a meter o nariz nos seus assuntos. Os outros, não diziam
nada sobre o acontecido e isto piorara o estado da alma do Djonzinho. É que, às
vezes, nós pensamos se é a nossa mente que vê ou imagina coisas que não existem
ou se essas coisas existem na verdade. Não importa. O que é certo é que o
telefonema do dia anterior, feito à Marta, lhe estava a dar dor de cabeça. A cama
parecia estar um metro abaixo do seu corpo. Acordou duas horas depois de ter
adormecido e o seu quarto estava mergulhado numa escuridão de breu. Sentiu o
corpo a estremecer quando olhou através das frinchas da porta do quarto, uma vez
que, a porta de entrada estava aberta e a luz da sala, acesa. O interessante era que
a luz da sala não vinha para o quarto. Estranha coisa, pensou ele. Estaria a sonhar?
Seria aquilo um pesadelo? O seu corpo ficou preso à cama, como se fosse uma
apoquentação. Nem conseguia mexer-se na cama. Queria levantar-se para ir ao
quarto de banho, mas por mais esforço que fizesse, mais a cama o atraia, ficando a
pesar uma tonelada. Medo total. Pensou outra vez em levantar-se, mas não sentiu
a devida coragem, era como se uma resistência interna se apoderasse dele. Sacudiu

Domingos Barbosa da Silva 274


A estranha morte de um político

a cabeça, mexeu os braços e, de repente, tomou coragem e deu um salto para fora
da cama. Não viu vivalma. Certificou-se de que a porta estava entreaberta, as luzes
acesas e as janelas estavam de par em par. Depois de ter fechado as portas e as
janelas, voltou para a sala para apagar a luz quando se deparou com um sujeito de
cara bem conhecida com uma arma na mão a brincar como se fosse um cowboy.
Estava vestido de preto e trazia um lenço branco à volta da cabeça. Pensou em atirar-
se pela janela para o meio da rua e sair a correr como um doido, mas tinha fechado
a porta. Sem coragem, sentou-se numa poltrona vis-à-vis ao vulto preto que tinha
os olhos pregados na arma de fogo. Como se uma sombra lhe passasse pela mente,
previu os movimentos da arma e a morte a aproximar-se dele. Um assombro total,
um medo tremendo. Seria a morte que chegava? Seria um sonho? Não, isto não
pode ser. Estou em casa. Beliscou-se a si mesmo para se certificar de que estava ali
sentado.
Encarou o vulto de pistola e balbuciou:
– Aquiles! O que fazes aqui?
– Encontraram o que estavam à procura?
Novamente, pensou se seria uma ilusão o que estava a acontecer naquele momento.
Uma partida que a memória lhe pregara? Um sonho dentro de outro sonho?
Esforçou-se muito e desejava que tudo não passasse de um truque de mente.
Djonzinho considerara como muito provável a hipótese de se tratar duma invenção
da memória, mas chegara à conclusão de que não devia ser porque o homem se
encontrava a uns passos dele com uma arma de fogo apontando na sua direcção. A
imagem era demasiado nítida e convincente. O modo como o homem falava, os
gestos que fazia, tudo parecia intensamente real. Não, não podia ser falsa. O cheiro,
o palpitar do seu coração, a luz, o ruído lá fora, o som das palavras, a arma de fogo:
o realismo da encenação provocava nele uma impressão forte de que nenhuma
imitação ou invenção da mente, por mais perfeita que fosse, conseguiria transmitir.
Além do mais e, partindo do princípio de que estava ali a ouvir e a falar para um
individuo de carne e osso, explicava muitas coisas acerca da situação. Tanto no plano
da lógica como no das emoções, a cena era real. Com o medo a borbulhar na pele e
com os olhos fora de órbita pregados nos dele, balbuciou de novo:
– Não! Deixa-me em paz. Deixa-me dormir sossegado. Amanhã, tenho muito para
fazer e depois digo-te qualquer coisa.
Sorridente e sarcasticamente, apontou a pistola para a mesa onde se encontrava um
saco preto estendido. Djonzinho sentia a morte a aproximar-se com nitidez.
Levantou-se da poltrona, mas as pernas tremiam-lhe de tal forma que quase não se
conseguia manter de pé. Arrastava-se com dificuldade. Tremia de medo.

Domingos Barbosa da Silva 275


A estranha morte de um político

– Achas que vais conseguir dormir com uma pistola apontada à tua cabeça? Pensas
que estou aqui para brincar? Quero saber todos os detalhes sobre os documentos e
o seu paradeiro. Tu não vais dormir nunca mais, caso não me informes sobre o vosso
achado. Tudo está a meu cargo a partir de agora.
– Por favor, não me faças mal. Vai-se embora que eu quero dormir. Tenho uma
família para cuidar. Por favor, não me faças mal.
O ar tornava-se rarefeito e custava-lhe a respirar. Os objectos que o rodeavam
convertiam-se em coisas estranhas e ficou com a sensação de que o mundo se ia
fechando, o céu ia cair em cima dele. Sentia-se a ficar às escuras e não conseguia
abrir os olhos, ficando com as pálpebras bem cerradas. O estafermo à sua frente
transformou-se num monstro diabólico. Viu dois cornos a nascer-lhe na testa,
apontando para ele que estava a estremecer de medo. Paralisado, não conseguiu
pronunciar mais palavras.
– Não te perguntei sobre a tua família. Tu tens duas escolhas a fazer neste
momento. Morrer agora ou informar–me sobre o achado.
– Não posso morrer. Os meus amigos estão lá fora à espera de mim. Se eu morrer
tu também vais morrer logo depois – disse, procurando desencorajar Aquiles.
Djonzinho não queria morrer, mas também não sabia de nada concreto que o
livrasse da morte. Porém, tinha uma coisa importante a fazer naquele preciso
momento. O demónio à sua frente já lhe tinha declarado que guiava os seus
destinos. Sentiu o demónio a acordar dentro de si. Queria dar cabo de Aquiles. Mas
como fazê-lo com o peso do medo que paralisava os seus movimentos? Ajoelhou-se
e pediu-lhe o favor de sair para poder dormir. Logo compreendeu, pelos
movimentos da cabeça de Aquiles, que o pedido era inútil. Os ruídos que o rodeavam
iam-se afastando para longe, o suor irrompia de todos os poros, o corpo começava
a tremer, as pulsações tornavam-se mais rápidas e tão fortes que quase se ouviam
à distância do homem sentado na poltrona. Sentiu um calor infernal a nascer dentro
de si e uma raiva a crescer do íntimo. Como sair do enredo? Sentiu a garganta seca.
Uma voz abafada vinda do seu íntimo chegou aos seus ouvidos. Parecia vir das
profundezas da terra. Agudizou os ouvidos. A voz ia aproximando, dizendo: calma.
É preciso raciocinar neste momento! Abriu por fim os olhos e fixou o olhar na mesa
ao lado. Confirmou que o mundo estava exactamente no mesmo sítio e que ainda
fazia parte dele. Pouco a pouco, os sentidos voltavam à normalidade. Tinha a
consciência de que o vulto à sua frente era Aquiles.
– De acordo. Vou buscar o que tenho para que me possas deixar dormir.
Aquiles levantou-se apontando a arma para Djonzinho que ia em direcção à mesa
do canto onde tinha um pau de madeira maciça igual ao bordão de basebol.

Domingos Barbosa da Silva 276


A estranha morte de um político

Primeiro, abriu a gaveta da mesa e mexeu nos papéis. Depois, dobrou o corpo,
alongou a mão direita para segurar o bastão. Sentiu-se sem coragem ao ouvir os
passos de Aquiles logo atrás de si. Tomou coragem de novo e levantou-se como uma
fera com raiva no olhar e, quando foi dar com o pau na cara daquele desgraçado de
quem nunca gostou, tudo voltou ao normal e ele estava deitado na sua cama,
naquela escuridão de breu. Era só ver o estado em que ficou a cama! Mas o Aquiles
não ficou a dever-lhe nada.
A mente humana funciona assim. Se os nossos inimigos são poderosos, somos
capazes de destroná-los nas nossas mentes. Eis o segredo que todos nós temos.
Somos fortes na nossa imaginação e nos nossos sonhos. 61

61 Inspiradono conto de terror de Thiago de Matos em http://art-


terror.blogspot.no/2007/09/premonio.html

Domingos Barbosa da Silva 277


A estranha morte de um político

CAPÍTULO XLII

Um caso esquecido

Marta foi acordada pelo barulho de veículos atravessando a rua contígua. O clarão
do dia filtrava-se através das cortinas das janelas antigas de um prédio de 2 pisos de
estilo colonial, iluminando todo o quarto com uma luz brilhante que mostrava as
partículas reluzentes da poeira suspensa no ar. Ouviu o barulho de punho a bater na
porta. Não deu importância ao bater. Depois, a batida na porta tornou-se mais
intensa.
– Marta, estás aí? Como te sentes?
– Sim, estou óptima. Tu, Djonzinho, a estas horas? O que é que se passa?
– Não consegui dormir toda a noite, pensando nos documentos.
Estava, horrivelmente, quente e Marta sentiu-se banhada em suor. Não se mexeu
durante alguns segundos. Não ouviu os passos do Djonzinho a afastarem-se, mas um
pouco depois, chegou-lhe aos ouvidos um barulho como se do acender de um
fósforo se tratasse. Encaminhou-se em direcção à porta. Abriu-a, mas não o
convidou para entrar.
– Djonzinho, ainda é muito cedo!
– Sim, eu sei Marta, sinto a cabeça pesada e tinha de sair cedo para dar umas voltas
e aliviar o mal-estar. Receio ter bebido demais ontem à tarde. Sinto-me bastante mal
e como estava aqui perto, queria aproveitar para falar contigo. Só uma chávena de
café me faria sentir mais humano e aclarar-me-ia a cabeça.
– É melhor comeres qualquer coisa! Uns ovos, talvez?

Domingos Barbosa da Silva 278


A estranha morte de um político

– Está bem. Deixa-me entrar só por uns escassos momentos.


– Estás ainda de cabeça tonta, homem!
– Não, é apenas uma coisinha qualquer.
– Mas, porque estás assim tão interessado nesse assunto? – Perguntou Marta.
– Que assunto?
– Esse dos documentos.
– Porque sou curioso, é tudo. Mas além disso, acho que todos nós estamos
interessados.
– Isso não é uma resposta convincente.
– A justiça. Ela é a resposta mais convincente que pode existir. Ela é a criança
amada, desejada e meiga para toda a gente.
– Talvez seja um mito. Ninguém sabe se existem ou não tais documentos.
– Judith sabe alguma coisa. Ela sabe que existe.
Marta não disse nada e começou a mexer uns ovos numa tijela na cozinha.
– És casada? – Perguntou Djonzinho.
Ela não respondeu. Continuou a mexer os ovos.
– Os documentos preocupam-me. São como o antídoto arremessado na água
envenenada da nascente. Nós bebemos da mesma água.
– Possivelmente.
– Não vou desistir de procurá-los. Encontrá-los é fazer justiça a uma nação inteira.
– Não te compreendo, Djonzinho. Porquê tanta preocupação da tua parte?
– Porque ele, o autor dos documentos, representava vários tipos de ameaça para
diversos tipos de pessoas. Era considerado, por muitos, como perigoso. Não só no
sentido cabo-verdiano da palavra “perigoso” que significa tanto inteligente como
ameaçador.
– Então porque não mobilizar uma procura mais intensa para encontrá-los?
– É possível que eu esteja errado. Mas uma nação inteira não pode errar. A
consciência colectiva não pode induzir em tamanho erro. A minha intenção é
mobilizar todos os meus amigos para um trabalho sério.
– Nós precisamos consultar a Judith antes de mais nada – acrescentou Marta.

Domingos Barbosa da Silva 279


A estranha morte de um político

– Ela não nos vai esclarecer sobre coisa alguma, a não ser que tenhas uma grande
influência sobre ela. Além disso, não se encontra acessível, ninguém conhece o seu
paradeiro.
– Podemos tentar. Encontramo-la no Poeta depois das quatro – brincou,
acrescentando: ela está longe a gozar da liberdade que nós não temos, ela e o senhor
Delgado.
Ouve um momento de silêncio. Os ovos estavam a cheirar deliciosamente.
– Posso fazer-te uma pergunta muito pessoal? – Interrogou Djonzinho.
– Desembucha.
– O teu marido encontra-se na prisão?
Marta aproximou-se dele, com os olhos no chão, muito surpreendida, sorriu e
disse com tibieza:
– Não, ele não se encontra na prisão.
– Desculpa o meu atrevimento. Sou muito maçador. Vou ver se emendo os meus
erros.
– Começa hoje mesmo.
– Prometo-te. E juro.
– Trabalhamos juntos, Djonzinho. Temos de ser objectivos e profissionais. Os ovos
estão prontos. Vamos lá tomar o pequeno-almoço juntos. Temos muito que pensar
mais tarde – disse-lhe Marta.
– Ganhaste, como sempre. – Disse Djonzinho

Domingos Barbosa da Silva 280


A estranha morte de um político

Domingos Barbosa da Silva 281


A estranha morte de um político

CAPÍTULO XLIII

Habeas data

No dia seguinte, não corria aragem pela manhã bem cedo. O mar parecia estar a
receber os abraços solares da manhã, com aquela cor linda emitida pelos reflexos
dos raios de ângulos estritos. Nas ruas da pequena povoação, não se via sequer uma
alma viva. Ali perto, à beira-mar, uma brisa fresca corria amenamente, espalhando
o cheiro da maresia e refrescando com salitre a face dos banhistas.
Vou tomar um banho senão fico grelhado e a cheirar a babosa (aloé vera) – disse o
Djonzinho para si mesmo quando voltou para casa, despindo a camisa de algodão.
Depois foi ter à Fortaleza e, aí, sentou-se sobre uma pedra. Levantou-se para
inspeccionar o lugar. Andava de um lado para outro à procura dos documentos.
Tinha uma convicção muito grande de que algo estava escondido ali em qualquer
lugar. Pressentiu algo que não sabia bem explicar.
À medida que palmilhava o terreno, sentia a diferença do eco ou do som emitido
pelo chão que pisava. Trilhava o areal de uma ponta à outra e cada vez mais se sentia
convencido de que havia diferença na intensidade do eco emitido pelos passos.
Ficava, também, cada vez mais convicto de que se fizesse um ziguezague e se
aproximasse de determinada área, sentia as ondas sonoras a aumentarem de
volume. Recordou as técnicas que o amigo Totone usava para descobrir um cano de
água partido a uma profundidade de mais de 2 metros. Correu para o seu carro
estacionado a cerca de duzentos metros de distância e foi à loja de bugigangas para
comprar um balde, uma colher de cal e outros apetrechos que julgara serem
necessários para o trabalho. Uma hora depois já se encontrava de novo na mesma
localidade que emitia um cheiro muito especial. Pegou do balde de dez litros de

Domingos Barbosa da Silva 282


A estranha morte de um político

volume e começou a sondar o local. Virou o balde de boca para baixo sobre o chão
e, palmo a palmo, escutou os ecos emitidos subterraneamente, pondo o ouvido
direito directamente sobre o fundo do balde. Algo de estranho lhe encheu de
curiosidade. Ao aproximar-se do centro de maior intensidade, fez um sinal no chão
com uma pedra de forma triangular. Levantou-se para se certificar de que ninguém
lhe estava a vigiar. Tirou do bolso um lenço amarrotado para limpar o suor.
Com a colher de cal na mão, pensava em escavar um pouco de terra para ver se
encontrava algo que satisfizesse a sua curiosidade. Devia era ter comprado uma
enxada, pensou. Ajoelhou-se, e com a mão esquerda sobre o fundo do balde,
começou o trabalho de afastar a terra e as pedras da área marcada. Media a
intensidade do som de vez em quando. Recomeçou o trabalho enchendo-se de
paciência. À medida que ia abrindo a cova, fazia as suas medições do som. De
repente, deu um salto de atleta. A sua nuca estava a ser lambida pelos últimos raios
solares da tarde. Estava mesmo por cima de algo que lhe incutia curiosidade. Batia
com os pés e sentia um grande eco. Viu uma tampa redonda de cimento e ferro. Era
tão grande que não conseguiu manejá-la. Ficou a ponderar a situação olhando em
todas as direcções e não viu ninguém. Saiu a correr para o veículo estacionado lá
fora e, depois de conduzir por 10 minutos, imobilizou-o à frente de uma cabina
telefónica.
Quando o telefone tocou na casa de Marta, eram já 16 horas e 25 minutos. Era um
regozijo mesclado de euforia quando ouviu Marta levantar o telefone que
costumava estar em cima da mesa no canto da casa.
– Marta, és tu?
– Sim sou eu, Djonzinho, o que se passa? Estás muito excitado e frenético – disse.
– Tenho notícias a dar-te – gritou. – Aqui onde estou, há qualquer coisa que
devemos ver juntos!
– O quê, Djonzinho? Que disparate? Que queres que eu faça?
– Pode ser disparate, mas penso que há algo de importante que todos da equipa
devem ver. Penso que encontrei o lugar onde devem estar os documentos –
acrescentou.
– Que tolice! O que se passa contigo, homem? Estou mesmo curiosa. Onde estás?
– Não importa saber o meu paradeiro neste momento. Vou vos buscar daqui a vinte
minutos. Avisa os outros que estou a caminho? – Acrescentou.
Sentou-se no carro e pôs-se a pensar. Estava nervoso e pensou três vezes antes de
pôr o veículo em movimento.

