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Um romance criminal
Terra bô sabê!
Alpha-Beta-Sigma - Norway
Fotografias: do autor
Tipo de letras: calibri 12
1ª. Edição: Setembro 2019
Proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem prévia
autorização da editora.
Contacto: domingosdidi@gmail.com
Todos os direitos reservados
Conteúdo
Um encorajamento ..........................................................................................................................13
Prefácio .......................................................................................................................................15
Introdução ..................................................................................................................................17
O que é uma ideia? .....................................................................................................................19
Uma tarde tenebrosa..................................................................................................................23
Um Poema estirado na areia ......................................................................................................23
Um dia agitado............................................................................................................................29
Hotel Crioulândia! .......................................................................................................................64
As lições de Paín .........................................................................................................................80
Uma tertúlia de amigos ..............................................................................................................87
Escapadela ..................................................................................................................................95
Antes do disparo da bala mágica ..............................................................................................109
Os documentos .........................................................................................................................151
Marta e Fátima .........................................................................................................................153
Um encontro desagradável ......................................................................................................165
Sobre a igreja satânica – Aquiles, o chefe ................................................................................167
Um investigador de poucas palavras ........................................................................................171
Diogo, Sombra, Penumbra, Dário e Aquiles .............................................................................175
O guardador de Projectos.........................................................................................................183
O ano que mudou o mundo e o futuro de Cabo Verde............................................................186
A ti meu amigo ..........................................................................................................................190
O pequeno mundo de Djonzinho .............................................................................................192
A primeira audiência .................................................................................................................198
A audiência de Badiu Boxero ....................................................................................................208
A audiência final – o julgamento ..............................................................................................214
Marta e Fátima (10 anos depois) ..............................................................................................228
Anno vigesimo...........................................................................................................................236
A investigação – uma responsabilidade do Estado ..................................................................240
Djonzinho num simples raciocínio............................................................................................246
As espectativas de Marta .........................................................................................................252
Pressentimento.........................................................................................................................274
Um caso esquecido ...................................................................................................................278
Habeas data ..............................................................................................................................282
O mistério de Quebra-Canela, a prisão do suposto assassino e a aproximação da resolução do
caso ...........................................................................................................................................298
Segunda-feira, 19 de Setembro, 2005 ......................................................................................308
A trompeta do silêncio .............................................................................................................310
Um Silêncio perturbador ..........................................................................................................310
Gemidos de Quebra-Canela......................................................................................................311
Indiferença ................................................................................................................................312
Um homem chamado Renato Silos Cardoso estava a ser incómodo para muita gente
e, por isso, devia ser excluído dentre os vivos.
Numa tarde de Setembro de 1989, disparou um revólver em Quebra-Canela. Numa
outra em 2009, duas amigas, juntaram-se para recordar um amigo comum, que foi
morto a tiro e que fazia neste preciso ano, vinte anos depois da sua morte. A tarde
toda foi usada para reflectir sobre os possíveis atalhos do crime cometido e quem o
cometeu, sobretudo, para satisfazer a vontade própria e a do povo cabo-verdiano.
Um homem bem-trajado de nome Nero, ocupara um quarto seguro na cidade da
Praia, com vista para o Seminário de São José. Dispunha de um aposento bem
apetrechado, com um estilo ultramoderno. Acabara de se barbear e usava um
perfume de marca francesa…
Na Cidade Velha, dois dos satanistas, Aquiles e Diogo discutiam sobre a melhor
forma de esconder os documentos. Não só pelo valor que representam, mas
também, porque podem vir a servir como relíquias no futuro. A expressão Porton
d’nós Ilha, reflecte algo de muita importância para a vítima de toda esta
engrenagem.
Badiu Boxero surgiu no dúbio cenário para justificar a morte executada por um
outro, para preencher a lacuna existente e impor um silêncio desconfortável para
confundir a opinião pública.
Um encorajamento
Prefácio
Este romance é da minha autoria, baseado em factos reais, onde a fantasia procura
tocar a realidade. Ele é apoiado por investigações privadas e pelo livro A Bala Mágica
que matou Renato Cardoso. A estranha morte de um político é, portanto, um caso
criminal – um brincar com o pensamento na zona intersticial situada entre a ficção
e a realidade, a fantasia e os factos. Contém também, acontecimentos verídicos,
baseados em documentos amplamente divulgados e conhecidos do público, todos
eles envoltos em obscuros véus de mistérios, enlaçados em intrincados nós que
apenas deixam transparecer os contornos desfocados da realidade. Algures foi
urdida uma emaranhada teia de segredos, deliberada e/ou planeada, o que ocultou
muitas informações que nos pudessem levar a um desvendar do assassinato. Esses
traços nebulosos dificultaram o afastamento do manto de silêncio que deixou atrás
de si um longo rasto de pistas contraditórias.
Não pretendo resolver nem desvendar o mistério relacionado com o assassinato de
há mais de trinta anos. Coloco-me, simplesmente, no meu mundo de fantasia, ponho
um radar social na mente para escutar o que foi dito e feito nas últimas três décadas
no solo natal sobre um acontecimento hediondo e dei azo ao que pessoas
entendidas me relataram. Um acontecimento que merece uma melhor atenção. A
minha intenção é fundir ou juntar as linhas que existem entre a ficção e a não-ficção,
entre a poesia e a prosa, entre o espírito e a mente, entre o corpo e a alma e entre
a biografia e a política dum indivíduo altamente relacionado com o mundo real e
mundos imaginários. É acima de tudo, vontade de escrever para apaziguar uma dor,
para relaxar as tensões do corpo, pensar, repensar, fazer-me reflectir, contemplar e
ligar diferentes ideias desligadas e desconectadas sobre realidade e ficção, pois
factos e ficção são duas coisas correlacionadas como o corpo e a alma, a sombra e a
luz, o sonho e a realidade, o tempo e o lugar ou o espaço.
As ideias viajam a uma velocidade tremenda na nossa mente quando estamos
mergulhados no silêncio, quando estamos sós. Sentimo-las passar como barulho no
nosso cérebro, como uma voz intensa de que só nós apercebemos. É tão satisfatório
e aprazível pegar aquilo que atravessa a nossa cabeça à velocidade da luz e utilizá-
lo para algo concreto. Pegar ou aperceber este fenómeno pode, certas vezes, criar
problemas com as pessoas à nossa volta. Elas podem desconfiar que estamos a
escrever sobre os seus segredos, que estamos a amar outras pessoas, ou a criar-lhes
problemas, ou ainda, que queremos apoderar dos seus próprios pensamentos,
Introdução
Capítulo I
O que é uma ideia?
De onde lhe veio esta ideia de escrever sobre uma pessoa que foi excluído de entre
os vivos há mais de 30 anos? De que matéria bruta surgiu a própria ideia, esta luz
que cai sobre as coisas como forma moldadora? De onde? Que forma tomou ao
atingir o cérebro de Djonzinho? Mas sobretudo, que forma não tomou? Forma de
fotões? Forma de moléculas que se desprendem dos nós dos nervos e se espalham
nas criptas misteriosas que constituem as ruelas do seu encéfalo? Não sabe dizer.
Todavia, deve vir de algo misterioso que esbarra no vibrar do pensamento activo,
correndo até aos dedos calcinados que lhe dão vida numa página de papel em
branco.
Mas afinal o que é uma ideia? Um fenómeno transitório e efémero que escapa a
muita gente em momentos de reflexão. O que fica depois da ideia se ter evaporado
ou escapado à nossa atenção? Vazio, nada, zero? Ou fica empacotada num cacho de
silêncio até se cruzar com outras mentes? O que é transitório, por sua natureza, não
deixa saudades. É como se esta viesse revelar-se a nós como uma tentação.
No dia em que completou 20 Outonos de ausência física de um homem do povo,
Djonzinho começou a sentir a energia dos fotões a atravessar o seu corpo, a mexer
com os seus nervos, a trespassar o seu peito e a escorregar sobre este papel através
dos seus dedos, dando vida aos soluços de quem carrega na alma as dores do
mundo, as dores de todos aqueles que amam Renato Silos Cardoso.
Daí surgiu uma obra, um esforço tremendo da imaginação criadora, uma tentativa
de aproximar a realidade ao modo como desapareceu, uma realidade escondida no
crivo secreto das pessoas de consciência anestesiada pela acção do medo, do
interesse económico ou outros. Talvez político? Talvez social? Talvez passional?
Numa tarde de 2009, Djonzinho encontrava-se numa coordenada da terra a 73º
Norte e numa estação do ano em que o sol mal se vê. As nuvens altas escondiam o
sol que, timidamente, tentava espreitar, descendo com vagar para a linha do
horizonte nórdico. Dos casarios cintilavam luzes tremeluzentes à medida que a réstia
do sol se despedia do dia agonizante.
Djonzinho passou os olhos sobre os casarios que se preparavam para aguentar as
maçadas do inverno que teimosamente se mergulhava no tempo. Os seus
pensamentos dardejaram pelas ruas da pequena cidade e sentiu,
2 A Bala Mágica que matou Renato Cardoso, de José Manuel Veiga, Setembro de 1994.
3 Hormonas ou proteínas segregadas pelas abelhas quando
se sentem ameaçadas, com o fim de pedir
ajuda.
o assunto num pedaço de papel azul, algo sobre a liberdade e o medo estava a
invadir o seu espírito. Porque? Qual a razão de ter medo?
O zunir da abelha irritou-o. Para a frente e para trás, encarcerado, experimentou um
pânico total. Até que chegou o momento, em que, simpatizou com ela porque viu
que cada bater de asas era uma tentativa incansável de se libertar. Estava frustrada
por não poder libertar-se. Desespero total. A simpatia do Djonzinho fez com que ele
abrisse a janela e libertou-a. Desapareceu, instantaneamente, como fumo. Foi
apenas uma abelha, uma espécie de mosca grande. Identificou-se com ela.
Djonzinho tem esta tendência natural se identificar com tudo que existe. Até com as
pedras de uma calçada. Com os mais fracos. Com os pobres nas estradas do mundo.
Com os trapos pendurados nas cordas de secar roupas. Com as folhas que caiem no
Outono da vida. Com a vida que foi ceifada deste mundo antes que chegasse a hora,
nomeadamente os abortados. Injustamente. Esta identificação é uma forma de
ressonância da dor dos outros no Djonzinho.
Esta capacidade que tem de sentir por outras pessoas, de sentir as suas emoções, tal
como sentimos as nossas, chama-se empatia e quanto sentimos empatia, tal
emoção faz ressonância dentro de nós. Sente intuitivamente os sentimentos dos
outros, qual a sua força e, também, aquilo que os provocou. É como se conseguisse,
literalmente, ler os sentimentos de uma pessoa como se fosse um livro.
Estava já farto do seu refúgio no medo. Medo de quê? Esta era outra pergunta que
lhe surgia frequentemente.
Seguiu um silêncio longo. Um sítio perfeito para se refugiar. No silêncio das coisas.
Porque é mais cómodo. Para a abelha, não foi e não é. Para Djonzinho, é. Para ti,
não se sabe. Medo de pessoas, de perseguições infundadas, de vinganças
autorizadas e da ignorância. Dos homens que pensam que são donos deste mundo
e que governam a consciência dos outros. Um reflexo da consciência balbuciou-lhe
que algures no interstício do poder, há mãos invisíveis a trabalhar para perpetuar
esse medo, esse silêncio. Há mentes invisíveis algures a pensar por aqueles que
receiam exprimir as suas vontades.
De quem tem medo? Para quê o medo? São outras perguntas que talvez, também,
te surjam na mente. Porque é que temos medo da verdade? Porque é que fere as
nossas emoções? Porque é que dói? Não se sabe muito bem!
O tempo corre devagar quando se vive no medo, no silêncio, na dor, mas depressa
na alegria, num bom ambiente e na companhia de boas pessoas. Na dor e no medo,
o próprio tempo não avança. Anda a rodopiar à volta de si mesmo, à volta do medo
e à volta da dor. O tempo adquire uma qualidade imóvel e torna cada minuto da
nossa vida igual, cada estação é idêntica, sendo sempre caracterizada por este
castrador de sentimento. Até mesmo o nosso pensamento acaba por estagnar, por
solidificar e congelar.
Pegou do seu Laptop depois da abelha ter desaparecido e encontrado a liberdade.
Vasculhou as páginas da Internet para encontrar informações capazes de lhe
elucidar sobre o assunto e ajudar a compreender um pouco mais. Notou nomes de
pessoas conhecidas e não conhecidas. Gente entendida no assunto. Jornais, revistas,
publicações diversas, familiares e amigos. Confidencialmente, escreveu cartas
electrónicas e pediu ajuda e discrição. Muitos lhe responderam, com medo. Outros
não se mexeram. Nenhuma, mas nenhuma, das respostas lhe esclareceu. O melhor
é ficar como está. O melhor é calar-se. Manter-se embrulhado no silêncio aterrador.
O que estás à procura, homem? A pergunta que talvez te surja de novo na mente.
Para alguns, uma investigação profunda de um caso, é uma prova que há liberdade
de acção, de expressão e de pensamento. Para outros, ela tem uma carga negativa,
de medo e de falta de liberdade. Djonzinho acha mais correcto a primeira.
Gosta de estar sozinho às vezes. Fica com a ideia de que algo o persegue, algo que
se encontra na escuridão que o medo cria, que a imaginação dilata em proporções
tremendas, principalmente, quando a escuridão tomba sobre as coisas. Algo que o
vigia de noite e de dia, algo invisível e esta vigia é infindável. Muitas vezes, prefere
ficar no escuro, deixar a luz apagada e fechar as persianas do mundo. Fecha,
também, as persianas da mente. Porém, as do coração ficam escancaradas ao
mundo. É mais confortável. Decerto mais cómodo. Existem lobisomens? – Pergunta,
muitas vezes, a si mesmo. Naquele dia, encerrou-se no quarto escuro do seu
dormitório com a cabeça entre as mãos a pensar numa bala mágica que assassinou
um grande homem. O que lhe terá acontecido em Quebra-Canela há vinte anos?
Começou com a ousadia de quem quer abrir as persianas da mente e deitar para
fora o medo.
O que aconteceu? Outra pergunta que talvez te surja. Talvez. Ou nem por isso!
Talvez estejas psicoadaptado à situação. E o mundo fica a dever-nos um
esclarecimento. E nós ficamos convencidos que assim é o mundo, assim são as
coisas, conformando-nos com elas e incorporando-as na nossa visão do mundo
como verdades absolutas, julgando não existir mais nada que justifique o amor que
devíamos ter para com os outros. Ou o dever de esclarecer ao mundo o que
aconteceu em Quebra-Canela no ano fatídico de 1989.
Capítulo II
Uma tarde tenebrosa
De longe imaginava cachos de algas arrastados pelas ondas nórdicas além do círculo
polar, cobrindo as praias, as ondas a baterem doidamente contra o calhau, as aves
a falarem a linguagem que só elas entendem, as folhas das árvores a caírem como
que se adivinhassem a chegada do Outono e alguns répteis a correrem
indiferentemente de um lado para outro.
Renato só tinha 38 anos. Balbuciou dentro de si ao ouvir um grito lá longe. Um grito
que ecoou de uma praia distante. Gostaria imenso que só fosse um sonho. Não, não
estava a sonhar. Ainda era cedo demais. Cedo para ter um sonho deste género.
Capítulo III
Um dia agitado
– O que é isto? Russo? Filho da p…, esse Daniel Delgado! – Amaldiçoou o estranho.
O símbolo que mais tarde traduziram para o alfabeto inglês, depois de reparar na
letra ómega que é, genuinamente, grega:
Capítulo IV
Daniel Delgado fez sinal com a mão esquerda e entraram ambos num pequeno
quarto mobilado com toda a simplicidade deste mundo. Atravessaram um corredor
cuja parede se encontrava em péssimo estado, com cal a cair do tecto e das paredes.
– É muito cedo para tomar um grogo5? Mas tenho Black Label – sugeriu Daniel.
– Serve na mesma. Se não tiver gelo, pode ser simples, para mim tanto faz.
Daniel Delgado verteu, trémulo, três dedos de uísque em copos de cristal e estendeu
um a Nero, num silêncio incómodo.
– À sua – brindou Nero e em seguida esvaziou o conteúdo no estômago antes que
o outro tivesse tempo de erguer o seu.
Seguiu-se uns segundos de silêncio. Ambos estavam com os nervos tensos. Mas Nero
apressou-se e quebrou o silêncio para aliviar o peso do momento.
– Olhe, Daniel, sempre que lhe interessar conhecer os meus movimentos, dê-me
uma apitada. É apenas um conselho de amigo. Não hesite em fazê-lo – disse o Nero.
– Como sabe que o seguia? E por que o fazia? – Retorquiu finalmente Delgado todo
corado até aos ouvidos e fazendo o gesto de levar o copo à boca.
Houve outro silêncio. Aquele instante parecia para Delgado uma eternidade. Olhou
para o lado onde se encontrava a garrafa do Black Label e, de repente, deixou de
ouvir os sons que advinham de todos os lados das estradas contíguas, como se toda
a atmosfera circundante congelasse por momentos. Verteu mais dois dedos de
uísque no seu copo sem perguntar ao seu companheiro se também queria mais. Deu
uns passos em direcção à porta e virou-se. Não tinha comido durante toda a manhã
e um golo de uísque não lhe caíra bem naquele momento. Sentiu um suor frio a
escorre-lhe pela face e não fez o caso de o limpar. Estava frente ao homem que
perseguia e agora sentia-se perseguido. Virou-se para Nero quando o ouviu rir à
gargalhada.
– Diga-me uma coisa, porque pensa que eu o seguia?
– Que inocência! Que ingenuidade! Porque pensa que eu o seguia? Estou apenas a
imitar a sua voz. Sabe, Daniel – continuou – já fui polícia. É pura e simplesmente a
intuição do meu lado mais feminino. O senhor andava no meu encalço e, por isso,
quero saber o porquê.
– Tenho ordem de o observar. Isto interessa-me, também, pessoalmente.
– Que interesse é esse? Para quê? Está a dar-me cabo dos nervos! – Exclamou,
enquanto batia com o punho na escrivaninha.
– Bem, sei que foi polícia e, por isso, queria saber como fazer para investigar um
assunto. – Mentiu, virando-se em seguida para a janela sem movimentar as pernas.
– Está a mentir. Que tipo de interesse ou lucro esperava com isto? Costuma seguir
os encalços de todos os que trabalhavam na polícia? Sabe que os ex-polícias têm
sempre cuidado para não serem perseguidos pelos ex-colegas? Principalmente
quando são afastados dos seus postos por motivos menos correctos.
Daniel sentiu o ódio de quem o enviou para tal missão. Sentou-se numa cadeira.
Sentiu a raiva subir dos calcanhares e pensou em reagir com violência. Estava na
iminência de o fazer quando pressentiu que sob o nome de ex-polícia se encontrava
alguém capaz de lhe fazer passar por maus bocados. Emitiu um sorriso falso,
levantou-se cuidadosamente e foi à janela.
– Vou-lhe dizer uma coisa – prosseguiu Nero. – Estou convencido de que trabalha
para alguém conhecedor das minhas relações com determinada pessoa e que está a
morrer de curiosidade para saber o que me leva a farejar por estes cantos. Se me
induzo em erro, corrija-me. Estou em crer que trabalha para alguém que é
perseguido ou que persegue alguém que, também não é do meu agrado. Talvez,
tenhamos interesses em comum.
Mais um momento de silêncio. Daniel limitava-se a saborear o Black Label em
silêncio, denunciando uma certa dificuldade em engolir. A maçã-de-adão fazia uma
protuberância durante alguns segundos antes de desaparecer no pescoço.
– Sou encarregado de fazer uma proposta concernente...
– Bem, caro amigo – cortou Nero. Tenho um recado para quem lhe paga. Se me
está a perseguir por motivos políticos, deixo aqui bem claro esta mensagem: as
minhas actividades, neste momento, relacionam-se com um pedido para ultimar uns
assuntos importantes aqui na capital. Depois disto estarei livre para aceitar qualquer
oferta de trabalho. Não acredito, de modo algum, que seja esse o motivo pelo qual
está no meu encalço e vigie os meus movimentos. Sabe que isto me enerva e a
qualquer momento pode acontecer uma calamidade. Entende? Sabe que mais? Já
agora, aceite mais um conselhozinho de uma pessoa experiente na matéria: as coisas
que parecem mais óbvias nem sempre o são. A melhor maneira de passar
despercebido é permanecer bem visível. A partir do momento que começa a tentar
dissimular-se, torna-se notado. Mas, não esqueça também, que se souber de alguém
que precise dos meus talentos, estou livre. Aqui está o meu número de telefone.
Daniel levantou a mão direita para completar o raciocínio, mas Nero ergueu-se e
tirou do bolso da camisa um cartão-de-visita que entregou a Daniel, saindo logo
depois apressado.
A caminho do hotel preocupava-se em verificar se, durante o percurso, alguém o
seguia novamente. Chegou ao quarto e ligou o rádio. Um Panasonic com idade
avançada, mas dava para seguir o que ia acontecendo pelo mundo. Estava exaustado
quando chegou. Trocou de roupa para descansar enquanto pensava no almoço.
Gozou da madorna em mais de meia hora. O telefone tocou e levantou-se
precipitado sem saber onde se encontrava o aparelho. Sacudiu a cabeça para se
acordar e agarrou o dispositivo que jazia ao seu lado.
– Sim, estou.
– Queria falar com Nero. Nero Bettencourt.
– É o próprio. Quem está a falar?
– Chegou aos meus ouvidos que está desempregado e que anda à procura de
trabalho.
– Bem, tudo depende do tipo de trabalho.
Nero tentou identificar a voz masculina do outro lado da linha e imaginar o homem
pela inflexão do seu tom de voz. Deduziu tratar-se de uma pessoa alta, magra,
jovem, prudente, formal e culta. Pensou também, que deveria comportar-se
decentemente, já que se tratava de um emprego eminente.
– Digamos que é de natureza confidencial. Sei que trabalhou na Polícia e que os
seus talentos são valiosos.
– Certo. Trabalhei lá 14 anos – admitiu Nero.
– As minhas fontes estão em conformidade com o que diz. E exerceu funções de
guarda-costas, certo?
– As suas fontes são credíveis. Era uma actividade em que punha todo o meu
coração e na qual era bom, segundo os meus ex-colegas.
– Sim, estamos ao corrente desse facto. Pensamos em oferecer-lhe um trabalho
gratificante.
– Que tipo de trabalho se encontra disponível?
– Bem, é confidencial, conforme disse. Seria melhor trocarmos impressões
pessoalmente para ver se chegamos a um acordo.
dois Toyotas de cilindradas diferentes. Apeou-se pensando que iria ser liquidado ou,
possivelmente, tramado pelo futuro patrão de qualquer firma da capital. Logo à
entrada, olhou para o seu relógio de pulso, faltavam 3 minutos e veio-lhe de súbito
à memória o que o homem lhe tinha dito pelo telefone: se chegar 10 minutos
atrasado, não estaremos lá e pode esquecer do emprego. Entrou, subiu os degraus
de acesso e estacou na primeira porta. Não reparou em nenhum sinal inscrito sobre
a mesma. Esta era como se esperava de estilo colonial e tinha uma altura
desmesurada. Levantou a mão para tocar, quando a porta se abriu.
– Entre Senhor Nero, – chamo-me Aquiles. Aquiles Cardoso.
Nero reconheceu a voz. Era o homem que lhe telefonara. Parecia uma pessoa nos
seus 50 anos, de expressão brusca, gordo, facto branco muito bem engomado,
camisa azul e gravata amarela. Limpava o suor com um lenço amarrotado e trazia no
fundo dos olhos um sinal de amargura ou algo do género. Na verdade, o homem
nem tinha quarenta anos de idade, mas a barba dava-lhe um ar idoso e um pouco
carcomido. Deitou um olhar curioso ao local e reparou no seu mau estado de
conservação.
– Este lugar onde estamos pertence ao Estado de Cabo Verde, aliás, ao Partido. Na
altura da Reforma Agrária, foi expropriada – disse Aquiles para arrancar um diálogo.
Mas nós alugamos o local.
– Não me diga. Conheço bem o ex-dono desta casa. Era de Santiago – retorquiu
Nero, procurando mudar de imediato o rumo da conversa, a fim de evitar cair na
tentação de desaprovar o que tinha acontecido com a casa.
– Era uma vez.
– Há mais pessoas para me entrevistar?
– Peço um pouco da sua paciência.
Sentaram-se os dois por alguns minutos. Aquiles levantou-se da poltrona onde se
tinha instalado e pediu a Nero que o acompanhasse. Logo à entrada de uma grande
sala que se abria diante de si, Nero deparou-se com duas pessoas de costas viradas
para quem chega. Não havia luz suficiente para o trabalho de entrevista. Estavam
instalados em enormes poltronas. Nero não reconheceu nenhum deles. Não se
cumprimentaram e ficaram em silêncio durante uns instantes. Sentiu o soalho a
fugir-lhe debaixo dos pés. A sua frequência cardíaca acelerou e o suor escorria-lhe
pelo rosto. Trajavam uma indumentária de caqui à Mao Tsé-Tung, de barbas
desarranjadas e de ar imponente.
– Como disse, o Sr. Aquiles lhe dará as instruções necessárias. Ele virá aqui ter
consigo dentro de 2-3 minutos. Espere aqui até receber ordens e instruções. –
Respondeu um dos presentes, saindo ambos em seguida sem pronunciarem mais
palavras.
Nero sentiu um suor quente a escorrer-lhe pelas costas. O vulto que lhe vinha dar as
últimas instruções entrou logo em seguida a passos largos.
Estimada Judith
Capítulo V
conta de que iria viajar. Apanhou um táxi e dirigiu-se ao aeroporto para uma viagem
que dura um pouco mais de meia hora. O voo foi agradável e toda a trajectória foi
feita com a cara posta num livro.
Quando desceu do avião, pôs os seus óculos de sol, mesmo sob um céu nublado,
mas dava-lhe um ar misterioso. Fazia um calor intenso, mas não se importara com a
temperatura. Saiu à rua em direcção a um táxi, e sem olhar para o taxista disse: leve-
me a um lugar qualquer no Plateau. O taxista obedeceu sem questionar. Nem o
taxista nem ela disseram uma palavra durante a trajectória, mas esta lançava-lhe um
olhar de vez em quando.
– Pode deixar-me aqui – sentenciou, pagando em seguida e saindo sem receber
o troco.
Tinha já passado a Igreja do Nazareno. Seguiu em passos lentos e firmes em direcção
ao Mercado Municipal. Vasculhou as ruas da cidade como se procurasse alguém
muito pequeno nas multidões de gente que ia e vinha. Não se sentiu segura naquele
vaivém de gente e foi-se, pouco a pouco, aproximando da praça pública. Sentou-se
num dos bancos e cruzou as pernas, lendo o jornal da semana. Ela conhece muita
gente na capital, mas gostaria que não fosse reconhecida naquele dia. Por isso,
trajou-se para tal. A impaciência tomou conta dela. Pegou na sua mala e apressou-
se em direcção ao edifício da Fazenda. Desceu estrada abaixo, pondo os pés nas
escadarias como quem não quer sequer incomodar as moscas. No fim da escadaria
sentiu um ar frio correr-lhe pelas costas e pressentiu que algo não estava bem.
Revirou a pequena mala com as mãos um pouco trémulas.
Voltou-se e subiu as escadas como se as contasse uma a uma. Manteve-se no lado
esquerdo do caminho até descobrir de novo a praça pública. Estacou durante uns
segundos quando reparou num indivíduo sentado numa das cadeiras do bar da
praça, Esplanada, que a olhava, com um copo na mão.
Ela pensou sobre o que estaria ele a beber naquele momento do dia. Porque estou
tão interessada naquele homem, nem me conhece, pensou para si. Ela olhou para
ele de soslaio por uns momentos e não disse nada, era melhor não dizer nada em
todo o caso.
Sentiu um mal-estar correr-lhe de novo pela espinha dorsal. Apressou-se a andar,
dizendo para si mesma: sou maluca. Queria expor-se o mínimo possível ao
atravessar a praça pública e queria encontrar uma sombra. Olhava ansiosamente
para trás, para os lados e por cima do ombro, em cada momento. Passava-lhe pela
mente um longo filme com uma série de promessas e palavras doces. Quando
chegou a um local apropriado, perto dos correios, pousou a mala no chão, encostou-
se a uma árvore por uns momentos, para recuperar o fôlego e renovar a sua
o que lá estava escrito ou por ainda não o ter decifrado. Contudo, estava confiante
que não seria difícil decifrá-lo antes do grande encontro. Pegou no papel e leu-o de
todas as maneiras possíveis. Usou do espelho, nada. Leu de traz para diante, nada
adiantou. Recordou as instruções que recebeu anteriormente. Meta estes códigos
dentro da sua carteira. Vamos precisar deles! Se perder este pedaço de papel,
memorize a segunda cifra que vai instrui-la sobre o propósito da primeira. A outra
pessoa com quem vai travar conhecimento tem os mesmos códigos e vai conseguir,
sem muito esforço, decifrá-los.
Ovtamnoesreolriamni
Não era um segredo indecifrável, mas era algo de importância capital. Ela falava para
si mesma com uma voz forte e nítida. Não hesitava nas palavras. Era uma mulher
destemida. Não usava maquilhagem e vestia-se muito bem. Uma figura de culto na
terra. Defendia ferreamente os direitos da mulher, uma feminista autêntica.
Reparou que na margem do pedaço de papel se encontrava uma outra palavra
igualmente ilegível e voltou a folha de todas as maneiras sem conseguir decifrar o
que lá estava. Alguém vai precisar da primeira cifra daqui a poucas horas.
Tnreuroocbneett
na vida: ser livre e independente. Ela estava a deixar-se ir com a corrente do tempo
moderno, com a moda.