Domingos Barbosa da Silva 283


A estranha morte de um político

Parecia um filme que metia arqueologia, investigações policiais, arquitectura e


criminologia na mesma encenação. Tudo embrulhado em pacotes de suposições. À
porta do prédio onde morava Marta, deparou-se com um grupo de indivíduos, um
dos quais reconheceu ser um dos membros duma congregação satânica muito em
voga nos dias que corriam. Estavam a discutir qualquer incidente com o porteiro.
Felizmente, naquele momento, passou um táxi livre e o taxista parou logo depois do
grupo. O grupo meteu-se no taxi e saiu dali.
Bateu à porta da Marta que o recebeu amigavelmente. Podia ler o seu pensamento
através do vidro dos seus óculos. Sentiu o coração a tremer quando ela lhe pegou
no braço esquerdo e lhe deu um abraço apertado, convidando-o, depois, para
entrar. Sentados à mesa da cozinha estavam, a Fátima, o Roberto e o Zé. Todos
tinham um olhar curioso. Djonzinho sentiu algo a mexer dentro de si. Não sabia o
quê e nem sabia explicá-lo. Esperavam quaisquer alvíssaras. Não sabia como
começar. O melhor era esperar para mais tarde. Mas tinha uma notícia a dar-lhes.
Voltou a cara para a Marta e, após uma breve passagem de olhos pelos outros disse
com uma voz trémula:
– Preciso de vocês, minha gente. Parece-me que temos algo a fazer. Temos de
voltar à Fortaleza de São Filipe hoje mesmo – acrescentou.
– Não sei se faço isto – protestou Marta e saltou do assento.
– Eu também não me sinto segura porque alguém tem os olhos pregados em cima
de nós – disse Fátima.
– Zé, o que dizes sobre a ideia? – Perguntou Roberto.
– Vamos fazer o seguinte: Marta, o teu carro fica estacionado no lugar onde se
encontra. Roberto, tu vais dar um passeio à praça e depois desces até à Várzea e eu
vou ter contigo. O meu carro fica estacionado aí. Djonzinho, tu vais apanhar cada
um de nós no lugar combinado. Temos de ter discrição desta vez. Mas a luz vai
despertar a curiosidade das pessoas. Vamos dar um passeio até lá só para um
reconhecimento e certificar o que o Djonzinho encontrou – explicou Zé de Canjinha.
– Precisamos de alguns instrumentos, do mais simples possível. A luz é importante.
Vamos ser rápidos para não despertar muito a curiosidade das pessoas. Marta,
arranja-me uma corda, uma luz forte e uma enxada. Já tenho um plano. Vou explicar-
vos mais tarde – esclareceu o Djonzinho.
Marta nasceu em Angola, mas considera-se cabo-verdiana de gema. Foi dançarina
nos seus dias de juventude. Ninguém precisava dizer isto. Na sua maneira de andar,
pode-se detectar que alguma coisa de dança sabia. É inteligentíssima e muito culta.
Não é de estranhar que o Djonzinho mostre sinais de muita amizade por ela. É

Domingos Barbosa da Silva 284


A estranha morte de um político

espantoso o que ela sabe sobre investigação criminal. Além de ser bonita é,
também, inteligente e simpática. Djonzinho quis ficar sozinho para falar à vontade
com ela antes de partir. Não para seduzi-la, mas para preparar uma investigação
minuciosa e rigorosa. Ela arremessou-lhe um olhar desconfiado que o estremeceu.
Certificou-se de que ninguém os estava a ouvir e disse-lhe baixinho:
– Não estás muito à vontade comigo, Marta. Penso que temos muito a conversar.
Concordo que não devemos misturar a profissão com esse olhar curioso que temos
um para com o outro. Tu mesmo o tenhas dito hoje de manhã – atirou num jeito
brincalhão.
– Não estás a confundir esse olhar curioso? – Replicou Marta.
– Talvez – respondeu.
Ela lhe deu uma lição de amizade sincera. Certificou-se de que nada existia nesse
olhar curioso e que todas aquelas formas delicadas continuavam intactas. Ela é
muito platónica e pode induzir qualquer pessoa em erro, de mal-interpretar aquele
olhar curioso. Pediu-lhe para ir buscar a corda na varanda e depois saíram. Pegou
numa garrafa de aqua purificata que tinha na geleira e meteu-a no saco juntamente
com umas bananas. Partiram para a Fortaleza, conforme as instruções do Zé. Ela
ficou a pensar calada. Irradiava uma áurea de beleza do lugar onde estava sentada
no carro. A certa altura, depois de terem percorrido dez minutos de caminho, achou
que tinha valido a pena a conversa lá em casa e que deviriam começar a pensar na
segurança das investigações antes de ser tarde. Djonzinho tinha a cabeça cheia de
projectos, mas fazia um esforço tamanho para arrumar as coisas na sua cabeça e
explicar o que iriam em poucos minutos descobrir.
Desceram do veículo e foram apressadamente em direcção à Fortaleza. Quando
aproximaram, o Djonzinho abriu o caminho com as mãos e passou à frente para lá
chegar primeiro. Não podia conter-se de alegria e curiosidade quando lá chegaram.
Todos penetravam um olhar curioso sobre ele.
– Minhas senhoras e meus senhores – começou quando lá chegaram. – Como vedes
aqui – disse, mostrando com o dedo indicador – temos de levantar esta tampa para
ver o que está lá em baixo. Há um buraco debaixo desta tampa de cimento.
Precisamos de força para retirá-la daqui. Há um eco emitido de um buraco ou coisa
do género aqui em baixo.
Todos ficaram curiosos e davam várias voltas à tampa de cimento. Djonzinho sentiu
o coração a pular dentro do peito. Não só sentiu, mas também, ouviu o som que saia
do peito. Ficou orgulhoso por saber que o que descobriu tinha despertado enorme
interesse à volta da tampa. Com o esforço conjunto, conseguiram mover a tampa

Domingos Barbosa da Silva 285


A estranha morte de um político

uns centímetros, o suficiente para os mostrar através de uma pequena frincha que
existe um buraco lá em baixo. Já se fazia tarde.
Estavam todos em silêncio, mergulhados no pensamento, quando o telemóvel de
Marta tocou. Marta afastou-se de nós e com a mão sobre um dos ouvidos escutou
curiosamente. Voltou-se com a cara transformada, diria triste. Todos perfuraram-na
com um olhar curioso. Encolheu os ombros para dizer que não trouxe nenhuma
novidade. Alguém está a seguir-nos e temos de estar cientes disso daqui para frente
– disse ela. Entraram, depois, num estado de auto-examinação e de temor. Quem
seria este sujeito capaz de se intrometer num assunto em que não é chamado? Será
que a procura dos documentos está a preocupar outras pessoas? A não ser que
Aquiles tenha um pelotão atrás do nosso grupo a vigiá-lo.
A remoção da tampa foi logo adiada e seguiram para a capital, a fim de se
prepararem melhor para a tarefa seguinte. Marta não disse nada durante o
percurso, mas todos sabiam, por intuição, que algo se estava a passar.
Ela não demorou muito a sentir o sabor azedo das suas actividades. Ao regressar a
casa, encontrou as portas e as janelas violadas e toda a casa revirada de cima a baixo.
O que fazer agora? Não queria comunicar à polícia, mas o Zé já o tinha feito. Não
deu nenhuma informação sobre o grupo nem acerca do telefonema à polícia. Era
um caso isolado. No dia seguinte, começaram a ter em conta possíveis perseguições.
Mas não detectaram nada.
Depois do telefone anónimo, os membros do grupo passaram a agir com mais
discrição e fizeram os planos necessários para evitar qualquer sobressalto. Os seus
movimentos, tanto na capital como fora dela, eram bem ponderados.
– Amanhã, meus amigos. Amanhã vamos remover aquela tampa. Hoje é tarde
demais para um trabalho do género. Voltaremos às quatro horas da madrugada
para lá – comandou, para disfarçar as preocupações dos presentes.
O trabalho começou às 05.20 da madrugada do dia seguinte. Quem iria cuidar da
nossa segurança era o Zé de Canjinha. Eram, como de costume, 5 pessoas, incluindo
Zé e Djonzinho, quando começaram o trabalho de retirar a tampa de cimento com a
ajuda de um ferro maciço e grosso com cerca de um metro e meio de comprimento.
O trabalho exigia mais esforço do que imaginaram. Roberto, homem de força e
calmo, estudou e analisou minuciosamente a tampa. As ideias dele coincidiram com
as do Djonzinho quanto à maneira de retirar aquela cobertura.
– Vamo-nos preparar para levantar a tampa – ordenou com uma certa
determinação na voz. – Algo especial a ter em conta neste momento, senhor
comandante? – Perguntou ao Zé em seguida.

Domingos Barbosa da Silva 286


A estranha morte de um político

– Nada. Minha gente, vamos começar. Nada a ter em conta e temos tempo
suficiente – respondeu o Zé.
– Agora deves informar-nos sobre o que vamos encontrar aqui em baixo – indagou
Marta.
– Eu também estou a morrer de curiosidade – acrescentou Fátima.
Roberto não disse nada, mas parecia tão interessado como Djonzinho, o que lhe
acrescentou mais um punhado de ânimo ao trabalho.
– Primeiro temos de retirar a tampa antes de saber o que está lá em baixo – disse
um pouco cansado.
– Tu sabes de certeza o que nos espera debaixo desta tampa de cimento – brincou
Marta.
– Claro que sei. Aliás, não é possível ter certezas numa coisa destas, mas tenho um
monte de probabilidades para acertar àquilo que tenho na cabeça. Bem, para ser
mais correcto, não tenho certeza de nada, só tenho uma teoria bem fundamentada
– acrescentou.
Djonzinho estava eufórico, a tremer de alegria. Sentia o coração a saltitar para fora
do peito. Falava muito depressa, com a respiração descontrolada e ofegante. Coçou
na cabeça, preocupado, quando viu a tampa a mover. Era, ainda, muito cedo. Os
grilos cantavam despreocupadamente. Depois, a tampa foi movida mais uns
centímetros. Nada se via, mas um cheiro húmido saiu da frincha aberta. Uma mosca
de cor azul sentou-se sobre uma pedra logo à frente de todos. Marta foi buscar umas
máscaras de papel e distribuiu-as para todos.
Quando a frincha abriu o suficientemente, Marta deixou cair uma pedra no buraco
e não se ouviu quando atingiu o fundo. Todos estavam concentrados numa única
coisa, o vazio. Mas não pode existir vazio num lugar destes. Atirou uma outra pedra
maior e, desta vez, ouviu-se o som do impacto quando atingiu o chão. Fez uma
rápida multiplicação e disse que o fundo estava a três metros.
– O que é que achas que vamos encontrar aqui? – Perguntou Fátima. – Os escravos
enterrados? A estátua de um deles que se rebelou contra o chefe? Os documentos?
– Bem, não estás longe da verdade, Fátima – respondeu Marta.
Na tampa de cimento vê-se inscrito Anno 1590. Mesmo ao lado, um metal gravado
com um texto ilegível. O forte real de São Filipe foi precisamente construído em 1590
para guardar e proteger a Ribeira Grande de Santiago. Depois, foi arruinado pelas
tropas de Francis Drake e, mais tarde, em 1712, pelos chamados piratas franceses,

Domingos Barbosa da Silva 287


A estranha morte de um político

sob a chefia de Jacques Cassart. Não se sabe ao certo porquê, mas possivelmente,
porque eram contra a escravidão, contra a desumanidade do comércio de escravos.
Ou talvez tivessem interesses meramente políticos!
– Mais força – comandou Djonzinho, puxando pela corda que segurava uma barra
de ferro.
– Falta pouco – gritou Zé.
Ouviram um rinchar da fricção de cimento contra cimento. Marta olhou para
Djonzinho e piscou-lhe um olho e começou a bater palmas de satisfação.
– Ó meu Deus, como é isto possível? Como descobriste isto depois de 420 anos? –
Inquiriu Fátima.
Entreolharam-se em silêncio. Djonzinho levantou-se e sacudiu a poeira das mãos.
– Tenho milhares de ideias, mas nenhuma resposta convincente. Com a tampa fora
do lugar, ficou um buraco suficientemente grande para entrar uma pessoa sem
dificuldades algumas.
Um medo esquisito apoderou-se de todos. Queriam descer, mas não sentiram a
coragem suficiente para fazê-lo.
Roberto despejou a sacola que trazia às costas, ali mesmo à frente de todos. Cordas,
lanternas, lâmpadas de bolso, lápis, papéis, máscaras, canivetes e mais. Com a corda
na mão, Djonzinho não viu outra alternativa. Estudou a corda por uns segundos. O
Zé mantinha-se firme e com os olhos atentos a tudo o que se mexia à volta. Fátima
respirou fundo e não disse nada, mas andava preocupadíssima. Podia ver-se como a
adrenalina forçava o coração dela a bater com mais velocidade. Analisou as paredes
à volta.
– Temos de descer – disse a Marta.
– Porque temos de descer? – Perguntou Fátima.
– Não sei. A curiosidade explica o porquê. Espero que possamos encontrar algo que
nos aproxime daquilo que estamos à procura. Algo que certifique alguma coisa. Mas
como descemos? Isto parece fundo demais. Desces comigo, Roberto? – Perguntou.
– Precisas de ajudas, Djonzinho? – Perguntou Marta.
Não ouviu a pergunta porque estava demasiado concentrado em solucionar um
problema de segurança. Estava à procura de um buraco ou outro sistema para
segurar a corda. De repente, surgiu-lhe a ideia de atar a corda na alavanca de ferro
que serviu para levantar a tampa e trancá-la na parte exterior da parede de onde se
via o mar. Enquanto o fazia, o Zé estava a iluminar o buraco de novo. Depois, segurou

Domingos Barbosa da Silva 288


A estranha morte de um político

a corda com as duas mãos, dando um esticão forte para se certificar de que ela
estava bem segura.
Marta tinha já nas mãos uma lanterna, uma máscara e outras coisas necessárias.
Com a corda atada à parede, Djonzinho pediu ao Zé que ficasse de fora para
controlar as coisas. Ele foi o primeiro a meter a cabeça no buraco e depois desceu
cheio de curiosidade. Seguiram-lhe os outros três. O cheiro incomodava, mas
adaptaram, rapidamente, à situação. Uma parede logo à frente constituía um novo
obstáculo, mas descobriram, rapidamente, uma entrada numa outra parede que
fazia um ângulo recto com aquela, com uma cruz gravada na sua parte central.
Djonzinho acendeu uma luz e, depois, uma lanterna de mão que trazia no bolso.
Fátima passou para a frente para medir a qualidade do ar. Não detectou bactérias
nem ar contagioso no espaço fechado quase hermeticamente há, certamente,
centenas de anos.
O espaço em baixo era muito maior do que imaginavam. Passando a porta com a
cruz na parede, descobriram logo, no lado direito, no meio da parede, um esqueleto
humano. Uma corrente circular ainda segurava o crânio, duas outras prendiam os
esqueletos nos braços. Na parte inferior, os ossos dos pés estavam, ainda, atados
por uma corrente mais grossa. Um arrepio apoderou-se do Djonzinho. Quando
voltou para os outros, viu que se encontravam a uns metros de dele. Por várias
vezes, pensou em sair dali a correr. Seguiu à frente e percorreu um corredor
comprido. Uma entrada no lado direito conduziu-os a um outro corredor. No fim
deste, havia uma porta de ferro maciço. Estava trancada. Por mais esforço que
fizessem para a abrir, nada resultaria. Roberto lembrou-se da barra de ferro. Tinham
de voltar ao exterior. No exterior, respiraram por uns minutos o ar fresco com cheiro
de maresia. Sentaram-se em forma de círculo e traçaram um plano alternativo.
Estavam à procura dos documentos acerca dos Projectos sobre a restruturação do
poder e o Caminho para o pluripartidarismo em Cabo Verde. Porém, desviaram a sua
atenção para uma outra investigação. Da procura dos documentos, passaram à
procura da história da sua origem. Todos ficaram surpreendidos com a descoberta.
A porta era centenária e não, apenas, de vinte anos de idade. Os documentos deviam
estar mais acessíveis. Não trancados atrás de uma porta destas. Mesmo assim, não
podiam recuar. Roberto atacou afincadamente a segurança da corda para se
certificar de que todos estavam seguros e, assim, depositar uma grande confiança
nela. Prendeu-a num canhão centenário mais próximo e retirou a barra de ferro. Da
sacola, retirou um martelo e pediu que todos o acompanhassem. Estando de novo
lá em baixo, frente à porta, atacou-a sem demora com a barra de ferro. A porta não
se mexeu e nem cedeu. Marta, sentiu a ameaça de uma sombra claustrofóbica e

Domingos Barbosa da Silva 289


A estranha morte de um político

pediu a Fátima que a acompanhasse ao exterior. Ficaram as duas na parte de fora e


pediram ao Zé para dar um auxílio aos rapazes lá em baixo. O Zé não pestanejou.
Desceu logo com a luz na mão. Fátima, tinha já marcado o caminho até a porta onde
os rapazes se encontravam com um pó branco que levava no bolso. Chegando lá, o
Zé estudou a porta e, pelo eco que ela emitia, disse aos outros que devia ter pelo
menos dez centímetros de espessura. Atacaram de novo a fechadura, mas o calor
era tal que não permitia mais de cinco minutos de trabalho sem que se seguisse uma
pausa. Era possível derrubar a porta, por muito que custasse, era possível.
O plano B estava já traçado na cabeça de Roberto. Aproximou-se e disse:
– Meus senhores, vamos atacar a parede ao lado. A lingueta da porta passa
necessariamente através de uma barra de ferro colocada nesta parede.
Todos se levantaram e, durante alguns minutos, trabalharam intensamente.
Durante a abertura de um acesso na parede do lado, ouvíamos murmúrios que os
ecos faziam com um fundo oco. Também sentiam o cheiro a humildade e a bolor
que os fazia sentir falta de ar. Não havia dúvidas, tinham encontrado algo muito
especial. Algo de que não estavam a procurar. Conseguiram ultrapassar a barreira
imposta pela porta. Abriram então a porta do passado. Entraram na frincha do
tempo e ficaram atónitos.
Estando do outro lado, a uns dez a vinte metros, dobraram uma curva sinuosa e
viram no fundo do corredor uma outra porta enorme que não foi difícil abrir.
Entraram nela como quem entra numa caverna monstruosa cavada na rocha,
repleta de esqueletos. À entrada da caverna, havia uma espécie de arco em pedra,
parecido a uma construção gótica, mas tudo em ruínas. Nas paredes toscas, havia
muitas reentrâncias para apoiar as mãos e os pés. Após passar a caverna, no lado
esquerdo, havia uma outra entrada que dava para uma outra caverna. Entraram
num estado de choque. Ficaram novamente atónitos. Podiam ver tudo o que, a um
ser humano, mete medo.
– Oh! Meu Deus, o que é isto? – Bradou o Zé.
– Sinto-me muito mal – disse Roberto.
– Djonzinho, melhor é não tocarmos em nada – aconselhou o Zé.
Era assustador o que estavam a ver na segunda caverna. Roberto levantou a lanterna
para perscrutar com mais cuidado os buracos nas paredes. Depois, virou os olhos
para um rato a desaparecer a toda a velocidade. Estava a ouvir o bater do seu
próprio coração. O silêncio apoderou-se de todos.
– A Fátima e a Marta têm de ver isto. Vamos buscá-las – murmurou o Zé.

Domingos Barbosa da Silva 290


A estranha morte de um político

Não acreditavam naquilo que os seus próprios olhos estavam a ver. Diz-se que o
passado é o pergaminho onde se escreve o futuro. Tinham à sua frente esse
pergaminho. A história mal contada dos seus antepassados. A desumanidade
peneirando os seus sentidos, a violência e a crueldade documentadas. Somos uma
criatura estranha no planeta, capazes de destruir a própria humanidade – pensou
Djonzinho.
De volta ao exterior, Fátima e Marta estavam curiosíssimas em saber o que se
encontrava lá em baixo. Queriam descer de novo para constatar com os seus
próprios olhos. Desceram e foram até lá depois do Zé lhes ter relatado o que tinham
visto lá em baixo. Estavam perplexas e sempre a olhar para cima e para as paredes
durante a passagem pelos corredores.
Djonzinho pediu mais luz. Para o assombro de todos, havia em cada prateleira de
uma rocha tosca e rudimentar no outro lado da parede, diferentes esqueletos e
muitos crânios que estavam no chão logo à frente. Mais a adiante, no lado esquerdo,
podiam ver-se 5 pilares que seguravam o tecto. Procuravam os documentos dos
projectos, buscavam o oiro, a prata, o bronze, mas só encontraram a sua história e
o destino dos seus antepassados, escritos nos tabuleiros da gruta, no tecto que os
pilares, teimosamente, seguravam no chão das ruínas e com o cheiro incómodo do
ar alquímico.
Atrás de um grande monte de ossos, logo à frente do grupo, havia uma chapa de
metal prateada cravada na rocha com uma inscrição em latim, com as seguintes
palavras: Magnum opus naturalis – non plus ultra – Vobiscum Lucifer = lucem ferre
– Marc 1:13, 4:15; Lucas 10:18.62
Durante uns segundos, pôs o Djonzinho a pensar nos esqueletos, em cada um,
isoladamente, sem um mausoléu que documentasse o nome que carregava.
Sim, sem um nome.
Talvez um título;
Uma data de nascimento;
O ano do nascimento e da morte;
Se era uma esposa ou esposo;
Uma filha ou um filho morto ao nascer;

62- Magnum opus naturalis (grande obra natural -– non plus ultra (já não existente)– Vobiscum
Lucifer = lucem ferre Lucifer esteja convosco = (portador de luz)

Domingos Barbosa da Silva 291


A estranha morte de um político

Um pai cansado de viver;


Uma mãe cansada de ver os filhos a sofrer;
Um parente qualquer.
Uma catacumba, uma verdadeira biblioteca do passado, solta nas paredes
subterrâneas do Porton d’nós Ilha. Que passado? Que trágico momento? Que
história a contar?
A curiosidade venceu o medo. Roberto apontou com a luz para uma outra divisão
mais à frente. Ele apressou-se a seguir o caminho, agora iluminado, nas entranhas
daquela terrível caverna. Assemelhava-se a um cemitério em que os ossos se
levantaram do sepulcro para uma reunião de protesto. O silêncio era sepulcral. As
paredes emitiam um cheiro insuportável e o tecto parecia um céu de metais, com
correntes penduradas. Estavam numa autêntica gruta arquitectada por mão
humana, ou melhor, desumana. Uma catacumba na terra cabo-verdiana.
Djonzinho fechou os olhos e caiu de joelhos. Imaginou a Catedral lá ao fundo da
ladeira, na sua forma original. Ouviu o grito colectivo das pessoas cujos esqueletos
testemunham as dores, os desesperos, os últimos suspiros. Imaginou, também, os
que perpetraram tais crueldades, de chicotes nas mãos, empunhando armas de
fogo, barrigas dilatadas pela gordura e aquele contraste todo. Imaginou a Fortaleza
em tempos idos e viu os homens a colocar a tampa centenária. Ouviu o som dos
últimos gritos a fazer tremer as paredes da Sé e da Fortaleza como os derradeiros
efeitos vulcânicos em agonia.
Abriu os olhos quando Marta o sacudiu violentamente, perguntando-lhe onde se
encontrava.
Não lhe disse nada. Calou-se e hesitou em dizer qualquer coisa. Calar-se é um reflexo
do sistema nervoso central em todos nós. Dizer a verdade, naquele momento, era
uma tortura psíquica. Mas concluiu que não tinha outra escolha. Marta é daquelas
pessoas que não desistem de nada. Queria ver tudo e documentá-lo.
– Chegamos ao ponto de não retrocesso. Esquecemos a razão de aqui estarmos e,
agora, estamos a viajar no tempo. Agora, Djonzinho, o que vamos fazer? Continuar
com dois tipos de pesquisa ao mesmo tempo? Na minha opinião, sim, é de continuar
e prosseguir com ambas as investigações, cada uma no seu âmbito – interrogou
Marta.
Djonzinho sacudiu a cabeça para voltar ao mundo real. Sentiu como se a último resto
de força e resistência escorresse para fora do seu corpo, abandonando-o. O seu
pensamento foi para os primórdios da curta história como país independente,

Domingos Barbosa da Silva 292


A estranha morte de um político

voltando-se depois, para a recente experiência naquela atmosfera cristalizada no


tempo, há mais de quinhentos anos, dentro daquela gruta. O olhar da Fátima pesava
duzentas toneladas, por assim dizer. Radiografava o corpo de Djonzinho. Este olhava
para ela e compreendia tudo sem ela ter dito uma só palavra. Djonzinho sentiu algo
soltar-se dentro de si. Por mais forte que ele fosse, a força de resistência seria
vencida. Não sabia como, mas foi. Enxugou algumas lágrimas teimosas no seu
semblante. A experiência dos últimos dias conduziu-os à descoberta de algo ainda
maior do que aquilo que estavam à procura.
– Djonzinho, conta-nos a verdade, de onde veio a ideia que nos trouxe até cá? –
Insistiu Marta.
– Que mais é preciso dizer, se aquilo que vemos fala por si?! Que palavra pode
descrever o que vemos aqui? – Questionou.
A pressão do ar fez com que algo se movesse no quarto contíguo. Todos se
silenciaram durante uns segundos. À volta do grupo, os ossos da sua história, o
cheiro húmido da terra, a sua desorientação total. Roberto estava ainda com os
ouvidos atentos ao que se ouviu no quarto ao lado e já na iminência de entrar no
outro quarto. Foram atrás dele. No lado esquerdo, havia outro monte enorme de
ossos humanos. Os ossos estavam espalhados pelo chão, sobre as pedras,
penduradas em correntes, amontoados pelo chão, nos buracos, por todo o lado.
Uma catacumba autêntica. Na parede do lado contrário, uma imagem de homens
de chicote na mão. As outras paredes não tinham senão o aspecto rudimentar das
rochas da ilha com buracos e prateleiras. Mas logo ao subir pela corda que os içava,
deparou-se com uma outra imagem que ainda carregam na memória. Djonzinho
desceu, novamente, com pressa e pregou os olhos na parede. Duas imagens belas!
A Fortaleza? A Sé Catedral? Não podia ser. O Forte! Tão elegante no Alto Cutelo! Um
nó na garganta silenciou-o. As palavras voltaram em redemoinho para dentro do seu
pensamento. Pensou: uma outra vida. Uma época diferente. Passou já muito tempo.
Porém, algo procurava manifestar-se no Djonzinho. O silêncio pairou entre eles.
Djonzinho estremeceu de contentamento e medo ao mesmo tempo. Encheu-se de
convicção de que aquela imagem estava a olhar para ele num momento fixo no
tempo. Pegou no caderno de anotações e escreveu umas notas rabiscadas. Escutou
o som emitido pela fricção do lápis contra o papel. Gostou do som. Era como se
estivesse a ouvir o som dos seus pensamentos. Como se as palavras rolassem da sua
imaginação através dos seus dedos. Um dos seus pensamentos que escorreu sobre
o papel, foi o destino dos projectos. Aqui, não havia nada que sugerisse o
esconderijo dos projectos.
– Vamos sair daqui! – Ordenou.

Domingos Barbosa da Silva 293


A estranha morte de um político

– Vamos, mas voltaremos depois – informou Marta.


O Zé ouviu com atenção tudo o que contavam, com os olhos esbugalhados e ficou
incrédulo. Ele tinha voltado para a superfície, logo após a abertura da primeira porta,
trocando de posição com Marta e Fátima, pelo que, não estava, totalmente, a par
da macabra descoberta. Quando a Marta acabou de lhe contar o que viram, ele
estava a olhar para o céu. Djonzinho ficou com a impressão de que ele não estava a
escutar ou a acreditar neles e queria uma prova. Só depois de ter aceitado o pedido
do Zé é que começou a organizar as impressões.
Zé de Canjinha, depois de se inteirar do que foi observado, ficou pensativo. Em
seguida, pediu a palavra para esclarecer a todos sobre um assunto muito
importante.
– Há um requerimento de um empreendedor secreto para reconstruir tanto a Sé
Catedral como o Forte Real de São Filipe nas suas formas originais. No entanto,
ninguém conhece a sua forma original. Os críticos protestam, veementemente,
contra a reconstrução porque isto pressupõe o derrubar de tudo o que existe e a
reconstrução, pedra a pedra, às cegas. Isto é uma autêntica profanação. De
profanações temos já o suficiente neste país. Conheço muitos que estão contra a
reconstrução da Sé Catedral e uns tantos a favor de reconstruir a Fortaleza, para
reforçar o grupo, vamo-nos juntar este último. Dentro em pouco, se os desejos dos
requerentes forem aceites pela Câmara Municipal, haverá um cerco de ferro à volta
deste local e com polícias para proteger a Sé e o Forte, ficando assim, todos os
curiosos, sem a possibilidade de observar este património de perto.
Depois de um instante de reflexão, o Zé começou a mexer com os braços sem dizer
nada.
– Bem, quanto ao que se encontra lá em baixo, preciso ver isso com os meus
próprios olhos – disse.
Desceram de novo com renovada curiosidade. Ele constatou, por si mesmo, que o
subterrâneo estava cheio de esqueletos humanos. Centenas de esqueletos, milhares
de impressões. Os ossos estavam espalhados pelo chão, sobre as pedras,
pendurados em correntes, aos montes e enfiados nos buracos por todo o lado.
Deveras, uma autêntica catacumba.
– Sim, uma autêntica catacumba babilónica. Um inferno cabo-verdiano em que só
faltam o fogo e o próprio satanás – comentou.
Foram, de novo, directamente ao inferno, sem serem questionados pelos guardiões
das portas. O Djonzinho deixou, mais uma vez, o seu olhar escoar sobre o
amontoado de ossos até encontrar o olhar do Zé.