As atuais relações laborais não eram boas. Quando o seu chefe promovera uma
prima por afinidade, passando por cima dela que era mais qualificada, mais
inteligente, com mais antiguidade no ofício, mais simpática e mais atraente, ficou
furiosa e estupefacta. O medo de perder o emprego fê-la calar-se até chegar a hora
própria para desferir um murro psicológico no estômago do chefe.
Tinha-se-lhe aberto uma janela de oportunidades e pensava mandar o chefe às favas
quando essa janela estivesse escancarada. Contudo, pensou ser melhor deixar o
chefe em paz e fazer da sua vida o que melhor entendesse. Era qualificada para
outros empregos e outras eventuais oportunidades. Mesmo assim, ocorrera-lhe a
ideia de espremer a garganta do chefe até que os olhos lhe saltassem das órbitas.
Conseguiu acalmar os nervos e deixou que o tempo curasse o mal.
Portanto, Judith não estrangulou e nem espremeu os olhos do chefe para fora da
órbita por que não deixou que a emoção dominasse o seu raciocínio. Tinha controlo
sobre as suas emoções – uma virtude que sempre a recompensara em momentos
difíceis.
Um clima de medo instalou-se entre ela e o chefe. Sabia que os homens reagem
sempre como animais quando estão colectivamente irados. A ferramenta do silêncio
é o estandarte dos fortes – pensou. Portanto usou o silêncio como resposta. Preferiu
conscientemente ser fraca por fora, mas livre e forte por dentro. Pensava sempre na
frase de Galileu Galilei que devemos escrever os benefícios em bronze e as injúrias
no ar. Esta frase abriu as comportas da sua emoção e evitou que um episódio
turbulento destruísse para sempre os seus relacionamentos na vida. Isto é honrar a
sua própria consciência. Gostava de benefícios mais palpáveis, mais concretos. Ela
já os tinha na mão. Além do mais, sempre pensara em alcançar algo mais alto na
vida do que estar a discutir assuntos que não a levam a lugar algum. O progresso é
possível quando a livre vontade, a liberdade de pensar e circunstâncias trabalham
de mãos dadas. Cogitava profundamente sobre como encontrar as palavras certas
para exprimir um pensamento que a preocupava no mundo: o de deixar o seu
emprego e de como dizê-lo ao chefe sem despertar a curiosidade do meio pequeno
da ilha. Encontrar uma maneira de dizer isto, é como acertar um alvo a léguas de
distância, é como encontrar uma agulha que caiu no mar.
Antes das férias de verão, recebera um convite especial que ia justificar o
despedimento do seu emprego. A partir daquele momento, as forças do mal
começaram a trabalhar em conjunção com as forças do bem. Sabia perfeitamente
que o amor arrasta o ódio consigo. Disto ela estava certa. E isto pode ser usado por
terceiros em proveito próprio. As cinzas do mal estavam já lançadas sobre ela. E era
de se aproveitar enquanto os dois ainda tinham olhos um para com o outro.
Os planos futuros começaram a surgir na cabeça de Judith. Ela procurava sempre
espaço para se refugiar. Gostava de passeios aos domingos e sempre acompanhada
de algumas amigas. Baía das Gatas e Calhau eram os seus lugares preferidos. Um
fim-de-semana num e outro noutro. Mas a sua preferência era Calhau, onde se
sentia mais à vontade, mais poética, mais liberta e mais segura de si mesma. Aí,
sentada perto do mar, os seus olhos, de castanho-escuro profundo, fixavam-se na
elegante extensão das pedras negras de calhau que eram uma atracção do lugar
como ponto turístico e de refúgio. Em Calhau sentava-se sempre sobre uma pedra
grande, de costas viradas para o mar, observava o panorama à sua frente. No centro
do panorama, uma casa cercada por uma parede que transmitia e aludia a ideia de
privacidade, de sossego e de descanso. Pensava um dia comprar a casa e o cercado
onde passaria as suas férias de verão e os fins-de-semana. Calhau foi e é para ela um
lugar que a fascina. Um lugar para repousar e construir relações sociais.
Pensava sempre no convite que tivera tido antes do verão e qual o seu verdadeiro
conteúdo. Qual o resultado do encontro marcado para o mês de Setembro?
E, quando chegasse a Capital do país, faria os seus planos para o resto dos dias que
lá iria ficar. Passeios diversos. Contactos a todos os níveis da sociedade.
Capítulo VI
Na manhã de um dia especial do mês de Setembro, pensou alugar um carro para dar
umas voltas ao redor da capital. Estava em casa da sua amiga, aí por voltas das onze
horas da manhã. Dois indivíduos acabavam de sair da casa de uma amiga de Judith
e dirigiram-se a um táxi estacionado logo a seguir a um prédio de 2 pisos.
Aproximou-se da janela e certificou-se de que ninguém a incomodaria. Judith
Capítulo VII
sobre si. Podia dizer mais coisas ao eventual futuro patrão se desde o princípio
tivesse conseguido ler mais a fundo o coração dele. Chegou à praça pública sem
saber como lá foi ter. Olhou algum tempo à sua volta e, mentalmente, visualizou o
patrão com quem havia falado há poucos minutos. Mas o espírito tentou fugir-lhe
da realidade que o cercava. Repensou a situação e até que ponto uma recusa ao
pedido iria magoar o chefe e sofrer as consequências da recusa, mas varreu logo do
espírito os receios que lhe nasciam de tal interrogação, afinal tratava-se de uma
ordem de um superior. Mas antes de os arredar de si, pesou-os e sentiu-os a calcar-
lhe na alma. Por mais que tentasse arredar-se, o que o futuro chefe lhe dissera
revolvia-lhe as entranhadas, trazia-lhe à alma as lembranças de actos que não se
coadunam com o seu modo se ser e pensar o mundo. Umberto é um homem que
veio ao mundo já com a ruga da reflexão do espírito, nunca dispara um desaforo sem
pensar duas vezes, sem contar de dez até um, não se perde no redemoinho da
maldade do mundo. Ele não precisava de conselhos porque o melhor deles não é
melhor que a voz da sua própria consciência, que é o relógio da vida. Pensou
enquanto fazia uma autópsia, nas conversas com o Daniel Delgado e durante alguns
minutos, perdeu-se no mundo da imaginação.
Capítulo VIII
Na altura em que corria uns zunzuns sobre um plano ou melhor a existência de uma
proposta para uma mudança na estrutura do poder, uma proposta que minava o
Artigo 4º da primeira Constituição da República cabo-verdiana, surgiu um
movimento radical no seio da sociedade, contra todas as mudanças possíveis no
sistema vigente de então. Algumas pessoas (anti-mudanças) aperceberam-se, muito
cedo, de que tinham um problema grave que afectaria tanto a sua ideologia como o
interesse próprio. Afiliaram-se ao Partido-único para construir um Estado sob
controlo de uma direcção perpétua. Outros viram, muito cedo, o perigo da
perpetuação do poder que não deixava espaço para outra reflexão que não fosse a
do Partido-único e esforçaram-se para contornar o poder de forma democrática,
mexendo na sua estrutura interna através de diálogo, começando no topo. Na
iminência das negociações, a proposta ou projecto de mudança teve eco significante
nos meios de comunicação e os anti-mudanças reuniram-se no casarão perto do mar
em Tarrafal de Santiago, para discutirem a inaceitabilidade das negociações que
estavam prestes a decorrer na capital do país. Eles engendraram um plano para
neutralizar ou repelir o resultado das negociações. Até tinham um nome para ele:
Plano Alcatraz. Atiravam-no quando as duas partes negociantes se encontrassem no
auge do trabalho. A queda do Artigo 4º seria um sério arrombamento no casco do
navio omnipotente que os conduziria a um Estado utópico com rumo a um futuro
cheio de luz e guiados pela estrela negra nascida no oriente. Tal arrombamento iria
mexer no bolso de muita gente. O Plano Alcatraz tinha como propósito embargar as
negociações para que estas não alterassem o sagrado Artigo 4º.
Por outro lado, havia também um outro grupo responsável pela execução da
operação em vista, reunidos em directo contacto com os anti-mudanças,
pretendendo não ter nenhuma conexão política. Ocupavam um pequeno
apartamento construído numa zona limítrofe da capital. Daí circulavam todas as
informações de cariz secreto. Era conhecido entre os agentes da polícia política
como centro de operação Alcatraz. Nesse tumultuoso ano de 1989, Nero andara
com uma chave do apartamento no bolso e comportava-se como se fosse um turista.
Pensou na última vez que tinha entrado naquele apartamento. Tinham-se passado
6 meses desde o último falhanço na tentativa de apanhar o Ministro da
Administração Pública. Na altura, foi avisar ao chefe da operação Alcatraz que os
planos tinham sido descobertos pelos seus inimigos e de que chegara a altura de
regressar à casa para um melhor plano de acção. Passado o tempo necessário para
um novo avanço, o chefe de operação assegurara-lhe que desta vez não ficariam
sinais da sua passagem nesta ilha. O lugar seguro tinha possibilidades de
comunicação segura e situava algures na Avenida 13 de Maio. Nero dispunha de
instrumentos afinados que eram identificados logo que entrassem na linha segura
que transferia todas as informações para o Centro de Operação Central que, por sua
vez, dava ordens finais para a execução da operação. Judith seguia de perto todos
os movimentos e informações concernentes aos planos que vinham do Centro de
Operação.
Os preparos para o desfecho final foram breves e naquele casarão cercado com
paredes altas, brancas, telhado cor de tijolo e guardado por cães raivosos, situado
mesmo sobre um rochedo em que as ondas do mar constantemente batiam,
orquestrando as noites longas com as suas melodias monótonas, reuniram-se um
grupo de indivíduos encarregados pelo Plano Alcatraz. O sol de Tarrafal de Santiago
mimava as rochas altivas e as praias nos arredores, segredando aos meninos que
não se podiam banhar nas proximidades do casarão.
O Plano era codificado. Em Alcatraz há ondas de até 7,5 metros de altura nas horas
vespertinas. A utilização duma frase será interpretada pelo agente num abrir e
fechar dos olhos. Alcatraz é a luta de poder. Ondas de 7,5 metros, significa às 19.30,
Camarada Bettencourt, era um código para um agente que se encontrava na Praia.
O KK significa o Quebra-Canela e um dia santo todos os anos, assim como, todos os
anos há uma sexta-feira santa.
Aquiles entrou a sede com passos apressados pedindo desculpas pelo atraso. Vestia
uns jeans azuis e uma camisa de caxemira de cor cinza. Estava a acertar alguns
assuntos com uma pessoa muito interessante que iria ajudá-los no Plano Alcatraz.
Penumbra avançava pelas ruelas sem gente, com apenas algumas vendedeiras com
cesto na cabeça a gritarem o nome do produto que vendiam, em direcção ao casarão
sobre o mar. Na mesa ao lado da cadeira de Aquiles estava um monte de jornais
dispostos de forma que os cabeçalhos ficassem visíveis. O que estava por cima foi
atirado para o colo de Sombra. Quando Penumbra finalmente entrou, já o Aquiles
se encontrava impaciente e com cara de poucos amigos. Não disse nada e nem se
desculpou pelo atraso.
Um empregado colocou-lhes à frente uma garrafa de Black Label, juntamente com
uns copos de cristal. Aquiles acendeu um cigarro e serviu-se de um copo de uísque
com gelo. O empregado diminuiu a intensidade da luz enquanto um desconhecido
alto e corpulento se sentava ao lado de Aquiles. Este inclinou-se para a frente e
murmurou-lhe umas palavras que o fizeram encolher os ombros enquanto
endireitava a gravata.
– Estamos aqui por razões de segurança. Escolhi este lugar sossegado onde
possamos falar sem ser escutados e vistos – disse Aquiles para sair do silêncio
perturbador. O Sombra empurrou o jornal em direcção a Aquiles e ao homem alto e
corpulento. Na parte da frente, na segunda coluna está: Um encontro com o
Presidente da República. O Conselheiro vai ser ouvido pelo PR sobre a possibilidade
de uma abertura política. Parece-me que o conselheiro já fez a sua primeira tentativa
para convencer o chefe – acrescentou.
Não se deve esquecer que a polícia política se encontrava por todos os cantos das
ruas do país. Estes tipos de polícias acham que têm obrigação de se infiltrar em todas
as reuniões e comunidades de exilados e dissidentes. Têm os ouvidos ligados a todas
as antenas do país e não só. Estão em todos os sítios que se pode imaginar.
– Pois fez, e saiu mais aliviado do que quando entrou para o encontro – replicou o
Sombra.
- Acho que não demorou muito tempo lá dentro. O que teria acontecido? – Ripostou
o desconhecido.
– Olha, uma coisa. Este teu agente é um homem a quem se pode confiar uma
missão importante como esta? – Perguntou Sombra a Aquiles.
– Ora, é um homem muito inteligente, muito leal e um dos melhores – respondeu
Aquiles.
– E os códigos estão claros para todos? – Questionou o Penumbra.
– Dei instruções a todos e espero que se não estivessem claras alguém me
contactaria ou ele contactaria os mais achegados na operação – asseverou Aquiles.
– Temos os recursos necessários à disposição para continuarmos a passos seguros?
– Indagou o estranho.
– Com certeza. Aqui não nos falta absolutamente nada – garantiu Aquiles.
– Bom, esta é a melhor notícia de hoje. Vamos levar um pouco da justiça ao
chamado Projecto de estruturação do poder e o caminho para o pluripartidarismo
em Cabo Verde. Não quero que o meu povo venha a sofrer só porque um homenzinho
quer mudar o regime. Só para depois nos deixar com migalhas do pão que vão
usufruir sem lá muito esforço. Não queremos migalhas, minha gente. Queremos o
pão todo – concluiu o estranho.
Depois de uma curta reunião e esclarecido o plano, levantou-se do assento e
afastou-se. Uns minutos depois, tinha desaparecido pela povoação dentro sem dizer
mais nada. Os outros arrepiaram-se com o comportamento do estranho e depois
cada um saiu à vez adentrando o ardente sol do dia.
Mais tarde, um pouco depois da meia-noite, abordaram um iate imponente que
flutuava logo à frente do rochedo que amparava o casarão. O iate tinha por costume
desaparecer durante a noite e aparecer no mesmo lugar na manhã seguinte. Um
outro iate seguiu uma hora mais tarde com o estranho a bordo.
Capítulo IX
Hotel Crioulândia!
iate no mar revolto. Sentiu a aragem amena da noite e reparou nas fachadas de
todas as cores, em degradação e com os telhados a emprestarem-lhes um certo
toque familiar. Era como se todas as coisas circundantes o acolhessem num
aconchego protector de mãe à espera de um filho há muito tempo ausente.
Tinha uma fome de lobo. Não comia desde que entrou no casarão em Tarrafal. O
comandante do iate não lhe ofereceu nada para o estômago, mas mesmo que o
fizesse teria vomitado tudo. Agora, tinha de comer e dormir. Foi directamente ao
seu quarto no hotel Crioulândia.
Antes de ir para cama, dispensou alguns minutos para se dedicar ao assunto delicado
do dia. O assunto permanecia presente no seu espírito e recordou o resumo feito na
reunião passada.
- É preciso ser forte para ter sucesso num assunto do género - disse Aquiles antes de
se despedir dele.
A prioridade era ver o problema resolvido no decorrer do dia e depois arranjar
maneira de cortar relações com Aquiles e os seus comparsas para toda a vida, pois
estava farto de se ver reduzido a um mero instrumento nas mãos de um grupinho
de pessoas sem escrúpulos.
O estranho meteu-se debaixo do chuveiro e em seguida foi directamente à cama
pensando que em poucos dias se tornaria de novo senhor de si mesmo, longe dos
sem-corações, dos sem escrúpulos, dos covardes que querem possuir tudo e todos.
No dia seguinte, depois de um banho reconfortante, assomou-se à janela do seu
quarto e observou o caos que reinava nas ruas. Carros de chapa amolgada com
buzinares impacientes e condutores maldispostos enchiam as vias traficais da
cidade. O estranho de olhos castanhos e cabelo encaracolado voltou à sua poltrona
e estudou as suas opções. Depois, pensou em descer a escadaria e tomar um bom
pequeno-almoço. Porém, desistiu da ideia, pois podia aplacar a fome com o que
tinha no quarto. Era preciso não se expor a olhos atentos durante a sua estadia no
hotel Crioulândia.
Capítulo X
tema diferente da do dia anterior. Ela repisou teimosamente o mesmo assunto e foi
de novo directamente ao tema:
– Ora, fala-me de ti. Como foste educado, como cresceste, etc.
– Ora bem, não é muito fácil e confortável falar de si mesmo. Saltitando a história,
posso contar-te alguma coisa que ainda retenho na memória sobre a minha pessoa.
Só tinha 9 anos. Recordo nitidamente um dia quando, com muita raiva, dei um
pontapé a uma bola que foi bater violentamente na janela de um carro estacionado
no outro lado da rua onde morávamos. A minha mãe chamou-me e com imensa
paciência e autoridade, agarrou nas minhas duas mãos esqueléticas e com
maviosidade na voz, pediu-me um grande favor.
– Filho – disse-me ela – fecha os teus olhos. Respira fundo durante alguns
segundos. Deixa o ar entrar. Conta até dez. Agora deixa o ar sair também durante
dez segundos. Agora, vamos pensar no que fizeste há pouco. Deixa o ar entrar
novamente. Pensa na tua raiva. Ela ainda está aí dentro de ti. Não está? Consegues
identificar o que causou a essa raiva? Agora, deixa todo o ar sair dos teus pulmões
devagarinho e sorris para a tua raiva, aceita-a. Abre os olhos. Quando, numa
próxima vez sentires raiva, faz este exercício duas ou três vezes antes de dar um
pontapé na bola ou em qualquer coisa. Está bem?
– Mas porquê mãe? – Indaguei curiosamente.
– Vou-te explicar: fecha os olhos de novo. Agora vais lembrar-te daquele dia em
que completaste 5 anos. Estás a ver-te como um rapazinho de 5 anos? Vamos fechar
os olhos de novo. Deixa o ar entrar devagarinho em ti. Visualiza-te como uns 5 anitos
a brincar aqui mesmo à porta.
– Sim mãe, estou a ver-me realmente a brincar. Mas o que significa isto? –
Questionei eu novamente.
– Repete de novo e inspira o ar durante cinco segundos. Estás a ver aquele rapazito
que dependia de mim, frágil e vulnerável? Agora, expira todo o ar devagarinho e diz
para ti mesmo: eu fui frágil e dependente da mãe, agora vou sorrir para o menino de
cinco aninhos que fui, com todo o meu coração.
– Mas, por que vou fazer isto, mãe? Não quero mais – protestei.
– Só mais um bocadinho filho – insistiu. Agora mais uma coisa. Fecha os olhos e
inspira devagar o ar fresco desta rua. Vamos pensar na tua mãe como uma criança
de 5 anos. Quando expiras o ar, dás um sorriso àquela criança que a tua mãe foi.
Depois, faz o mesmo imaginando o teu pai como o menino de cinco aninhos que ele
foi. Tanto a tua mãe como o teu pai foram frágeis e vulneráveis quando eram
crianças. Imagina essas crianças que fomos, enquanto expiras o ar, sorris com
compreensão e amor, abraçando aquelas crianças que a tua mãe e o teu pai foram.
Eles também precisavam de alguém que lhes desse amizade e carinho como estamos
a dar-te. A eles também era negado o pedido de ir dormir com os amigos nos fins-
de-semana.
Porque faço isto, meu filho? Simplesmente para te fazer compreender uma coisa
importante na vida. A tua raiva ou o teu desespero faz os outros sofrer e quando os
outros sofrem tu sofres também. Podemos aliviar a raiva ou o ódio que temos para
com os outros, simplesmente, abraçando os nossos sentimentos de raiva ou de ódio,
reconhecendo a sua presença dentro de nós. Ao respirar fundo, pensando que estás
com raiva e oferecendo-lhe um sorriso, acaba por acalmar a própria raiva, a própria
dor.
Vamos fazer mais um exercício, filho. Depois vais brincar à vontade. Diz para ti
mesmo:
• Vejo a minha mãe em mim – inspirando fundo e prolongadamente;
• Estou a enviar um sorriso à minha mãe em mim – expirando devagarinho;
• Vejo o meu pai em mim – inspirando fundo e prolongadamente;
• Estou a enviar um sorriso ao meu pai em mim – expirando devagarinho;
• Compreendo a vulnerabilidade e a fragilidade da minha mãe e do meu pai em
mim – inspirando fundo;
• Vou trabalhar para libertá-los e aceitá-los – expirando devagar todo o ar dos
teus pulmões.
Vai brincar à vontade, filho. Qualquer problema que surja na vida pode ser resolvido
da mesma maneira, isto é, concentrando-te na tua própria respiração, aceitando o
problema, abraçando-o e sorrindo para ele. Lembra-te sempre que te amo, filho. O
teu pai também! Sei que és uma pessoa forte e sei que vais conseguir fazer isto.
Cuidando das coisas dos outros, estás a cuidar também das tuas coisas. Tu vais ser
um grande homem neste país. Por isso, respeitar, respeitar e respeitar os outros e as
suas coisas são palavras de ordem nesta casa – completou a mãe.
Ela tinha boas intenções. A nossa maneira de estar e de ver o mundo é, em grande
parte, instilada em nós pelos nossos pais, pelos nossos avôs, vizinhos, padres e
pastores da freguesia, professores e amigos durante o tempo da meninice. Os
carinhos recebidos do meio em que crescemos imprimem em nós o selo ou marca
do que nós desejamos ser um dia. Esta forma de educar através do carinho ou
estímulo, que podemos definir como unidade de reconhecimento, pode ser tanto
e justo no coração do filho ao lembrá-lo que, apesar da sua raiva, apesar do mal que
fez, ele é uma pessoa inteligente, forte e capaz de superar muitas dificuldades na
vida. Este tipo de carinho é diferente do de uma outra mãe que dá ao filho uma
bofetada dizendo que ele não é capaz de nada neste mundo.
O afecto e o carinho penetram o nosso ser de uma maneira extraordinária,
marcando-nos de forma profunda para toda a vida. Basta ver, para repetir, o que a
minha mãe imprimiu em mim quando disse que ia ser um grande homem neste país.
Não me considero grande, mas penso que sou útil para muitas coisas. Se uma mãe
ou um pai for capaz de fazer um discurso ou melhor, dizer uma coisa desta natureza
ao seu filho, o resultado tem de ser bom, a vida toma um caminho de justiça e de
entendimento. A linguagem da mãe advém do amor incondicional que ela nutre pelo
filho, da compreensão que mostra para com ele. A compreensão pelo facto de que
ela e o filho são unos e de que a felicidade e bem-estar não são fenómenos
individuais. Vendo o filho sentir-se feliz também traz felicidade à mãe – concluiu
Renato pedagogicamente.
– Então é por isso que se diz que colhemos o que semeamos. Gostaria de ter uma
mãe deste calibre. Se te compreendo bem, a semente da felicidade encontra-se no
fundo da nossa subconsciência. Se criarmos condições propícias para fazer brotar
essa semente, alcançaremos a felicidade. Não apenas isto. O discurso de amor pode
salvar-nos do mal, o saber escutar salva-nos de preocupações negativas e nocivas à
nossa saúde. Se temos suficientes sementes de paz, de compaixão e de entendimento
no nosso inconsciente, precisamos apenas chamá-lo à superfície para nos acudir –
interceptou Fátima.
– É mesmo assim, querida amiga. Temos de relembrar a nós mesmos que há muitas
maneiras de borrifar estas sementes. É preciso primeiro entender isto, fazer uma
introspecção. Há tanta coisa, há tantas sementes não físicas, mas ao mesmo tempo
sensíveis e concebíveis dentro de nós, como o amor e a raiva. Quando a minha mãe
me disse que ia ser um grande homem neste país, meteu dentro de mim algo
importante que imediatamente foi ter ao meu subconsciente em forma de carimbo
ou guião. Essa semente transformou-se em energia orgânica em potencial, isto é,
uma entidade materializável / física, um fenómeno biológico capaz de ser
transformado numa outra entidade orgânica como a materialização da semente no
mundo físico através do facto de me tornar, efectivamente, um grande homem neste
país. O que é preciso é ser inteligente, saber que existe a tal semente dentro de nós,
não ter medo do futuro e ter a vontade suficiente para superar as dificuldades e as
pedras no caminho.
Com este carinho positivo e incondicional que a minha mãe me deu, a semente ficou
plantada no meu íntimo, dando-me um sentido de propósito neste mundo. Sendo
uma mãe conselheira, educadora, animadora, protectora e com o poder de imprimir
em mim normas éticas, ela conseguiu transformar a criança que há dentro de mim,
numa vencedora que acredita no destino que cada um tem na terra. Equivale ao
desejo da minha mãe o facto de dizer que vou ser um grande homem neste país.
Tudo isto me transformou numa pessoa que se sente forte, inteligente, capaz de se
modificar a si mesmo, capaz de amar a todos e que gosta de ser um grande homem
e servir este país que é de todos nós. Toda a sua influência sobre mim, ressurge
agora, da criança que existe em mim, em forma de sonhos, de projectos de
reconstrução da Mãe terra e de luta a travar, para fazer destes sonhos realidade. Os
sonhos precisam de persistência, coragem e pertinácia para serem realizados.
Portanto, Fátima, temos um potencial intelectual represado ou reprimido sob os
destroços das nossas dificuldades, das nossas doenças psíquicas, das nossas perdas
e das nossas preocupações do dia-a-dia. Felizes são os capazes de se libertarem
desses destroços nocivos, dessas sombras malévolas, desse mal que entulha o
melhor que existe em nós.
– Renato, estou a sentir-me cada vez mais próximo do teu ideal – disse Fátima –
olhando para ele com comoção. Sei que és capaz de tudo isto e mais – continuou. A
história ensina-nos que muitos dos que sobem alguns degraus da escada do sucesso,
depois de pouco tempo de trabalho, tornam-se inacessíveis. Mas acho que a tua mãe
te treinou bem para ser acessível. Na época em que vivemos, podemos contar pelos
dedos os que são acessíveis. Os outros, em quantidade tremenda, têm sucesso à sua
agenda. Para estes, quanto mais for a índice de popularidade, maior é a arrogância
e o distanciamento do povo humilde. Este torna-se aos olhos daqueles, mais um
número de identidade para colocar votos nas urnas, mais um trampolim para eles
chegarem ainda mais alto, mais uma conta bancária, mais um consumidor dos
serviços públicos, uns chatos a perturbar a ordem pública e nunca um ser humano
ímpar, inigualável, com dignidade, com direitos e deveres como eles. O
distanciamento cria problemas comunicacionais, cria arrogância e prepotência. O
nosso país não avança com este tipo de pessoas que sabem tudo e nada têm a
aprender com os outros.
Antes de abraçarmos uma visão do tamanho dos nossos sonhos, penso também, que
será útil, contribuir para instalar no nosso país uma psicologia preventiva no campo
da criminalidade, porque num mundo onde a discriminação, o terrorismo e a
criminalidade se espalham como fogo na palha seca e a vida vale tão pouco, como
se nota na nossa sociedade, inserir uma psicologia preventiva no nosso meio é
brindar à vida, é glorificar o homem cabo-verdiano, é salvar a sociedade e contribuir
também para salvar a humanidade. Precisamos, por exemplo, de uma política capaz
de pôr termo ao estado de terror, de medo, de falta de liberdade individual. Isto só é
possível através de um controlo rigoroso onde a tolerância zero é a palavra de ordem
do Estado. A polícia e os militares nas ruas munidos de poderes necessários,
contribuiriam para pôr termo a muitos crimes – acrescentou Fátima.
– Olha que estou a gostar do que tu estás a dizer. Este país precisa de mulheres e
homens capazes de pensar como estás a pensar, isto é, alguém que se coloque dentro
do mundo das pessoas para analisar as suas necessidades, as suas dificuldades na
perspectiva delas e não ao contrário. Pessoas que se treinem em ouvir o que o povo
diz no silêncio do seu mundo, o que as palavras não dizem e a ver, pelo menos um
pouquinho, o que as imagens não revelam. Mulheres e homens que compreendam
as causas e não a reacção exterior, que entendam o que está por detrás de cada
comportamento humano, que sejam tolerantes e conheçam a arte de compreensão.
Estas pessoas devem possuir a capacidade de aceitar as suas próprias limitações,
com a coragem suficiente para não se posicionar como semideuses. Pois quem se
assume como semideus será sempre uma pessoa exclusivista: rápido a julgar e
menosprezar os outros e tardio a respeitá-los. Julga sem ter em mente o sentido de
justiça. Não tendo todas estas classificações apontadas desrespeitam até a sua
própria mãe. Mas a minha mãe preparou-me para enfrentar a vida em situações
péssimas, desfavoráveis e tempestuosas. Aproveitar para fazer germinar a semente
que ela introduziu dentro de mim é uma honra em seu nome. Enquanto eu viver, vou
esforçar-me para alcançar o maior objectivo que tenho: ver esta Pátria de todos nós,
desenvolvida, mudada e os desejos legítimos do Povo respeitados. Isto é, dar a cada
simbrom a sua gota de água.
Fátima não disse nada, mas ficou pensativa. Estava neste momento mergulhada nos
seus pensamentos. Deu uns passos sem pensar onde se encontrava, mas Renato
trouxe-a ao presente, segurando-lhe num braço.
– Muitas vezes, a criança dentro de nós adapta-se a situações vividas numa família.
Tal criança intrínseca encerra ou enclausura proibições não escritas, não faladas no
meio familiar. Contém um contracto não-verbal e não escrito – continua Renato.
Para exemplificar isto, podemos dizer que na família ROBERTO nunca se fala de
relações sexuais, mas descobre-se pouco a pouco que são coisas secretas e
estabelece-se um contracto não-verbal e não escrito entre os membros da família.
Isto é, estabelece-se um contracto secreto de não falar determinadas coisas no meio
familiar. Mas no meio de camaradas já se fala disso. Outro exemplo. O facto de não
ter o direito de chutar a bola em direcção à propriedade dos outros, quando estamos
com raiva, dá-nos a ideia de que uma semelhante acção também é proibida pelas
mesmas razões. Assim, este contracto secreto estabelece-se no meio familiar. Isto
7 http://www.jutdemo.com/miscellaneous.htm
CAPÍTULO XI
No antigo caminho íngreme que dava acesso à Achada de Santantónio nos anos 70,
mesmo na base de um outro Plateau menor, numa bifurcação que dá para Prainha
e Terra Branca, foi erigido o hotel Lapónia, a escassos metros do hotel Crioulândia,
construído com o dinheiro de dois emigrantes cabo-verdianos que trabalharam no
norte da Escandinávia. O estranho foi ter com o chefe das operações secretas para
ver se conseguia ajuda para decifrar a charada.
AbcdefghIjklmnopqrstuvwxyz
– Claro que estamos. Uma cifra é uma escrita secreta encriptada segundo certas
regras. A de atbash, a de César, a baconiana, a de substituição simples, etc. Estamos
perante uma cifra de substituição – clarificou Penumbra.
– Então que tipo de informação podemos tirar deste pedaço de papel? – Insistiu
Sombra.
Estamos no caminho certo. A letra z da charada é a vigésima sexta, isto é, a última
letra do nosso alfabeto. A última letra contando do fim é o A! Portanto, já temos o
Va. A letra seguinte da charada é o N. Esta letra ocupa o décimo quarto lugar e, se
contarmos outra vez do fim para o princípio, teremos o M. Temos mais uma letra
que se junta ao va e fica vam. Em seguida vem a letra L que ocupa o décimo quinto
lugar. Contando alternadamente do princípio para o fim, damos com a letra o, e para
terminar a primeira palavra da cifra temos que procurar a posição em que fica o H.
Estás a ver? Fica no oitavo lugar! Contando de novo do fim para o princípio damos
com o S! Portanto, temos o Vamos como a primeira decifração do enigma – disse o
Penumbra apontando para a palavra acabada de decifrar.
– Então, vamos o quê? – Perguntou o estranho impaciente. – Mas quem é que
cifrou este enigma? – Indagou.
– Calma, isso não interessa. O que interessa, neste momento, é prosseguir a
decifração, o resto vem ao de cima.
– Pois, temos somente o Vamos, o que não nos diz nada – comentou o Penumbra
também muito impaciente.
O Penumbra inclinou sobre o papel com a charada rabiscada. A palavra seguinte é
ou Vornrmzi no nosso alfabeto
– Prosseguimos usando a técnica atbash - esclareceu.
Agora contamos do fim para o princípio. O V corresponde ao E, o O corresponde ao
L, o R ao I, que significa que temos por enquanto eli. A próxima letra é o N e onde
está ela posicionada? O N corresponde ao M! O que nos deu elim. Já tínhamos visto
a letra R antes e é a mesma coisa, isto é, equivale ao I. O M é, como antes, igual ao
N. Temos, portanto, elimin. Já tínhamos substituído a letra Z que corresponde à letra
A. Finalmente, resta-nos a letra I. Ela é a nona letra contando do princípio, o que
corresponde ao R contando do fim. Temos então, eliminar.
– Ah, já começo a entender. Até posso adivinhar o resto – comentou o estranho.
CAPÍTULO XII
As lições de Paín
Renato era tratado por Paín, entre os seus amigos mais íntimos da escola e,
principalmente, pela Marta e pela Fátima. Este trato vem dos tempos do liceu. Com
o decorrer do tempo quase todos os amigos o começaram a tratar por Paín. Alguns
chamavam-no assim como simples sinal de amizade. Outros, apenas para o chatear.
Mesmo os tais chamados Religiosos do Templo da Babilónia (RTB) o chamavam Paín.
Poucos dias antes da sua estranha morte, convidou os seus amigos mais íntimos para
uma pregação especial e uma oração que ele mesmo precisava para se afastar de
pensamentos tenebrosos que lhe assomavam o espírito.
O homem, crente de gema, fazia com que os outros fixassem os olhos nele,
imprimindo nos ouvintes, o sentido da vida e um modo de conseguir alcançar a
felicidade. Dizia, repetidas vezes, que a felicidade não tem segredos e que os
homens infelizes são todos parecidos. Acumulam alguns desgostos durante a vida,
possuem alguns desejos negados, sofrem golpes nos seus orgulhos, sentem que uma
reluzente centelha de amor foi extinta pelo desprezo, pela falta de carícias e pela
indiferença. Agarrados a esses infortúnios vivem envoltos no manto roto dos dias
passados. Mas o homem feliz não olha para os dias passados e nem tão pouco olha
para frente. Ele vive no presente. No entanto, isto atira-o para a dificuldade, para os
problemas do mundo, por que há qualquer coisa que o presente não lhe pode dar:
o sentido da vida. Pois, o caminho das dificuldades e do sentido da vida, não são
iguais. O homem feliz precisa apenas de viver no momento, isto é, para o momento.
Para que ele possa compreender o sentido, o significado dos seus sonhos, dos seus
segredos, da sua vida, ele precisa de reabitar o seu passado e viver para o futuro. O
passado pode ser sombrio e o futuro muito incerto, mas importantíssimo para os
que procuram um sentido ou propósito na vida. Renato dizia-nos sempre que “assim
a natureza exibe a felicidade e sentido e insiste sempre que escolhamos o caminho”,
que imprimamos sempre um sentido humano em todos os nossos actos. A nossa
escolha é decisiva na vida. Ele, Renato, escolheu o sentido, isto é, o sentido da vida.
Por isso, ele se encontrava ali, naquela Igreja, de pé, frente aos da mesma fé,
confiante no que tinha a dizer e sabia o que o levava até ao local do convívio
fraternal.
Depois de fazer a sua meditação, agradeceu a todos pela presença amiga, penetrou
um olhar na audiência e disse:
Hoje, meus caros amigos, vamos falar sobre o diálogo inter-religioso. Semelhanças entre
religiões e possibilidades de coexistência pacífica. Parto do princípio de que todos os
presentes seguem o princípio da tolerância, respeitando os que pensam de maneira
diferente e os que não confessam a mesma doutrina que nós.
A tão chamada civilização branca tem, durante séculos, tomado uma posição de
destaque na sociedade mundial. Para ser mais claro: o ocidente branco atingiu um nível
Não te vingarás nem guardarás ira contra os filhos do teu povo; mas amarás o teu
próximo como a ti mesmo.8
Esta é a essência da visão humana que herdamos do nosso passado. Se toda a gente
procedesse desta maneira não haveria problemas de homicídios, de inveja, de ódio e de
terror que arrasam o nosso mundo. Não haveria perseguição religiosa nem política.
Todavia, nada é mais difícil neste mundo do que precisamente isto, algo que parece
inconciliável com a natureza humana. Mesmo assim, vale a pena tentar! O texto
encontra-se em todas as três religiões abraâmicas, isto é, no judaísmo, no cristianismo e
no islão. O hinduísmo e o budismo formulam normas semelhantes ao que se encontra no
livro de Moisés. Portanto, as cinco maiores religiões, apesar das diferenças que se
acentuam nos meios de comunicação de massas, apresentam similitudes que vão, lado a
lado, defendendo o amor ao próximo como uma tradição humanista e universal.9
Esta é a mensagem que vos queria transmitir para ampliar um pouco o panorama da
nossa alma quanto à tolerância e ao respeito para com os outros. Ao respeitar os direitos
e a liberdade dos outros, estamos também a respeitar a nós mesmos.
E assim terminou a última mensagem de Renato Cardoso. Acrescento aqui o que o Papa
João Paulo II deu na sua encíclica sobre o convívio fraterno, uma semelhante lição de
vida, que veio completar a do Renato: 10
Variados são os recursos que o homem possui para progredir no conhecimento da verdade,
tornando assim cada vez mais humana a sua existência. De entre eles sobressai a filosofia,
cujo contributo específico é colocar a questão do sentido da vida e esboçar a resposta:
constitui, pois, uma das tarefas mais nobres da humanidade. O termo filosofia significa,
segundo a etimologia grega, «amor à sabedoria». Efectivamente a filosofia nasceu e
começou a desenvolver-se quando o homem principiou a interrogar-se sobre o porquê das
coisas e o seu fim. Ela demonstra, de diferentes modos e formas, que o desejo da verdade
pertence à própria natureza do homem. Interrogar-se sobre o porquê das coisas é uma
propriedade natural da sua razão, embora as respostas, que esta aos poucos vai dando, se
integrem num horizonte que evidencia a complementaridade das diferentes culturas onde
o homem vive.
8 Bíblia Sagrada
9 Jo Benkow, Det ellevte bud, Gyldendal Norsk Forlag – Oslo, 1994
10 Carta encíclica, Fides et Ratio – do sumo pontífice – João Paulo II – aos bispos da Igreja Católica –
CAPÍTULO XIII
– Estamos a ouvir-te com interesse – cortou Marta, ficando com os olhos fixos nos
de Renato.
– O assunto em apreço, atormentou-me a mente quando, muitos anos atrás, visitei
a Cidade Velha, na ilha de Santiago. Foi no mês de Julho e as ruínas da cidade
pareciam uma casa de formigas. Centenas de turistas conglomeravam a ruína
através do portão imenso, aberto ao mar, aos céus e a tudo o que existe, com olhares
penetrantes, engolindo secamente os ecos do passado. Multidões de gente
rodeavam as paredes da ruína num silêncio sepulcral. Japoneses, americanos,
franceses, italianos, alemães e cabo-verdianos fotografavam, febrilmente, para
levar consigo um pedaço da história, um pedaço de cabo-verdianidade, uma nesga
da obra feita pelas mãos dos nossos antecessores. - Disse Renato.
– Todos os que hoje visitam a Catedral experimentam algo especial e sem limite,
algo extraordinário, algo que ultrapassa o entendimento humano – comentou
Djonzinho.
Renato sorriu, levantando a cara, leu a expressão que banhava a face do Djonzinho
e, depois de alguns segundos, disse:
– Sabemos que a Cidade Velha nasceu e desenvolveu-se por conta do tráfico
negreiro, tendo sido a primeira capital de Cabo Verde até 1770, quando esta função,
mais tarde, foi transferida para a Praia de Santa Maria – actualmente Cidade da
Praia. O que não se sabe é como se parecia a catedral na sua forma original.
Desconhece-se quantas torres formavam a sua cúpula. Quantas janelas enfeitavam
a sua fachada. Possivelmente, quem sabe, haveria uma torre alta que simbolizava
11 Derivada da palavra amorável, na Ilha Brava, morabi, uma maneira especial de ser cabo-verdiano.
Além do mais, a observação do Aquiles, o seu modo de ser, a pose e as suas palavras,
permitiam-lhe lê-lo melhor. Configurá-lo no espaço que cercava o grupo de amigos
que vivia na sombra de Renato, um indivíduo carismático, amante da liberdade, da
igualdade entre os homens e que, além disso, era muito simples.
Aquiles era conhecido por todos como o amigo da onça. Não tinha papas na língua,
não guardava segredo e estava sempre pronto a condenar qualquer amigo que
pensasse de forma divergente. Ele desafiava qualquer argumento que se opusesse
à obediência cega aos princípios do partido único como luz e guia do povo. A palavra
obediência fere os meus sentidos, soa como uma ofensa, um insulto à dignidade
humana quando ligada a qualquer partido político, ou mesmo a qualquer religião,
uma característica da escravidão, do servilismo e da opressão. A obediência neste
sentido, é um veículo da opressão e serve para dominar os outros. Os grandes dizem
que a obediência é uma virtude, mas fora do contexto, soa ao contrário. Para que
parecesse verdade no contexto político de então, Djonzinho teria de abolir a sua
razão, a sua vontade humana e fazer o que os outros lhe dissessem para fazer.
Isto levá-lo-ia a perder ou a vender a sua alma, a sua capacidade de pensar como um
ser humano, e transformá-lo-ia em animal doméstico que vive atrás duma parede
com medo de desobedecer os seus donos.
Quando aquele homem falava, dava a impressão de ser o detentor da verdade e
acabava sempre os seus discursos com aplausos. Ele era o primeiro a aplaudir-se e
os outros seguiam-no com um sentido de dever. Aplausos, são provas de lealdade
para com o poder estabelecido ou para com aquele que o representa. Para Aquiles,
significava o mesmo que patriotismo. Se as mãos de alguém aplaudissem
frouxamente ou, por descuido, deixassem de o fazer, essa pessoa seria de imediato
vista com suspeita. O seu nome não tardaria a aparecer na lista das pessoas não
desejadas no Ministério do Interior. Aquele que não chora a perda do seu líder,
acaba por ser persona non grata, pessoa não desejada, num país ou numa
sociedade, que se diz de crentes de razão pura, uma vez que, os seus
comportamentos passam a ser observados cuidadosamente e, mais cedo ou mais
tarde, vê-se o resultado de tal observação, isto é, o preço de não chorar. Choros e
aplausos são, nestas circunstâncias, sinónimos, são provas de lealdade, de
patriotismo, de obediência e de afiliação ao sistema estabelecido.
Enervado com a presença que a olho nu, parecia amigável, Djonzinho percebeu que
estava a proceder de modo pouco correcto, assim, endireitou-se e segurou as rédeas
das suas emoções.
CAPÍTULO XIV
Escapadela
a fonte inspiradora dos seus segredos. Os últimos raios do sol daquela tarde
poisavam-lhe na fronte como um diadema da verdadeira corte real. Pegou no balde
do jardineiro e começou a regar as plantas ao redor da casa, enquanto no beirado
da casa, uma avezinha no seu ninho temerário, chilreava a sua última canção da
tarde. Com este panorama vespertino, de tamanha paz, parecia que Deus imobilizara
todas as almas vivas, com excepção de Nqunta, da avezinha no beiral e das galinhas
na capoeira.
Naquele instante, Nqunta contemplava serenamente três mundos diferentes,
reflectindo sobre cada um deles: um embebido em preguiça, do qual fazem parte o
patrão e seus companheiros, outro no qual vivem cantando os pássaros que
ocupavam os beirais das casas e outro que se desenrola perante os seus próprios
olhos, situado no interstício entre a preguiça e o cantar da avezinha. Este terceiro
mundo, é um mundo calado, solitário, injusto, como o mundo da vegetação ou pior.
No entanto, o estado vegetativo é, em si mesmo, uma forma de vida sem a qual esta
se extinguiria. Portanto, sem nós como força motora, impulsionadores da acção
neste terceiro mundo, os preguiçosos que nele habitam não conseguiriam sobreviver
– pensou Nqunta.
Nqunta deteve-se por instantes no raciocínio de que, na esteira da luxúria, no meio
do campo luxuriante, se encontra a senzala nua e desmoronada, isto é, desfeita em
ruínas. Sob os tectos da senzala há um mundo que vegeta como uma planta. Um
mundo de escravos que têm paixões, sensibilidades, amor, enfermidade, agonia e
morte. Um mundo que não conhece uma pátria ou mátria, um noivado, um lar, um
direito e nem olhos chorosos sobre o túmulo.
Esse homem que assumiu a posição de capitão de escravos, vive no reino silencioso
dos vegetais, onde são precisos os efeitos prismáticos da luz sobre a terra e a
presença da água como única forma para se manterem vivos. Ele sabe e tem a
perfeita consciência de que o ser humano precisa mais do que esses elementos. Ele
precisa de amor, como elemento unificador e como ponte que liga os escravos aos
senhores, embora isso seja algo inexequível no mundo em que vive. Por isso, também
sabe, que a multidão cativa, os escravos, trazem na pele e no fundo da alma, um luto
inviolável, um manto imóvel de um povo que, pela origem comum, pelo comum
destino, deve lutar, incansavelmente, pela sua liberdade. E sabe, além disso, que é
preciso uma emoção fraterna, um olhar de ternura, mas sobretudo coragem para
vencer os obstáculos que a vida impõe.
O indivíduo humano precisa, entre outras coisas, de satisfazer as necessidades
primárias do seu corpo, de filosofar sobre as necessidades primárias do seu espírito.
Depois de satisfazer estas necessidades, procura satisfazer as secundárias, como
Era a voz maviosa de Nqunta que tinha os olhos arregalados onde reluzia o medo.
Uma mão invisível tocou-me no ombro e disse algo baixinho ao meu ouvido, algo que
me transportou no tempo, aquele tempo da cegueira humana.
Nesta visão retrospectiva recuo no tempo e experimento a dor, a febre, a disenteria,
o medo, a adrenalina no sangue, a dificuldade na respiração com os pulmões
danificados, a transpiração na fuga ou no trabalho forçado, os protestos calados e
os olhares frios dos senhores. Sinto um fogo dentro de mim e digo para mim mesmo:
meu Deus, há um incêndio dentro de mim. E a mão sobre o ombro, que
pacientemente me afaga diz:
– Vamos fugir para longe. Nesta mesma madrugada vamos sair daqui. Vamos
avisar Bafuá, Bafu, Memenga, Safeya, Babour, Lulua e Quintana e todas as crianças
– diz a voz.
O que há de especial nessa voz? Quem é essa pessoa com a mão sobre os meus
ombros?
Além da dor que sinto, oiço também alguém, constantemente, a dizer algumas
palavras amigas aos meus ouvidos, como se fosse um eco do passado. Um eco que
repete: a partir de amanhã somos livres! Acreditem em mim. Tenho um plano para
a fuga – era o eco do pensamento de Nqunta.
O senhor Corte Real estava sentado na varanda a beber cerveja. Não era pessoa para
brincar. Chicoteava todos os que estavam debaixo do seu comando num pestanejar
de olhos! Neste preciso momento, dormia já pesadamente. Tinha os ouvidos afiados
e ouvia mais do que os ratos do deserto, mas a acção do álcool contaminara-lhe os
sentidos, anestesiara-lhe a mente e ensurdecera-lhe os ouvidos.
Um pouco mais afastada da varanda, perguntou uma voz:
– Que data é amanhã?
Badour, Safeya, Bafuá, Lulua e Quintana eram quem delas tomava conta. As outras
centenas de escravos andavam nos seus afazeres e outras dezenas dormiam sem
saber o destino que o amanhã lhes trazia.
Renato, mais tarde, numa das tertúlias de café de que me lembro com muita nitidez,
continuou a dar-nos uma grande lição da história da nossa terra e do nosso povo.
Tinha uma visão muito clara sobre a formação da nossa língua, dos nossos costumes
e tradições, da miscigenação de raças, da cultura, da nossa revolta contra o poderio
e do processo da primeira liberdade que nos conduziu até onde hoje estamos. Ele
contava com desembaraço e detalhes como as coisas, possivelmente, aconteceram
num passado bastante longínquo.
Assim, disse imediatamente que voltaríamos ao ponto onde ficámos e continuou a
explicar o processo da fuga:
– Era já bastante tarde quando Nqunta preparava uma tigela de feijão e toucinho
para a viagem. Tivera de utilizar tomates de conserva e pimentas verdes que já
estavam a crescer na ladeira ao lado da casa. Preparou as marmitas e ficou a pensar
na trajectória incerta. Saiu para a capoeira no intento de matar uma galinha para
assar. Logo à entrada, encontrou um frango morto e desfez-se dele, pendurando-o
nos ramos de uma árvore de cabeça para baixo. Começara a chuviscar quando um
outro frango estava pronto a ser posto na marmita e o cheiro do assado era de fazer
nascer água na boca. O vento soprava levemente, durante a madrugada. Com o mar
a sudoeste, as nuvens foram sendo arrastadas pela frescura da alvorada, ficando
cada vez mais baixas, até encherem as ribeiras e o topo das colinas. A seguir, caíram
gotas grossas como uvas. Nqunta saiu para o curral e, de pé numa manjedoura, ficou
a escutar com alegria a chuva a rufar no telhado de Lusalite, telhas de fibrocimento
ou de amianto. Com o primeiro cantar de galos, a comitiva começou a chegar
conforme combinado. A chuva dificultava um pouco, mas o ambiente de fuga
tornara-se mais propício. Ela tornou-se mais cerrada e oblíqua pela acção do vento
fresco que soprava do oceano. O cheiro a terra molhada inebriava a comitiva. Ainda
assim, os planos estavam firmes e em vias de serem implementados.
A chuva abrandou antes de amanhecer, mas de cada um dos pequenos vales e de
cada prega das colinas, podiam ouvir-se os chiados de uma corrente de água que ia
juntar-se ao mar arrastando troncos, arbustos, batatas, mandiocas e raminhos
levados pela corrente. A comitiva receara que a chuva parasse antes de partir e
apressou-se em direcção à cocheira e ao curral. A chuva havia de apagar as pegadas
dos animais e seria, por isso, mais uma razão convincente e conveniente para se
apressarem. As trouxas foram arremessadas para cima dos animais em poucos
minutos. Da porta do celeiro, o Nqunta viu o ajuntamento e aproximou-se. Colocou
Todos estavam em silêncio até que de uma mula escapou um peido ruidoso, isto é,
uma ventosidade sonora expelida pelo ânus. Só então se via o sorriso no canto da
boca de todos, menos na do Nqunta que fitava a grossa nuvem negra que ia
invadindo o céu e, subitamente, atingiu e cobriu o Sol. A nuvem era tão espessa e
poderosa que o dia se transformou em crepúsculo. De repente, as colinas irradiaram
umas luzes metálicas, umas setas prateadas de uns relâmpagos desprenderam-se
das nuvens espessas, seguidos de uns ribombos de trovões, rolando sobre os topos
das colinas. Depois todos correram para fixar os arreios e seguiram montados nas
suas alimárias. O ar tremia com o embate dos trovões e, em poucos minutos, o céu
tornou-se claro de novo. Retomaram o caminho da liberdade.
Djonzinho escutava o homem com muita atenção e respeito. Sentia-se transportado
no tempo e identificava-se com todos da comitiva de Nqunta… Aquele dia não
amanheceu como todos os outros dias.
Caro amigo, não se deve temer em andar por terrenos desconhecidos e pedregosos,
respirar novos ares nunca antes respirados, pois, quem fica preso numa cápsula com
medo dos acidentes da vida, acaba por se frustrar e morrer aos poucos. Dedico esta
tertúlia de amigos ao povo cabo-verdiano: o Corte Real, como general, andara às
apalpadelas, marchando como se estivesse à frente de um exército numeroso de
gafanhotos, incontável como o pó da terra, à procura dos filhos de Nqunta, de Bafu,
da Memenga, de Badour, da Safeya, de Bafuá, da Lulua e de Quintana que andavam
na orla da ilha sem saber por onde ir. Era capaz de despedaçar todos os que lhe
resistissem e foi até os confins dos Órgãos, capaz também de devastar suas
plantações e levar todos os jovens ao fio da espada, fazendo cair o temor e a
inquietação sobre os habitantes do interior da ilha, que se prostraram diante dele,
sendo humilhados.
Devastou santuários e lugares sagrados.
Depois de três dias e três noites sem encontrar os escravos regressou à casa com as
mãos vazias. Dois dias depois, foi encontrado morto com um buraco no peito,
possivelmente, abatido pelas mãos do seu chefe – terminou Renato num tom
desolado.
CAPÍTULO XV
da vida. Quem sonha melhorar este país, este mundo, quem almeja atingir uma
meta, não deve esperar muito dos outros – disse Judith.
– Não conto com muita gente neste momento. Acho que tens muita razão. Não
espero muito dos outros, apesar de tudo. Sou amigo dos que argumentam contra os
meus argumentos, mas os argumentos passam, primeiro, pelo filtro da minha razão
crítica, pelo senso comum que os meus antecessores imprimiram em mim, antes de
me atingir o fundo da alma. Sinto-me neste momento, apesar de tudo, mais forte e
com coragem para ultrapassar a mesquinhez de muitos amigos. Esta coragem é o
combustível que mantém acesa a chama dos meus sonhos. Recentemente, não
aceitei um contracto de milhões de dólares para trabalhar fora do país porque não
reflecte quem sou. Refutei a oferta para dar o meu contributo a este povo que tanto
amo. Se perco a vida nesta travessia, neste caminho espinhoso, espero que este povo
venha um dia a reconhecer o meu trabalho. Não quero o sucesso pelo sucesso, no
meu projecto. Não. Não sou um político dominado pela coroa da vaidade, da
arrogância e do poder. São indignos do poder os que o amam cegamente. Não
pretendo ter grande sucesso para estar acima dos outros, isso é um insano e injusto.
– Tens uma ambição muito legítima, Paín. O que pretendes é ajudar o teu povo.
Ajudar o ser humano. Ajudar os cabo-verdianos a saírem da escuridão, do vale da
miséria física e emocional onde se encontram. Os teus sonhos são legítimos, Paín.
Sonhar com o dia em que todos serão tratados com dignidade humana sem ter em
conta a cor da sua consciência política, é um acto belo, digno e nobre.
– Sabes uma coisa, Judith? Sou conselheiro a nível governamental, mas o que sinto
neste momento, é que estou a ser aconselhado a não dar muitos conselhos. Quer
dizer, eu devia conformar-me com o status quo, com os meus fracassos, mudar-me
da nossa pequena cidade, emigrar para longe, isto é, aceitar o convite que me foi
feito e deixar o emprego ou psicoadaptar-me ao estado das coisas. Isto não é justo
nem admissível. Esta terra é nossa como a Lua pertence a todos. Sinto-me, também,
muito feliz em ter alguém que partilhe comigo o que sinto no fundo da alma. Preciso
desesperadamente que alguém me escute amigavelmente, isto é, partilhando
comigo o fardo que trago dentro de mim. Nós não somos aqueles rebanhos que
obedecem a um só pastor, queremos ser rebanhos com ideias e opiniões próprias
porque as ideias e as opiniões do pastor podem esgotar-se, podem tornar-se
obsoletas e vazias de conteúdo. O mal deste país não é ter muitos sonhadores, mas
sim, muitos pensadores que neutralizam ou espezinham os nossos pensamentos,
espezinhando os sonhos dos cidadãos. Temos bons sonhadores e pensadores, só que
dentre eles, há os que gritam mais alto porque têm do seu lado a faca para cortar o
queijo. Têm a foice empenada contra a garganta do povo. Não respeitam um pensar
diferente, nem sonhos que ultrapassam os deles. Isto é muito mau. É desrespeitar os
O grande mal deste país, é não estar em sintonia com os direitos e deveres dos
outros. No momento em que, a justiça e a vingança mexem com as emoções das
pessoas, devemos fazer um esforço enorme para não confundir as duas coisas. A
justiça, é um valor universal como a dignidade, a liberdade, a democracia e a
solidariedade, o fundamento sobre o qual a nossa civilização se encontra edificada.
A justiça está em deficit na nossa querida terra. Há uma desigualdade no acesso à
justiça, há uma grande morosidade na implementação da mesma e não há
independência dos tribunais. Eu defendo a igualdade para todos no acesso à justiça.
Ao falar sobre direito e igualdade, sob igual consideração, é preciso ter honestidade
intelectual para reconhecer que há um grande deficit entre nós. Quando os cidadãos
cabo-verdianos buscam o serviço público de justiça ou outros serviços, nem todos
são tratados com igual consideração. Precisamos de um sistema judiciário célere,
efectivo e justo. Isto é um problema com tendência a tornar-se crónico no meio de
nós. De nada valem os discursos sumptuosos, sofisticados sistemas de comunicação
e de informação se, naquilo que é essencial, a justiça falha. Precisamos de reforçar a
independência do juiz, afastá-lo desde o ingresso na carreira, das nocivas influências
que podem arruinar-lhe o discernimento e a alta integridade moral. Estas más
influências podem manifestar-se tanto a partir da própria hierarquia interna a que o
jovem juiz se vê submetido, como também, através dos laços políticos que
contribuem para o fazer ascender no exercício da função e da profissão. Quando os
funcionários e os magistrados da justiça procuram ascensão por meio de
aproximação ao poder político, exalam, ao mesmo tempo, o cheiro de corrupção no
seu seio dos magistrados.12
Como sabes, a Justiça tem fundamentos vinculados a direitos. Ela tem normas e
rituais. Quando ela está em acção, defronta o princípio do contraditório e da
legalidade, da culpabilidade, da humanidade, dentre outros, que devem ser
respeitados. Num país que se autodenomina democrático, estas normas de justiça,
estes rituais e fundamentos, devem exprimir a vontade e as escolhas da sociedade.
12 Advogado Amadeu Oliveira na sua viagem aos Estados Unidos e numa entrevista no dia do
julgamento que foi adiado, 2019.
Caso contrário, não podemos falar em democracia. Portanto, a Justiça é uma norma.
Ela visa o bem mesmo quando se manifesta em forma de castigo.
– E a vingança?
– Bem a vingança, aponta o mal em todas as sociedades. Visa o mal mesmo quando
se utiliza o sistema judiciário para o fazer. O vingativo fundamenta a sua
argumentação com a tão célebre frase: aqui se faz aqui se paga ou justifica os seus
actos com a lógica de olho por olho, dente por dente, nutrida por impulsos de ódio,
de inveja, de rancor e de dor provocada por um dano que se julga injusto. Portanto,
a vingança envenena a nossa alma, danifica a nossa personalidade, espalha o ódio
nas sociedades e cria um círculo vicioso. Ela é, simplesmente, uma retaliação com
objectivos destrutivos e que reflecte um raciocínio primitivo daquilo que é justo.
– Achas, então, que a vingança e justiça podem significar a mesma coisa quando
nos deixamos levar pela emoção? – Perguntou Judith.
– Não, de modo algum. Quando estamos no ápice das nossas emoções, muitas
vezes, acreditamos que são a mesma coisa. A vingança esgota-se facilmente e nunca
é inteiramente satisfeita. O homem sente um prazer momentâneo que desaparece
logo após o acerto de contas. Ela semeia ou incita a outras vinganças que, por sua
vez, resultam na exclusão de personas non gratas.
– Achas que estás a ser tratado injustamente?
– Bem, é uma questão complicada e, sobretudo, uma questão de interpretação.
Penso que estou a ser marginalizado e isto, por si só, é uma injustiça. Há, de facto,
pessoas munidas de cargos públicos capazes de usar a sua influência e autoridade,
para desfavorecer directa e indirectamente interesses particulares divergentes dos
seus. Isto pode findar em vinganças.