Domingos Barbosa da Silva 294


A estranha morte de um político

– Falta o fogo, mas não o Satanás. Realmente, uma autêntica catacumba


babilónica – comentou novamente.
No silêncio que se seguiu, Djonzinho imaginou a causa de tudo à sua volta. Ouviu de
novo o eco dos gritos abafados pela tampa enorme que lacrou o inferno. Ouviu os
últimos gemidos no antanho e pensou como a história cabo-verdiana começara,
como a sua resistência principiara, como o processo de cabo-verdianidade se
originara e, até que ponto, a maldade humana pode chegar. Procurou encontrar
uma definição da história cabo-verdiana, a causa do que viram. Não encontrou nada,
não conseguiu encontrar uma só explicação da causa da existência das ossadas lá
em baixo e nem uma resposta convincente para se acalmar. Por um momento,
negou reconhecer e aceitar a carnificina como uma expressão de algo diferente do
que realmente foi: barbaridade, maldade, genocídio, estupidez, rancor humano,
brutalidade, ignorância total, etc. Dentro de si, carregava uma grande expectativa,
uma esperança e um enorme desejo de que tudo o que corria pela sua imaginação
no momento, fosse errado, falso ou mera ilusão. Surgiram diversas perguntas e não
queria encontrar sequer uma resposta satisfatória. O que poderíamos fazer tu e eu?
Poderíamos, na verdade, fazer algo que dignificasse tudo que vimos? Bem, não
podemos devolver a vida aos esqueletos, não podemos ressuscitá-los, não temos
remédios para as suas dores, para os seus desesperos, para o seu luto nem para o
seu sofrimento. Mas, uma coisa podíamos todos fazer: podíamos, juntos, recuperar
aquele Cabo Verde que existia, no nosso imaginário, antes da escravatura, aquele
país de Morabeza que bate no coração de todos nós e o torna uma pérola no oceano.
Só, assim, podemos voltar as costas àquele passado barbárico, à maldade, às
matanças e honrar os ideais de todas as boas pessoas que foram arrancadas,
impiedosamente, da linha do tempo.
De repente, foi como se todo o interior da cave onde nós nos encontrávamos, se
enchesse de uma luz intensa, como se mil sóis surgissem do nada. Todo o interior
desapareceu na intensidade da luz e Djonzinho teve a impressão de estar a flutuar
no espaço, tendo passado através de algo parecido com um túnel e, em seguida, ter
ouvido algo parecido com uma explosão dentro da sua cabeça. Depois, tudo ficou
escuro. Tudo era silêncio, durante uns segundos. O ar estava parado. Totalmente
parado. Abriu os olhos e descobriu que estava ajoelhado no chão.
Tudo era tão irreal. Tudo era inacreditável, surrealista. Ficaram num tremendo
silêncio e começaram a pressentir que algo estaria a escorrer sobre os nervos do Zé.
Djonzinho sentiu outra vez um nó na garganta e, depois, um arrepio apoderou-se
dele. Correu para o Zé e pegou-lhe na mão.
– Vamos embora daqui, Zé – disse.

Domingos Barbosa da Silva 295


A estranha morte de um político

O Zé não apresentou qualquer resistência. Saíram e inspiraram o máximo possível o


ar fresco lá fora. O Zé perdeu a fala por uns instantes. Djonzinho é o culpado por
tudo isso – pensou. Não é o que estavam à procura. Isto foi um desvio na procura de
documentos. Mas foi um bom desvio. Encontraram outro tipo de documentos
selados com cimento na memória de um povo massacrado e desprezado.
Na noite que se seguiu, o Djonzinho não conseguia dormir. Foi para a cama cedo e
procurou imaginar uma cama no deserto. Sozinho no deserto, pelo menos, no lugar
em que os pecados não fazem fila. Pelo menos, ninguém estava a persegui-lo. Pelo
menos, não sentia a culpa por omissão de não ter tentado procurar as causas dos
pecados. Ao menos, esqueceria um pouco da miséria humana, do desprezo, da
mentira e da injustiça, por uma noite.
No dia seguinte, todos do grupo de investigação sentaram à volta de uma mesa
triangular na casa da Fátima para analisar o acontecimento do dia anterior. O
silêncio era perturbador. Os olhos faiscavam curiosidade e todos pensavam,
simultaneamente, sobre o que é que cada um iria dizer.
Zé de Canjinha, tinha entrado com uma pasta na mão direita. Fátima tinha fechado
a porta atrás dela com tanta força que aguçou a curiosidade dos presentes.
– Não foi minha intenção, caros amigos. A corrente do ar arrebatou-me a porta –
disse.
– Não faz mal, jóia – respondeu Marta.
– A noite foi árdua para mim, meus senhores. Não imaginam o estado da minha
alma depois do que descobrímos – comentou o Zé.
– Isto tudo muda a direcção da nossa pesquisa. Não porque seja de somenos
importância, mas porque o que encontrámos, assombra o que estávamos à procura
– disse Fátima.
Zé meteu as mãos no bolso depois de ter repousado a pasta em cima da mesa.
Encheu as bochechas de ar e, depois dalguns segundos, foi libertando, lentamente,
o ar enquanto penetrava um olhar em todos os presentes. Era um olhar de um
homem que sabia o que fazer, um olhar experiente e decisivo. Marta levantou-se,
levou a mão ao cabelo e dirigiu-se graciosamente para o Zé. Fátima franziu as
sobrancelhas e mordeu o lábio inferior. A ausência de um comentário sobre o que
se passara no dia anterior era extremamente perturbante para todos. Fátima, abriu
a geleira e tirou uma garrafa de refresco. Serviu a todos e sentou-se de novo sem
dizer sequer uma palavra. Roberto levantou-se e foi até à janela do apartamento.
Marta foi ter com ele. Apoiou o seu braço direito sobre o ombro esquerdo do
Roberto, mas este não se mexeu.

Domingos Barbosa da Silva 296


A estranha morte de um político

– Vamos sentar-nos que temos muito que falar – disse o Zé cortando o silêncio
aterrador.
O Zé desviou o olhar da janela, dirigindo-o para Roberto e, depois, para os outros.
Voltou a olhar para a porta por onde entrara. Foi até lá, abriu-a, certificou-se de que
não havia ninguém a espreitar, e tornou a fechá-la. Apressou-se em direcção à mesa
triangular. Fixou um olhar penetrante nos presentes e sorriu.
– Amigos, ainda estamos a sofrer as sequelas dos acontecimentos de ontem. Não
pode ser um sonho colectivo. Aquilo foi e é, infelizmente, real. Porque é que tudo
aquilo significa tanto para nós? Foi ou não realidade o que encontrámos? –
Questionou.
– Estamos perante um achado de importância global e nós entramos num
compromisso de grande envergadura – acrescentou Marta.
Fátima respirou fundo e olhou de relance para a janela onde tinha estado Roberto
uns minutos antes. Cogitou, profundamente, no assunto a tratar, na consequência
que o mesmo iria ter na sociedade, na maneira como iria prosseguir a investigação.
Queria gritar de satisfação pelo achado histórico, mas ao mesmo tempo, também,
gritar de tristeza pela dura realidade ali presenciada. Não sabia por onde começar a
conversa. Sentiu-se desorientada e, ao mesmo tempo, sem coragem. Não podia
fazer nada. Havia demasiada verdade no que tinham visto no dia anterior. Via-se nos
seus olhos, sentia-se na sua voz e todos os seus gestos mostravam o pesar que
aquela descoberta causara em si. Todos estavam demasiado pensativos. Os objectos
descobertos são uma relíquia a ser preservada sobre a história cabo-verdiana. São
informações absolutamente secretas, mas deixarão, dentro em breve, de o ser,
chocando contra antigos dados que se enquadravam numa meia dúzias de teorias
existentes e que nunca tinham sido expostas com tal clareza.
Marta fechou os olhos e relembrou o efémero momento do dia de ontem ao passar
pela Rua Pilon di Pó e Rua Banana, roçando nas folhas de bananeira.
Roberto lembrou-nos de que deveríamos documentar tudo o que encontraram
pensando que uma máquina fotográfica daria bastante jeito. Não houve um mínimo
desacordo quanto a isto. Roberto teve grandes dificuldades em se controlar, mas
nada nele transparecia qualquer nervosismo. Todos marcavam passos curtos, todos
estavam convergidos num só pensamento, talvez procurassem um pacote de
silêncio embrulhado noutro silêncio que continha os segredos do tempo.

Domingos Barbosa da Silva 297


A estranha morte de um político

CAPÍTULO XLIV

O mistério de Quebra-Canela, a prisão do suposto assassino e a


aproximação da resolução do caso

Alguns dias depois do achado no Forte Real de São Filipe, na Cidade Velha, os
elementos do grupo reuniram-se de novo para auscultar o pulso das investigações
privadas. Depois de muita conversa, a equipa concordou, entre si, como deveria
prosseguir dali para frente sem fazer alarme acerca do que aconteceu. Depois de um
silêncio perturbador, o Djonzinho sentiu a necessidade de retomar o caminho
deixado para traz!
- Imagine que numa viagem você se depara com duas opções de caminhos: Um
inexplorado, com uma estrada pedregosa e cheios de espinhos, inóspito, sombrio,
desconhecido. Já o segundo, um pouco mais familiar e do qual se pretende desvendar
algo, conhecendo-o melhor, um pouco menos sombrio e com a luz suficiente para
continuar. Qual seria a sua opção? Por onde seguiria viagem? Acredito que seria o
segundo – raciocinou o Djonzinho. – Retomemos o nosso raciocínio. Os documentos
ou as ossadas? – Perguntou por fim.
– Faremos os possíveis para os encontrar, caro amigo. Podes ficar descansado. Já
temos alguns zunzuns. O suposto criminoso não os tem. O principal homem arrolado
neste crime, também não os tem. Devem estar nas mãos dos seus colaboradores,
conforme suspeitamos – acrescentou Roberto.
– Portanto, devem tê-los escondido num lugar seguro e escuro – comentou
Djonzinho.
– Como em todos os crimes, os autores esperam que, tanto a morte como a sua
fuga, venham mais tarde a cair no esquecimento, a fim de voltarem, novamente, à
sociedade e a viverem como um cidadão comum. Embora a sua consciência os
devesse pesar sobremaneira. Os documentos, provavelmente, seriam, mais tarde,
usados como textos de autoria própria, com os quais viriam a elevar-se na sociedade
– disse Marta, continuando – os documentos estão a ser difíceis de encontrar. Não
há, por enquanto, nenhuma luz sobre eles. O caminho está a ser pedregoso. Será que
temos de escolher este caminho apesar de ser pedregoso?

Domingos Barbosa da Silva 298


A estranha morte de um político

– E se alguém viesse a desconfiar que os textos têm o estilo próprio do seu


verdadeiro autor? – Intrometeu Fátima.
– Não pensam assim os autores do crime – corrigiu o Roberto. – Eles sentem-se
omnipotentes e possuem tanta autoconfiança que julgam ser impossível que alguém
viesse a encontrar os documentos no lugar onde os tinham escondido ou a desconfiar
do seu verdadeiro autor já que afastaram todos os vestígios sobre quem os escreveu
– acrescentou.
Um dia depois, Roberto atirou para o colo do Djonzinho um exemplar do semanal
VOZDIPOVO e um outro do mensal Terra Nova. O primeiro, trazia uma série de
títulos espectaculares como: “Renato Cardoso foi assassinado”! “Faleceu ontem na
Praia o Secretário de Estado da Administração Pública”. “Hora de bá ê triste”. O
segundo trazia algo um pouco mais crítico: “Terra, bô sabe”? e, no fim, estava:
“esperemos que a verdadeira história seja divulgada um dia”.
Vendo que Roberto estava mergulhado em pensamentos e muito preocupado para
dar um dedo de conversa, o Djonzinho pôs de lado os jornais, recostando-se na sua
poltrona e deixou-se absorver pelos seus pensamentos. Desenhou de novo o palco
da morte em Quebra-Canela na sua mente. Estava ausente do mundo real quando a
voz do Roberto lhe chamou à realidade.
– Djonzinho, acho que tens muita razão quando, há dias, nos questionavas sobre
qual o caminho que deveríamos escolher, e mais tarde, me falavas da irracionalidade
na maneira como às vezes as pessoas resolvem os seus conflitos. Este modo de
resolver as contendas é muito irracional. Os que têm medo da ideia dos outros,
procuram eliminá-los para poderem ter paz no espírito. Não argumentam com
antítese porque acham que estão a dar aos outros a possibilidade de pensar melhor.
Acho que o que estás a pensar, neste momento, sobre o palco da morte de Renato,
é tudo verdade – asseverou Roberto.
Djonzinho deu um salto atlético com os olhos fora da órbita, abanando as mãos sem
sequer dizer uma palavra. Depois de ter reparado que o Roberto não fez caso da sua
reacção, retorquiu:
– O que é que estás a dizer? Irracional? – Respondeu surpreendido com o que o
amigo acabara de dizer, pois, condizia exactamente com aquilo que, naquele
momento, estava a pensar. – Como podes adivinhar o que eu estava a pensar? –
Admirou.
Caso estranho que ultrapassa a imaginação. O seu amigo reparou que Djonzinho
ficou perplexo. Já lia os trabalhos de alguns autores credíveis que diziam que uma
personagem pode acompanhar pelo raciocínio o pensamento do seu companheiro,

Domingos Barbosa da Silva 299


A estranha morte de um político

mas pensava que eram apenas umas frases soltas no meio de muitas outras. A partir
de então, ficou a desconfiar se o seu amigo possuía esse dom de adivinhar e ler os
pensamentos. Reparou no trejeito de lábios de Roberto que mantinha os olhos fixos
no tecto.
– Meu caro, Djonzinho, os cegos têm a capacidade de usar melhor os seus sentidos
porque é como se estivessem com os olhos fechados. Quando te vi com os olhos
fechados e as tuas sobrancelhas a moverem-se em todas as direcções, com a
serenidade na tua face, calculei a probabilidade de estares a pensar no que acabaste
de ler nos jornais que te trouxe, aproveitei, então, a oportunidade para seguir os teus
pensamentos e eles estavam no mesmo nível dos meus, isto é, nos arredores da praia
de Quebra-Canela. Tanto tu como eu, temos o interesse de resolver o problema do
assassinato e já sabemos, mais ou menos, quem mandou matar o Renato, só não
podemos declará-lo culpado por não possuirmos os dados necessários e não
podermos usar a hipótese como prova isolada. Nenhum Juiz é capaz de aceitar a
nossa hipótese como prova final. Temos de ter provas científicas para provar a nossa
hipótese – acrescentou Roberto.
– É muito curioso. Porque é que achas que estava ali a pensar em algo?
– Não acho nada. Assim é a natureza humana. Sei o que estavas a pensar
simplesmente observando a tua fisionomia. Esta é o espelho que reflecte as nossas
emoções. As emoções são, em situações iguais, mais ou menos, semelhantes em
duas ou mais pessoas. Ora, não é preciso muito aprofundamento no assunto para
reconhecer as emoções básicas nas expressões faciais de alguém. Basta incidir os
olhos no semblante do outro para entender se ele está tenso ou nervoso, se ele está
a mentir ou dizer a verdade. Porém, quando elas se misturam, é necessário deitar
um olhar mais afiado, mais atento para detectar algo mais específico. Uma dica é
concentrar-se no lado esquerdo do rosto, onde os sinais de emoções ficam mais
marcados, onde podemos ler com mais clareza os sinais emitidos pela mente.
Djonzinho deu-se por vencido e ficou calado a cismar. Roberto ao pensar que, muito
tempo depois, foi preso um individuo do sexo masculino que estava, supostamente,
relacionado com o crime de Quebra-Canela, saltou da cadeira e começou a
praguejar.
– As coisas estão a tomar o caminho que eu previa – disse ele. – Desvio intencional
de atenção – acrescentou.
– Sim, ele vai pagar o pato – comentou o Djonzinho.
– Pagar o pato? O que queres dizer?