Já se fazia tarde. Renato reparou que não havia fregueses no restaurante e fez um
sinal ao empregado, pedindo-lhe a conta. Seguiram-se uns minutos sem que
nenhum dos dois dissesse uma palavra. Um indivíduo de estatura alta e forte que
estava sentado na mesa vizinha a ler o jornal da semana, também pagou a conta e
saiu logo em seguida, seguindo em direcção à porta de saída.
CAPÍTULO XVI
organismo. O homem, segundo consta, tinha uma inclinação especial para a pinga.
Adquirira esse hábito durante os tempos turbulentos da vida. Parou e raciocinou um
pouco. Lançou um olhar ao outro lado da ladeira e reconheceu que não lhe restava
qualquer alternativa, pois sabia que o seu chefe não abandonaria o caso tendo já
chegado àquele ponto, não havia volta a dar.
Deu mais uma olhadela para as bandas de Lem-Ferreira e voltou pelo mesmo
caminho até encontrar um táxi. Restaurante o Poeta – disse ele ao taxista.
Frente à situação que o esperava em Quebra-Canela, dominando o desejo de
eliminar o sorriso do interlocutor com um murro na cara ou com uma bala mortífera,
respondeu à pergunta que lhe foi colocada pela própria consciência: O que faço
aqui? A pergunta surgia-lhe várias vezes! O que estou a fazer aqui?! De regresso ao
hotel onde se hospedara, retirou o papel do interior das calças e estudou de novo
os códigos. Entrou de novo em pânico. Sentou-se na poltrona. O corpo não se
moveu. Conservava-se sentado, um pouco inclinado para a frente, com um copo de
whisky entre as mãos. Fixou os olhos na janela. Julgou detectar um som dentro de
si. Estaria mais alguém naquele quarto? Alguém que ele não queria ver e que o
esperava noutro lugar? Sentiu a intensidade das pulsações cardíacas a aumentar e
esforçou-se por repelir o nervosismo e as suposições crescentes que ameaçavam
converter-se em histerismo, algo de transcendente o rodeava naquele momento.
Desejava gritar a plenos pulmões até que alguém o sacudisse com brandura, dizendo
que tivera um pesadelo. Levantou-se e espreitou as outras divisões do seu quarto
de hotel, mas nada encontrou. Certificou-se, de novo, de que não havia ali ninguém
para o perturbar. Encontrava-se ali sozinho, ninguém lhe preparava uma emboscada
nem estava prestes a ser atacado.
Por fim, sentou-se e quase que ia caindo no sono, mas o relógio biológico tocou
depois de alguns minutos. Deu um salto, saiu da poltrona e foi ao quarto de banho.
CAPÍTULO XVII
Um projecto diferente
Renato Cardoso era um homem de ideias inusitadas. Viveu a maior parte da sua vida
na escassez da água potável. Tinha dezenas de planos para Cabo Verde. Eram planos
para desenvolver o país e tinham que primeiro passar pelo crivo político. Aquele
desejo inato de pensar por si próprio era, muitas vezes, esmagado por quem detinha
o poder nas mãos, usando a força. Podemos dizer que, quando isto acontece, é como
se nos apertassem os miolos com uma corda grossa, como fazem quando enfaixam
os pés dentro dos sapatinhos, como faziam na China às meninas pequenas,
metendo-lhes os pés à força dentro duns sapatos minúsculos, para os impedir de
crescer. Mas como conselheiro, Renato sentia-se um pouco mais receptivo pelo
poder e, também, confiante para apresentar as suas propostas. Era, portanto,
preciso passá-las pelo filtro da censura e do poder. Num encontro com a Fátima,
explicou demoradamente um dos seus planos para o futuro próximo, sendo
interrompido na sua descrição de um projecto da seguinte maneira:
– Estás maluco! – Exclamou Fátima e continuou – Isto custa quase 10 vezes mais
o orçamento do país. Isto é, portanto, uma loucura tua. Nem penses aventar ou
divulgar esta ideia, porque as pessoas hão de pensar que és maluco!
– Bem, acho que não se trata de loucura. As pessoas estão com medo de pensar
em coisas novas.
Fátima cravou-lhe um olhar de quem insinua a demência de um homem que até o
momento era, pela amiga, considerado um erudito, um sabedor das coisas da vida.
Renato olhou-a com um ar hesitante e sentiu as palavras da amiga sair do seu eu
inconsciente, cortando a comunicação. Não sentia coragem para contradizê-la com
um contra-argumento convincente, com o receio de ali ficar sozinho a remoer os
pensamentos. Não neste momento, pensou. No do silêncio perturbador, escolheu
cuidadosamente as palavras para se sentir em terra firme e, também, sentir-se bem-
disposto por saber que ia, possivelmente, mudar a opinião da amiga. Endereçando
os seus argumentos ao modo ou estado da razão que analisa as situações e o
conteúdo do diálogo, pondo-os no prato da balança da justiça, antes de fazer
qualquer julgamento ou atirar-se em contra defesa, ele sabia que ia sair vencedor
ou, pelo menos, ficar de acordo com a amiga.
Inclinou-se sobre a mesa, penetrou um olhar amigo nos olhos da Fátima, mantendo-
se quieto. Depois de alguns segundos, replicou:
– Compreendo a tua reacção e hesitação, querida amiga. É melhor desarmarmos
aqui e agora as nossas diferenças quanto a isto, pois conheço bem os teus desejos
de avanço do nosso país. Isto é apenas uma proposta que visa resolver os problemas
da água a longo prazo na ilha que nós amamos. A ilha de Santo Antão é rica em água
de boa qualidade. A de São Vicente também tem muita água, mas não tem água de
boa qualidade. Uma proposta deste calibre, não só serviria para desenvolver a terra,
como também, serviria de exemplo para outros países com semelhantes problemas.
Aliás, há muitas ilhas no mundo com este tipo de problema resolvido da maneira que
proponho. Não é vergonha nenhuma retroceder neste meu caminho. Mas primeiro
temos de fazer uma proposta bem pensada. Se der certo, muito bem, se não der,
paciência – disse ele firmemente.
– Vou ver se me aprofundo mais nisto, caro amigo. Penso que és mais pragmático
do que eu. Deixa-me dormir com este projecto debaixo do travesseiro durante uma
semana – disse Fátima.
– O tempo que queiras. Não tenho pressa. Quanto mais apoio moral tiver, tanto
melhor será quando o momento chegar. Mas não te deixarei em paz quanto ao
assunto em questão. Sabes que quando temos um projecto baseado em ideias
próprias, sentimo-nos felizes e satisfeitos. Por que faço isto? A razão principal desta
felicidade e satisfação é que regamos a semente da felicidade inserta no cerne da
nossa mente ou da nossa subconsciência com o líquido do bem-estar e da satisfação.
Quando esta semente começa a brotar com a ajuda do meio ambiente, a felicidade
torna-se mais palpável, mais real, portanto, maior. Assim, a energia ou a semente
da criação fica iluminada pelo sentimento da felicidade. Aproximamo-nos da
natureza na sua forma mais brilhante – a criação. Se a própria natureza é sinónimo
de criação, também nós, quando criamos algo, estamos a copiar o que é natural nela.
Somos a continuidade das gerações anteriores. Somos a continuidade deste país e
ele precisa de nós como precisam os nossos filhos e nós deles. Nós e este país somos
um, assim como, os nossos filhos e nós somos um. Se estamos a sofrer eles sofrem.
Se eles sofrem, sofremos também. Se inventarmos algo, é para o bem de todos nós.
Se não fizermos nada para melhorar a nossa condição humana ou a do país,
sofreremos as consequências de não termos feito nada. Reconheço que tanto eles,
os nossos filhos, como nós sofreremos os efeitos de inanição, da imobilidade e da
indolência.
– Estou de acordo contigo. Da minha parte vou fazer o melhor que possa –
intrometeu Fátima.
– Acho que devemos apoiar uma causa comum para encontrar soluções para os
grandes problemas que a ilha enfrenta. Podemos falar sobre estes problemas? Se é
loucura, que seja então chamado de projecto louco. Quero comunicar ao mundo os
problemas relativos à água nesta pequena ilha, pois, não posso fazer nada sozinho.
Preciso, em primeiro lugar, da tua ajuda e da tua compreensão. Preciso do auxílio de
muita gente. Quanto maior for este apoio, tanto maior será a possibilidade de
regarmos a semente da criação com a água da esperança, da fé e do amor. O amor
posto na criação contribui para a felicidade e para o bem-estar de muitos, pois o
amor é a energia potencial que criou o nosso universo. Em tudo o que nós fazemos,
deve-se acrescentar uma dimensão humana! Deus criou o mundo por amor à
criação. E nós fomos criados para criar.
Muitas vezes, quando me retiro para longe dos meus colegas e amigos, não o faço
pelo facto de não querer estar perto deles, mas faço-o por necessidade existencial,
para reflectir e sobreviver. Alguns chamam isto isolamento. No entanto, eu chamo-
o retiro, descanso para encher o meu espírito com uma nova energia criadora. Uso o
tempo para reflectir profundamente no meu projecto de vida, nas ideias que
emergem do fundo da minha mente. Faço-o uma espécie de meditação e
reconhecimento por ter este dom de pensar, por ter oportunidade para estes
momentos de refúgio que são momentos de receber claridade na mente e de
exercitar a inteligência, o que considero ser uma manifestação do que flui no fundo
da minha mente. Porém, quando alguém nos irrita com coisas irrelevantes, quando
só pensam nos seus interesses mesquinhos e nos transmitem uma mensagem de
egoísmo, de desencorajamento, sentimos que essas pessoas perderam a capacidade
de reflectir, de criar, de ser iluminado e de ser inteligente. Precisamos, também, de
momentos para sentir que estamos emersos no reconhecimento de termos o
privilégio de possuir alguns talentos que outros não possuem. Temos milhares de
desafios a confrontar-nos diariamente. Penso que devemos criar condições propícias
para a invenção e para a reinvenção. Contudo, temos primeiro de nos preparar, de
fazer planos e reorganizar a vida de tal maneira que possamos usufruir da nossa
inteligência e do momento da iluminação da nossa mente.
Fátima estava neste momento mais virada para dentro de si do que para as
lengalengas do amigo. Sentiu-se submersa numa fonte de inteligência e de erudição.
Quase que um mal-estar se apoderou dela, mas voltou rapidamente à realidade.
Respirou fundo sem nada dizer. Olhou de soslaio para um lado, levantou-se
bruscamente e disse:
– Como queres fazer isto? Em que te posso ser útil? Acho que estás a ser exigente
demais para comigo. Se este projecto te traz felicidade, o prazer é, também, todo
meu – retorquiu ela.
– Ouve, Fátima. Alegra-me muito ouvir-te dizer isto. Ao compartilhares deste
prazer comigo é mais uma alavanca propulsora dos meus pensamentos. Sabes, há
um barco que nos transporta rapidamente do estado de miséria para o de felicidade,
de uma praia para a outra. Um barco que nos leva para a outra margem do rio que
tem mais beleza e mais segurança. Já que existe esta possibilidade, por que ficar aqui
sentados do lado de cá, se o barco nos pode levar para o lado do bem-estar, do belo
e da segurança? Acho que não devemos deixar a tirania do medo reinar a nossa
mente. Convido-te a apanhar o barco para o outro lado. Não fiques aqui no lado do
medo, da confusão, da dúvida, da ira, da mentira e da injustiça. Temos todo o direito
de sermos felizes. O germe desta conquista encontra-se dentro de nós, no fundo do
nosso ser.
– Apanho o barco que apanhares. Se eu naufragar, conto com os teus braços fortes.
Se do outro lado do rio se encontra uma vida melhor para todos nós, nada há a
perder, só há a ganhar – garantiu Fátima.
– No meu tempo de menino e moço, tempo bem recente, transportava-se água em
pequenos barcos de Santo Antão para São Vicente. Depois veio a dessalinização da
água do mar. Depois as despesas relacionadas com tudo isto. Hoje, fala-se
mundialmente na poluição, redução de consumo de energia fóssil, da economia
mundial que afecta grandemente os países pequenos como o nosso. O meu sonho de
sempre é trazer a água de forma subaquática até São Vicente. Isto é, ligar ou
canalizar essa água boa que temos lá na Mesa, Santo Antão, através de um tubo não
corrosível na linha submarina mais curta que liga as nossas duas ilhas. Não digo que
temos muito dinheiro para tal, mas contamos com a cooperação, ou melhor, com a
ajuda internacional. Tenho muitos amigos que nos podem estender fraternalmente
as mãos neste sentido. Tenho a certeza de que será um trabalho que exige muita
perícia e tempo, mas é um trabalho cujo resultado é durável. Antigamente, havia
ligação telefónica com as outras ilhas através de cabos submarinos! Por que não
utilizar tubos para trazer a água?
O problema da água é mais simples. Vamos lá ver isto. O direito à água, como o
direito à luz e à higiene está a ser ameaçado. Estamos a enfrentar uma profunda
crise de água e luz nas terras de Cabo Verde. Este problema, conduz-nos
obrigatoriamente, para o problema da saúde (higiene) dado a implicação que os
primeiros têm neste último. São recursos necessários para a preservação da vida no
planeta, mas, muitas vezes, são negligenciados por grande parte da população
mundial. Na Declaração Universal dos Direitos da água, encontra-se o seguinte:
A água é a seiva do nosso planeta. Ela é a condição essencial de vida e de todo o ser
vegetal, animal ou humano. Sem ela não podemos conceber como seria a atmosfera, o
clima, a vegetação, a cultura ou a agricultura. O direito à água é um dos direitos
fundamentais do ser humano: o direito à vida, tal qual é estipulado no Art.º 3º da
Declaração Universal dos Direitos Humanos.
No futuro, um dos objectos principais de cobiça será a água e não o petróleo. Num
país pequeno como o nosso que não possui nenhum potencial hidroeléctrico, a não
ser o mar à nossa volta, portanto, sem muitas possibilidades de construção de
barragens para a produção de electricidade, deve-se apostar naquilo que são os
nossos recursos naturais e que temos em abundância: o sol, o vento e as ondas do
mar, transformando-os em combustível propulsor de desenvolvimento sustentável
para a nossa ilha.
– O nosso povo não pode continuar a sofrer por causa da falta de luz e água. Os
principais interessados deviam ser as empresas engarrafadoras de água e os
fabricantes de bebidas que demandam muita e boa água – cortou Fátima.
– Claro, o Estado deve tomar a responsabilidade pela situação da água e da luz,
não como gestor, por que ele é mau gestor, mas como mediador, de forma a garantir
que estes recursos sejam colocados ao serviço do bem-estar da população cabo-
verdiana. O Estado deve neste sentido:
• Consagrar a água como propriedade comum e a igualdade de direito ao seu
usufruto como direito de cidadania.
• Garantir o acesso de todas as pessoas à água potável como serviço público.
• Garantir a manutenção dos serviços de água sob propriedade e gestão públicas
e sem fins lucrativos.
• Estabelecer o enquadramento legal, institucional e de administração
económica que garanta, de facto, o direito de cada pessoa à água, à saúde e à
natureza.
• Garantir uma gestão integrada da água como responsabilidade pública
inalienável, assegurada por legítimos representantes dos cidadãos, visando a
melhoria do bem-estar comum da população actual e das gerações vindouras.
• Estabelecer serviços públicos de água competentes, transparentes e funcionais
munidos dos recursos necessários. Uma gestão da água baseada num
planeamento participado e democrático.
A água de que todos nós precisamos neste país, necessita da luz e da energia, na
maior parte dos casos, para a sua utilização efectiva. Felizmente, temos a luz do Sol
que é de todos. Mas a luz a que me quero referir é a luz eléctrica que hoje se produz
na nossa terra à base de energias não renováveis, das quais já nos tornarmos
dependentes. O problema é que o uso da luz eléctrica, hoje, é muito mais intenso que
há algumas décadas. Criámos uma necessidade que antes não existia. Estes
problemas todos causam mudanças climáticas das quais não nos podemos esconder.
O conceito de escassez, introduzido como fundamento económico pelos neoclássicos,
agora também é aplicado na questão da água. Para esses pensadores, um produto
tem mais valor económico quanto mais escasso ele for. Por consequência, aplicar o
conceito de "escassez" à água, tem uma clara conotação ideológica dos princípios
liberais dos neoclássicos. Entretanto, no tocante à água, a sua escassez quantitativa
e qualitativa, não é uma questão natural, mas produzida pela mão humana.
Portanto, pode ser evitada. A própria ONU afirma que a crise da água é mais uma
questão de gerência do que de escassez – concluiu o Renato.
– Já estou a perceber melhor a tua preocupação. Estás a ver a água como um bem
público, um direito humano e uma possessão da qual é um direito humano. Então,
devemos lutar por criar uma consciência nacional sobre o cuidado como a
preservação da água como um bem público, universal, património da humanidade e
de todos os seres vivos. Para ser mais claro, o problema não é somente da natureza,
mas da acção humana sobre ela. A água é um bem natural renovável, do qual
necessitam todos os seres vivos. A crise da água tem, portanto, de ser resolvida com
o foco na sua questão chave, isto é, no modo como o ser humano tem vindo a gerir
a parcela de água que utiliza. Sabendo que ali perto de São Vicente existe este
recurso em abundância necessária para o nosso consumo comum, a solução do
problema é encontrar uma forma de trazê-lo até lá! Portanto, é lógica a proposta
que apresentas, apoiada também, pelos padrões que a ONU recomenda.
– Há, no entanto, um detalhe importantíssimo nesta tua reflexão. Penso que
haverá uma distribuição desigual da água doce mesmo quando a temos em
abundância. Temos de criar uma legislação capaz de proteger os direitos do
consumidor ao acesso a esta dádiva divina! Temos de dar ao consumidor a
possibilidade de escolha, pois os seus direitos estão altamente ameaçados. A nossa
ilha é desprivilegiada pelo regime das chuvas. A rara precipitação de águas
meteóricas sobre a ilha, com intensa média de evaporação, cria uma grande
deficiência hídrica. É necessário considerar estes detalhes da ilha porque mesmo
havendo precipitação em abundância dentro do nosso espaço geográfico, a sua
condição orográfica encontra-se abaixo do exigido para produzir água potável.
A água, dádiva divina, não está ainda, infelizmente, ao acesso de todos. Ela não deve
ser desperdiçada e nem poluída. A sua utilização deve ser feita com consciência e
– Olha, amiga. Pensa só nisto. É uma ideia que me surgiu quando era criança. Uma
ideia apenas. Mesmo que ela pareça simples pode vir a mudar a minha vida, a tua
vida e a dos outros. Ninguém tem mais responsabilidade pela minha vida do que eu.
Ninguém te obriga a inventar coisas, trazer ideias novas e voláteis, fazer as coisas de
maneira diferente, descobrir o que ainda não foi descoberto e pôr tudo isto em
prática. Ninguém. Tu és a única pessoa responsável pela tua vida e que se interessa
pelo bem-estar próprio. Portanto, sê criativa, cria novas ideias e põe tudo em prática.
Assim, descobrirás brevemente que uma ideia brilhante te conferirá algo mais na
vida e servirá para acrescentar valores adicionais à vida dos outros. O meu projecto,
a minha ideia posta em documentos, é uma coisa brilhante para mim. Eu, pelo
menos, vejo-o como algo importante, também, para a vida dos são-vicentinos.
Fátima não disse nada. Pegou-lhe nas mãos e apertou-as rijamente, com os olhos
fixos nos do amigo.
CAPÍTULO XVIII
está apaixonada por outra, o seu cérebro desactiva estruturas responsáveis pelo
julgamento crítico que o mantém alerta contra as ameaças do ambiente. Isto
significa, ainda, que os mecanismos cerebrais que identificam as atitudes dos outros
de forma crítica, são desactivados. Assim, o apaixonado dificilmente consegue ver
os defeitos e de desconfiar da pessoa amada.
Quando dois enamorados conversam entre si, quando os seus olhares penetram os
seus corações, todo o mundo à volta testemunha esse amor que deles transborda.
Reclamam o direito intocável de viverem um do outro e para o outro, esquecendo-
se de tudo o resto, como se só eles passassem a existir naquele mundo etéreo que
é só deles. Todo aquele mundo lhes pertence. Os olhares críticos não lhes penetram
o crivo da razão. Ficam imunes a todos os perigos. Insensíveis à incisão de olhos
curiosos.13
Os olhos do estranho faiscavam ao ver os gestos de amor que os dois trocavam entre
si. Não se sabe se por ciúmes ou se por ter esquecido dos predicados da beleza e dos
milagres da simpatia que se estendem para lá da aparência física. Aproximaram-se
os dois de mãos dadas, quase pisando o lençol das ondas.
A acompanhante estacou, prendendo o olhar no de Renato.
– Renato, estamos aqui para fazer duas coisas: primeiro, para um dedo de conversa
e relembrar alguns momentos felizes. Segundo, para falarmos sobre os teus
projectos. Penso que, apesar do teu tempo limitado, terás tempo para abordar este
assunto, também.
– Judith, o tempo ensina-nos muitas coisas. O tempo dissolve os nossos erros
cometidos na juventude. Isto não quer dizer que eu já tenha esquecido tudo entre
nós. Eu deposito uma enorme confiança em ti e essa é a razão de estarmos aqui –
disse, certificando-se de que ninguém os estava a observar e dando-lhe, em seguida,
um abraço apertado. – Acho que hoje vai ser apenas dedicado ao que temos falado
pelo telefone – disse.
– Vim, principalmente, para inteirar-me, pessoalmente, sobre o assunto e analisar
aprofundadamente os documentos de que me falaste. Não vim para relembrar a
nossa relação... sei... esquece...
Aquela senhora, de notável inteligência, tinha uma boa porção de esperança, assim
como, muitos dos seus conterrâneos, em que, muitas vezes, se resumem todas as
bendições da vida. Não havia dificuldades em se aproximarem um do outro, pois os
portais dos seus íntimos estavam abertos como as pétalas de uma rosa. Ela movia
– É simples. Não dou ouvidos ao mundo de invejas. Faço aquilo que o meu coração
me indica! A solidão é o meu refúgio, é a minha tábua de salvação. Tenho as minhas
razões para estar sozinho. Só, no meio de tanta gente. Porém, quando estou a sós
comigo mesmo, ultrapasso a mesquinhez humana e consigo fazer mais por este país
que tanto amo. Eu tenho as minhas convicções políticas e tenho as minhas ideias
sobre como uma sociedade deve ser organizada sem nos envolvermos em ideologias
necrófilas e trazidas de fora. Sou amassado com o barro forte que os meus pais,
muito bem, souberam escolher e com convicções religiosas que imprimiram em mim
muita perícia. Quero ser eu mesmo e mais ninguém. Sabes que muitas vezes o
homem vende o seu eu por causa de ideologias, e a sua consciência é manipulada.
Eu não faço isto, não admito ser manipulado.
– Mas o que tem isto a ver com o que, muitas vezes, temos falado? A tua vida
profissional, as relações com o mundo que nos cerca, não estamos a misturar duas
coisas? Nós e os outros?
– Tem muito a ver! Temos de dar tempo ao tempo! Temos de deixar as coisas
amadurecerem para colher daí frutos. Aprecio esta tua presença aqui e agora. Mas
quero aproveitar este momento para te iniciar naquilo que constitui a razão principal
da tua vinda. Disse-te, há dias que, aquilo que sai de dentro de nós é o produto da
imaginação. Muitas vezes, sai apressadamente e sem que consigamos fundamentar
tais pensamentos, acabando por ofender pessoas ou, simplesmente, repetimos,
como que em modo automático, o pensamento de outras pessoas. Nós precisamos
recriar e ré-imaginar este mundo, este país que é nosso. Ora, a minha solidão é
precisamente para aprofundar e aproximar-me das coisas reais e daquilo que se
encontra dentro de mim, que é maior do que eu mesmo. Não quero deixar-me levar
pela pressa. Sei que todos aqueles que pensam desta maneira e que acreditam que
existe algo dentro de si, que é muito maior do que si mesmo, acabam por ter pouca
sorte na vida.
– Ainda não estou a entender-te!
Renato alçou um sorriso leve e encolheu os ombros. Segurou, de novo, o antebraço
da acompanhante e olhou-a fixamente, dando alguns passos paralelos à língua das
ondas.
– Bem. Primeiro não vivo na solidão, para te ser muito claro. Tenho amigos por
todos os cantos da terra. Uma família estabelecida. A minha opção por uma vida que
tu chamas solitária, não adveio do facto de eu estar a viver sem uma posição política
que se enquadre dentro da dos meus “inimigos”. Veio de longe. Mas posso-te dizer
que, lá dentro de min, ali no abrigo do ser, lá onde me sinto feliz e só, onde escuto
atenciosamente a voz do silêncio como uma música maviosa que cria uma quietude
dentro da alma, lá nutro paz e serenidade. É uma harmonia sem igual!
A serenidade do Renato parecia morar-lhe na alma e reflectir-lhe no rosto, mas
estava longe de pensar sobre a dimensão de todo o alcance do “rendez-vous”
daquele encontro e acerca do rumo que as coisas estavam a tomar. Falava num tom
pensativo, tão frio, tão nu e transparente, mas tão cheio de sentimentos humanos.
Comportava-se como um filósofo, com serenidade. Dava lições da vida.
– Este momento está longe de ser o que pensava, Renato. Vim de longe para...
– Para ouvir-me ou para fazer outras coisas...
– Não, Renato, estás a ser injusto comigo...
Irritados com o curso que a conversa iria tomar, ambos tecendo e destecendo mil
planos para evitar que a taça de cicuta se enchesse e derramasse o seu líquido fatal
sobre um amigo de longa data, um amigo que tinha nas suas mãos, o único remédio
que ela, nessa ocasião, pedia – a chave do seu coração. Nada mais queria ela. No
entanto, Renato queria mais do que entregar a chave. Queria ensiná-la o valor da
liberdade e da responsabilidade. Pois, quem tem prática dessas coisas de amor,
fareja uma paixão a mil léguas de distância. Ele virou-se para ela, pondo-lhe as mãos
nos ombros, encarando-a nos olhos, e por fim rompendo nestas palavras, meias
suspiradas:
– Vou-te dizer uma coisa importante. A liberdade custa muito. Ela é um diadema
oculto para muitos. Ela é uma divisa que muitos carregam sobre os ombros sem
saber. Só é visível na cabeça de um indivíduo quando ele não é livre, quando está
aprisionado, espezinhado, marginalizado e pisoteado.
– Estás a ser um pouco injusto para comigo…
– Não. Não estou. A espada da lei não deve distinguir entre forte e fraco, grande e
pequeno, bonito e feio, pobre ou rico. Por exemplo, a lei contra a exploração duma
minoria para proveito de alguns, deve ser uma das prioridades da Nação. A Justiça é
um bem maior que se faz primeiro em casa. Não se faz apenas no tribunal jurídico,
mas também no fundo da nossa consciência, pois lá não se apaga a visão de um acto
cometido. O peso da consciência pode aprisionar um indivíduo a ponto de, mais
tarde, fazer uma confissão. Muitas das acções do homem devem-se,
frequentemente, a certos impulsos ou instintos “animais” que residem na sua
natureza. Já há muito que pressinto um mal que me está a atingir de frente e que
este mal é inevitável. Por isso, procuro minimizar estas possibilidades ou
probabilidades, optando pelo que chamas de solidão. Eu chamo isto outra coisa -
afirmou.
Judith estremeceu. Virou a cara para o mar num movimento rápido, voltando-se
depois para Renato, furiosamente:
– O que é que se está a passar contigo, Renato? O que é que estás a insinuar? Estou
a ser levada a crer que, neste momento, me odeias. O que pensas de mim? Não podes
estar aqui a culpar-me pelos teus problemas.
– Não. Nada disso. Fui ensinado a não ter lugar para o ódio no meu coração. Tu
não tens culpa nenhuma. São os meus desabafos neste momento! Peço-te perdão se
estou a ofender-te – acrescentou, olhando fria e longamente para ela.
– Compreendo a tua frustração, Renato, mas...são assuntos que se pode tratar
entre nós os dois, sem inconveniência para nenhum de nós, sem interpor a tua
posição política e outras coisas.
Renato ficou pensativo por instantes.
– Deixa-me contar uma coisa que não sabes, já que trouxeste à baila este ponto.
No convite disse que tinha algo a revelar-te e que serias a única pessoa neste mundo
a saber. Eis, primeiro, uma preparação para melhor compreenderes a minha posição
social. Eu não conheço o léxico socialista/marxista revolucionário e nem o uso na
minha opção política. Quando actuo nacional e internacionalmente como político,
não uso a fraseologia da esquerda marxista e revolucionária mesmo que eu seja uma
pessoa de esquerda. Tive uma influência religiosa de cariz protestante de onde
resultou o meu pensamento como político de esquerda.14Convivo com outros
políticos de direita. Convivo também, com os políticos marxistas sem, por isso,
entregar-lhes a minha alma. Portanto, a minha visão do mundo está profundamente
marcada pela influência religiosa, herdada dos meus progenitores. Este facto tornou-
me resistente à fraseologia ideológica da esquerda marxista. Quando estudava em
Lisboa, tinha lá os meus “inimigos” que me apelidavam de reaccionário por não me
associar à corrente que seguiam. Sentia um certo desconforto no meio da
comunidade estudantil de esquerda em Portugal.15 Os próprios líderes dos
estudantes cabo-verdianos consideravam-me um reaccionário quando debatíamos
sobre a cultura cabo-verdiana, o que contribuiu para criar uma tensão entre
estudantes, algo que se estende aos dias de hoje, uma tensão e um clivo enorme que
ainda hoje persiste entre nós. Estás a compreender-me, Judith?
– Um pouco! Creio é o que se propala pelo país.
– Bem, esta demarcação ideológica influenciou a minha carreira política, de tal
modo que, eu me sinta, muitas vezes, marginalizado. Mas isto não é o cúmulo das
14A Bala Mágica que matou Renato Cardoso, de José Manuel Veiga, Cabo Verde, Setembro de 1994.
15 Ibidem.
coisas. Sou aquilo que sou e continuo a ser o mesmo. Não vendo a minha consciência
e nem me encontro à venda. Apesar deste contraste entre o que sou no fundo e o
meu posicionamento na estrutura política, estou a trabalhar com afinco para
levantar esta terra que é de todos nós a um nível mais humano e com mais justiça.
Isto é, ter mais democracia no interior do partido, o que vai pouco a pouco,
contaminar positivamente a sociedade toda. Este país é como as estrelas que
pertencem a todos nós, da direita ou da esquerda política. Bonito ou feio, preto ou
branco, político ou não político. Somos células orgânicas deste mundo em que Cabo
Verde é uma das partes componentes.
– Já estou mais ou menos na linha do teu pensamento e a compreender-te melhor.
Estou curiosa em ouvir mais.
– Há um clivo no seio da política vigente. Este clivo existe e vive silenciado pelo
medo e pela falta de coragem de muitos aqui na terra. Há o “grupo de Lisboa” e há
o grupo de “direcção da luta”. Apesar de eu ser claramente marginalizado por ambos
os grupos, sou identificado como pertencente ao grupo de Lisboa que, para muitos,
está associado ao trotskismo aqui neste país. Eu, para te dizer a verdade, não
pertenço nem a um, nem a outro quanto à ideologia que defendem porque, para
mim, são práticas que não se coadunam com aquilo que nesta terra pobre nós
chamamos de Morabeza, com a nossa maneira de ser, ver e de estar no mundo.
Acima de tudo, com a minha visão do mundo. O nosso país ainda não está preparado
para ser depositário de uma ideologia marxista. A África não está, no meu entender,
preparada para algo deste género. Não acredito na ideia de ascensão do partido
sobre o Estado. Este é um órgão supremo da Nação. O Estado inclui todos sem
excepção, enquanto o partido representa alguns, logicamente exclui muitos. Muitos
falam da democracia antes da eleição, mas depois de eleitos, subjugam o povo que
os colocou no poder. Isto é, em si, muito mau. Destrói a confiança que o povo
deposita na política. Se admitirmos a ideia de ascensão do partido sobre o Estado,
estamos também, a admitir a ascensão de medíocres na estrutura de poderes,
paternalismo social e uma gestão político-burocrática da cultura e de outros males
na sociedade. Sou, neste caso, considerado um crítico de dentro e, por isso, muito
perigoso. A minha diferença ideológica com o grupo de Lisboa não me salvou de ser
apelidado de trotskista. Contínuo a posicionar-me como homem de esquerda e
defensor ferrenho da abertura política, preocupadíssimo com as questões sociais e
sou partidário da concepção da política como jogo.16 Tudo isto, Judith, pesa muito
no seio da política nacional, em toda a sua estrutura, e isto parece promissor se a
razão não for vilipendiada pelos nossos homens no poder. Compreendes agora a
16 Ibidem.
minha preocupação, Judith? Esta é a minha confissão a ti. É isto e muito mais que
está nos documentos que vais ler.
– Perfeitamente, caro amigo. Fala-me mais sobre o Estado como órgão supremo –
pediu Judith, já com um alívio na voz.
– O Estado é uma unidade política básica que equivale a uma comunidade humana
fixada num território onde exerce o poder político. Os fins do Estado são,
nomeadamente, a segurança, o bem-estar económico, a justiça social, etc. As
funções do Estado são: legislativas (elaboração das leis), a executivas ou
administrativas (execução das leis e satisfação das necessidades colectivas) e a
judicial (resolução de conflitos e punição da violação das leis). O Estado é um
conceito político que se refere a uma forma de organização social soberana formada
por um conjunto de instituições que têm o poder de regular a vida num determinado
território. Portanto, organizado, política, social e juridicamente dentro de um
território definido, tendo como lei máxima uma Constituição escrita17dirigida por um
governo que possui soberania reconhecida tanto interna como externamente.
Dentro desse território não pode haver uma soberania maior que o Estado. Por isso,
um partido não pode ser soberano, principalmente, numa sociedade democrática. Se
o for, em outras circunstâncias, é porque já se aproveitou da euforia do povo em
momentos de crise existencial, de frustração, para criar certas dependências a um
grupo que, à primeira vista, parecia salvador do mundo e que depois, com a ajuda
do medo criado no povo, oprime uma nação inteira. Se somos democráticos, não
podemos e nem devemos admitir a ascensão do partido sobre o Estado, por que o
partido é exclusivista na sua autodefinição. Um dos nossos mestres do passado, Max
Weber, sintetiza um Estado soberano pela máxima: um governo, um povo e um
território, sendo o Estado o detentor legítimo do monopólio do uso da força.
Um partido, por seu lado, principalmente quando é único, não deve possuir esse
monopólio, pois se o possuir, não estamos a ser governados, mas sim, comandados
como se fossemos militares. Um partido político é um grupo organizado formal e
legalmente, baseado em formas voluntárias de participação, numa associação
orientada para influenciar ou ocupar o poder político num determinado país.
Juridicamente, é uma organização de direito privado que, no sentido moderno da
palavra, pode ser definido como uma união voluntária de cidadãos com afinidades
ideológicas e políticas, organizado e com disciplina, visando a disputa do poder
18 Idem
cultura cabo-verdiana. Da mesma maneira podemos dizer que tal rio é vivo. A onda
do mar é viva.
– Isto é filosofia, homem. Não sei onde queres chegar com isto. Para mim uma
pedra é apenas uma pedra com valor instrumental e nada mais.
Renato compreendeu que estava a falar de coisas difíceis, mas perfeitamente
inteligível para uma mulher do calibre da sua acompanhante. Olhou para o alto e
fixou o olhar num determinado ponto no céu. Algumas vezes, a comoção da Judith
era tão grande que obrigava Renato a pegar-lhe afectuosamente nas mãos,
procurando confortá-la com outras palavras de confiança e esperança. Mas ele
proferia as palavras com a segurança necessária para serenar o ânimo da
acompanhante, que ficou algum tempo a olhar pasmada para ele, como quem
reflectia e não escutava as suas boas palavras. Ao cabo de alguns segundos de
silêncio, baixou o semblante e apontou para uma pedra grande.
– Sim, entendo. Aquela pedra pode ser transformada em arte, embora ela tenha
sido obra da arte da Natureza muito antes da nossa existência. Quando
transformamos a pedra em arte, isto é, numa imagem qualquer, atribuímos à
imagem um valor maior do que a pedra tinha anteriormente. Este novo valor que a
pedra adquire é a alma dessa pedra. Daí podemos dizer que toda a natureza tem
uma alma. Os gregos tinham uma deusa, de nome Héstia, que representava esses
valores transcendentais. Isto chegou até nós através de mitos. Os mitos servem para
explicar as coisas que nós não compreendemos. Mas também podem servir como
obstáculos, para baralhar a nossa mente e, assim, deixarmos de pensar com a nossa
própria cabeça. Na nossa terra temos ainda hoje muitos mitos. Um dos mitos criados
que te posso adiantar é o mito dos “melhores filhos”. No mundo de hoje existe, por
exemplo, o mito de “o homem branco ser superior ao homem preto”, etc. Ainda há
muitos no meio de nós que, infelizmente, acreditam nestes tipos de mitos. Existe
melhores filhos e piores filhos? Se eles são melhores, o que são os outros? Piores,
medíocres e inimigos da pátria. Ora, penso que o mito foi criado com o fim de forçar
a luta que culminou na nossa independência, num momento em que precisávamos
de mais força para ultrapassar as barreiras criadas pelo colonialismo, pela fricção
interna no partido com o fim de unir os combatentes da liberdade. Não como arma
de separação e de clivagem no seio social como hoje se observa. Por uma
necessidade instrumental na luta, criou-se um mito para consolidar as forças
armadas, mas depois da independência política, tal mito tornou-se desnecessário e
obsoleto e, por este motivo, devia ser erradicado do meio cabo-verdiano. O povo
cabo-verdiano é suficientemente inteligente para ver, analisar e rejeitar este
conceito de clivagem, isto é, de admitir a existência de melhores filhos do povo.
Já que entrámos na mitologia, vou-te contar a história de Héstia para nos podermos
aproximar desses valores que te quero transmitir e que estão, explicitamente,
descritos na primeira parte do meu projecto e na parte intitulada: “Caminho para o
pluripartidarismo em Cabo Verde”.
– Então conta!
– Muito antes dos filósofos gregos, o homem não estava satisfeito, assim como
hoje, com as respostas às perguntas fundamentais da vida, isto é, às perguntas
filosóficas sobre questões difíceis da existência. Por isso, inventaram mitos para
explicar as coisas difíceis. A ciência diz que, no mundo, existem coisas que só podem
ser entendidas através dos cinco sentidos, da experiência. É o que os pensadores
chamam de pensamento empírico (ciência). Héstia é a deusa do fogo doméstico,
rege o fogo sagrado. O fogo de Héstia simboliza a chama que arde no coração dos
homens; a vida, o amor à vida; a vida pelo amor; a beleza e o que nós nesta terra
chamamos Morabeza que é a soma total dos valores inerentes ou intrínsecos na
cultura cabo-verdiana. É símbolo da pureza, da força e conhecimentos ancestrais; da
paz, do respeito ao passado que forma cada um de nós. É ao redor dele e do seu calor
que, à noite, a família se reúne e, por mais modesto que seja o alimento servido,
todos têm nele o fogo da esperança de um novo e melhor amanhã. É símbolo da
família. A chama que torna possíveis os laços de união, da justiça, do bem-estar e de
tudo o que contrapõe aquilo que é injusto.
Héstia tinha a preocupação de manter os corações dos homens aquecidos e unidos,
alimentá-los com o leite do afecto e da humanidade. Héstia também simbolizava a
continuidade e preservação das tradições, do saber ancestral. É o símbolo do
renascimento dos antigos cultos. De todos os deuses da sociedade, Héstia é a deusa
a quem os homens mais amavam e respeitavam, segundo a tradição. É uma deusa
humilde, simples e modesta. Para ela, havia um altar em cada casa, em cada lar; à
lareira. Ali, ardia uma chama constante. Os homens pediam que ela abençoasse o
alimento antes das refeições e prestavam-lhe homenagens ao terminá-las.
Como deusa, Héstia amava e protegia todas as crianças. Quando estas cresciam,
casavam-se e mudavam de casa, levavam consigo uma parte da chama paternal
para abençoar e iluminar a nova residência. Dessa forma a chama (o amor) podia
manter-se acesa durante anos, décadas, séculos e até mesmo milénios. Esta era a
maneira como se transmitia os valores positivos às gerações vindoiras.
No centro de cada cidade havia um prédio público chamado em grego Pritaneia. No
centro da Pritaneia, um enorme átrio tinha no seu centro um altar dedicado à deusa
Héstia, e sobre este altar, uma chama em honra à deusa, onde se pedia para que ela
protegesse todos os que moravam na cidade. Havia homens dispostos a morrer para
não deixar que a chama se extinguisse. Sempre que novas expedições saíam com
objectivo de fundar novas aldeias, levavam consigo um pouco da chama da Pritaneia
para que a cidade a ser fundada fosse abençoada pelas graças da deusa. Héstia era,
também, o símbolo de amizade e concórdia entre as cidades.
– Tu és um erudito. Vais-me emprestar alguns livros sobre a mitologia grega. Estou
a falar a sério!
– Vamos voltar ao conceito da alma como sugeri antes. A alma de que falamos
existe na poesia e na prosa. Na poesia esta alma aparece em forma de música, de
rima ou de cadência. Quando damos à alma uma ancoragem poética na nossa
imaginação, arrancamo-la do círculo teológico, para fora do quarto fechado da
psicoterapia e colocamo-la no mundo concreto ou real. Ela fica liberta,
inclusivamente, do cérebro de cada indivíduo, de tal modo que, ela se mostra
claramente em tudo que existe no universo, isto é, em toda a criação. Portanto,
falamos da alma não apenas “aqui-dentro,” mas também, da alma “lá-fora.” O que
é, normalmente, chamado de “coisas inanimadas”, sem vida, também possuem
alma.
– Quero ouvir mais. És platónico demais.
– Um poeta americano disse, e muito bem, que existe poesia no coração das coisas.
Ora, as coisas têm um corpo. Falar sobre o coração, o corpo e a alma das coisas é
pôr a nossa atenção na ideia, conceito e qualidades que esta ou aquela determinada
coisa apresenta ao mundo que a observa. Isto não é o mundo platónico das formas,
mas o platonismo ajuda-nos a compreender melhor esta visão do mundo! Para ser
mais específico: a alma é o lado feminino das coisas.
– Fico lisonjeada ao ouvir isto. Incutes em mim a esperança de que esta terra, um
dia, venha dar mais valor às mulheres e ao lado feminino da sociedade. – Disse
Judith.
– Não precisamos de ser todos poetas para nos apercebermos da alma nas coisas.
Não, é um dom comum a todos nós. Tu e eu estamos a participar nesta visão ou
processo de “criar” um mundo com alma em todas as suas coisas. Um exemplo
esclarecedor: um Tribunal que se encontra preocupado com a justiça, tem alma, tem
o valor intrínseco da justiça como alma do tribunal. Portanto, a própria justiça é a
alma – o lado feminino do tribunal judiciário e do tribunal da consciência. Os
documentos que vais ter na mão daqui a pouco têm uma alma. Portanto, guarda-os
bem. Pois, és a única pessoa com quem posso falar sobre o assunto e, por enquanto,
fechados a sete chaves.
dar prazer aos poucos que governam. Disse-lhe ainda, que tinha na mão um projecto
que, possivelmente, conduziria o país à mudança, uma mudança muito necessária
neste momento em que estamos a viver. Parece-me que ele não estava preparado
para escutar uma tal ousadia da minha parte.
Ora, outra coisa importante mencionada é que hoje em Cabo Verde o
desenvolvimento é compreendido como um conceito global e é um objectivo que se
demanda desesperadamente. É um anseio fundamental do povo das ilhas e, em boa
verdade, é a razão e a legitimação dos próprios processos de independência. Isto
porque, perante a demora na realização desse sonho, alguns começam a perguntar
sobre o valor real da independência. Sabemos que a liberdade foi sempre entendida
como a via necessária para o progresso. Estamos a atrasar este processo de
desenvolvimento.
O desenvolvimento fala-nos de um esforço que abrange a sociedade inteira, centra-
se nos homens, abarca os objectivos, os processos, os recursos, o know-how. É
fundamentalmente interno. Envolve as variáveis sociais e políticas, económicas e
morais. Estas são as minhas preocupações globais em relação à África de hoje, mas
pensando em Cabo Verde com particular ênfase. Para iniciar um debate saudável,
nós temos de tirar a enorme pedra colocada sobre o assunto relativo ao
desenvolvimento integral das nossas ilhas.
– Que ousadia! Acho que disseste demais – condenou ela friamente.
– Bem, o caminho de regresso não existe neste momento.
- E sobre o que mais conversaram?
- Ora, quando ele levantou a cara dos documentos, fixou os olhos em mim,
enquanto eu relatava as coisas à minha maneira. Ele ficou imóvel por uns minutos.
Acrescentei que nós precisamos dos outros para completar a nós mesmos. Os outros
definem-nos. Precisamos de um desenvolvimento sustentável. Uma política de
desenvolvimento fundada sobre os interesses e as necessidades do homem africano,
pressuporia uma adequação estrutural do sistema herdado, que perpetua a
dependência do nosso país de terceiros. Implica a adopção de valores novos, uma
correcção da dinâmica social, uma revisão das relações com o exterior, uma
correcção das relações sociais estabelecidas no tempo da colonização e que ainda
persistem em muitos países. Efectivamente, a África, em geral, e Cabo Verde, em
particular, herdou estruturas de dependência e, mesmo, de subordinação que não
lhes têm permitido fazer escolhas próprias. Libertar-se dessa dependência excessiva
é uma das palavras de ordem contidas no Plano de Acção de Lagos. Cinco anos após
este plano de acção, a União Africana constatou que poucos progressos haviam sido
realizados nesse domínio.
19 Renato Cardoso – Cabo Verde – Opção para uma política de PAZ, Instituto cabo-verdiano do livro,
Praia, 1986.
20 Ibidem
outro instante, imaginara que estava a sonhar e, por mais que se esforçasse para
mover os membros inferiores, sentia-se como se estivesse sob os efeitos dum
pesadelo. A força de gravidade puxava-o para o chão. Procurou de novo forçar um
grito a sair da sua garganta, mas em vez do grito saiu-lhe um murmúrio quase
inaudível, como se receasse a presença de ouvidos indiscretos nas imediações.
Pressentiu a morte e tentou arrumar no espírito o que dispunha da última conversa
que teve como político, mas tudo se misturou com o medo da morte e tornou-se
uma confusão tremenda. Em forma de concha juntou as duas mãos como que em
prece e ouviu um distante piar de um mocho em desamor. Depois sentiu um arrepio
correr-lhe pelas veias, passando friamente pelo coração cada vez menos palpitante.
Entrou de novo em transe. Por um instante, recordou de novo a última conversa
política num fresco raciocínio e arregalou os olhos em direcção à formação grotesca
que as rochas formavam. Como relâmpago, passou na sua mente a última conversa
com o Presidente e o que podia ser a origem da sua perseguição, se política ou
passional. Veio-lhe à mente algumas réplicas da conversa do último encontro:
– Acredito mais no diálogo e na compreensão como uma forma de resolver
problemas de entendimento humano, problemas que se situam fundo no espírito das
pessoas. Talvez não esteja a acreditar em mim, julgando que estou a falar de modo
pouco científico, mas vou explicar uma coisa importante e básica. O homem não é
um complexo mecânico. Ele é mais do que isso. Na sua unicidade, é considerado
como um ser muito complexo, com direitos, deveres e dignidade humana, com
milhares de impulsos invisíveis e não detectáveis...
Repito: é melhor abandonares os teus projectos! Tudo isto são tretas.
– Uma questão muito complicada. Se me permita continuar...
– Boas intenções de facto, mas como é que nós podemos ver o interior das pessoas?
Estamos a perder tempo, homem! É melhor esquecer o assunto!
– Tem algo a ver com a entrega, afecto e devoção. Se queremos alcançar o coração
das pessoas...
– Vamos dar por terminado a nossa conversa. Temos coisas mais importantes a
fazer.
Depois de voltar ao mundo da dor, queria fazer um esforço para chegar ao veículo,
mas começou de novo a sentir uma dor dilacerante e uma corrente fria a descer-lhe
pelas costas. Sentiu-se rodeado de silhuetas que assombravam uma vida penosa,
projectados na escuridão do céu como pano de fundo. Recordou momentos
anteriores e pensou: Judith porque me abandonaste? Sentiu como se acordasse dum
sono pesado ou voltasse dum sonho demorado, pensando que talvez tivesse
decepcionado uma nação inteira, a sua família, os seus amigos, os seus irmãos, sim,
todos aqueles que nele depositavam uma enorme confiança. O sentimento de culpa,
de trair os seus melhores amigos, mas especialmente a nação, causara-lhe ainda
mais dores. Além disso, traí-los, é inaceitável e imperdoável. Aumentar as suas
dores, isto é, as dores de ter perdido ou fracassado para com os amigos íntimos, as
suas ânsias, os seus desesperos, as suas decepções, as suas tristezas, acorrentá-los
numa profunda lamaceira são coisas que o perturbavam. Ele é o único culpado da
situação e nada neste mundo poderia livrá-lo dessa responsabilidade. Sentiu a
presença da morte, um medo intenso gotejando friamente sobre o peito, entrando
e transpondo o portal do pensamento, recordando-lhe o mundo que vai deixar. O
cheiro da maresia invadiu as suas narinas e sentiu a condensação do vapor a
repousar sobre as pedras, sobre a areia, sobre as árvores e sobre a escuridão que se
baixou sobre a então funesta Prainha e Quebra-Canela, tudo harmonizado com o
espectro da sombra da morte. Os insectos da noite rodopiavam velozmente numa
forma circular para depois morrer. Depois de morrer surgirão novas vidas, novos
insectos. As aves silenciaram-se e tudo se tornou soturno.
Por uns instantes, estava a vislumbrar o mascarado afastar-se a coxear. O seu
destino era um carro parado na estrada mais próxima. O inimigo do mascarado
estaria morto dentro alguns minutos e com a sua morte viria a esperança para
muitos. Ele já não se ouvia nas proximidades. Desaparecera.
O carro que o esperara e o conduziria até Chã d’Areia onde tinha o seu Toyota Rav4.
Abriu a porta do mesmo e ligou o motor. Deu um suspiro de satisfação e olhou para
o espelho retrovisor quando acedeu à estrada principal e verificou que ninguém o
seguia. Não havia nenhuma luz de veículos a circular. Travou à frente do Hotel, subiu
as escadas com a passos largos, entrou no seu quarto e estirou-se na cama. Em
seguida levantou o telefone e marcou o número privado de Renato.
– Casa do senhor Renato Cardoso!
– Posso falar com o Dr. Renato?
– Não. Ele não se encontra em casa neste momento. Telefone mais tarde – disse
uma voz feminina noutro lado do fio.
O mascarado desligou o telefone. A caminho do Plateaupolis, Renato estava a ser
assistido pelos paramédicos. As guinadas da dor dilaceram-lhe o peito e as
têmporas. O cheiro do sangue e do ódio a invadiram-lhe as narinas. Não conseguiu
libertar-se das garras da morte. A dor lancinante cortou-lhe o coração como uma
lâmina. Sentiu como se um pontapé o atingisse na zona púbica, mais um no lado da
barriga, uma comichão na mordedura, os olhos e a boca cheios de areia. Sentiu
alguém a mexer-lhe no relógio de pulso, mas não o tirara. Ciao, bastardo, ouviu
Renato mergulhado numa dor que lhe atravessara o peito.
Percorrendo a estrada da praia de Quebra-Canela ao Plateaupolis, a sua imaginação
e o seu raciocínio transportaram-no aos tempos romanos, pensou no poeta Virgílio
e na sua obra Eneida. Naqueles momentos tudo lhe saíra da mente como um filme
em câmara lenta e tratara-se dos amores de Dido (Elissa), a rainha de Cartago e o
seu fim trágico, aquela infeliz viúva que fugira da sua pátria Tiros e residira na costa
nordeste de África. Ao contrário do Eneias, Renato não ia conseguir pôr em prática
os seus sonhos.
Acidentalmente, como que fosse a ironia do destino, Dido esteve cara a cara com
Eneias que andava com um projecto em mãos à procura duma localidade para
fundar uma nova cidade. A partir daquele momento, nasceu uma paixão enorme
pelo companheiro.
Dido sabia perfeitamente que não pertencia a Eneias, pois ele cavalgava noutra
direcção. Mesmo assim, ela entregou-se-lhe totalmente, sabendo que Eneias a ia
abandonar. Por que é que o ser humano se comporta como Dido? – Raciocinou.
Pensara que todos são fracos e que, no momento de uma decisão racional,
relegamos tudo para a parte mais escura da nossa mente e as nossas acções
irracionais, que normalmente não aceitamos como certas, como algo bom, surgem
na prática, isto é, cometemos um erro ou fazemos aquilo que não devíamos ter feito.
Arremessamos tudo para o inconsciente.
Contudo, Dido tinha uma perfeita compreensão da situação e achava que tanto ela
como Eneias foram arrastados pela tempestade do destino para Cartago. Ela tinha
uma vaga ideia do que se alojava no lado escuro do espírito de Eneias. Ela viu uma
espécie de imagem reflectida, uma espécie de aceitação, na alma daquele homem.
O lado masculino de Dido reflectia o ser intrínseco de Eneias. É como se o lado
espiritual masculino de Dido reconhecesse o seu irmão gémeo noutro lado, no
homem que Dido amava doidamente. Será possível que seja por isso que uma
mulher e um homem são atraídos um pelo outro? Por uma força inevitável e
implacável, muitas vezes mortal? São estes dois espíritos que as leis universais
recomendam a unir-se em amor?
É possível que seja isso que acontece quando encontramos aquela pessoa com quem
desejamos viver juntos. É possível que uma pessoa, intuitivamente, sinta ou
experimente o seu próprio espírito na mente de outra pessoa.
Dido, no silêncio da noite, sob o céu escuro da cidade de Cartago, podia imaginar
Eneias sentado sobre um trono alto e elevado. Acima dele estavam Lúcifer e
Serafins, “cada um com seis asas… Eles clamavam uns para com os outros, dizendo:
Santo, Santo, Santo é o Senhor Deus dos Exércitos, toda a terra está cheia da sua
glória”. (Isaías 6,2-3). Ao som desse brado, as dobradiças das portas estremeceram
e o templo enchera-se de fumaça. O pensamento dela foi para o da viúva Judite
sobre o pescoço de Holofernes, com o propósito de salvar uma nação inteira. Ela
curvou-se sobre os joelhos e disse: sou a nova Judite. Sou a filha de Mattan I, rei de
Tiro e irmã de Pigmalião que mandou matar o seu primeiro marido, Sicheus, de
quem cobiçava a riqueza. Aquele que fugir da minha presença vai ter o destino de
Holofernes.
O coração de Renato palpitava ainda mais lento, sentiu o vento frio a entrar-lhe de
novo pelas narinas enquanto rememorava a declamação, em sinopse, de um poema
de Castro Alves numa aula de história:
A noite era escura, o mar revolto e o mocho continuava a piar algures. Segurava
rijamente a mão de um dos paramédicos. A sombra do desespero passou-lhe na
21O poema foi escrito pelo poeta brasileiro, Castro Alves, em 1869, encontra-se publicado no
http://www.culturabrasil.pro.br/navionegreiro.htm
de suicídio fincou-se-lhe mais adentro no espírito e imaginara ele mesmo metido nas
estreitas tábuas de pinho que constituía um caixão a caminho do cemitério,
prevendo e olhando para os rostos dos que o iam, piedosamente, acompanhando
nas suas dores à sua última morada. Sacudiu de si essas imagens que lhe bailavam
no cérebro. Foi apenas uma edição aumentada do que tinha pensado em outras
ocasiões, poucas horas antes, mas agora com maior fundamento, com maior peso
na consciência. Foi uma fiel tradução do que lhe bailava no espírito e a razão das
suas preocupações, patente no modo pensativo de há pouco, como um raio de sol
filtrado por entre nuvens negras de tempestade. Porventura, este pensar que deixa
sulcos profundos na memória do homicida, venha a ser a sua maior condenação no
Tribunal da Consciência. Mais tarde, não podendo suportar a presença de outras
pessoas, voltou ao hotel. Pegou novamente do telefone e digitou um número de
telefone.
– É o senhor...
– Sim sou eu, caro amigo. Estou aqui apenas à espera da tua mensagem. Correu
tudo bem?
– Sim tudo perfeito. Preciso de um bilhete de viagem amanhã antes das onze.
– Não será melhor um dedo de conversa hoje mesmo?
– Para quê?
– Queria fazer-te umas perguntas...
– Não quero mais perguntas. O senhor sabe perfeitamente do que sou ou não
capaz. Nenhuma outra pessoa das minhas relações me conhece tão bem como o
senhor. Estarei amanhã no aeroporto à espera. Não é preciso ir lá pessoalmente, pois
não tenho mais declarações a fazer. Qualquer pergunta sobre o caso pode fazer-me
saltar do telhado e isto é pouco aconselhável para ambos. Boa noite.
Nero sentiu-se mal devido ao que tinha feito. Sentiu-se só naquele momento.
Sentiu-se enjoado e muito maldisposto. Se lhe acontecesse algo de mal naquele
momento, não haveria ninguém que o socorresse.
– Então, faz as malas e desaparece. Já nem eu te quero ver mais – disse o homem
doutro lado da linha.
Nero Bettencourt fechou os olhos. Sentiu-se anormal, meio suspenso. Parecia que o
seu espírito saía do corpo e pairava por cima a observá-lo. Pensou que se fechasse
os olhos conseguiria ver os pormenores nítidos da acção daquela tarde. Sentia-se,
de qualquer maneira, muito realizado. Era quase meia-noite e tudo tinha corrido
CAPÍTULO XIX
CAPÍTULO XX
Era já tarde quando o agente Roberto se apressou entre grupos de curiosos que se
encaminhavam em direcção ao hospital para se inteirar da tragédia da tarde. O
agente seguia absorto em seus pensamentos e não foi impedido pela polícia que
orientava o fluxo de pessoas na subida do Plateaupolis e de todos os caminhos que
convergiam para o hospital. Passou o portão frontal e foi directamente ao local onde
se encontrava o malogrado. Deu várias voltas ao defunto sem dizer uma palavra.
Retirou um caderno de anotações da sua pasta onde tinha já registado os suspeitos
e acrescentou qualquer coisa.
O agente contornou mais uma vez o cadáver e anotou mais umas notas rabiscadas,
mais informações no seu caderno. Depois de poucos minutos observando o corpo e
as lesões, saiu sem dizer nada. Quando na rua, acendeu um cigarro Prince, enquanto
dava uns passos largos e apressados no largo do hospital meio distraído e meio
aturdido, estava decidido a apanhar o assassino o mais urgente possível. Não tinha
qualquer dúvida, se nada o impedisse de ter acesso ao lugar do crime, resolveria o
caso. Apagou o cigarro, tirou de novo o seu caderno da pasta e dirigiu-se ao portão
do nosocómio e ali estacou. Poucos segundos depois, voltou, nervosamente, ao
passeio do outro lado da rua. Escreveu à frente de cada suspeito as suas possíveis
conexões e envolvimento na morte de Paín. Dirigiu-se ao seu carro estacionado no
largo do liceu. De volta ao seu gabinete, sempre absorto nos seus pensamentos,
sentou-se sem dizer nada à sua secretária. Depois tirou uma cópia das anotações e
entregou à Glória, dizendo:
– Preciso de entrevistar todas a pessoas desta lista urgentemente.
– Entendido – disse Glória.
– Deixa-me saber o resultado dos teus contactos o mais urgente possível.
– Preciso de uns poucos minutos – assegurou Glória.