Domingos Barbosa da Silva 300


A estranha morte de um político

– Pagar o pato! Pagar o que os outros fizeram, isto é, sofrer as consequências do


que foi feito por outros. A história está cheia de casos semelhantes. Curvando-se
sobre uma nova teoria ou um novo caso, os olhos da população desviam a atenção
para outros planos – explicou.
– É o que estou aqui a pensar!
– Temos de falar com os agentes policiais que prenderam o homem – sugeriu.
Saíram apressados em direcção à esquadra da polícia para falar com os responsáveis
pela prisão do arguido. Não era fácil obter autorização para entrevistar qualquer que
seja a pessoa. Depois de muita insistência e sem resultados, resolveram sair. Ao sair,
deram com um dos polícias que fazia parte da caça ao homem, agora sob o olhar
atento das autoridades. Este estendeu-lhes a mão de um modo arrogante, mas
Roberto apressou-se a perguntar-lhe sobre as circunstâncias em que prenderam o
Badiu Boxero.
– Já leram o jornal, meus senhores? – Perguntou ele.
– Sim, senhor agente, já lemos. Peço-lhe que não tome, a nossa presença aqui
como excesso de liberdade, se é que lhe podemos dar um pequeno conselho de amigo
– disse-lhe Roberto.63
O homem enraiveceu e ficou furioso, apontando um dedo ao seu próprio peito.
– Um pequeno conselho, senhores? Sabem com quem estão a falar?
– Sim, senhor agente. Temos estado a reflectir e a estudar este caso e não estamos
convencidos de que a equipa que prendeu o Badiu Boxero esteja num bom caminho.
Os nossos conselhos vão ser simples: devem agir com a maior calma possível, sem
desviar as vossas atenções da acompanhante e, possivelmente, de outras pessoas,
sem precipitações! O caso aparenta soluções diferentes. Tendo agora nas mãos um
suposto criminoso, ficam para trás outros elementos esclarecedores da situação
criminosa – explicou Roberto.
– Muito obrigado pela bondade em cá virem e pela vossa presença, mas agora
tenho mais coisas a fazer – replicou o agente policial e abriu o caminho em direcção
ao posto de trabalho.
– Estamos a falar pelo vosso bem e pela justiça, senhor agente!

63 Moreira, José Carlos – Não há crimes perfeitos? Alfragide, Portugal. Edições ASA II, S.A., 2009.

Domingos Barbosa da Silva 301


A estranha morte de um político

O senhor agente deitou-lhes um olhar malicioso e despediu-se. O grupo seguiu o seu


caminho até à praça pública sem dizer sequer uma palavra. Roberto virou-se para
Djonzinho e disse:
– Precisamos de reflectir mais sobre este caso, Djonzinho. Vejamos: a captura de
um delinquente reforça a nossa suposição de que existe um conluio predeterminado
neste caso dramático. Sim, que houve uma conspiração bem arranjada. Esse Badiu
Boxero só servirá como bode expiatório. Apresentam-se enormes dificuldades para
obtenção de certos pormenores indispensáveis para descobrir e aprisionar os
verdadeiros responsáveis e culpados. Sendo assim, o julgamento do Badiu Boxero é
e será uma farsa – assegurou Roberto.
– Sim, isto acarreta enormes dificuldades. A farsa está bem montada. Voltemos,
em primeiro lugar, à presença inegável de uma acompanhante e ao
desaparecimento dos documentos que se encontravam no veículo que os conduzira
até aí. Podemos, portanto, desde já, pôr de lado a hipótese de o Badiu Boxero ter
tomado parte no crime – asseverou.
– Então, estamos a raciocinar da mesma maneira. Não esqueçamos que nós somos
investigadores privados e o nosso interesse é desvendar o caso e servir a justiça.
Portanto, não temos o propósito de aprisionar qualquer pessoa. Queremos estar ao
serviço da verdade. Vamos lá ver uma coisa importante. Suponhamos que alguém,
naquela tarde, pretendeu levar a efeito um empreendimento qualquer, um acto
criminoso, no decurso do qual foi morto um individuo ligado ao poder vigente que,
poucas horas antes, teve uma reunião agitadíssima com o seu chefe. Logo, podíamos
pensar que este acontecimento teria aspectos criminosos relacionados com tal
reunião, porque só assim se poderia explicar com convicção as causas da morte e/ou
o seu empreendedor tivesse querido estabelecer uma prova de ausência, um álibi,
isto é, estando num lugar diferente daquele em que ocorreu o crime na ocasião em
que o acto hediondo foi cometido. Encontrado nas proximidades do local do crime,
muito tempo depois, o Badiu Boxero, parece ser, aos olhos dos agentes da polícia e
dos que neles confiam, o mais verosímil assassino!
Ora, vejamos agora uma coisa importante neste possível conluio. Se o Badiu Boxero
estivesse envolvido no crime, não faria ele, caso estivesse nos seus cinco sentidos, o
máximo que pudesse para estabelecer uma prova de ausência, um álibi, nas horas e
dias próximos da data do assassinato? – Perguntou Roberto.
– Estou a ver o teu raciocínio – comentou Djonzinho.
– Alguém poderia perguntar: porque é que o Badiu Boxero se encontrava no lugar
ou próximo do lugar do crime na altura em que foi preso? Sim, é lógico perguntar! A
esta pergunta, responderia que há probabilidades de ele ser “plantado” lá com o fim

Domingos Barbosa da Silva 302


A estranha morte de um político

de ser preso e desviar as atenções do público e das investigações. Qualquer pessoa


podia atraí-lo para o local, simplesmente, oferecendo-lhe umas gramas de
narcóticos ou coisas semelhantes! Isto explicaria perfeitamente tudo, não achas?
Pois bem, se achares isto lógico, julguemos então, o caso à luz destas informações e
raciocínios. Podemos ainda, perguntar que interesse teria o Badiu Boxero em
executar tal acto e quem lhe pagaria para executar um acto tão hediondo! Posso
desde já acrescentar que devido às relações anteriores entre a vítima e a
acompanhante, nada pode afastar de mim a ideia de que pudesse, também, haver
na nossa história, alguma causa passional. Esta causa pesa de sobremaneira na
análise do caso em que estamos debruçados. Ou, podemos imaginar uma
combinação de causas tecidas e premeditadas pelo empreendedor ou
empreendedores.
Vamos, em seguida, analisar alguns casos de interesse que os meios de comunicação
de massas abordaram na altura, apoiando assim o raciocínio do grupo:
O jornal “Notícia” trazia na manchete o seguinte:
“Vítima de homicídio”
Renato Cardoso, 38 anos, Secretário de Estado da Administração Pública, foi assassinado com um
tiro de revólver, no dia 29 de Setembro, nas proximidades da praia de Quebra-Canela.
Renato Cardoso encontrava-se acompanhado de Judith 64, sua amiga de infância, desde os tempos
que frequentou a Igreja Nazarena, em São Vicente.
Sobre as circunstâncias em que ocorreu o assassinato, pouco se sabe, para além das versões que
citam a acompanhante de Renato Cardoso, única testemunha do crime. Segundo dados mais
fiáveis, o disparo mortal ocorreu cerca das 19:30 horas. O malogrado Secretário de Estado
chegaria ainda vivo ao hospital cerca das 21 horas. (...)
Ainda segundo fontes hospitalares, Renato Cardoso lutou durante uma hora contra a morte. Foi
nesse espaço de tempo que descreveu o assassino como “alto, forte e escuro”. Após essa luta
contra a morte, sucumbiu durante a operação.
A notícia da morte foi comunicada à esposa pelos ministros João Pereira Silva, Júlio de Carvalho e
Irineu Gomes.65
Perguntemos por que não houve um simples agente da polícia judiciária que tenha
acompanhado estes políticos na comunicação do óbito à esposa da vítima?
Alguns dias mais tarde o mesmo jornal, questionava:

64 Nome fictício neste romance


65 “Noticias” – 1 de Outubro de 1989.

Domingos Barbosa da Silva 303


A estranha morte de um político

“QUEM MATOU RENATO CARDOSO?”


Mais de trinta dias após o assassinato de Renato Cardoso, o criminoso ainda não foi descoberto,
e continua por levantar o véu de mistério que envolve o caso e que preocupa a sociedade cabo-
verdiana. Os responsáveis pela investigação remeteram-se a um desconcertante silêncio. Pouco
ou nada se tem feito para desnuviar o clima de boatos, inquietação e desconfiança que se instalou
e quer fazer acreditar que a verdade jamais será conhecida. 66

Um prato de louça caiu sobre uma calçada e desfez-se em pedaços. Para reconstituir
o prato, é preciso juntar os pedaços, minuciosamente, e colá-los com supercola.
Assim é, também, a reconstituição dos argumentos que nos possam conduzir ao
assassinato. Mas ainda temos de procurar todos os cacos partidos e espalhados. 67
– Nós poderíamos contactar algumas pessoas para lhes perguntar directamente
sobre o assunto, mas deparamo-nos com circunstâncias sinistras. Aquelas pessoas
com quem queríamos contactar, não eram acessíveis e não nos podíamos imiscuir
em assuntos desta natureza na altura. As portas estavam fechadas a seta chaves. O
medo travava os nossos movimentos. Não há nada da nossa história, isto é, nenhum
precedente em que nos possamos basear para convencer um magistrado com meras
deduções. Naquele tempo, não se conhecia tão bem o meio em que estávamos a
revolver. Ao falar de altos assuntos de Estado, era necessário ser-se discreto. O
assassino desaparecera sem deixar rastos. Não há nada em que nos possamos
basear para uma busca em terreno profundamente lavrado, revolvido pela charrua.
Pondo todas as coisas (os cacos) no seu devido lugar, temos então, a possibilidade
de ter havido um conluio político, um envolvimento económico ou passional. Depois
de ter sabido das diversas possíveis causas através de conversas com pessoas da
aldeia e indivíduos com relações amistosas com o assassinado, propomos então uma
combinação de causas a considerar.
A acompanhante, possivelmente, não teria perpetuado o assassínio com as suas
próprias mãos, mas nós não podemos permitir que tal situação de incerteza
continue, uma vez que esta se encontrava presente e, por conseguinte, sabe de
tudo. Porque se nega a explicar sobre o facto da morte, isto é, a testemunhar o caso
hediondo perpetuado sobre o seu melhor amigo?
– Foi, provavelmente, contratada e bem remunerada. Houve meditação prévia.
Deve ser a conclusão mais lógica que podemos tirar do caso – respondeu o Djonzinho.
– Não foi possível penetrar a fundo no mistério do acontecimento. A falta de
liberdade de imprensa sufocava as pessoas, servindo-se do medo. Portanto, as

66 “Noticias”. 1 de Dezembro de 1989 – Eduíno Santos e Tozé Barbosa.


67 Moreira, José Carlos – Não há crimes perfeitos? Alfragide, Portugal. Edições ASA II, S.A., 2009.

Domingos Barbosa da Silva 304


A estranha morte de um político

perspectivas não eram muito tentadoras. Isto significa que, tentando nos imiscuir em
assuntos que entravam na esfera política da altura, mesmo numa atmosfera de
crime que ainda cheirava muito a fresco, sabendo os perigos da aproximação do alvo
e o facto de nos estarmos a colocar numa situação difícil, contribuía para refrear o
nosso entusiasmo na resolução do crime – explicou Roberto.
– O que me causa dor de cabeça e que muito me preocupa é o porquê de prenderam
o Badiu Boxero – tornou a insistir o Djonzinho.
– Ora essa, caro amigo. Como disse antes, prenderam uma outra pessoa para fazer
o povo crer que tinham os olhos voltados para outro lado da verdade. Sendo assim,
davam aos verdadeiros criminosos um sentimento de paz espiritual e o tempo
necessário para se afastarem o mais depressa possível e de dar a impressão que a
acompanhante nada tinha a ver com o crime – explicou Roberto.
– Não estou convencido deste raciocínio que, no entanto, parece bastante lógico.
Queria…
– Não podemos prender e ao mesmo tempo culpar alguém sem primeiro ouvir as
suas declarações. Toda a história da humanidade se encontra repleta de exemplos
de assassinos que nunca são apanhados. Contudo, algum tempo deveria ainda
decorrer antes que o homem “alto, forte e escuro” recebesse a sua paga. Ele ou ela
e os seus colaboradores devem lembrar-se do velho axioma que diz: quando todas
as hipóteses falham, o que resta, apesar de improvável, deve ser a verdade. Ainda
não provamos todas as hipóteses. O trabalho policial, se entendermos bem as coisas,
está terminado, mas o trabalho legal, não deve terminar ainda. As leis não são tão
más a ponto de condenar uma pessoa sem culpa. Sabemos, entretanto, que há
regimes que estão sempre acima da lei, e que há pessoas relacionadas com tais
regimes que se prontificam a colocar-se acima da lei, o que dificulta as investigações
e, por isso, não podemos ser categóricos no nosso raciocínio. Mas nós não estamos
à procura de provas legais, porquanto não podemos fazer nada para resgatá-las.
Pensamos, no entanto, que haveria de decorrer algum tempo antes que o tigre solto
de Quebra-Canela seja apanhado – discorreu Roberto.
– E caso não o apanhem? – Perguntou o Djonzinho num jeito frustrado.
– Aqui está o problema maior de muitos crimes. Os associados no assassinato, com
muita astúcia e audácia que os caracterizava, conseguiram, desde o primeiro
momento, despistar os investigadores, afastando todos os vestígios necessários para
uma investigação rigorosa – esclareceu Roberto.
– Só espero que a Justiça, embora demorada, venha a ter um fim feliz – comentou
o seu interlocutor.

Domingos Barbosa da Silva 305


A estranha morte de um político

– Suponhamos agora, Djonzinho, que o crime nunca seja resolvido. Sabemos, por
nossa dedução, que terá havido um cúmplice. O assassino, a companheira e um
mandante. Portanto, a trilogia para armar uma emboscada à vítima foi,
provavelmente, assim:

Causa
politica

Jutith
RC Nero
Bettencourt
Causa Causa
económica
passional

As atenções estavam, como é óbvio, focadas no nosso amigo...