A secretária olhou para a lista de nomes e ficou confusa. Olhou para o chefe que já
não estava sentado na sua poltrona. O agente levantou-se e tornou-se a sentar meio
confuso e sem palavras! Sem dizer mais nada, saiu ainda mergulhado no seu
pensamento e começou a passear de um lado para o outro no passeio da rua logo à
frente do seu gabinete.
Parou um instante para anotar qualquer coisa no seu canhenho e, de repente, um
rapazinho de cara suja e roupas amarrotadas surgiu da escuridão e lhe coçou no
cotovelo dizendo: um homem deu-me isto para lhe entregar. Enquanto lia o pedaço
de papel, o menino tinha já desaparecido na primeira esquina da rua.
Apressou-se em direcção à esquina, mas já não viu ninguém. Leu o pedaço de papel
de novo e olhou demoradamente à sua volta, coçando a cabeça. Praguejou dentro
de si e seguiu o seu caminho!
Enquanto ia cogitando, veio-lhe à memória a imagem do homem que tinha
mostrado pouca resistência contra as flechas amorosas de Cupido durante tantos
anos, agora foi morto pelas mesmas flechas. A cidade estava a ser invadida por
rumores estranhos e percebia-se que a atenção pública estava de tal forma
direccionada a um alvo comum que não adiantava abafar o que se tornou tão claro
– o envolvimento de um elemento passional. Dirigiu-se depois à praça pública frente
à Igreja matriz e ficou a observar, andando de um lado para outro, reparando no
aglomerado de gente por todo o lado e no vaivém de veículos policiais.
Tirou do bolso o pedaço de papel e, mais uma vez, ficou ciente de alguém que,
possivelmente, iria aparecer a qualquer momento. Desconfiou que, por causa da
presença dos polícias, ninguém lhe iria contar o que se passara há poucas horas na
praia de Quebra-Canela.
De longe avistou a Marta a aproximar-se apressadamente e foi, imediatamente, ao
encontro dela.
A cara dela parecia uma pedra transfigurada à imagem humana. Estacou-se à frente
dele como um robot e curvou-se para lhe perguntar algo.
– Tens algo para me dizer?
– Tenho, mas aqui não, ando confusa – respondeu.
– Tens alguma razão para andares assim?
– Claro que tenho – assegurou Marta.
– Um menino entregou-me este pedaço de papel e desapareceu num instante -
explicou.
Marta inspeccionou o pedaço de papel, segurando-o com as duas mãos. Fixou os
olhos nos do Roberto. Achou que alguém estava a brincar às escondidas com o
propósito de baralhar a situação.
– Um menino? – Perguntou, enquanto deu uma olhadela à sua volta.
– Sim um menino com uma cara suja – respondeu Roberto.
– Estamos tramados. Não consegues identificá-lo?
– Desapareceu da minha frente num abrir e fechar dos olhos – respondeu frustrado
o Roberto.
Tnreuroocbneett
– Uma cifra tem formações absurdas e tem a ver com letras. É uma cifra de
transposição. Uma cifra de transposição é um anagrama, pois está escrita com as
letras de uma outra palavra. Não tenho toda a certeza ainda, mas acho que é um
anagrama. Um anagrama é uma palavra ou frase feita com as letras de outra (caos
e saco são anagramas de caso) – argumentou Roberto.
Marta afastou-se sem virar a cara. Roberto ficou a transpirar de impaciência. Os
minutos tornaram-se longos e tinha agora mais coisas em mente do que quando saiu
do hospital. Sentiu-se inquieto no momento. Ficou a pensar se o bilhete fosse
propositado para lhe tirar da senda que conduziria ao perpetuador ou para o afastar
da ideia de entrevistar os suspeitos. Fez mil perguntas a si mesmo e acabou por se
sentar num banco da praça pública à espera que aparecesse alguém com coragem
suficiente para o enfrentar. Não se sentiu seguro quando a luz se apagou deixando
a cidade numa escuridão tremenda. Levantou-se e foi-se embora sem ter o esperado
contacto. Dirigiu-se à casa da Marta para a informar de que não havia ainda
quaisquer avanços ou novidades. Depois de sair da casa da amiga, dirigiu-se para o
seu gabinete e encontrou-se com a secretária no meio da escadaria. Pediu-lhe para
voltar ao escritório e deixar os preparativos da entrevista na gaveta até nova ordem.
Sentaram-se no gabinete num silêncio prolongado e, por fim, disse à Glória: vamos
tomar um café na Esplanada, para associar os pensamentos.
CAPÍTULO XXI
Os documentos
é o roubo – pensa Marta. Quando uma pessoa mata outra, ela está a roubar-lhe a
vida. Se negamos o direito a outra pessoa de pensar e actuar, estamos a roubar-lhe
a sua liberdade. A vida é uma oportunidade enorme e é pena que o homem só
descubra esta verdade quando é já demasiado tarde. Porquê tanta dor quando
podemos construir a paz! Porquê tanto ódio quando podemos amar-nos uns aos
outros? Porquê tanto desprezo quando podemos valorizar as infinitas virtudes do
homem? Porquê tanto sofrimento quando podemos construir a felicidade? -
Pergunta ela.
CAPÍTULO XXIII
Marta e Fátima
divina, quando estes braços se estendem, caiem neles todas as almas. Padre António
Vieira reduziu as inúmeras paixões do coração humano a duas paixões capitais: amor
e ódio. E acrescenta: são dois afectos cegos e são dois polos em que se revolve o
nosso mundo. Mas esses polos são mal governados e mal geridos. Se os nossos olhos
vêem com amor, até o próprio diabo é formoso. Se escolhem colocar a lente do ódio,
até o anjo mais puro se torna feio e desfigurado. Com amor, o anão e o pigmeu,
agigantam-se. Com ódio, o gigante torna-se pigmeu. Se os olhos vêem com amor,
têm o poder de transformar o objecto amado no seu máximo potencial, no entanto,
se escolhem a perspectiva do ódio, aquilo que vêem é um pequeno fragmento que se
espelha a si mesmo, enfatizando, a cada vez que se olha de frente, toda a ira que
carrega dentro de si. – Disse o famoso padre.
– É nosso dever ou obrigação moral investigar esta tragédia que se abateu sobre
nós neste momento. Este dever pesa-me na consciência e vai continuar a pesar na
consciência da nação. Para mim, este dever é como a religião. A verdadeira religião
é o sentimento de dever. O dever não é, necessariamente, a luz da minha vida, mas
é a luz da alma ou algo maior que nós mesmos, que nos guia dizendo: eis aqui o rumo
que deves seguir, aqui é o caminho recto, eis aqui o trilho que conduz ao teu destino.
Pode não significar, necessariamente, o destino final de negativa conotação que
comummente se lhe atribui, mas sim, um lugar onde se chega quando se caminha
pela vida ouvindo a voz da intuição e deixando-se conduzir por um propósito que nos
transcende. Dever, no sentido de ter por obrigação; de ser provável e mais favorável
se agir de tal forma; de ter de agir de determinada maneira em estreito compromisso
com a sua consciência de estar obrigado a; ser devedor de; estar em agradecimento
a alguém, etc. Isto é, a obrigação de fazer ou deixar de fazer alguma coisa, imposta
por lei, pela moral, pelos usos e costumes ou pela sua própria consciência. Trata-se
do dever imposto pela consciência que fala. Assim como, temos dever de escolher os
nossos governantes, temos o dever de os tirar do poder. Temos também, o dever de
cumprir as leis, de respeitar os direitos inalienáveis de outras pessoas; educar e
proteger os nossos semelhantes; proteger a natureza; proteger o património público
do país; colaborar com as autoridades, etc. É, em suma, realizar o ideal do ser
humano. Este tipo de sentido de dever, surge com a necessidade de se estabelecerem
relações entre as pessoas, a fim de se criar uma ordem social capaz de promover a
acção colectiva rumo ao desenvolvimento, tanto a nível individual, na esfera pessoal
de cada um enquanto ser, como a nível social.
– É, então, nosso dever investigar o trágico acontecimento – concluiu.
– Segundo Immanuel Kant, segundo a sua teoria do ser e do dever ser, o dever ser
corresponde ao comportamento do homem de acordo com as normas, exteriores a
ele, com a justiça e com as leis do Estado. O dever ser, corresponde ao mundo ideal,
ou seja, o homem agindo de acordo com a justiça. Kant observa que existe uma dupla
legislação que actua sobre o homem, ou seja, uma legislação interna ou intrínseca e
uma legislação externa ou extrínseca. A interna, diz respeito à moral, obedece à lei
do dever, sendo de foro íntimo. Por exemplo, se ajudamos alguém esperando a sua
gratidão e o seu reconhecimento, não estamos a agir moralmente, pois esperamos
algo em troca da nossa acção. Neste caso, a nossa finalidade é obter a gratidão do
outro e não o bem em si mesmo. Agiríamos moralmente se, simplesmente, nos
guiássemos por um dever de fazer o bem, independentemente das consequências ou
possíveis retornos. Se há imperativos categóricos, aos quais não podemos nos
subtrair, impõe-se o reconhecimento de que somos livres para nos ser possível o
cumprimento do dever. Em outras palavras, se podemos agir em determinado
sentido, se podemos escolher agir de acordo com a lei universal de conduta, é sinal
de que somos livres. A prática do dever exige a existência da liberdade. Entenda-se
aqui, a noção de livre arbítrio, isto é, o conceito de sermos responsáveis pelas nossas
próprias escolhas e conduta de vida. Tal como a paz perpétua, a justiça universal, o
encontro do ser e do dever ser: não se trata de acreditar ou não, se é uma utopia ou
um sonho, trata-se de viver como se a justiça universal fosse possível e de caminhar
para ela. É nesta conformidade que quero agir segundo os imperativos categóricos
da legislação interna, obedecendo à lei do dever, à lei moral dentro de mim! –
Completou Marta.
– Estou a ver onde queres chegar. Estou a ver, também, que por mais que uma
pessoa seja habilitada, capaz, qualificada, poderosa, influente, etc., se não tiver o
sentido de dever, ninguém acredita nela. Mas uma vez, descoberta numa pessoa um
sentido vivo de dever e responsabilidade, sente-se imediatamente, uma crescente
confiança, a ponto de se ficar dependente dela. Foi o que Paín procurou incutir em
nós. Foi o que ele procurou incutir em nós – repetiu Fátima.
Ambas ficaram em silêncio durante uns segundos. Ambas estavam profundamente
comprometidas com o sentido de responsabilidade. É verdade que uma pessoa
responsável é capaz de mobilizar uma energia interna nas outras pessoas. Este
sentimento de dever ou obrigação moral que uma pessoa transmite a outra, é a
melhor impressão que se pode incutir nos outros. Neste sentimento encontra-se
toda a virtude, força, poder e bênção. Valorizamos um amigo em que temos
confiança. Por isso, podemos dizer que todas as qualificações que o homem possui,
sejam elas provenientes de universidades ou de escolas médias, todas parecem
situar-se na superfície, mas por detrás delas, há uma força que as mantêm vivas,
essa força ou espírito é o sentido de responsabilidade. Marta parou com os soluços.
Tinha a face virada para o céu. Lentamente, movera os seus olhos para o horizonte
onde o mar abraça eternamente o firmamento e disse em voz agradável:
– Tenho a impressão de que há algo passional envolvido neste drama. Aquele bom
homem tinha uma boa porção de esperança de ver esta terra num estado avançado.
Acho que a esperança nunca abandonou os homens. É na esperança que se resumem
todas as bênçãos da vida cabo-verdiana, toda a expectativa de uma vida mais
folgada no porvir. A esperança de um dia melhor, a esperança da chuva, de um bom
governo, de uma sociedade bem organizada, da liberdade de andar sem medo nas
ruas das cidades do país, etc. É nela que nós investimos por um melhor amanhã. Ele
sabia manter-se superior às esperanças de uns e às suspeitas de outros e com
serenidade ultrapassou muitas barreiras intransponíveis para muitos. Cristo foi
morto por ser tão bom, Sócrates foi morto por ser bom e muitos outros bons também
tiveram o mesmo destino trágico, mas a longo prazo, benéfico para a sociedade.
– Penso que há mais do que um móbil. O que se pode dizer do motivo político? Era
um concorrente a altos cargos! Não te esqueças desse pormenor! Era um homem
com bagagem, que incutia respeito a muitos, enfim, não quero especular sobre este
assunto arriscado. Mas havia nesse homem um espírito elevado. Há de se reconhecer
isto. Era responsável e era um homem de Estado capaz de mudar o destino de todos
nós – disse Fátima.
– Além disso, tinha uma proposta de mudanças na estrutura política que, segundo
os zunzuns da cidade, ainda não tinha sido publicada. Judith sabia e conhecia, pelo
menos em parte, os documentos e o fim a que se destinavam. Onde está a proposta?
Quem a tem? – Questionou Marta.
Pode-se pensar neste momento que o leitor amigo estará curioso em saber quem
era o infeliz ou a infeliz que matou Renato Cardoso e de quem as duas amigas falam
no diálogo que se segue, se é que já não tenha suspeitado que esse ou essa não era
nem mais nem menos que o Fulano ou Beltrano. O melhor é contentar-se com a
realidade. Se esta é brilhante, como a suspeita acima, tem pelo menos, a vantagem
de existir um(a) criminoso(a) e este(a) encontra-se nas imediações das suspeitas.
Não será preciso dizer ao leitor arguto que o autor mais se ocupa em mencionar
duas ou três causas ou móbeis e em expor, dentro do possível, alguns sentimentos
humanos e, até certo ponto, a lógica implicada, sendo apenas e só este o motivo que
o move na elaboração desta obra. Outra coisa não o animaria ou se atreveria a fazer
ou a dizer. É muito arriscado. Pelo menos foi na altura, muito arriscado. No entanto,
o que se atreveria, com muita coragem, seria por na boca das duas amigas
destemidas, as gotas de ódio que destilaram de um amor antigo. Fosse este amor
de teor político ou passional, para consolar a si mesmo e ao leitor interessado em
desvendar o caso em questão.
Marta confiava muito na sua intuição. Fechou os olhos para abrir as cancelas do seu
espírito, abriu a boca para falar, mas não achou palavras que dissessem o que
interiormente sentia; levou a mão ao peito para certificar se o coração batia e ficou
a olhar para Fátima com os olhos esbugalhados, secos e parados, a voz extinta, como
se a alma lhe fugisse. Caiu nos braços da amiga com rítmicos soluços. Esta consolou-
a no que pôde. A serenidade parecia morar-lhe na alma e reflectir-se-lhe na cara,
mas os sentimentos da amiga eram tal qual os da Marta. Ambas se sentiam
penalizadas e esses sentimentos eram punhais que se lhes cravavam no peito. Como
se reproduzisse os sentimentos interiores da amiga, muda como uma pedra,
sacudiu-a dando-lhe uma leve palmada na cara que a trouxe de volta para o mundo
real.
– Vamos dar um passeio para te sentires melhor – balbuciou Fátima.
Saíram em direcção à antiga Rua Sá da Bandeira. Contornaram a esquina que dá para
a praça pública. Deram duas voltas à praça e dirigiram-se para o miradouro de Serpa
Pinto, o lugar preferido onde costumavam conversar. Certificaram-se de que tudo
estava bem com a saúde e começou a desenhar-se-lhes no espírito a ideia de como
contribuir para aclarar a situação de desespero. Pensaram que a responsabilidade
tinha de estar algures. Toda a gente se questionava sobre isso, se a responsabilidade
da perda do paraíso devia caber a Eva ou a Adão.22 Uns, dizem que cabia a Eva,
outros, a Adão. Mas, com mais plausibilidade, a ambos. Ambos deviam ou devem
assumir a responsabilidade. Portanto, ambos são culpados. A culpa tem sempre
duas faces.
As duas amigas levantaram-se e, num silêncio de campo-santo, moveram-se em
direcção à saída, mas não saíram. Voltaram ao ponto de partida. Se alguma vez
tivessem de ser uma esponja de choque, era naquele momento. Estavam
melindradas! Estavam a tentar reconstruir na mente, com toda a concentração e
clareza, aquela tragédia que chegara sem avisar e sem dar tempo para despedidas.
Procuravam encontrar significado nas imagens que lhes acorriam à mente
inesperadamente. Nada claro que indicasse sequer remotamente uma causa, um
móbil, uma ligação passional ou uma ligação ao Governo, mesmo munido de um
arsenal tão vasto de conhecimento e de numerosas suspeitas. Tinham medo de
descobrir se se tratava, de facto, de um assassino contratado. Medo de mencionar
os móbeis e as consequências que dai advêm. O medo estratificado na textura social,
o medo que não se exprime em linguagem simples, mas sobretudo não se exterioriza
porque o povo é considerado mentecapto, incapaz de saber decidir o seu próprio
destino, de raciocinar e tirar as suas próprias ilações. Marta cravara na amiga, um
par de olhos castanhos como se fossem punhais do mais duro metal fundido nos
magmas do nosso vulcão. Esse medo entranhado no espírito do povo era
comentado, em voz baixa, nas esquinas, nas cabeleireiras, nas barbearias, nas
repartições públicas e nos bares, e transformou-se num romance do destino,
correndo de boca em boca nas ruas, nos caminhos e nas estradas do nosso país, num
fatalismo sem par. Os amigos do Renato sabiam dessa aleivosia, dessa deslealdade
que o medo acomete aos braços fracos do povo. Mas que fazer? Fátima sabia de
muitas coisas que se passavam ao nível do poder, mas não tinha coragem para
denunciá-las, nem que fosse com a sua amiga do peito. Porém, o momento era
propício a desabafos. Desabafar era o único lenitivo para a sua dor no momento e
interrompeu o silêncio:
– Há quem faça de tudo nesta terra para salvar e conservar o poder e até dizem
que preferem andar sobre cadáveres a ceder o poder a outros, que fazem tudo para
conservar a ideologia partidária. Estou só a pensar alto. Ao mesmo tempo, temos de
dar uma nesga do nosso cuidado e pensamento aos familiares deixados. Também
temos de pensar no nosso pão de cada dia.
– É e foi uma tristeza, meu Deus. Que pena. Quem me dera ter-lhe podido valer
naquele momento. Prestava-lhe, pelo menos, a assistência na altura em que mais
necessitava dela. Gritava pelo socorro, emprestava-lhe um pouco do meu fôlego,
pedia-lhe o favor de não nos deixar, executava tudo segundo o esquema que fazia
parte da nossa maneira habitual de proceder com qualquer doente – disse Fátima
angustiada e com a mão sobre a cabeça.
– Ocorreu-me agora uma coisa interessante, Fátima. Lembras-te de Daniel e Judith
terem-se zangado connosco naquele dia, nas vésperas de São Pedro, só porque tu e
eu questionámos sobre a fragilidade das suas relações?
- Claro que lembro, Marta. Eu nunca mais toquei no assunto. Não quero voltar a
falar sobre isso. Dói-me até os ossos ao lembrar-me da atmosfera criada naquele dia
que se pretendia que fosse de festa.
O silêncio que se seguiu, começou a sentir-se, excessivamente, pesado. Marta
esfregava-lhe inconscientemente com a mão direita as costas. Não tinha muito a
dizer. Estava a etiquetar um homem que tinha na sua mente de vestuário
amarrotado e olhos negros, de expressão bravia e uma outra pessoa que o ajudou,
também, de indumentária mal-arranjada. Começava a chuviscar quando, de
repente, a luz da cidade se apagou. O apagão era uma coisa normal naquela cidade
e, por isso, não sentiram medo. Continuaram sentadas mais alguns minutos.
– Sabes uma coisa? - Inquiriu Marta. – Estávamos a falar sobre o medo. Vivemos
aqui atabalhoados entre um medo que nos entra olhos dentro e a escravidão dos
o processo de construção de sua coragem. Coragem de resistir àquilo que lhe causa
medo, mas também, coragem de obedecer àquilo que pode tirar-lhe o medo.
Somente agora percebemos a grande personalidade de Renato.
Fátima e Marta desejavam ser de novo testemunhas do amor de Renato pelo
mundo, com os seus sonhos e ideais, desejavam que o mundo lhe retribuísse esse
amor de volta, que fosse estimado por todos, mas queriam, sobretudo, vê-lo. Ambas
já não podiam conter as suas lágrimas, vertiam-nas incessantemente. Ambas faziam
de Renato a pintura mais lisonjeira do mundo, porque era a todos os níveis um
homem distinto, notável, de nobreza social e digno de estima para o povo das ilhas.
Recorda-se que Renato Cardoso era um grande político e diplomata que queria
introduzir reformas, não só, na administração pública, mas também, em todo o
sistema político vigente da época. Reformas que pudessem pôr fim aos grandes
exageros de alguns fanáticos que proliferavam no poder. Alguns desses fanáticos
infernizavam a vida daqueles que pensavam de um modo diferente. Faziam a
glorificação da ignorância e admitiam a mediocridade no sistema de governação.
Com o sistema adaptado a incutir e perpetuar o medo nas pessoas, conseguiram
permanecer no poder e colocar uma venda nos olhos e na mente do povo que,
pouco a pouco, se resignou ao sistema, acreditando que a verdade não pode ser
outra senão a que o partido único pregava.
Assim, como a morte de Amílcar Cabral, intensificou-se a luta pela independência
política, a morte de Renato Cardoso, apressou a chegada da liberdade de opinião e
consolidou a democracia em Cabo Verde. A polémica que se seguiu após a morte
dele mobilizou os meios intelectuais cabo-verdianos da época e rendeu a
democracia ao país. Não podemos deixar de mencionar que o modus operandi das
patrulhas ideológicas era tal que as pessoas eram silenciadas pela “omnipresença”
dos militantes, pelas milícias populares e pelo medo alastrado em todas as
estruturas sociais. Existia, portanto, um sistema de pressão, abstracto e concreto ao
mesmo tempo, um sistema de vingança, caso o vizinho ou amigo não se
comportasse segundo os critérios dominantes. As manifestações culturais cabo-
verdianas eram codificadas e, tudo o que escapasse a esta codificação, seria
necessariamente, patrulhado com um efeito refreador no desenvolvimento do país.
Isto era possível porque já estavam lançadas no extracto social as condições
necessárias e suficientes para a vigilância ideológico, aproveitando-se de relações de
autoridade ou mediante abuso de espaço público. O objectivo deste controlo social
era, portanto, convencer o povo para que se seguisse ou obedecesse as normas e os
critérios dominantes.
23 https://pt.wikipedia.org/wiki/Alemanha_Oriental
CAPÍTULO XXIV
Um encontro desagradável
Dada atenuação da verdade, resultara aquele perene estado de luta interna, uma
luta abafada de receios, de indecisão e de amarguras secretas. Para dar o último
traço ao perfil das coisas e pôr à prova a sua natural sagacidade, contribuindo para
levar a cabo uma operação delicada e difícil, que exigia muita discrição e perícia,
Daniel percebeu que, uma diplomacia de grande alcance, deveria ser aplicada e, se
as coisas corressem bem, podia contar com um lugar de alta responsabilidade ou
com um futuro brilhante no estrangeiro ou mesmo no país, com a esposa.
– Quero sair do país e encerrar as coisas de uma vez por todas. A partir deste
momento, nós não nos conhecemos. Não quero mais ser parte disto tudo. Guardarei
para sempre o segredo profissional, mas nada mais – disse determinantemente.
Aquiles, percebendo a narração e os sucessos obtidos, compreendeu, como homem
que não tinha nenhuma comoção na voz porque não tinha coração, que tudo tinha
corrido como planeado. Olhou de frente para Daniel, como se o perfurasse com o
olhar e disse com frieza e sequidão:
– Vai a casa descansar e arrumar as tuas coisas.
Daniel sentiu que a torre que lhe tinha caído em cima, evaporara-se naquele
instante. Levantou-se e saiu apressadamente. Aligeirou os passos e quando Aquiles
se consciencializou do que tinha dito não viu mais que a ponta do casaco que se
perdia por detrás de uma porta. Aquiles causa-lhe desgosto através da capa rota da
sua importância, via-se-lhe palpitar a triste vulgaridade. Possuía apenas um
espectáculo brilhante de grandezas sociais embrulhado num saco de pompas e
amor-próprio. Mas Daniel Delgado, atravessando a rua, sentiu como se todos os
olhos do mundo estivessem a incidir sobre si e precisava urgentemente de se
esconder destes olhares curiosos. Precisava de um refúgio urgente para fugir às
pretensões de Aquiles. Preferia nunca mais ver aquele homem frio e calculista que,
segundo se diz, é um funcionário de alta posição.
Aquiles recolheu-se ao seu escritório e deu por si batendo os dedos de satisfação
sobre a escrivaninha. Imagine-se, por isso, o seu estado de espírito depois da
declaração do Daniel. Foi um presente do céu naquele momento. No entanto, estava
satisfeito consigo mesmo. A sua fasquia não era alta, as tristezas do seu coração não
CAPÍTULO XXV
Nos princípios dos anos noventa, uma amiga e colega do Djonzinho, que era uma
ferrenha Testemunha de Jeová, contou-lhe que o país em que mais aumentou o
número de Testemunhas de Jeová (TJ) era Cabo Verde. Não acreditava, mas anos
depois, confirmou que era verdade, que uma série de seitas religiosas surgiram no
país e que estavam todas em crescimento. Este aumento do número de seitas
religiosas veio explicar uma série de outros acontecimentos no país. A liberdade
religiosa é uma coisa boa, mas é boa a consequência desta liberdade? Vive o povo
mais feliz? É esta felicidade parte do desenvolvimento do país? Aquiles e Dário,
apesar de pertenceram ao mesmo grémio de amigos, tinham ideias diferentes
relativamente à maneira de alcançar a felicidade numa sociedade. Dário não é
membro activo da seita, mas conhece bem os contornos da organização e simpatiza
com ela. No dia em que a igreja satânica completou 2 anos, houve palestras e orgias.
Depois do jantar, o senhor Delgado e membros de outra congregação, travaram uma
acesa discussão sobre a existência de um deus diferente. Delgado começou por
perguntar aos outros a seguinte questão:
– Qual é a função da vossa congregação e quais são as estratégias de satanás para
destruir o homem?
– Deixa-me primeiro iniciar-te numa coisa muito importante. Há aqueles
fenómenos do Mal contra o Bem que preocupam o ser humano. É uma luta
constante. Nós, que estamos na tribuna do Mal, pensamos que o Bem não existe e,
se existe, anda muito fraco. Basta olhares à tua volta. Tantas coisas temíveis que
acontecem! Mas, frente à frente, encontra-se a tão chamada tribuna do Bem a
desafiar-nos constantemente. Os satanistas prevêem o futuro e sabem que não
podem vencer Deus nem o Bem, mas trabalham em colaboração com os seus anjos
com muito afinco para levarem o maior número possível de pessoas para o lado do
fogo do inferno, aquela prisão eterna.24 Portanto, não temos nada a perder no nosso
grupo. O nosso propósito é desviar o máximo número de pessoas. Nosso objectivo
maior é afastá-las de Deus. Isto é possível através de uma estratégia bem camuflada,
estimulando-as a praticar o mal e confundindo suas ideias com um mar de filosofias,
57 Ezequiel 28:19; Judas 6; Apocalipse 20:10,15
58 1Pedro 5:8; Tiago 4:7; Gálatas 5:19-21; 1 Coríntios 3:3; 2 Pedro 2:1; 2 Timóteo 3:1-8; Apocalipse
12:9.
26 Ezequiel 28:15.
27 Ezequiel 28:12,13.
28 Ezequiel 28:14; Apocalipse 12:4.
29 Ezequiel 28:13.
– Qual é a causa ou o que aconteceu quando ele foi afastado da função de maior
honra que um ser vivo poderia ter?
– Isso não aconteceu de repente. Um dia, ele viu-se nas pedras (como espelho) e
percebeu que sobrepujava os outros anjos (talvez não ao arcanjo Gabriel) em beleza,
força e inteligência. Começou, então, a pensar como ser adorado como Deus e
passou a desejar isto no seu coração. Do desejo passou para o planeamento,
estudando como firmar o seu trono acima das estrelas de Deus e ser semelhante a
Ele. Num determinado dia, tentou realizar o seu desejo, mas acabou por ser expulso
do Santo Monte de Deus.30 Pois o orgulho, a vaidade e o narcisismo fizeram-no cair.
– Mas o que é que detonou finalmente da sua rebelião?
– Quando percebeu que Deus estava para criar alguém semelhante a Ele e, por
consequência, superior a ele, não conseguiu aceitar o facto. Manifestou, então, os
verdadeiros propósitos do seu coração.31
– O que aconteceu com os anjos que estavam sob o seu comando?
– Eles seguiram-no e, também, foram expulsos. Formaram o império das trevas.32
– Como ele encara o homem?
– Ele tem imenso ódio da raça humana e faz tudo para destruí-la, pois sente inveja.
Acha que ele é que deveria ser semelhante a Deus. [1Pedro 5:8].
– Aquiles, compreendo que o que dizes foi elaborado com base nos versículos
bíblicos, por isso é uma ilustração da mais pura verdade. Mas por que razão é que
vocês pegam apenas na parte do Livro Sagrado que fala do satanás? Também se
encontra algo de bom nos Hebreus [3:7,8] onde o Espírito Santo diz: ”se ouvirdes,
hoje, a sua voz, não endureçais os vossos corações”. Não justifica a veneração ao
satanás se o próprio criador nos adverte de tal perigo. Diz, também a Bíblia, que
“ninguém tem maior amor do que Aquele que dá Sua vida em favor dos Seus amigos”
[João 15:13] e nos ensina a amar os nossos próprios inimigos. Portanto, Jesus no
Novo Testamento, mudou tudo aquilo que contribuía para dividir os povos,
lapidação, olho-por-olho...
– Sim, naturalmente.
– Vamos ver uma coisa importante sobre a tua vida privada: és membro da igreja
satanista ou és membro da igreja protestante?
CAPÍTULO XXVI
Roberto era um homem magro, de olhos fundos e acastanhados, cara cheia e a boca
fazia uma reentrância que dava um aspecto de estar sempre a sorrir. Nos momentos
de investigação mostrava uma paciência sem igual, de olhar atento e detalhado,
como se prestasse mais atenção do que os outros, interrogando e teimando em
prosseguir. Quando mergulhado em cogitações, exclui a presença de todos para se
concentrar exclusivamente no objecto ou na ideia sobre a qual reflecte. Um homem
de poucas palavras, mas de cogitações profundas. Quando fala, não lhe saem
asneiras pela boca. Um homem que luta contra a alienação do homem comum,
contra aqueles que subvertem as conquistas milenárias da civilização, pisando a
ética, espezinhando as instituições democráticas, os direitos naturais e universais,
desdenhando a dignidade dos outros. Um homem que crava o seu olhar nos
problemas da classe inferior que sempre erra aos olhos da classe superior,
carregando sobre os ombros todos os males da sociedade.
Numa tarde coberta de nuvens espessas, sentados na Esplanada da praça pública da
capital do país, estavam todos animados em conversas, isto é, numa tertúlia de
amigos. O vaivém de pessoas estava animado pela temperatura agradável do dia.
As pessoas deitavam um olhar curioso, invejoso e profano sobre o grupo de amigos.
Roberto tinha o costume de usar longos cabelos que lhe davam pelos ombros. Os
olhares penetrantes eram uma forma de desaprovação. Mas a desaprovação era
mútua. Sentiu aqueles olhares sobre si, ouviu o eco das zombarias e os comentários
depreciativos! Ele parece uma mulher, diziam. Era, obviamente, sobre o cabelo que
os transeuntes estavam a falar e a criticar. O cabelo, longo e encaracolado, estendia-
se-lhe sobre os ombros. Ele nunca ostentava uma atitude pretensiosa. Não dava
qualquer atenção ao que diziam sobre o seu cabelo. Sabia que nada neste mundo
fala mais sobre uma pessoa do que o cabelo. Basta perguntar às mulheres. Elas
podem passar horas a arranjá-lo com grampos, fivelas e com engenhosidade. Em
tempos remotos, o cabelo definia-nos como seres humanos, na medida em que,
definia o nosso estatuto social e o nosso lugar na sociedade. Os egípcios, os
romanos, os gregos e até os Vikings, com a ferocidade implícita no cabelo e na barba,
invadiram outras terras destruíram suas culturas que não ostentavam o mesmo tipo
de cabelo. Na época renascentista, os agitadores sociais da época, usavam sempre
cabelo longo. Para os barrocos e os romancistas, os gregos e troianos e outros povos
em todas as épocas, o cabelo e o penteado foram importantes marcadores sociais.
Roberto ao deixar o seu cabelo crescer daquela maneira, mostrava ao mundo o lugar
que ocupava na sociedade segundo os que o criticavam. Não só. A aparência das
pessoas conferida pelo cabelo, em certos meios, mais do que a cor da pele, define
as pessoas como sendo de classe mais alta ou mais baixa. Se são longos e se
estendem até às costas, são da classe alta, se encaracolam, são da classe baixa,
segundo a psicologia da classe que colonizou as nossas cabeças.
Lembremo-nos da barba do rei que pagou todas as dívidas duma nação. A barba é
usada em quase todas as religiões como símbolo de poder, de ser diferente e, muitas
vezes, de beleza e marcador social. Aqueles que pretendem ser diferentes cortam o
cabelo curto, talvez como forma de protesto, de diferenciação. Alguns cortam o
cabelo curto para irradiar uma masculinidade que, simultaneamente, indica
conformidade com determinados grupos sociais que os distanciam do status quo
estabelecido. Por que insiste a tradição militar em todos os países para que os
soldados andem com o cabelo curto? O cabelo curto, neste caso, incorpora um
indivíduo no anonimato de massas, na submissão de classe, na inferioridade
hierárquica. Porém, Roberto não dava atenção a nenhuma dessas categorias, não
tinha pretensão de ser diferente. Não tinha, simplesmente, tempo para cortar o
cabelo.
Roberto questionava certas atitudes que surgiam na sociedade actual e dizia sempre
que era difícil imaginar a coragem que era necessária para enunciar um projecto ou
projectos que embatiam contra o comportamento Todo-Poderoso que cimentava a
estrutura política de então. Isto é, propor um projecto nacional que contrariasse o
que todos os bons militantes aceitariam como a palavra que vinha da Luz e Guia,
palavra que transcendia todas as verdades e valores do mundo. Quem iria crer nas
promessas desses projectos?
A ousadia de Renato era grande. A sua boa índole e o seu brilhante aproveitamento
nos estudos, continuaram a granjear-lhe, no entanto, a simpatia e o aplauso dos seus
melhores amigos que também estavam perto da cúpula do poder.
Já na época decorria a profanação das igrejas. Os criminosos não eram perseguidos
como deviam ser. Uma onda de profanações abateu-se sobre lugares santos e a
nação inteira tremia de medo. Bem, era uma gigantesca luta interna. Os movimentos
satânicos estavam já estabelecidos no país. Era então de esperar que quem ousasse
contradizer as normas estabelecidas correria o risco de apanhar um castigo severo.
Se a verdade de um projecto chocasse contra a verdade da Luz e Guia do povo, então
aconteceria o que aconteceu com Giordano Bruno, que foi condenado a morrer na
fogueira por ter sustentado que o espaço é infinito e está povoado de estrelas tão
grandes como o Sol. Dizer que existe uma verdade que transcende as da Luz e Guia
era um problema que desafiava uma elite que não queria largar o poder absoluto.
Renato, como pessoa de cariz religioso, discutia frequentemente com Aquiles e seus
acólitos, mas sempre que os deixava, dizia umas palavras dentro de si e orava. Assim
fez, também, naquele dia em que deixou o gabinete do Presidente da República.
Orava com o fervor de um santo. Mais duradoiro do que qualquer monumento que
se possa erigir para perpetuar a memória de uma pessoa que foi o legado da sua
coragem. A vida de Renato Cardoso, tão cheia de esforços e dificuldades, tão cheia
de fé e de esperança, tão cheia de clareza espiritual, pode sintetizar-se na expressão:
per aspera ad astra, que significa: através das dificuldades, a caminho das estrelas.
Como cristão, foi sempre firme na sua crença e nas suas palavras. Sempre que
acabava de fazer um projecto, ter uma conversa difícil, ler um livro ou terminar o
trabalho diário, recordava a oração de Johannes Kepler: Meu Deus, graças Vos sejam
dadas por nos guiardes para a luz da Vossa glória, pela luz da Natureza. Realizarei a
tarefa que me destes e regozijo-me na Vossa criação, cujas maravilhas me
permitistes que revelasse aos homens. Amem.
Porém, as sombras do infortúnio estariam a girar à sua volta. Pressentiu-as por várias
vezes. No entanto, o seu ideal era maior do que a própria vida, algo maior que si
mesmo. Tinha muito claro na sua mente o cenário de um país plantado no Atlântico,
onde cada um tem direito à sua gota de água, à sua colher de sopa, à sua
catchupa,33ao seu pedaço de terra, ao seu bom nome, à liberdade de se exprimir, de
pensar, de agir, sem vender a sua consciência para ter estes direitos. O seu modo de
agir nascia do amor pela pátria. O amor mantinha os seus desejos unidos. Desejos
de criar uma nova pátria de todos e para todos. Comportava-se como um homem
comum, não para julgar os homens de estrelas ao peito, mas para levar e transmitir
a mensagem dos homens da rua. Para levar a poesia solta na rua aos homens do
poder, mas estes, bastantes vezes, foram surdos e cegos. Para ele, a Luz e Guia eram
algo mítico usado para desprezar a noção da dignidade, de direitos humanos e da
justiça social, para se distanciar do povo cabo-verdiano. Renato desprezava esta
visão do mundo que contradiz a sua noção tradicional da justiça. Era um homem de
costumes, de tolerância, mas sobretudo, de Paz.
No documento que constituía o Projecto sobre a restruturação do poder e o caminho
para o pluripartidarismo em Cabo Verde, a parte que mais embatia contra ou
desafiava as instituições estabelecidas era A Estrutura do Sistema Político, onde
propunha uma reestruturação do sistema vigente. Estava escrito numa linguagem
que só os intelectuais entendiam. Foi feito, propositadamente, para evitar ser
importunado pelos principiantes na política. Ele sabia que a maior alegria que existe
no mundo é a de construir uma ponte entre o sonho e a realidade. Estava em vias
de uma luta para construir tal ponte de ligação e sabia como fazê-lo, mas estava
também com medo, sentimento este que enfrentou até ao último fôlego da sua vida,
medo.
CAPÍTULO XXVII
– Já viste algum honesto rico a não ser que tenha ganho uma lotaria ou tenha
herdado uma fortuna? Eu nunca vi um. Essas coisas de consciência e Deus estão
somente na tua cabeça. São tropeços para ti – retorquiu.
– Já viste algum ricaço feliz? Talvez contados nos teus dedos! A maior parte deles
vivem condenados pelo Tribunal da Consciência. É o pior tribunal que existe. Se eu
roubar hoje, pode ser que amanhã sejas a primeira pessoa que me vai acusar e atirar
pedradas. Não esqueças que onde há amor e amizade há, também, ódio e inveja.
Além disso, vivo bem na minha humildade, com uma casa pequena, mas coração
grande, com alegria na minha miséria e escassez. Quero que os meus filhos brinquem
na companhia dos que exigem pouco para serem felizes, mas conseguem fazer uma
grande festa com quase nada. Isto tudo lhes dará mais prazer de viver e incutirá a
criatividade para viver a vida de forma alegre – respondeu Diogo.
– Faz o que mais te apetecer. Se a miséria para ti é melhor que a riqueza, tudo bem.
– É o que vou fazer, meu caro amigo. Não quero viver dessa maneira. Sabes, há
muita coisa na vida que à primeira vista parece contradição. Não há nada pior para
os nossos filhos que crescer na ausência completa de conflitos, de crescer sem
dificuldades, de viver superprotegidos, sem encontrar dificuldades nos caminhos,
sem adquirir uma gripe porque dessa maneira adquirem defesas para sobreviver na
sociedade de hoje. Olha para os jovens de hoje! São todos superprotegidos, os pais
dão-lhes tudo o que eles apontam com o dedo indicador, mas são insatisfeitos e
ansiosos. Muitos deles são hipersensíveis. Não querem levantar um dedo para
adquirir algo ou para ser alguém, não querem estudar nem procurar trabalho,
porque acham que não é preciso. Por outro lado, as dificuldades da vida, as
roçaduras e atritos com os irmãos, as brincadeiras com simples brinquedos
inventados pela própria criança estimulam-na a inventar coisas, a sonhar, a criar na
escassez e a ser forte na defesa das doenças e outras dificuldades. Quem não põe o
dedo no fogo, não sabe se é quente ou frio. Quem não tenha sofrido miséria, não
sabe se a riqueza é boa.
O coração do Diogo palpitava, as faces estavam rosadas, o cabelo revolto de tanta
irritação. Diversas emoções saiam-lhe do coração em torrentes. Pequenos gestos
marcam uma vida e palavras suaves podem, muitas vezes, ser cortantes mesmo para
corações duros. Ele sentia-se responsável pelos seus actos e não queria ser
intimidado pelo amigo. Achava que Dário com a sua visão altruísta, estava enganado.
Ambos eram amigos de Aquiles. Este era um homem que não acredita em Deus e
não tolerava a presença de padres. Mas Dário era um religioso daqueles que ia à
missa todos os domingos. Mesmo assim, era um grande amigo de Aquiles, bastava
que não falassem sobre coisas de Deus e da Igreja.
sempre atacar primeiro e impor as suas ideias. Vou atacar à minha maneira e não
quero que eles me estraguem os planos – raciocinou. Ele não conseguia manter os
olhos fechados, pensando na estratégia a adoptar. Quanto mais dura a decisão,
tanto melhor para se posicionar perante os seus súbditos.
Diogo aproximou-se do Dário e, baixinho, disse-lhe ao ouvido, em forma de
conselho, o que este não queria ouvir.
– Sabes, amigo. Há modos de ver o mundo que não se coadunam com a minha
maneira de ver e perceber o mesmo. Há uma força dentro de mim que clama pelo
bem, que é contrário do mal, uma força no meu espírito que serve de filtro e não
deixa entrar esta tua maneira de pensar. Devemos parar pelo caminho da vida e
deixar as lágrimas, que nunca tivemos coragem de chorar, correr silenciosamente
pela nossa face em prol daqueles que não tiveram coragem de continuar na corrida
da vida porque lhes faltou coragem, porque desesperaram, ou porque não
encontraram um significado na vida e desistiram dela. Pára, amigo. Faz uma pausa
na caminhada, procura novos atalhos que conduzam aos remansos da vida, tantas
vezes quantas forem necessárias. Ambiciona ser feliz com o pouco que possuis, sonha
com coisas maiores, persiste em ser feliz e serás feliz. Escreve os mais belos poemas
da vida – disse-lhe.
– Não te estou a entender. Sabes que as oportunidades podem desaparecer e não
voltam mais. Muitas pessoas nascem com o destino de miséria e nunca saem dela.
Eu não acredito nessas tuas lengalengas. Olha para o teu compadre. Em menos de
um ano anda por aí a somar as cifras. Ele não tem medo das longas noites que a vida
lhe traz. Tem uma vida garantida. Não sofre de insónias e não é tratado como
mentecapto – acrescentou Dário.
– Bem, o sol não deixa de brilhar para os amigos da paciência, da consciência livre
e limpa. Para mim, a sinceridade, vale milhões e respeitar aquilo que pertence ao
bem comum é brindar a vida com um valor mais alto do que milhões de cifras no
banco. Muitos dos que sobem apenas alguns degraus da escada do sucesso
económico ou social tornam-se inacessíveis pelos mais necessitados. Tornam-se
distantes dos demais e ninguém tem acesso às suas agendas. Vêm o povo como um
mero número de identidade, um título académico, uma conta bancária e não como
um ser humano inigualável, com a sua unicidade, com a sua dignidade humana, com
seus direitos, deveres e responsabilidades – explicou Diogo.
– A estatística dos últimos tempos demonstra que a maior parte dos que meteram
a mão nos cofres do Estado não sofreram consequências algumas...
– Alto lá. A estatística pode ser manipulada. Ela pode apresentar uma resposta
feita à martelada, mas nunca responde às perguntas, por exemplo, da psicologia e
da consciência. Pobre da estatística! Sabe muito, mas conhece tão pouco sobre a
vida do homem. Ela somente aquieta a alma dos que pensam pouco. Não engana
aos que pensam além da ponta do seu nariz – cortou Diogo.
– Caramba! És teimoso como um elefante.
– Não é teimosia! É, antes, uma virtude nata. Um homem honrado vale muito.
Desde os tempos idos, a honra exerceu uma enorme influência na vida de muitas
gerações. É uma virtude incomensurável como muitas outras. Ela constitui um
grande valor na vida do ser humano, especialmente quando representa um grupo,
um povo ou uma nação. Por outras palavras, os que servem a causa do bem comum
adquirem méritos pelas suas boas acções. Não quero estar aqui com ar de erudito
para explicar o que tenho a dizer. Mas quero falar das virtudes do carácter que se
adquirem através do hábito, da educação e da prática. Entre elas encontram-se a
honestidade, a moderação, a coragem, a justiça, o amor, a fidelidade, a fé, etc...
Tirando essas virtudes na minha profissão, a instituição onde trabalho fica viciada e
corrupta, e isto é uma fraqueza moral. Segundo Immanuel Kant, a virtude é uma
fortaleza moral da vontade, o que vem de encontro à definição que Platão e
Aristóteles defendiam, muitos séculos antes. Ao concordar com esta definição de
virtude, estou a considerar que a virtude depende de nós e torna-nos fortes pela
procura que nos obriga a fazer dum ideal ético. Portanto, toda a moralmente boa
vida humana tem como suporte as virtudes. Elas têm uma importância extrema no
relacionamento entre os seres humanos, ou seja, na vida em sociedade. Por outro
lado, a avareza, o orgulho, a gula, a inveja e a demasiada luxúria, são defeitos, isto
é, vícios, que não me deixam dormir durante a noite.
Enquanto Sombra e Penumbra se recolheram a um canto, Aquiles aproximou-se dos
dois e intrometeu-se na conversa de Dário e Diogo com jeito de sabichão.
– Não há nada além do céu estrelado, caro amigo. Não faço a mínima ideia da tua
preocupação com as coisas que pertencem a todos. Deves seguir os conselhos do
Dário. Se não fazes isto haverá quem o fará por ti...
– Que o façam à vontade. No entanto, diz-me lá então, se na tua profissão não
existe honra, respeito, responsabilidade, por exemplo, quando estás a resolver,
solucionar um caso de crime? Não tomas em consideração o culpado e a família da
vítima? Separas a honra e a virtude das leis estatais? São duas coisas opostas? Se
são conceitos opostos, como vês a tua função pública vis-à-vis ao direito dos outros
se não respeitas os direitos deles? Como resolves o processo de um crime cometido
pelo teu melhor amigo? Enfim, as minhas perguntas são tantas que poderás perder-
te no redemoinho das respostas. A honra é uma virtude e virtude é um bom hábito
da pessoa, que facilita o seu comportamento moral em direcção ao bem. A ética da
Diz-se que a tolerância é o atributo dos fortes. Aquiles não é uma pessoa tolerante
e não poupa o seu melhor amigo. O diálogo entre Diogo e Dário atingiu o seu ápice
e a comunicação já não era mais possível. Aquiles intrometia-se sempre na conversa
dos dois a ponto de desviar do essencial – de um debate sobre virtudes. Não é
possível construir tolerância sem possuir a capacidade de compreender as
limitações dos outros. Uma pessoa intolerante torna-se mais angustiada e instável
perante os comportamentos dos outros que têm uma opinião diferente, possui
menos capacidade de perdoar, pois ser intolerante é um sinal de fraqueza humana.
Aquiles tem todos os dotes de intolerante, mas superficialmente, aparenta ser forte
e inteligente.
Diogo deu sinais de desconforto no grupo de amigos, que além de terem ideias
políticas coincidentes, também pertenciam à mesma seita religiosa. Mas, para
Aquiles era necessário manter o grupo coeso e faria tudo para sacrificar os seus
desacordos.
CAPÍTULO XXVIII
O guardador de Projectos
Diogo não se sentiu bem quando recebeu ordem para cuidar do manuscrito34 com
o projecto do Renato até que uma segunda ordem fosse dada. Ele estava cheio de
medo e não sabia como tratar os documentos e onde os ia guardar. Numa situação
destas, o próprio bater das asas de uma borboleta podia causar um tornado, o voar
de uma mosca podia gerar um terramoto, o próprio respirar podia causar uma
avalanche. Assim descrevem os matemáticos: uma pequena variação no lado
esquerdo de uma equação causa variação no lado direito.
Diogo queria telefonar à polícia para dizer algo sobre a sua situação. Mas, que
consequência teria sofrido? O melhor é estar calado. O melhor é fugir e esquecer
tudo. A quem poderia telefonar? Quem podia tratar do assunto com a seriedade
necessária? Não confiava em ninguém para pedir conselhos.
Recebeu um telefonema enquanto cogitava acerca dos documentos que tinha
retirado do porta-luvas do veículo que tinha transportado Renato a Quebra-Canela.
Escutou silenciosamente o que a pessoa tinha a dizer. A sua voz era como um
barítono suave:
– Senhor Diogo, poderia vir ao meu escritório amanhã cedo? Preciso de uma
interpretação nos documentos de Renato – acrescentou.
– Aquiles, eu sou jurista, não sou linguista!
– Não importa o que és. O nosso segredo é que conta aqui. Estou desesperado e
preciso de tua ajuda e dos teus conselhos!
– Seria melhor contactar uma pessoa com mais interesse e expediente no assunto.
– Senhor Diogo, não estará um jurista interessado em assuntos criminais?
– Depende da situação e do assunto a tratar. Aqui um conservador ou um
bibliotecário faria melhor trabalho – argumentou Diogo.
- Amanhã às oito horas!
O telefone desligou-se do outro lado da linha e Diogo ficou a olhar demoradamente
para o auscultador. Era uma ordem dada e não podia sequer questioná-la.
34 Não há notícias sobre os paradeiros de Aquiles, Diogo e Dário desde os fins de 1989.
Parte II
CAPÍTULO XXIX
Aconteceu há 30 anos e terminou como a maior parte dos crimes deste género. Foi
a 29 do mês de Setembro do ano de 1989, uma sexta-feira agoirada.
A verdadeira história do que aconteceu na praia de Quebra-Canela nunca foi
devidamente contada. Na mente de muita gente ficou a imagem icónica do autor de
Porton d´nós Ilha, cantando no alto Cutelo das nossas ilhas, olhando para a frágil
estrutura sobre a qual ainda hoje se encontra erigida a Administração Pública,
mirando o Artigo 4º da Constituição da Primeira República, ouvindo os rumores
vindos lá do Muro de Berlim, da gente batendo com marretas, pedindo a liberdade.
E não tardou que o “Muro” do Artigo 4º da Constituição de Cabo Verde e o de Berlim
fossem abaixo, simbolizando o fim de uma era, uma era conturbada e turbulenta.
Este foi, verdadeiramente, o ano que mudou o mundo, marcando o fim da Guerra
Fria e o início de uma época de globalização e livre mercado.
Trinta anos depois, os amigos de Renato procuram desconstruir os mitos que
cercaram o acontecimento, à procura da verdadeira história por detrás das notícias
dos jornais, das versões oficiais, para mostrar os efeitos do assassinato nos dias de
hoje. No ano de 1989, houve um fervilhar de acontecimentos que levaram à queda,
não só, do Artigo 4º, mas também, ao colapso do império soviético, à morte de
Renato Cardoso, entre muitos outros casos. Os ideais comunistas não souberam
pactuar com as necessidades da sociedade de consumo e acabaram por se suicidar
ou ser devorados por essa mesma sociedade.
Foi um ano de acontecimentos políticos que podemos sintetizar como se segue:
• A Cortina de Ferro caiu;
• O Protesto na Praça da Paz Celestial (Tian'an Men), mais conhecido como
Massacre da Praça da Paz Celestial, ou ainda, Massacre de 4 de Junho que
consistiu numa série de manifestações lideradas por estudantes na República
Popular da China;
• O 9 de Novembro de 1989, a queda do muro de Berlim;
• O 7 de Dezembro de 1989. Surgia na República Democrática Alemã (RDA) a
primeira mesa-redonda de discussão política. A tentativa de reformar o
sistema político foi atropelada pela reunificação das duas Alemanhas;
• O homem forte da Solidariedade polaca, Lech Walesa, foi visto nas Portas dos
Estaleiros Gdansk vitorioso, reivindicando o direito à liberdade do seu povo;
• O pontapé de saída e o início da democracia cabo-verdiana, desencadeada
pela morte de Renato Cardoso;
• A barbaridade voyeurista política na Roménia;
• A ditadura de Pinochet terminara e o povo respirou de alívio;
• Morreu o imperador japonês.
vigente de então, o que resultou numa forma de vingança. Engoli o peixe pelo rabo,
mas não aceitei os argumentos usados na altura e nem fiquei convencida. Parece-
me que essa pessoa queria desviar as minhas atenções e baralhar as ideias que tenho
quanto à morte do malogrado. Esse alguém, porém, acrescentou que o Renato
pressentia que alguma coisa lhe iria acontecer por aqueles dias. Na quinta-feira
anterior ao assassinato tinha telefonado a tal pessoa, pedindo-lhe para ir à Praia:
queria falar com ela porque estava com "medo" depois de uma reunião que tinha
tido com o Presidente da República de então. Isto coincidiu com as informações que
eu tinha – insistiu – e continuou: Se eu fosse a mulher ou irmã dele, faria tudo para
saber quem está por detrás da morte do nosso grande amigo – disse Fátima.
– Acho que vale a pena insistir no que estás a pensar. Todos nós temos o direito de
saber o que se passou com ele. Eu lembro-me, aquando da sua vinda para Cabo
Verde, do teu reencontro com o Paín. Devemos exigir que a sua memória seja
respeitada. Agora mesmo estava a lembrar de uma conversa que tive com uma
amiga do peito – prosseguiu Celeste. Ela disse-me o seguinte: as várias versões sobre
o seu assassinato nunca me enganaram ou convenceram. Eu tive o privilégio de ter
trabalhado com o Paín (Renato) nas vésperas da sua morte e sei, porque ele me disse,
que algo que o estava a atormentar, já tinha sido esclarecido. Tinha tido um encontro
sobre isso. Ele prometeu vir beber um Gim tónico comigo no domingo para
comemorarmos, também, o projecto sobre administração pública que acabáramos
de traçar com um expert das N.U, Guido de Weerd.36 Nunca me esqueço daquela
manhã, do toque daquele telefone (eu ainda deitada) e da voz do meu marido
anunciando-me o acontecimento. Os meus soluços continuam vivos aqui no meu
peito e lamento não poder dar a vida ao meu amigo. Fiz um poema que nunca difundi
porque não sou poetisa e, também, porque as vozes sonoras não pertencem a todos.
Não interessa, fi-lo para ele.
Sei, também, que o Renato não pode estar feliz, pois ele tinha todo um projecto de
vida que não escondia e que fazia questão de anunciar: eu não pretendo morrer, nem
vou imigrar, a não ser que me dêem um tiro e eu não possa fazer nada... foi o que
ele dissera quando o técnico lhe disse que o país precisava dele para defender o
Projecto acabado de assinar...37 – Disse.
O poema de que fala Celeste é o seguinte, escrito no dia 2 de Outubro de 1989, que
transcrevemos com a devida autorização da autora. 38 Soa assim:
36 Ibidem.
37Ibidem.
38Ibidem.
A ti meu amigo
A todo o momento
Esperei
Ver-te levantar daquele caixão
E dizeres:
-"Bzôte bá pudiab
Um ca morrê né nada"!
...Mas...nada!
Ali, naquele local
Onde foram deixar teu corpo
Tão escuro, tão escuro...
Adivinhei mais que "senti"
Terra caindo em cima daquele caixão
Esperei, acreditei,
Que me dissesses: Aqui estou!
E nada!!!
E pensei:
Decepcionas-me deveras!
Porém, antes de deixar o local
Vi uma estrela, uma única
Lá bem alto no Céu
E compreendi o teu sinal.
Vi que ali estavas
Bem vivo ainda,
Brilhando, brilhando sempre.
Parti tranquila, limpei os olhos.
Este mundo não te merece
Esta coisa tão podre,
São cacos onde temos de continuar
Pagando as nossas dívidas...
Tu, meu amigo, brilhas em paz!
Tu, meu amigo, mereces pureza
Que tanto tentaste dar
E não souberam receber.
Tu, querido amigo,
CAPÍTULO XXX
O pai do Djonzinho dizia sempre que o mundo tem pé comprido. Djonzinho não sabia
o significado da expressão, mas hoje compreende-o melhor. Ai, se o mundo fosse
mais justo! Toda a observação do comportamento humano é pouca para iluminar a
mente dos homens. De qualquer maneira, o pai tinha razão! Entretanto, a razão dele
não é a mesma que a do Djonzinho! Mas este concorda com o pai.
Procurou por toda a parte, na psicologia de Jung, Freud, Kant e Spinoza, não
encontrou qualquer coisa que lhe esclarecesse sobre o comportamento dos mais
achegados, amigos, inimigos e dos políticos quanto à morte do Renato. Os seus pais
ensinaram-lhe a arte de comover, de entrar na pele dos outros, de simpatizar com
os mais humildes. Nené de Canquinha era amigo deles e vinha com conselhos que
serviam para os filhos. António do Rosário, o padrinho de Djonzinho, era outro cuja
postura metia respeito, tanto na sua própria casa, como na dos outros. A influência
de amigos dos pais do Djonzinho, serviu para lhe inculcar na mente o respeito pelos
outros, o valor da vida e a forma de vivê-la. Aconteceu, muitas vezes, ter pensado e
sonhado estudar a “arqueologia” do espírito para esgravatar e analisar os
cromossomas dos antepassados desses amigos para poder colmatar o vazio
existente entre eles e a nova geração que nem se importa com a vida dos seus
melhores amigos. Parece que se adaptou a uma psicologia de mesa de cozinha. O
Djonzinho está, possivelmente, muito embriagado e ocupado com o passado para
evitar pactuar com a realidade presente ou futura. Tenta compreender a psicologia
moderna, mas não mergulha suficientemente a fundo para a entender. A psicologia
de profundidade (cf. C.G Jung), neste sentido, é como se fosse uma escavação
arqueológica na mente colectiva ou individual dessa gente. Não encontra a
justificação suficiente do pensar moderno. Será que é um pensar moderno? Ou um
premeditado comportamento abonado pelo silêncio que o medo impõe? Precisa de
uma escavação profunda na gruta da alma. Quanto mais o Dozinho interpreta a
psicologia acima referida como uma escavação na caverna da alma, quando mais lê
Freud e Jung, tanto menos se compreende a si mesmo. Fica-se como um peixe que
não tem a mínima ideia de que vive num aquário. Ou, talvez, ele não queira
compreender. Terá, certamente, as suas razões. Não tem os pré-requisitos para ser
um arqueólogo da alma e nem, tampouco, um psicólogo de gema.
O pai do Djonzinho já faleceu. O nome de casa é o nome familiar e afectuoso. É o
nome morábi de muita gente e Djonzinho merecia tal nome, o nome que lhe dava o
rótulo de homem que é amado, que virá a amar o povo e que por ele, também, é
amado. O nome de casa atribuído a uma pessoa, em Cabo Verde, exprime, acima de
tudo, a familiaridade, a amizade, a capacidade de adesão sentimental a problemas
e situações alheias e de sintonia afectiva com o seu semelhante. O pai de Djonzinho
tinha um convívio amigo e familiar com as pessoas e até com as coisas, o que lhe
facilitava uma vontade irreprimível de diálogo.
Umas vezes, chamavam-lhe de Djonzinho Branco e outras de Brancão ou B. Branco.