– Então, o caso já está resolvido! – Exclamou Djonzinho interrompendo Roberto
com júbilo, dando palmas de satisfação.
– Não, muita calma! Devagar se vai ao longe. Não há dúvidas de que estamos num
bom caminho, mas o fim está longe. Sou um detective amador e ninguém é capaz de
adivinhar o desfecho, visto que, ainda estamos à procura de um assassino. A nossa
busca não pode ser legalizada uma vez que o travão seria logo posto. Responsabilizo-
me pela parte criminal e só quero o teu apoio, não podemos festejar antes do tempo
ou hesitar em continuar o trabalho – disse Roberto.
– Roberto, como tenho vontade de esclarecer este crime! Não passo um dia sem
fazer um passeio imaginário de reconhecimento e sem idealizar um cenário
adequado à resolução – assegurou ao amigo.
Os momentos que se seguiram foram assombrados pelos pensamentos dos dois
amigos que se remeteram a um silêncio inquietante.
Ainda um artigo publicado por um cronista sobre o caso:
Renato Cardoso foi assassinado no dia 29 de Setembro de 1989. Amanhã, dia 1 de Dezembro,

Domingos Barbosa da Silva 306


A estranha morte de um político

seria o seu 60º aniversário. O crime nunca foi resolvido e o autor ou autores não foram
descobertos e punidos. As circunstâncias em que foi cometido, perderam-se ou foram engolidas
pela opacidade que caracterizava o regime político então vigente em Cabo Verde. O partido único
PAIGC/PAICV desde cedo criou um regime de excepção para se defender de eventuais
manifestações de revolta e indignação individuais ou colectivas dos cabo-verdianos contra o seu
domínio. Logo em 1975 fez a lei de boatos (decreto-lei 36/75) que punia autores de rumores
contra o Estado e seus dirigentes. Em 1976 com o decreto-lei 95/76 as forças de segurança e a
polícia, podiam prender qualquer pessoa durante um total de cinco meses sem culpa formada.
Em 1977 avançou com o tribunal militar (decreto-lei 121/77) constituído por juízes nomeados sob
proposta do ministro da Defesa que podia julgar civis classificados pela polícia como subversivos.
Essas leis só foram revogadas pela Assembleia Nacional Popular em Maio de 1990. Sob o chapéu
legal assim criado durante quinze anos, o exército e a polícia, constituíram-se como força de
protecção do regime e dos seus dirigentes e todos os métodos, incluindo tortura, foram utilizados
para reprimir dissidências e crimes. A vontade do regime em usar de todo este aparato nunca foi
posta em causa. Sempre que se sentiu ameaçado agiu forte e duramente. Por isso, toda a gente
estranha que o assassínio de um membro do governo, tenha ficado por resolver. É crença geral,
e a História confirma, que não são encontrados culpados nos assassinatos de graúda em regimes
autoritários ou totalitários (Humberto Delgado, Sergey Kirov,) quando os crimes têm ramificações
políticas. No caso de Renato Cardoso, o porta-voz do regime apressou-se logo no dia seguinte a
garantir que não havia motivação política. O programa de viagens dos dirigentes não se alterou.
O Primeiro-ministro Pedro Pires, manteve a viagem para os Estados Unidos e o Presidente da
República Aristides Pereira, acompanhado do Ministro das Forças Armadas e Segurança, partiu
para Angola dois dias depois. Segundo relatos vindos a público, a polícia judiciária portuguesa
chamada para investigar, concluiu que a cena do crime não foi, convenientemente, salvaguarda
e possíveis indícios do crime perderam-se. A sociedade cabo-verdiana, como bem ilustra a folha
de jornal até hoje presente na montra do Djibla em S. Vicente, ainda pergunta “quem matou
Renato Cardoso"? A angústia perante o hediondo crime, contudo não impede que se celebre a
vida desta figura marcante da vida política, cultural e intelectual de Cabo Verde.68

68 Carlos Fortes Lopes/ carlosforteslopes4@gmail.com. 22 MAIO 2015. PUBLICADO EM OPINIÃO.

Domingos Barbosa da Silva 307


A estranha morte de um político

CAPÍTULO XLV

Segunda-feira, 19 de Setembro, 2005

Algumas pessoas amigas continuam, mesmo passados muitos anos, a insistir na falta
de justiça feita quanto à morte de Paín. Não se cansam de ouvir vozes pertinentes
que, ocasionalmente, surgem na diáspora ou no país natal, pedindo mais justiça e
honra para os nossos homens de cultura. Assim, podemos escutar o que uma voz de
longe diz:
Faz quinze anos que Renato Cardoso foi assassinado na Cidade da Praia. Daqui, de Lisboa, dedico-
lhe o meu pensamento, honro a sua memória e declaro a minha saudade de um amigo bom, de
um homem inteligente, dedicado à sua terra e à sua gente.
Daqui, de Lisboa, do mesmo sítio onde recebi a notícia fria da sua morte, lamento que um manto
inexplicável tenha caído por cima de um assassinato hediondo, cujas razões nunca foram
devidamente explicadas. Desta mesma cidade que o viu crescer como jurista de grande
conhecimento e sabedoria, digo da minha tristeza pelo esquecimento a que os seus votam a sua
memória.
De dentro do que mais profundo existe em mim, rendo a minha homenagem à sua coragem nas
inúmeras lutas políticas que travou e de que resultaram sempre avanços para o progresso do seu
povo. Faço vénia ao seu empenhamento na luta pelos ideais da democracia, cujos princípios
enunciou antes que outros aproveitassem as ondas internacionais para se perfilarem num
combate pelo poder. 69

Todos os aniversários são lembrados pelos amigos de peito. Todas as vezes que
sofremos os efeitos do mau funcionamento na Administração Pública, recordamos
o homem valente que queria desafiar a burocracia lá do Alto Cutelo, promovendo
que cada indivíduo tivesse acesso ao seu direito inscrito na Constituição da nossa
República.
A mesma pessoa citada acima escreve de Lisboa:
Neste triste aniversário, como seu amigo, sinto-me na obrigação de informar os cabo-verdianos
que Renato Cardoso, pouco tempo antes de ter sido abatido por um profissional que não deixou
pistas, tinha sido convidado para trabalhar fora da sua terra, a troco de uma proposta milionária
– que ele recusou – porque, como dizia, a sua gente precisava dele.
E precisava mesmo. Só que já passaram quinze anos sobre o som dos tiros assassinos e a sua gente
já nem se lembra do dia. Os seus pupilos, aqueles em quem ele depositou as suas esperanças,

69 http://africandar.blogspot.com/2009/07/renato-cardoso-e-os-seus-amigos.html. Com a devida


permissão.

Domingos Barbosa da Silva 308


A estranha morte de um político

têm, pelo menos, que honrar a sua memória, a sua honradez de carácter, a sua crença num Cabo
Verde para todos os cabo-verdianos.
Há um silêncio muito pesado à volta do assassinato de Renato Cardoso...
Descobrir quem foi, porque foi, não trará de volta o Renato, mas é um dever que nos cabe sim. A
minha fé de então (1989) nos cabo-verdianos e na pureza do seu carácter tornava ainda mais
hediondo e incompreensível o crime. Mas sempre achei que caberia primeiro ao país, aos
governantes, dar a conhecer melhor quem foi Renato Cardoso. E tentar, também, provocar
alguma pesquisa sobre a sua morte. Mas se calhar eu estava enganada. A sociedade civil unida
poderia, pelo menos, tentar informar-se e começar a agir. Nunca será tarde.70

Nunca será tarde se houver vontade dos responsáveis lá do Alto Cutelo, pois isto é
um problema de Cabo Verde e, por isso, político.

70http://africandar.blogspot.com/2009/07/renato-cardoso-e-os-seus-amigos.html. Com a devida


permissão.

Domingos Barbosa da Silva 309


A estranha morte de um político

CAPÍTULO XLVI

A trompeta do silêncio

Neste capítulo, soa a voz do silêncio. O silêncio perturbador que fala da indiferença
votada a um ente querido, mas sobretudo, uma voz perturbadora que fala nas
poesias dedicadas post mortem ao malogrado, juntamente com a voz da sua própria
poesia.
Uma voz clara, atinente e persuasiva, que se propaga no nosso ser como ecos do
passado. Um ser que funciona como um radar que reflecte as ondas sonoras do tiro
na praia de Quebra-Canela, ondas que tocam o nosso ser, roçam os pés das nossas
almas, trazendo nas suas línguas a salitre das nossas lágrimas, os gemidos das nossas
dores, constante e teimosamente.
Eis uma maneira de recordar Renato:

Um Silêncio perturbador
A Renato Cardoso – in memoriam

Falam as grades do silêncio


Numa linguagem comovente
Deixando ouvidos encostados às paredes
Curiosos,
Interpostos,
Entre a mentira e a verdade.

Estrangulada verdade,
Vedada à gazela islenha,
Presa com um estropo,
Encardido, amachucado,
Pelo pendor do tempo,
No enredo da conveniência!

O silêncio, o crime que perturba,


O crime que lesa a humanidade,

Domingos Barbosa da Silva 310


A estranha morte de um político

Do Alto Cutelo executado?!


Na tarde de Outono andado
No esconderijo vespertino,
No despedir do dia agoirento.

Ai, silêncio coberto de sangue,


O cobertor mofo do abandono.
Silêncio, uma palavra obstruída.
Sobre folha amarelada, encardida
Assente sobre a saudade já perdida,
Escrita, banida, proscrita da terra.

A velha poesia sobre papel disforme,


Traz a pétala purpurina de uma rosa,
Memória do sangue derramado,
Sobre a areia de uma praia remota,
Ali tão perto, do Alto Cutelo
Gotejando como colectivo pranto,
Abafando a dor, afogando o pensar.71

Gemidos de Quebra-Canela

De longe, a frialdade dos sentimentos,


Do ano fatídico de mil e novecentos
E oitenta e nove, um sentir ignoto,
Quebra-Canela faz evocar um extinto.

Naquela funesta tarde de um Outono ido,


Longe de pensar funesto, gemia a onda
Daquela praia, a dor do talento ignorado
Que iluminara a ignorância que corria doida.

O mortal, por sobre quem caiu a praga


Ao golpe cruel, algoz e frio, não resistiu
A verdade: nada há que à vida o traga.

71 O autor, Oslo, 25 de Julho 2016.

Domingos Barbosa da Silva 311


A estranha morte de um político

O consolo da mágoa, ninguém conseguiu


E quem o fez, mais lhe afunda a chaga
A chaga interior que ainda o apoquenta. 72

Indiferença
A Renato Cardoso, post-mortem

Da brecha da janela da colectiva memória


Fervilhando vinte anos de indiferença
Fiz uma leitura nos anais da história
De que a humana mente guarda lembrança.

Morreu! E a terra, mãe comum, o clarão


Dos seus olhos apagou!... o trilho augusto
Postos na orla dos versos da canção
Que hoje canta o mundo, com pranto.

Sob o silêncio das árvores ao redor


Repousa o segredo e a névoa da dor
Junto à pirâmide real do seu orgulho.

Coitado – a vida fugiu-lhe correndo


C’a sombra cor-de-rosa, vestido de amor
Enquanto à cidade subiu morrendo.73

Uma lembrança
A Renato Cardoso, 20 anos depois

Foste vítima augusta de uma paixão?


Que na Quebra-Canela caiu na areia
Ou vítima cruel da civilidade de então?
Que golpeou o éneo valor da tua glória.

72O autor em 29.09.09


73Esta poesia e as seguintes tiveram influência de um poema de Augusto dos Anjos. Barbosa da Silva,
Domingos - 29.09.09.

Domingos Barbosa da Silva 312


A estranha morte de um político

Foste extinto por um algoz cruento


Com a mágica bala, isento de pecado
Um golpe sisudo te brandiu o peito
Drama de paixão te estendeu no leito?

Ó crepúsculo áureo da tarde lutuosa,


Acenda a claridade à mágica morte,
Ao algoz que fulminou o espírito forte.

Vá ao palco escuro, extraia daquela tarde


E do peito colectivo as gazas nebulosas
Tire a eólica fúria e salve-nos dessa sorte.74

Prece por uma estátua anónima

Imagino no alto uma brônzea estatueta


De fronte austero, a fitar Quebra-Canela
Vinte anos um espaço imaginário ocupando
E uma vontade propositada, sacrificando

Pelos homens ingratos das nossas ilhas,


Com uma postura humana tão soberana
Um rançoso cuspo atirado às costas
O cuspe bafiento da saliva humana.

Avisto a estatueta dos altos píncaros


E da herdade sombria do altar do poder
Perdido no alto de seus terrenos baixos.

Vivo suplicando uma estátua, lá dos altos,


De mãos em prece, para outros olhos ver,
E que a mão do assassino caia aos pedaços. 75

74 - Barbosa da Silva, , Domingos - 29.9.09


75 - Barbosa da Silva,, Domingos - 10.08.10

Domingos Barbosa da Silva 313


A estranha morte de um político

Zanga
A Jomaveiga

José, quem foi que viu Renato morrendo?


Decerto alguém. Minh ’alma fica tão agoniada
Por que andam monstros soltos na estrada
E pela estrada destes monstros, não ando.

Fico zangado pela morte crua e rude


E ainda minha tristeza é tão intensa
Que penso que a alegria é uma doença
E a tristeza a minha única saúde!

Tenho diante de mim a Quebra-Canela


Onde o assassínio o amor suplanta
E carrego o sofrer daquele diplomata
Em cujo coração o ódio não faísca.

Peçamos a CV 76que desintoxique o aroma


Das paixões torpes do nosso ambiente
Que o teu livro há-de apontar eternamente
Um pouco de verdade que ao país soma.

Eu queria correr para, junto de ti, festejar


E para não morrer sufocado sem saber
As cores das vísceras daquele poder
E/ou daquela paixão que o mandou matar. 77

Eis aqui alguns poemas de Renato, tal qual cantadas e interpretadas por Ildo Lobo:

Porton d’nós ilha

76Aludindo a Carlos Veiga


77Barbosa sa Silva, Domingos - Escrito no dia de publicação do livro Marcas Lamentáveis da luta pela
democracia em Cabo Verde, de José Manuel Veiga, 10 de Agosto de 2010, fortemente influenciado
pelos poemas de Augusto dos Anjos.

Domingos Barbosa da Silva 314


A estranha morte de um político

Quando um mundo novo conqui


Na porton d´nós ilha
Pamode quim fogon sem paia
Na ladera sem simbrom
Tude mãe cheio d’fidje sem escola.

Tude grille quebra se pedra


Pamode manhã catem prutchida
E no quema morabeza ma distino triste d’ilheu
E no espanta ses pomlim
Nba practo fundo sem flur
Di tu bem sirvido qui crias.

E no cruza um enxada ma um broca e no espaia


Um nova ideia na nos mar
Sol e morabeza pa tude gente
Tude nos farol di morte na cemitério di nós água
No vra terra patude gente
Lei tude criston tude simbrom
Tem direito na se gota d’água.

Alto Cutelo

Na Alto Cutelo
Simbrom dja catem (dja seca)
Raiz sticado
Djobi agu c’atcha (dja seca)
Agu sta fundo
E omi ca tral (dja seca)

Mudjer um simana
Se lumi ca cendi (na casa)
Ses fidjos na strada
Só um tâ trabadja (pa dozi mirés)
Marido dja dura
Qui bai pa Lisboa (contrado)
Contratado (contratado)
Pa bai pa Lisboa

Domingos Barbosa da Silva 315


A estranha morte de um político

Ê bendi sé terra (metadi di preço)


Ali el ta trabadja
Na tchuba na bento (na frio)
Na Cuf na Lisnave
E na Jota Pimenta (explorado)

Mon d’obra barato


Pa más qui trabadja (servente)
Mon d’obra baracto
Barraca sem luz (comida a pressa)
Inda más enganado
Pa sê irmon branco (enganado)
Esplorado

Ma um dia q’um vra pa terra


Monti Gordo e Malagueta
Nhos tem qui dan agu
Cu força na braço
Conciença ê di mi
É mi que trabadja
Terra e poder ê pa mi
Cu cinbron na cutelo
Minino na tchon
Ê barco na porto

Ai nós terra nós terra


Ai nós terra nós terra (nós terra)

Terra Bô Sabê

Tera bo sabê kê mistid um xis tantu


Pa kada homem vivê sima gente

Ma nhas brose, o terra, t'abituod ta batê


Rijo, sek e frok
Sima karise na smentera d'gent
Pa d'pôs n'bem fká
K'nhas mon na féria,

Domingos Barbosa da Silva 316


A estranha morte de um político

Na miséria d'um tchuba ki ka bem,


Ó tambor bazio,
N'abuze d'partidja ma renda
P'aquês ki ka trabaia.

Ones d'impresa estranger


Sem raforma nem pensão,
Doença na rosega,
Liberian, greg, Holanda,
Fidju sen skôla,
Amdjer largód, num vida dur
Di fazê dnher pa otes gorda.

Ma nós mar e péska,


Ma nôs peska e martiriu
Di luarada na mar.
Bote, brose e linha,
Un pexe y mei pa kada um
K'fidj na kaza.

Numa outra ocasião, Henrique Teixeira Oliveira dedicou, em homenagem a Renato


Cardoso, os seguintes versos:

Esta canção é para te embalar


No madeiro do teu leito
Na campa fria que é teu berço.

Meu amigo, meu irmão


Meu amigo, meu irmão
Teu verde sonho de verão
Vermelho sangue o fecundou.

Cremos que poucas são as homenagens deixadas a Renato Cardoso. Isto é injusto,
porque ele merecia mais do que estas palavras curtas, mas profundas de um amigo.

Domingos Barbosa da Silva 317


A estranha morte de um político

Domingos Barbosa da Silva 318


A estranha morte de um político

CAPÍTULO XLVII

O desfecho

Domingos Barbosa da Silva 319


A estranha morte de um político

Neste nosso meio pequeno, há quem conheça o assassino ou, pelo menos, tenha
ideia do seu perfil, mas não existem provas palpáveis para o incriminar. A impressão
digital é prova, um revólver com cheiro de pólvora é prova, mas um investigador
convencido não é prova nenhuma, não importa a sua eloquência e erudição no
assunto em questão. Uma resposta convincente do por quê, nada significa se não se
encontrar um como e vice-versa. Pensamos que estávamos avançados no processo
em que uma pesquisa técnica nos forneceria elementos importantes para nos
aproximar de um melhor esclarecimento. Mas temos sempre à nossa frente uma
pergunta crucial que nos importuna: o motivo. Por que mata uma pessoa outra?
Qual é o motivo que a leva a tal procedimento?
Sentado na varanda da sua moradia, Roberto, filosofavam sobre as razões da morte
de um grande amigo há muitos anos. Queriam encontrar uma razão convincente que
justificasse a morte e quem estaria por detrás deste projecto tão engenhoso mas
tão hediondo e tão desumano.
Uma simples resposta a estas perguntas, mas não de menos importância, é: porque
ele ou ela tem algo a ganhar ou ainda, porque ele ou ela agiu com base no ódio que
alimentava contra a vítima.
Roberto meneou a cabeça em direcção ao Djonzinho, assentiu e acrescentou:
– Motivo passional: ciúmes, rejeição, vingança e outros.
Djonzinho não disse nada.
– Ou talvez, tal indivíduo, se encontre num estado de demência, de psicose… –
disse Roberto, acrescentando – de doença mental.
Djonzinho ficou em silêncio durante mais uns segundos.
– Sabemos que o estado do doente mental é uma expressão que explica a causa da
maioria dos assassínios cometidos no mundo, mas na verdade, não é o motivo
principal ou causa da matança. Há pessoas que acreditam que o assassínio, em si, é
uma prova de demência, podendo este ser premeditado ou não, mas a maior parte
das liquidações, é racional. É intencional. Da mesma maneira que é racional, a razão
que o move pode ser a procura de um ganho material, constituindo um tipo de
criminalidade com fim económico. Isto, também, é um processo racional, na medida
em que envolve um raciocínio prévio sobre o acto, sendo concretizado com base em
motivações que tentam justificar a necessidade de ser praticado. Por meio de uma
razão subjectiva, procura-se expressar uma vontade, tornando-a palpável e
concreta, munindo-se de uma auto-legitimação para alcançar aquilo que se deseja,

Domingos Barbosa da Silva 320


A estranha morte de um político

independentemente dos meios necessários para tal, o que podemos chamar de


redenção emocional, uma vez que, nestes casos, apesar de haver um raciocínio
prévio, assente em motivações justificativas para o assassino, o criminoso rende-se
às suas próprias emoções, inibido de as controlar, rende-se e age em nome delas –
acrescentou o Roberto.
– O homicida pode ter uma ideia de que matar apazigua a dor derivada do ódio,
do medo, dos ciúmes, do espezinhamento, do racismo e de outros sentimentos
negativos e destrutivos. Mas se matar é, muitas vezes, um acto racional, podes
explicar ou dizer-me com quantas pessoas assassinas e satisfeitas já te deparaste ao
longo da tua carreira?
Roberto assentiu com a cabeça sem dizer coisa alguma.
O silêncio apoderou-se do momento. Os presentes ficaram atentos à resposta. O
tribunal da consciência entrou em actividade. Se há pessoas assassinas orgulhosas
pelo acto de ter matado outra, o Tribunal da Consciência deve estar repleto de
clientes, de acusados. Roberto virou a cara para Djonzinho e disse com tibieza:
– Nenhuma. Sabemos que muitos que matam sentem-se decepcionados e
arrependidos depois da sua acção criminosa. Mas isto não descura a racionalidade
posta no decorrer da acção vingativa, desde que o assassino acredite que ele ou ela
alcançará a redenção emocional. A vingança, em si, é doce na fantasia, mas o estado
da consciência culpada de estar a andar pelas ruas da cidade e das aldeias, mata aos
poucos e é amarga.
Ao rematar esta escrita, ficamos a dever ao leitor uma promessa, tantas vezes,
desejada durante a leitura deste livro, a promessa que o leitor assíduo gostaria de
encontrar ao longo de toda a obra. Não fomos capazes de satisfazer essa promessa
e temos penas de não o fazer. Entretanto, a resposta à nossa promessa encontra-se
implícita na escrita de alguns amigos proeminentes da cultura cabo-verdiana, o que
vai completar a leitura deste livro, porquanto o autor não a tem. Vejamos alguns
aspectos apontados no que se segue:

O Jornal África……
Um amigo escreveu-me de Lisboa, queixando-se da falta de atenção dada à morte
de um grande companheiro seu, alguém que iria melhorar, consideravelmente, as
condições políticas, económicas e sociais de Cabo Verde. Na carta que me dirigiu,
dizia:

Domingos Barbosa da Silva 321


A estranha morte de um político

Devo confessar a minha surpresa por este seu contacto, sobretudo, por vir de tão longe e feito
por alguém que – tudo o indica – não viveu o drama que foi o assassinato de um dos Homens,
mais importantes de todo o século XX, de Cabo Verde. A morte de Renato Cardoso roubou ao país
a possibilidade de, nos anos seguintes, ter podido construir uma liderança coesa, forte,
inteligente, capaz de fazer a Cabo Verde aquilo a que, em alguns dos meus textos de então,
chamava “A Suíça de África”.
A ideia de um romance policial decalcado dos acontecimentos de 29 de Setembro de 1989 e dos
dias que lhe antecederam, é capaz de – na impossibilidade de lhe dar a natureza de uma narrativa
histórica – ser útil. É que a morte do meu grande amigo está relacionada com a conquista do
poder que se seguiu (e que já vinha de outros tempos mais recuados).
Daí as suas dificuldades em obter informações. Morto, Renato Cardoso deixou o caminho aberto.
Tive a oportunidade de falar com um inspector da Polícia Judiciária Portuguesa, que, na altura foi
a Cabo Verde para ajudar as investigações. As conclusões dele foram: foi obra de um profissional,
não deixou uma pista, sequer. 78

Mais, num tom, talvez de frustração, mas de uma forma independente e categórica,
como jornalista de grande porte internacional, desabafou num artigo intitulado “O
Fim de um Projecto”:
…Mas, o "África" tinha acabado. Estávamos a 31 de Maio de 1991.
Em 29 de Setembro de 1989, Renato Cardoso tinha sido morto a tiro, na Praia do Quebra-Canela.
Era uma sexta-feira e, na quinta-feira anterior, tinha recebido o telefonema mais extraordinário
que alguma vez ele me tinha feito.
Um parêntesis para explicar que Renato Cardoso e eu mantínhamos uma amizade muito sólida,
com um acordo expresso sobre relações profissionais.
Ele desempenhou funções muito importantes enquanto eu fui delegado da ANOP (Agências de
notícias portuguesas) na Cidade da Praia durante três anos e continuou a fazê-lo, quando eu
resolvi apanhar, já em andamento, o projecto do "África Jornal", que o Xavier de Figueiredo
tinha resolvido fazer avançar de uma forma extemporânea. Era um projecto sobre o qual
vínhamos falando desde 1978, altura em que ele era delegado da ANOP na Guiné Bissau e eu
professor cooperante no Liceu da capital.
Voltarei mais tarde a estes pormenores.
Interessa, agora, falar do telefonema de Renato Cardoso, nessa dita quinta-feira, …durante o qual,
utilizando uma linguagem mais ou menos cifrada, me pediu para ir à Cidade da Praia (eu estava
em Lisboa), porque precisava muito de falar comigo.
Estava com receio… palavra esquisita para quem o conheceu. E explicou: o Presidente da
República, Aristides Pereira, tinha-o chamado para, no meio de uma conversa rendilhada, lhe
dizer que o Carlos Veiga, o jurista que mais dinheiro ganhava em Cabo Verde naquela altura, o
tinha informado que ele, Renato Cardoso, andava a manobrar nos bastidores para formar um
partido político alternativo ao PAICV.

78 Leston Bandeira referindo ao Jornal “África”

Domingos Barbosa da Silva 322


A estranha morte de um político

Estávamos numa altura em que o PAICV, sob o impulso de Renato Cardoso e de Pedro Pires, se
preparava para terminar com o sistema de partido único. Ao contrário do que a maioria da opinião
pública cabo-verdiana pensava na altura, o adversário da abertura era Aristides Pereira.
Renato Cardoso era uma inteligência ímpar. Em Cabo Verde, só Amílcar Cabral se lhe pode
comparar. Sabia que o sistema de partido único tinha acabado. Ele tinha feito parte de uma
delegação do PAICV que, na sequência das conversações para a Independência da Namíbia,
retirada das tropas cubanas de Angola (pormenores de que falarei lá mais para a frente), tinha
permanecido em Cuba durante mais de uma semana – Pedro Pires chefiava tal delegação – tinha
tentado convencer Fidel de Castro que o sistema de partido único não funcionava em África.
Renato Cardoso, quando passava frente à multidão que se preparava para assistir ao Festival da
Baía das Gatas, em S. Vicente, de onde era natural dizia: "estão aqui trinta mil pessoas, eu conheço
15 mil, as outras 15 mil conhecem-me a mim". E sorria!
Se havia alguma unanimidade em Cabo Verde naquele ano da graça de 1989 – em Setembro –
chamava-se Renato Cardoso. Ele poderia ter feito a transição de forma inteligente, sem ter que
dividir a sociedade cabo-verdiana como Carlos Veiga fez, apoiando a campanha da insídia contra
os dirigentes de então, feita através do boato, da calúnia, dos panfletos anónimos, que ele nunca
condenou e de que sempre se aproveitou.
Renato Cardoso foi abatido a tiro, numa emboscada em que, de alguma forma, participou uma
mulher. Foi considerado um crime passional, levado a cabo por um marginal, que nunca chegou
a ser identificado, numa situação absolutamente indefensável. Perdeu, de uma vez só, a vida e o
prestígio.
Mais tarde, conversei com um dos inspectores que a Polícia Judiciária Portuguesa mandou a Cabo
Verde para ajudar nas investigações. Estava estupefacto com o profissionalismo de quem tinha
eliminado todas as pistas...
Informações de outra natureza levam-me a concluir, de maneira insofismável, que aquele
encontro foi preparado contra o Renato.
Sem Renato Silos Cardoso, o caminho ficou livre para Carlos Veiga, que, de resto, de forma pública
e notória, se organizava politicamente para aparecer como alternativa ao PAICV. Acabou por
ganhar as eleições em Janeiro de 1991.
É verdade que nesse mês de Setembro fui à Cidade da Praia, mas demasiado tarde: o Renato já
estava enterrado e a minha dor foi ampliada pelo facto de ter sabido que David Hoppfer Almada
– um dos seus mais pertinazes adversários – tinha feito o elogio fúnebre do meu amigo.
Fui mostrar, com os olhos, o meu descontentamento. Pedro Pires estava fora, em viagem de
Estado, tínhamo-nos encontrado no aeroporto de Lisboa, sem palavras.
Aos que, de alguma maneira, estão interessados nesta narrativa, devo uma explicação: Cabo
Verde beneficiou claramente da minha actuação como jornalista: primeiro, como correspondente
da ANOP e depois como director de um jornal especialmente direccionado para a problemática
africana (Jornal África). Todavia, esse benefício tinha como único fundamento a convicção
profunda – que hoje mantenho – de que o único povo que tinha beneficiado com a Independência
tinha sido o de Cabo Verde.

Domingos Barbosa da Silva 323


A estranha morte de um político

Naquele país, depois de ter deixado Angola e ter passado pela Guiné Bissau, encontrei a terra a
que gostaria de chamar minha e os homens a quem gostei de considerar camaradas. Do ponto de
vista profissional, todavia, sempre cumpri o meu dever. Para ilustrar este facto, mais tarde,
descreverei o modo como consegui entrar no domínio de alguns "top secrets" da diplomacia cabo-
verdiana, facto que lhes provocou alguns dissabores.
Este parêntesis serve igualmente para se entender a pressa que tenho de explicar a relação do
"África" com o poder saído das eleições de Janeiro de 1991. 79

A Inforpress, a agência cabo-verdiana de notícias, a 13 Outubro de 2016, veio


rematar esta série de citações bastante relevantes para o esclarecimento do público.
Renato Cardoso “foi vítima do regime de partido único” – afirma Manuel Faustino80:
Mindelo, 13 Out. (Inforpress) – Manuel Faustino afirmou hoje, no Mindelo, que Renato Cardoso
foi vítima do “sistema de partido único” e que no assassínio dele esteve “envolvida muita gente”,
considerando que a permanência do político, a partir de 1989, no PAICV, representava uma
ameaça para o partido.
Manuel Faustino animava hoje uma palestra alusiva a Renato Cardoso, no âmbito do Dia Nacional
da Cultura, que se assinala na terça-feira, a convite da Associação Amizade e Solidariedade Renato
Cardoso e do Centro Cultural Português do Mindelo, e afirmou tratar-se de uma “convicção
pessoal”, porquanto não tem como provar as causas da morte do político, há 27 anos.
O antigo companheiro de Renato Cardoso na contestação ao regime colonial português em
Lisboa, no período antes da Independência de Cabo Verde, em 1975, recuou aos finais da década
de 1970, altura em que surgiram os chamados trotskistas a contestar o regime de partido único
“por dentro” para concluir que, a partir de então, Renato Cardoso ficou marcado.
Manuel Faustino admite, todavia, que o regime não quisesse necessariamente assassinar o então
secretário de Estado da Administração Pública, mas tão-somente “atingi-lo, atingir o seu prestígio,
criando uma situação-escândalo”
O chefe da Casa Civil do Presidente da República e antigo ministro da Educação e da Saúde dos
governos do PAIGC, na década de 1970, e do MpD nos anos de 1990, considera também que toda
a sociedade cabo-verdiana “é vítima do sistema de partido único” porque, afirmou, não basta
transitar para o multipartidarismo para “essas mazelas desaparecerem”.
Renato Cardoso foi assassinado a tiro na noite de 29 de Setembro de 1989, na praia de Quebra-
Canela, Cidade da Praia, em circunstâncias nunca esclarecidas, como por encontrar continua o
autor dos disparos.81

Para finalizar, podemos tirar algumas ilações depois de ler o que diz a comunicação
de massas sobre este assunto delicado relatado ao mundo. Foi um crime
premeditado? Uma conclusão sobre premeditação ou não, fica na posse dos leitores
atentos. Mas devia ser acima de tudo, pura e simplesmente, uma conclusão da

79 Leston Bandeira no http://o-romeiro.blogspot.no/2005/07/o-fim-de-um-projeto.html


80Manuel Faustino, Inforpress, 13.10.2016. AT/JMV.
81http://inforpress.publ.cv/politica/134096-sao-vicente-renato-cardoso-foi-vitima-do-regime-de-
partido-unico-afirma-manuel-faustino.

Domingos Barbosa da Silva 324


A estranha morte de um político

Polícia Judiciária, se houvesse uma PJ independente e judiciosa. Entretanto, o Povo


faz a sua Condenação, porque nem a mediática nem a judiciária de então, tiveram a
coragem suficiente para elaborar ou fazer um juízo de valor sobre este assunto tão
importante e delicado mas tão subestimado.

Biografia de Renato Cardoso

Renato de Silos Cardoso, nasceu em São Vicente no dia 1 de Dezembro de 1951, filho
de Vital Miguel Cardoso e de Lúcia Maria Gomes Cardoso.
Aos dezassete anos, terminou o ensino secundário no Liceu Gil Eanes, São Vicente,
com uma média que, um ano mais tarde, lhe possibilitou concorrer para uma bolsa

Domingos Barbosa da Silva 325


A estranha morte de um político

de estudos que lhe facilitou o acesso à Faculdade de Direito em Lisboa. Inteligência


viva, Silos Cardoso destacou-se no seu círculo de convivência em todos os seus
empreendimentos.
Durante a fase de estudante universitário, em Lisboa, Renato Cardoso aderiu ao
PAIGC – Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde, então na
clandestinidade. É durante este período (1970/1974), no trabalho da mobilização
política dos emigrantes, que conhece de perto a situação dos patrícios na construção
civil e compõe a sua primeira balada de intervenção, Altu Kutelu.
A seguir ao golpe de 25 de Abril de 1974, Renato Cardoso interrompeu o curso de
Direito (que viria a concluir em 1978, na Universidade Clássica de Lisboa) e tomou
parte em diversas actividades partidárias, destacando-se a sua participação na
elaboração da Lei Eleitoral para as eleições de Junho de 1975.
No país acabado de ascender à independência, Renato Cardoso integrou o aparelho
de Estado, tendo chegado ao topo da Carreira Diplomática, como Ministro
Plenipotenciário. Desempenhou ainda as funções de Vice-presidente da Comissão
Eleitoral que organizou as eleições para a independência de Cabo Verde, foi director
Geral da Administração Interna, Director Geral dos Assuntos Políticos, Económicos
e Culturais do Ministério dos Negócios Estrangeiros e Conselheiro e Coordenador do
Serviço de Assessoria do Primeiro-Ministro. Era Secretário de Estado da
Administração Pública quando foi atingido por um tiro e morreu, por motivos até
hoje não esclarecidos, no dia 29 de Setembro de 1989.
Como jurista, Renato Cardoso participou na elaboração da Lei Eleitoral que levou à
Constituição da Assembleia Nacional de Cabo Verde e perante a qual foi proclamada
a independência do país. Foi membro dos grupos de redacção da Constituição
Política, do Código de Água e da Lei de Administração Municipal. Renato Cardoso
participou ainda em diversas acções diplomáticas a nível internacional e bilateral,
tendo chefiado a representação cabo-verdiana na assembleia Geral da ONU –
Organização da Nações Unidas, em 1975, e participado em várias Conferências de
Chefes de Estado da OUA – Organização da Unidade Africana, do Movimento dos
Não-alinhados e Conselhos de Ministros da CEDEAO – Comunidade Económica dos
Estados da África Ocidental.
Respondendo a convites internacionais, Renato Cardoso participou em vários
colóquios e seminários, proferindo palestras em várias conferências sobre a política
externa e a Reforma da Administração Pública de Cabo Verde, tendo acabado por
publicar Cabo Verde Opção por uma Política de Paz (Praia, 1986), que inclui dois dos
seus discursos sobre política externa.

Domingos Barbosa da Silva 326


A estranha morte de um político

Paralelamente às suas muitas funções, ou no seu intervalo, Renato Cardoso


escreveu artigos para jornais e compôs algumas baladas nomeadamente, Tanha,
Tera bô Sabê e Porton d’nós Ilha.82
Mais se pode acrescentar o que alguns amigos íntimos disseram sobre a sua
biografia: Secretário de Estado da Administração Pública à data da sua morte. Seu
irmão, Florentino Cardoso, recorda que era uma criança igual às outras e nada
deixava antever o caminho brilhante que viria a percorrer para a edificação de uma
administração pública genuinamente cabo-verdiana. Pelo contrário, afirma o irmão,
ele devorava as Revistas em voga na altura (Zorro, Fantasma, Asterix) o que lhe
causou muitos dissabores em casa. "O Renato era um leitor assíduo de revistinhas
e, muitas vezes, foi punido. Ele perdia muito tempo com a leitura dessas revistinhas
e foi uma chatice para os meus pais porque o Renato não foi de facto um estudante
tão dedicado como isso", relembra Florentino Cardoso. Também Brito Semedo,
amigo de infância, em São Vicente, recorda a troca das revistas de quadradinhos da
época, mas que serviu de um elo de ligação que perdurou até à morte de Renato
Cardoso, em 29 de Setembro de 1989. "Conhecemo-nos na escola dominical e
trocávamos revistinhas de quadradinhos da época. Ele morava no Madeiralzinho,
perto da Igreja do Nazareno e havia um grupinho muito interessante formado por
rapazinhos e meninas com quem estabeleci ligação que foi muito importante nessa
fase de formação da minha personalidade, em termos de interiorização de valores
da Igreja do Nazareno", evoca. Essa ligação continua na idade adulta. Renato
Cardoso, então conselheiro do primeiro-ministro Pedro Pires, convida Brito Semedo
para trabalhar com ele no Gabinete do Primeiro Ministro no âmbito do projecto de
reforma da administração pública. Os caminhos dos dois amigos desencontram-se,
em 1986, com a nomeação de Renato Cardoso para o cargo de Secretário de Estado
da Administração Pública. "Ele queria até que eu trabalhasse mais próximo dele, o
que acabou por não acontecer, porque, entretanto, ele morreu", conta Brito
Semedo.

82Dados extraídos do livro Liberdade, ainda e sempre…, editado pela Associação dos Combatentes
da Liberdade da Pátria (ACOLP), em Julho de 1997.

Domingos Barbosa da Silva 327


A estranha morte de um político

Domingos Barbosa da Silva 328


A estranha morte de um político

Epílogo

Um homem chamado Renato Silos Cardoso estava a ser incómodo para muita gente
e, por isso, devia ser excluído dentre os vivos.
Um homem bem-trajado de nome Nero, ocupara um quarto seguro na cidade da
Praia, com vista para o Seminário de São José. Dispunha de um aposento bem
apetrechado, com um estilo ultramoderno. Acabara de se barbear e usava um
perfume de marca francesa. Quando deu por si à frente do espelho, estava a limpar
a nuca com a ponta de uma toalha branca humedecida. Estremeceu quando a sineta

Domingos Barbosa da Silva 329


A estranha morte de um político

da porta tocou. Dirigiu-se à porta com uma certa desconfiança. Abriu-a e uma pessoa
entregou-lhe uma carta. Fechou a porta quando o homem saiu. Foi-se sentar perto
da escrivaninha quando o telefone tocou. Levantou-se e pegou no auscultador ao
quinto toque, ouviu uma voz não muito familiar do outro lado da linha. Depois as
coisas aconteceram com rapidez. Algumas horas depois, o país inteiro ficou
boquiaberto. Um assassinato na praia de Quebra-Canela. Ninguém soube quem
matou Renato. Se o Nero se envolveu. Se a acompanhante. Se foi um crime
autorizado e comandado. Se foi um crime passional. Se foi um crime político. Até
hoje nada se sabe. Uma grande dúvida foi arremessada pelos ares do país. Depois,
o mergulho no silêncio de um crime votado ao esquecimento que é o maior inimigo
da verdade e um silêncio perturbador!
Badiu Boxero surgiu no dúbio cenário para justificar a morte executada por um
outro, para preencher a lacuna existente e impor um silêncio desconfortável para
confundir a opinião pública. Num outro cenário diferente, surgiram duas amigas a
vasculhar os grandes porquês, mas sobretudo, para satisfazer a vontade própria e a
do povo cabo-verdiano.
Para encerrar este romance, lembremos de uma mulher histórica que decapitou a
cabeça de Holofernes para salvar sua nação. Surgiu de rompante na cena criminal
cabo-verdiana uma outra mulher com o mesmo nome, digamos, para salvar as
irreverências da época, as convenções e o patrulhamento ideológico que alastrava
a passos firmes no extracto social cabo-verdiano. Era de importância capital travar
um homem e todos aqueles que com ele comungavam a mesma opinião, isto é,
romper o silêncio perturbador em que toda a sociedade cabo-verdiana estava
confinada. É de salientar que a maioria do povo cabo-verdiano ficou muito tempo
sem o relato de uma verdadeira história, como que destinada à obscuridade de uma
inarrável consciência nacional capaz de transcender os limites impostos pelo Artigo
4o. da Constituição da primeira República e como se essa maioria estivesse a viver
fora do tempo ou pelo menos fora dos acontecimentos que se desenrolavam atrás
das cortinas ideologicamente vigiadas. É preciso saber que uma história sem a
participação de todos os homens não é possível. É sobretudo, uma história
aldrabada e corrompida até ao mais ínfimo extracto social. É uma história que torna
a maioria dos homens invisível.
Não é que se pretenda apontar aqui, categoricamente, o culpado da morte de
Renato Cardoso. Longe disso. A morte de Renato aponta para diversas ramificações.
Usou-se, entre outros, do ramo passional para consolidar um acto hediondo num
país com fraco recurso legal para resolver o problema. Esta é uma constatação e
uma convicção pessoal sem nenhuma prova científica que a justifique. Se esta
constatação se mostrar falsa, que se aponte para outras soluções mais evidentes.

Domingos Barbosa da Silva 330


A estranha morte de um político

Aqui apontam-se apenas os indícios, a condenação fica a cargo das mais altas
entidades em suas respectivas instâncias e a cargo do Povo. Fica um pedido: que a
nossa memória, corrompida pelo mito de melhores filhos do nosso povo e, portanto,
melhores pensadores, não nos conduza ao esquecimento do inspirador político,
Renato Cardoso.
As vantagens políticas da época dominavam tudo, ponto final. As vantagens
materiais eram e são as consequências que daí advêm. No contexto em que se vivia,
as palavras que se usavam eram como trovoadas e não como argumentos num
debate saudável, a não ser para acabar com uma discussão ou silenciá-la. Como o
poder corrompe os que o têm, podendo também, corromper aqueles que procuram
a influência destes, obedecendo aos seus detentores, torna-se imperativo que os
que não se deixam ser corrompidos, procedam de modo a equilibrar o poder. Daí o
perigo de se viver entre poderosos e magnatas, entre líderes e seguidores. Não
precisamos de esperar pelos meios de comunicação em nossa defesa, não
precisamos dos polícias em nossa protecção, não precisamos dos tribunais para nos
julgar. Estes são propriedades dos poderosos que não defendem o cidadão anónimo
e o seu direito de saber, mas puxam para si os melhores tachos materiais, as
melhores posições e são, além disso, supostamente, ou melhor auto-cognomizados
de omniscientes.
A história do crime que se inventariou naquele tempo, em Cabo Verde, de cegueira
humana, com chicotes, pistolas e outras armas de fogo, acompanhada de pontapés,
punhos e faces desumanas, deve ser contada doutra maneira. Hoje, o povo é livre.
É livre para, pelo menos, contar o que passou. Livre comparado com o povo daquele
tempo passado. Em nome do Direito e da Justiça, deve ser ainda mais livre, para falar
no rosto dos outros sem condenação prévia. Renato continua a cantar a mesma
canção de outrora, com a mágoa original que lhe enchia o coração, sem, porém,
estar ciente do facto. O gesto de cantar a mágoa não é nem pecado, nem crime. Mas
o gesto de se sentir espezinhado, sem voz, sem direito e justiça, já é Pecado com
letra maiúscula.
Numa tarde de Setembro de 1989, disparou um revólver em Quebra-Canela. Numa
outra em 2009, duas amigas, juntaram-se para recordar um amigo comum, que foi
morto a tiro e que fazia neste preciso ano, vinte anos sobre a sua morte. A tarde
toda foi usada para reflectir sobre os possíveis atalhos do crime cometido e quem o
cometeu. As duas procuraram, desesperadamente, encontrar a verdade depois de
tantos anos idos sem nenhum caminho que as conduzisse à meta desejada. Elas,
apesar das dificuldades, negaram-se a desistir do projecto e, pouco a pouco,
obtiveram uma mais clara imagem do acontecimento, da paixão que matou o amigo,
da fantasia, da mentira acerca da morte e da embrulhada que fizeram do

Domingos Barbosa da Silva 331


A estranha morte de um político

assassinato. As duas amigas têm uma imagem quase certeira de como o crime foi
premeditado. Certo é que existe um assassino à solta. Certo é que foi morto um
grande amigo. Certo é que há uma engrenagem bem camuflada. E, muito mais certo
é: que houve uma meditação prévia.83 É a coisa mais certa que existe neste nosso
mundo.
Todas as investigações de cunho privado não tiveram sucesso por razões de ordem
vária. Entretanto, não foram em vão porque tiveram um desfecho diferente do
previsto, trazendo à luz uma parte da história que ainda se conservava debaixo dos
nossos pés.

83 A Bala Mágica que matou o Dr. Renato Cardoso, de José Manuel Veiga, 1994.

Domingos Barbosa da Silva 332


A estranha morte de um político

A biografia do autor
Nascido no sítio de Monte Tabor da Ilha do Fogo – Cabo Verde, iniciou os seus
estudos secundários na escola de Maria Antónia do Rosário em São Filipe e depois
no liceu Adriano Moreira, hoje Domingos Ramos, na cidade da Praia, interrompido
pelos serviços militares no Mindelo e na Cidade da Praia.
Depois dos serviços militares, ingressou como professor no ensino primário onde
exerceu esta função durante dois anos. Emigrou, nos fins de 1973, para Noruega,
onde chegou a 4 de Janeiro de 1974. Retomou os seus estudos secundários, depois

Domingos Barbosa da Silva 333


A estranha morte de um político

dos quais frequentou a Faculdade de Matemática na Universidade de Oslo, capital


da Noruega, depois de ter terminado o curso obrigatório de Examen Philosophicum
(Ex-Phil) que dá acesso a estudos académicos. A paixão pela medicina fez com que
desse um salto à Faculdade vizinha – o Instituto da Farmácia, onde se licenciou em
1984, com uma dissertação no campo da Microbiologia que afecta as infecções
genitálias, fortemente embasadas nas doenças venéreas, saindo do Instituto com o
título formal de Master in Pharmacy.
Nos estudos de pós-graduação adquiriu um especial conhecimento na área da
quimioterapia – tratamento e sequelas da quimioterapia nos pacientes do Hospital
da cidade de Sarpsborg, onde praticou durante mais de um ano de serviço no mesmo
hospital.
Trabalhou durante muitos anos em diversas farmácias e em 1999 tornou-se
empresário e proprietário de duas farmácias em Bodoe, Noruega, ao norte do círculo
polar, tendo depois iniciado funções como director de uma farmácia em Oslo.
Foi co-editor do livro A Odisseia Crioula, com o irmão António Barbosa da Silva em
1990 e] – 1992, publicado pela Editora Alpha-Beta – Sigma, Norway e
Kulturkonfrontation – Kris eller möjlighet? [Confrontação cultural crise ou
possibilidade] Uppsala: Alpha-Beta-Sigma, 1988. Publicou a Anatomia da Lonjura em
2015 numa versão electrónica e em 2016 em suporte de papel.
Alguns livros a publicar:
- Eugénio Tavares e suas mornas – in printing
- Uma colectânea de poesias migratórias – in printing
- Cicatrizes – in printing

Domingos Barbosa da Silva 334


A estranha morte de um político

   

Domingos Barbosa da Silva 335


A estranha morte de um político



Domingos Barbosa da Silva 336


A estranha morte de um político

Domingos Barbosa da Silva 337


A estranha morte de um político

Prece por uma estátua anónima

Imagino no alto uma brônzea estatueta


De fronte austero, a fitar Quebra-Canela
Vinte anos um espaço imaginário ocupando
E uma vontade propositada, sacrificando

Domingos Barbosa da Silva 338


A estranha morte de um político

Pelos homens ingratos das nossas ilhas,


Com uma postura humana tão soberana
Um rançoso cuspo atirado às costas
O cuspe bafiento da saliva humana.

Avisto a estatueta dos altos píncaros


E da herdade sombria do altar do poder
Perdido no alto de seus terrenos baixos.

Vivo suplicando uma estátua, lá dos altos,


De mãos em prece, para outros olhos ver,
E que a mão do assassino caia aos pedaços.

ISBN 978-82-992928-7-0
Alpha-Beta-Sigma - Norway

Domingos Barbosa da Silva 339

Você também pode gostar