O B de burro. Estes nomes de casa tornaram-se enfadonhos e até marginalizantes.
por alguns segundos. Paralisado como uma pedra. O coração palpitava como os
tambores nas vésperas de São João ou de São Filipe. Sentia o bater no peito, nos
ouvidos, em toda a rede das veias pulsatórias e artérias do seu corpo. As mãos e os
joelhos começaram a tremer. Gotas de suor fizeram regos nas diferentes partes do
corpo e a camisa ficou ensopada debaixo dos braços. Foi como que se o cérebro
deixasse de coordenar as outras partes do corpo.
A luz do sol da meia-noite do polo norte enviou seus raios através das frinchas das
persianas como que para lhe avisar do seu próprio paradeiro. Uns passos ligeiros
trouxeram-no para o mundo das coisas. Meu Deus, onde estou? Homem, o que te
deu na cabeça para me telefonar e recordar-me do Renato? – Raciocinou.
– Papá, o que se passa contigo – perguntou o seu filho.
Muito hesitante, foi sentar-se numa poltrona. Os joelhos mal o carregavam. Sentiu
um fio de suor frio escorrer-lhe pelas costas. A imagem do corpo de Renato, com um
furo no peito, invadiu-lhe. Não estava a cheirar. Ainda não estava. A pele
acinzentada, os olhos vítreos abertos fixando o nada. Tinha o sangue coagulado
sobre a camisa e as mãos cruzadas sobre o abdómen. Como a morte pode
transformar um corpo vivo em algo do género? A morte rouba ao corpo a sua alma.
Começou a imaginar as bactérias de putrefacção. A morte roubou-lhe também a cor,
o fôlego, o olhar penetrado e os sentidos. O cheiro que daí advém, o nada. Alguém
o matou. Mas quem foi a pessoa sem coração? Isto é lógico, alguém o matou.
Ninguém morre desta forma por causas naturais. Djonzinho procurou palavras
adequadas para não cair no irracional. Não sabe o que dizer. Morte ritual? Eliminar
mais um que incomoda? Uma paixão tão excessiva que culmina num assassinato?
Um amigo da onça envolvido? Tudo foi tão rápido, tão fora de série, como se o
agente da casa funerária e o padre já lá estivessem mesmo antes da sua morte e
fossem buscar a roupa e a água benta para os últimos rituais que ficariam entulhados
no esquecimento colectivo do povo.
Depois o Djonzinho encontrou-se sozinho, de pé, com os olhos boiados de lágrimas,
a observar o amigo do povo estirado na maca hospitalar, coberto de sangue
coagulado e um grupo de gente a choramingar à sua volta. Depois, foi Djonzinho a
tomar as decisões. Aproximou-se do corpo de Renato, pediu à esposa dele ajuda
para fechar-lhe os olhos. O seu pensamento vagueou pelo mausoléu que vai ter ou
não como a sua última morada. Como se sentisse o pingar ou o bater colectivo das
futuras inquietações estalagmíticas,40causadas pela sua morte, formando concreção
40Em sentido inverso da estalactite. Estalactite é uma formação no tecto de uma gruta, crescendo
para baixo, em direcção ao chão, devido à deposição lenta e contínua de carbonato de cálcio
calcária no solo da gruta que fica quando o corpo se torna em terra. No fim, aquela
imagem desapareceu atrás das lágrimas vertidas por todos os seus amigos. Ficou um
silêncio que incomoda.
arrastado pela água que goteja do tecto. Quando esta formação cresce a partir do chão em direcção
ao tecto chama-se estalagmite.
CAPÍTULO XXXI
A primeira audiência
entre os rostos nos lugares sentados e os nomes escritos no caderno que trazia na
minha pasta. A Juíza estava sentada na tribuna com os olhos fixos nos seus papéis.
Ela perguntou aos magistrados se tinham algumas questões novas ou pendentes
para esclarecer antes de começar a sessão. Como não havia, virou-se para os jurados
e magistrados, correndo a vista pela sala.
– Meus senhores, estamos prontos para começar. A audiência vai começar com as
primeiras alegações por parte do Ministério Público já que este último vela pela
aplicação e cumprimento das leis.
O representante do Ministério Público (MP) levantou-se e dirigiu-se aos presentes.
– Estamos aqui por um motivo. Para descortinar um caso muito intricado. O caso
Renato Cardoso. Ele só tinha 36 anos e foi baleado em Quebra Canela por motivos
que não sabemos. O homem alegadamente acusado por este crime hediondo está
sentado a uns poucos metros de mim. Há, no entanto, muitas dúvidas relacionadas
ao acusado. O assassino roubou-lhe tanto o passado como o futuro. Roubou-lhe tudo
e nós ficamos mais pobres. A nossa sociedade ficou mais pobre. É responsabilidade
do Estado provar se este homem aqui tido como réu é, de facto, o assassino.
Abanou a cabeça para sublinhar o que acabou de dizer, voltando-se em seguida para
a acompanhante do Renato que se encontrava sentada ao lado do seu advogado e
continuou:
– Entretanto, antes de fazer um juízo de valor, temos de ouvir a testemunha
principal neste caso e os magistrados envolvidos no caso.
Virou-se para a Juíza, meneou a cabeça sem dizer mais nada e foi-se assentar. A Juíza
dirigiu a atenção para o advogado de acusação e disse:
– Muito bem, senhor advogado de acusação. Pode apresentar as suas alegações?
O advogado de acusação, vendo que a acompanhante deixava transparecer calma
de quem nada tem a temer, viu logo que tinha à frente um adversário forte, quer
dizer um osso duro de roer, debruçou-se sobre a mesa, enfrentando a única
testemunha, e decidiu que tinha de aplicar logo o chamado tratamento de choque
para lhe quebrar a impressionante resistência que trazia colada ao seu semblante.
Depois levantou-se, deu uns passos em direcção à testemunha, sentada junto ao seu
advogado de defesa, sentou-se parcialmente sobre um canto da secretária, de modo
a ficar a olhar para a sua opositora, desviou o olhar para o público e atirou
suavemente:
– Senhora testemunha, que fique bem claro que o que vai sair da minha boca neste
momento não deve ser tomado como ameaça ou qualquer forma de pressão da
parte deste tribunal. A senhora tem três hipóteses: dizer a verdade, manter as
declarações anteriores ou recusar-se a prestar declarações, que é um direito
inalienável que lhe assiste. Neste momento, as nossas conclusões lógicas e o cenário
do crime apontam que daqui sáia condenada por ser uma possível coadjuvante num
auto hediondo.
Pode-se perguntar aqui se a testemunha em apreço deve ou não ter um defensor
numa audiência deste género. Partindo do princípio que estamos perante uma
situação em que se encontra envolvidos vários motivos e
baseado numa interpretação teleológica do Direito, que diz que um Princípio
jurídico convive no meio de “imperativos e permissões”, e tendo em conta a situação
em que se vivia na altura, o conceito de Principio jurídico deve prevalecer. Ao
defender que o princípio da não auto-incriminação se
aplica à testemunha e considerando que algumas leis internacionais estatuam,
implicitamente, que a testemunha poderá depor acompanhada de seu advogado, se
este último, em seu íntimo, temer que as respostas do seu cliente poderão auto-
incriminá-la. O advogado poderá, por isso, intervir toda a vez que pressente algo que
vai contra seu/sua cliente. Portanto, o advogado poderá protestar verbalmente ou
por escrito, na audiência ou sessão, perante qualquer juízo, tribunal ou
autoridade, contra inobservância de preceito de lei ou regulamento.41
O advogado da acompanhante sorriu com um ar divertido em direcção ao acusador.
Os ouvidos da audiência ficaram afinados. O defensor apressou-se, pediu licença e
pôs-se de pé.
– Meritíssima Juíza! – Exclamou o advogado de defesa. Se me permite, gostaria de
dizer que o senhor que representa a acusação só deve estar a brincar, porquanto não
tem provas para acusar ou prender o meu cliente. Tendo um réu na nossa presença
não podemos transformar uma testemunha numa ré – intrometeu ele.
– Desculpe: O senhor já leu os jornais e o processo? – Perguntou a Juíza.
– Sim, quero dizer...
– Então, por favor senhor doutor, não fale do que não sabe. Só sabe o que o seu
cliente lhe contou. Aqui vamos esgravatar mais a fundo para podermos fazer um
juízo de valor – acrescentou a Juíza.
41 https://sauloadv.wordpress.com/2015/05/03/o-direito-da-testemunha-de-depor-na-presenca-
de-um-advogado-5
A Juíza anotou qualquer coisa num caderno e depois voltou-se para os juízes,
avisando-os acerca do impacto da leitura dos jornais e das notícias na decisão final
de uma audiência ou de um julgamento:
O advogado da testemunha principal acomodou-se no assento, ajeitou a sua gravata
e pôs-se de pé.
– É verdade. Mas não se esqueça do princípio da presunção da inocência, isto é, o
princípio da não-culpabilidade, segundo o qual toda a gente é inocente até que se
prove o contrário. É um princípio jurídico de ordem constitucional, aplicado segundo
o direito penal, que estabelece o estado de inocência como regra em relação ao
acusado da prática de infracção penal. Está previsto expressamente na Constituição
da nossa jovem nação, regras que preceituam que "ninguém será considerado
culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória". Isso significa
dizer que, somente após a conclusão do processo em que se demonstre a
culpabilidade do réu, é que o Estado poderá aplicar uma pena ou sanção ao indivíduo
condenado. Devo aqui relembrar ao senhor doutor que não temos, neste momento,
uma ré à nossa frente! Só temos um réu – disse virando a cara para o senhor
advogado de acusação.
– Muito bem senhora Juíza, tem muita razão neste aspecto. Peço desculpa por ter
sido bastante precipitado e usado palavras menos corretas nesta ocasião, e fazer um
juízo de valor apressado, mas se uma pessoa que seja convocada a testemunhar
mentir durante uma audiência, pode ser posta na prisão por falso testemunho! O
que também se encontra, explicitamente, na Constituição da nossa República. Disse
que as conclusões lógicas apontam para uma situação penosa. Não significa,
necessariamente, que as conclusões sejam verdadeiras, mas apontam... caso
continue a esconder algo ou a mentir perante este Tribunal.
O Djonzinho estava sentado a uns metros da mesa do MP quando viu a expressão
incómoda no rosto do defendente. O MP não pôde ficar calado perante a situação
embaraçosa em que o defendente se colocou, virou-se então, outra vez para a
testemunha.
– Senhora testemunha, tinha relações passionais com o malogrado político…?
A testemunha ficou irritada pela pergunta e reagiu imediatamente sem deixar que
o MP a completasse.
– Excelência, deixe-me dizer uma coisa, se tinha ou não isto faz parte da minha vida
privada e não pertence à esfera pública. Não quero falar sobre o assunto, se me é
permitido.
– Não me parece que seja muito privado já que se trata de uma relação com uma
– Foi esse o mal, senhor doutor. Há perguntas desnecessárias que se deve ter a
decência de não ser feito. Neste caso, é a polícia ou o Tribunal que pergunta. O
senhor não devia ter perguntado. O que aconteceu em Quebra-Canela, tanto podia
ser um acidente como um homicídio. Ninguém vai para a cadeia por ter ocorrido um
acidente à sua frente, porque um acidente não é crime se não for premeditado ou
pré-arranjado. Um homicídio é outra coisa e, por isso, devemos ir ao fundo da
questão. Podem continuar os interrogatórios, senhor doutor? – Disse o
representante do MP.
– Obrigado, excelência.
O advogado de acusação retomou o fio da meada, virando-se para a testemunha
que se encontrava mais relaxada:
– Porque demorou tanto tempo a pedir ajuda quando já não estava a ser
perseguida? – Indagou.
A testemunha encontrava-se um pouco mais tranquila do que quando começou o
interrogatório depois do intervalo, pois tinha entrado nas portas da Justiça com a
firme convicção de que ia chegar, ver e vencer, mas o acusador tinha naquele
instante aberto uma brecha na sua muralha defensiva e fê-la sentir-se, por isso,
desanimada, fragilizada e com vontade de explodir, mas explosão, neste momento,
não lhe ajudava nada. Era um factor arriscado. Sentiu que o chão estava a fugir-lhe
debaixo dos pés, mas conseguiu dominar-se um pouco. Levantou os olhos para o seu
interlocutor e respondeu:
– Se não se importa, não respondo a essa pergunta, excelência.
– Compreensível, estando no seu lugar. Perder a concepção do tempo e espaço
nessa situação é normal e a senhora tem todo o direito de negar a responder. Não
importo, não. É um direito que lhe assiste sempre.
O advogado de acusação sentiu que os olhos do defensor a procuravam e foi ao
encontro deles. Deparou-se com o olhar espantado do mesmo. O MP, guardião da
Justiça, também não se deixou distrair pelos olhares. Reparou que a testemunha
estava a transpirar profusamente e a palidez do rosto era acentuada. O acusador,
por isso aproveitou a oportunidade para atacar de novo. Atacou mesmo. A acusação
notou o efeito das suas palavras e reparou que, tanto a testemunha como o seu
advogado, fitavam o chão, como se ali procurassem resposta para as perguntas do
advogado de acusação. Olhou de novo para a testemunha e para o seu defensor,
perguntou:
– Minha senhora, o que me responde sobre o desfecho do que se passou em
Quebra-Canela no dia 29 de Setembro de 1989?
CAPÍTULO XXXII
Muito antes de a Juíza chamar o júri para entrar, o advogado de defesa do presumido
réu, levantou-se do seu assento, aproximou-se da tribuna e pediu ao tribunal um
veredicto no sentido da absolvição do seu cliente. Disse que o Estado falhara na sua
obrigação de apresentar provas capazes de atingir o critério para além da dúvida
razoável. Badiu Boxero já se encontrava a caminho da sala de audiência quando a
Juíza levantou a mão para o advogado de defesa e pediu que o guarda não deixasse
entrar o réu até que ela sinalizasse com a mão.
Chamou a acusação e a defesa para uma consulta e depois mandou-os sentar.
- O tribunal considera que os indícios apresentados pela acusação ainda não são
suficientes para a deliberação do júri. Senhor advogado de acusação, está preparado
para o trabalho em curso?
- Estou, excelência.
O arguido pôs-se de pé, com a face virada para os jurados com um sorriso inocente
atravessado na cara, os dentes saltitados na boca, o corpo delgado e curvado e olhos
de carneiro mal morto a inspeccionar fixamente os jurados.
O advogado de defesa agitou a mão do seu assento e pôs-se de pé.
– Meritíssima, este homem é inocente. Está apenas a servir de bode expiatório. É
um inocente apanhado num plano orquestrado para esconder um dos piores crimes
de sempre desta moderna nação.
O defendente sentou-se enquanto a Juíza anotava algumas palavras no seu caderno
de notas. Ouvia-se um burburinho na sala que depois acalmou. A Juíza virou-se para
a mesa da acusação e fez um sinal ao advogado ali sentado para prosseguir a sua
inquirição.
– A mesa da acusação tem algo a acrescentar a isto?
O senhor advogado de acusação pôs-se de pé, olhou para os jurados e depois para
Badiu Boxero.
– Bom dia, senhor eehhh...
– Mi nha nomi ê Badiu Boxero
– Bom dia, senhor Badiu Boxero.
– Eehh senhor gó pamodi? Ca tchuma´m senhor!
Ouve-se outro burburinho na sala. O senhor da mesa de acusação pediu licença para
se aproximar do seu interlocutor e confrontá-lo de perto.
A Juíza apontou a marca no chão e disse:
– Não mais do que aquela linha, por razões de segurança!
– Badiu Boxero: o senhor frequenta a zona de Quebra Canela todos os dias, não é?
– Quebra Canela, não. Mi nha zona é praia Gamboa. Lá é todos os dias. Quando há
sol, deito-me debaixo do Pontão de praia Gamboa. Quebra Canela, não. Lá, só de vez
em quando. Quando houver negócios.
– O que faz todos os dias na praia da Gamboa?
– Biihh! Assunto privado.
– Senhor Badiu Boxero. Estamos no Tribunal e temos de ser francos um com o
outro. Responda à pergunta. O que faz todos os dias na praia da Gamboa?
– Estou a ser franco! Assunto privado, já disse.
– O quê? Eu nem sei se foi morto um homem naquela praia. Sou toxicodependente,
doutor, e uso muitas drogas, incluindo álcool. Mas matar alguém, não... A única
coisa de que me lembro bem é de um miúdo me ter levado um bilhetinho num dia
em que eu estava a descansar debaixo do Pontão da praia Gamboa. Levantei-me
logo a correr para as proximidades da praia de Quebra Canela à procura de drogas.
O que encontrei foram os polícias que me começaram logo a bater e algemaram-me
as mãos por detrás das costas.
O defensor olhou para os jurados, mordeu os lábios, fechou o punho e esfregou-o
na sua própria nuca. Sacudiu a cabeça durante um momento e olhou para a Juíza.
– Meritíssima, não tenho mais perguntas.
Isto era um verdadeiro desastre para a acusação. O defensor olhou para a mesa de
acusação para se certificar de que esta se apercebia da péssima situação em que se
encontrava e depois virou-se para Badiu Boxero com um sorriso leve na face,
dizendo-lhe baixinho: arranjaram-te uma armadinha.
Badiu Boxero não entendeu patavina.
CAPÍTULO XXXIII
Depois das formalidades legais terem sido apresentadas, a Juíza fez uma introdução
consistente com os indícios próximos e distantes relacionados com o assassinato.
Ela era uma pessoa experiente na vida e nos trabalhos da Justiça. Trazia em mente
a descrição da situação transmitida pelos meios de comunicação e aquilo que lera
nos inquéritos policiais feitos e no semblante a imagem do prato da balança da
Justiça. Penetrava um olhar seguro no ambiente contagiado pelo silêncio. Um
silêncio que se sentia como uma pressão atmosférica muito alta e deixava um
ambiente perturbador. Ordenou que todos se sentassem e deu início aos actos.
As pessoas olharam na direcção do réu que tinha a cara voltada para o chão. A Juíza
pediu a todos que se levantassem de novo. Pediu desculpa por ter começado com
atraso e disse:
– Estamos aqui, minhas senhoras e meus senhores, para continuar o nosso
julgamento – dizia. Faremos o nosso melhor possível, com as informações que temos
e outras que vamos apurar no decorrer desta audiência, para trazer a limpo a
verdade dos factos. Sim, a verdade é a nossa razão principal de aqui estar. Temos
um réu à nossa frente e várias testemunhas. Vamos ouvir algumas, embora a nossa
atenção até agora, tenha sido concentrada no réu. Mas hoje, a testemunha principal
vai ser de novo ouvida durante esta audiência. Ela é a testemunha por excelência e,
portanto, para esclarecimento de todos, não é considerada neste momento, arguida
ou ré.
Vamos, portanto, dar continuação ao processo de julgamento do caso Renato
Cardoso. De acordo com o que apuramos das investigações e das conclusões tiradas
da sua relação com o malogrado, a acompanhante (a testemunha principal) é, assim
como muitas outras pessoas aqui presentes, uma testemunha muito importante
para a resolução do caso. Assim, embora até este momento, ninguém saiba indicar
quem foi o assassino, uma pessoa que presenciou os acontecimentos, deveria saber
identificá-lo. Se foi sua coadjuvante; se viu o homicida; se conhece os motivos do
assassino; se reconhece no réu, aqui sentado à nossa frente, algum sinal que se
coadune com a sua observação no local do assassinato que nos elucide de tudo o que
seja possível para aclarar a verdade, etc. Estamos aqui, precisamente, para apurar e
constatar estes factos – explicou a Juíza.
O advogado defensor da testemunha principal levantou a mão.
– Excelência, a minha cliente não tem a ver com a morte do malogrado, apesar da
sua boa relação com o finado – disse o advogado da acompanhante. – Para dizer a
verdade ela não sabe neste momento ao certo quem o matou. Está cheia de dúvidas.
Sabe que houve confrontos perigosos em que ela também esteve em perigo e que a
estatura do réu coincide com a do seu perseguidor. Além disso, temos um suspeito à
mão que deve ser julgado antes de mais nada – disse.
– A testemunha principal estava com Renato, na praia de Quebra-Canela, na tarde
e no momento em que foi atingido pela bala mortal, como se explica o facto de não
saber de nada quanto à morte do malogrado? O senso comum interroga
constantemente: como é possível não saber? Como? Como é possível que seja de
outra forma? Não estou a julgá-la. Estou a pensar alto.
– Excelência, ela estava com ele e todo o mundo o sabe – entremeteu o defensor.
O representante do Ministério Público, depois de observar o tom e o caminho pelo
qual a audiência ia enveredar, interveio para apaziguar os ânimos nos presentes.
– Este Tribunal não deve e não pode tirar conclusões apressadas, mas precisa saber
mais sobre o caso já que estavam juntos na altura da morte. O que lhe disse antes
da sua morte? O Tribunal ouvir-lhe-ia com gosto a respeito disto, se no-lo pudesses
relatar com precisão. Sabemos que morreu por ter sido atingido por uma bala
mortífera, quanto ao resto, ninguém nos tem sabido dizer nada. E, além disto, não
se percebe a razão de ele não ter pronunciado nada sobre a situação nas últimas
horas antes da sua morte.
– É verdade, meritíssima. Já se fazia escuro quando apareceu um vulto mascarado
que se atirou sobre eles, o que causou pânico – disse o defensor.
– Por que foram para Quebra-Canela e de que assunto iam os dois tratar, uma vez
que, tanto a acompanhante quanto a vítima, eram casados – interrogou a mesa de
acusação.
– Bem, a minha cliente, foi uma antiga amiga, colega de Renato! No momento do
ataque, as suas relações eram puramente de ordem platónica. Não havia nenhum
relacionamento íntimo, como muitos suspeitam. Renato tinha-lhe telefonado dias
antes e convidou-a para uma leitura séria sobre um trabalho que ia ter grande
impacto na política nacional. Além disso, confidenciou-lhe que ela era a única pessoa
com o direito e acesso a tal documento. Ele precisava de alguns conselhos!
– De que trabalho se tratava? – Inquiriu. – Pedimos ao defensor, a gentileza de nos
contar tudo o mais exactamente possível, se, por acaso, nenhum compromisso o
impedir – acrescentou.
– Vou tentar pôr-vos a par de tudo, pois sempre foi, para mim, a coisa mais
agradável, lembrar-me de Renato e da sua maneira de ser e ver o mundo. A minha
cliente não teve tempo de ver os papéis, mas soube que se tratava de um projecto
nacional, bem trabalhado, que visava uma mudança na estrutura política no país.
Era isto. Todos os rumores que circulam ou que circulavam à volta disso são
incoerentes e descabidos. Um homem daquele calibre não pode ser morto pela sua
melhor amiga, acrescentou o defensor.
– Todos os que aqui estão vão escutar-te com todo o interesse deste mundo e
parece-nos que temos os mesmos sentimentos e a mesma admiração pelo
malogrado. Portanto, agradecemos os vossos esforços para nos contar tudo, o mais
minuciosamente que puderem, começando por nos dizer de que rumores fala o
defensor – inquiriu o Tribunal.
– Bem, segundo os rumores de que, por ter sido a antiga namorada, em quem tinha
muita confiança, era fácil criar uma situação semelhante a que foi criada nos meios
de comunicação de massas. O facto de o marido ter aconselhado a esposa a não
manter qualquer relação com Renato, induz em interpretações erradas que os meios
de comunicação de massas do país têm explorado a este respeito. Todas estas
questões são afastadas quando temos um arguido. Perguntamos, portanto, porque
é que não se faz justiça já que temos um suspeito no caso? – Questionou de novo o
defensor.
– Vamos colher mais informações antes de fazer qualquer juízo de valor acerca do
arguido. Contudo, gostaríamos de saber como descreve, a sua cliente, os momentos
à volta do ataque – interveio de novo o Ministério Público.
A acompanhante saltou do seu lugar, pondo-se de pé e, sem pedir autorização ao
seu advogado, abriu-se para com os jurados:
– Os momentos em que estive com ele e que precederam ao ataque, foram
extraordinários. Mas os que se seguiram depois, foram de confusão e pânico. Assistir
a uma situação tão confusa que envolveu um amigo que me era tão caro, sem ter a
possibilidade de o defender, era e continua a ser uma grande tristeza.
A Juíza advertiu a todos que não se pode falar directamente aos jurados.
– O que nos pode dizer mais sobre a escolha do local do vosso encontro? – Inquiriu
o lado da acusação?
O defensor pediu à acompanhante para pronunciar algum parecer sobre a escolha
do local, mas para fazê-lo resumidamente.
– Bem, o Renato e eu tínhamos o costume de, nas vezes que nos encontrávamos,
fazer uma proposta sobre o local de encontro e Quebra-Canela é um dos lugares
preferidos. Alguns dias antes, porém, reunimo-nos um pouco mais tarde, dado que
ele tinha um encontro importante, marcado com o Presidente da República e tinha
minha consciência, mas partilho as insatisfações acerca das investigações até com
as pedras da calçada, o facto de não ter ainda na mão um criminoso ou o que temos
não ter confessado o crime. Estou a travar uma batalha contra o nada que me quer
fazer ajoelhar perante uma situação onde ninguém consegue demonstrar a minha
culpa. Metam-me na prisão se assim quereis! Estou a ser tratada como uma
criminosa ou, pelo menos, como suspeita. Se os senhores acharem que sou culpada,
quero a partir de agora, que me tratem como ré deste caso e deste Tribunal. Já fui
suficientemente chamada de assassina. E, se o amanhã vos convencer da minha
inocência, vivereis o resto da vida com a consciência pesada. E, se amanhã vos
entregar na mão o desgraçado assassino num piscar de olhos, terão a certeza de que
este facto vos marcará para todo o sempre? E se o réu à nossa frente vier a confessar
a sua culpa?
Sei que são tantos a chorar por uma vida perdida, uma vida que tanto significou para
a minha pessoa, mas principalmente, para os familiares e para a nação. Seriam
tantas as fontes de bocas sequiosas e de calor humano que pudessem ser saciadas
pelo trabalho intelectual do malogrado. Eu padeço de igual modo os cilícios da
sociedade, da família e dos amigos. Os senhores estão a tocar, sem permissão
alguma, a corda da minha pungente dor, a aumentar o volume de tudo que entra
agora de rajada pelos meus sentidos que estão prestes a explodir, a provocar a febre
que irradia dos meus poros, uma sensação indescritível e a desonrar o meu nome em
público. Senhores jurados, sou completamente inocente. Podia, também, estar
morta neste momento. Ainda vejo a silhueta do mascarado à minha frente! A
perseguir-me o tempo todo. Imaginem! Procuro enterrar tudo o que aconteceu por
tão doloroso ser, por me seguir para onde quer que vá, para não mais ter de recordar
aquela paisagem e tudo o que lá aconteceu. Não vos posso descrever o que sinto
porque não encontro palavras adequadas, provavelmente não hei de encontrá-las
em lado nenhum. Devem estar guardadas no meu íntimo, num lugar que nem eu sei
o código de entrada. Se têm uma justiça a fazer, há que acalmar ideias acusatórias
contra mim, voltar à realidade e agir no sentido de não mais perder tempo e conduzir
uma investigação mais aprofundada, agora com mais força de raciocínio e sentido
de responsabilidade. Sabem, senhores, os tesouros desta vida são as insignificâncias
que nos atropelam todos os dias e teimamos em não ver. As inquirições no lugar do
tiroteio não são uma dessas insignificâncias, antes pelo contrário. Do nosso encontro
resultaria, certamente, algo de muito útil para esta Nação. Mas infelizmente, não
tivemos essa oportunidade. Agora é o momento de cuidar dos valores que Renato
incutiu em nós, regar a sua alma com compreensão de um sábio, alimentá-la com
confiança, deixar florir nela a coragem, com a paciência de Job e colher o fruto da
sua sabedoria, do seu esforço e do seu trabalho para que se multipliquem em
esforços contagiantes.
O suposto réu tirou a cara do chão e reparou que todos tinham os olhos pregados
na acompanhante. A Juíza ficou impaciente depois de ter ouvido o longo discurso.
Virou-se para o representante do MP e não disse nada. Depois o advogado de
acusação pediu a palavra para um comentário.
– Como inspira piedade, minha senhora! Que quer obter deste discurso quando os
pratos da balança pesam a seu desfavor, isto é, contra si? Quando a tríplice
encruzilhada, os olhos do mundo, o seu encontro e as suas relações com o
malogrado, apontam para si como a única testemunha credível! A senhora não quer
colaborar e está a comportar-se como uma vítima em todas as suas intervenções.
Até agora a senhora é considerada testemunha e declarante. Mas há algo não dito
até agora. Se não foi dito é porque alguém está a proteger outros. Está com medo
da verdade. Parece-nos, que o que pede só Deus é capaz de conceder – disse.
A testemunha principal levantou-se e pediu palavra à Juíza para fazer um
comentário.
– Neste caso alcançareis o que desejais. Culpar-me por um crime que não cometi.
Isto é ver a Justiça cometer assassínio – acrescentou a testemunha principal.
– Não nos agrada dizer coisas sem sentido e o que não pensamos. Bem sabe que o
seu discurso não lhe assegura a felicidade na vida e nem lhe garante uma liberdade
imediata. – Disse o representante do MP.
– Oh, meu Deus! Até quando a figura feminina continuará a ser vítima das mais
inimagináveis e hediondas injustiças? – Retorquiu a acompanhante
A testemunha principal aproximou-se do seu advogado de defesa. Confidenciaram
de novo algumas palavras depois de terem pedido a autorização da Juíza. O
advogado de defesa virou-se para os jurados quanto se estabeleceu um silêncio
sepulcral e disse:
– Senhores, digníssimos jurados. Excelências. Durante esta audição trataram a
minha cliente como se fosse uma ré, embora tenhais também feito declarações que
dizem o contrário. A justiça não se faz com o coração, nem com argumentos
baseados em adivinhações e conjecturas fáceis. Pesa sobre este Tribunal
preconceitos femininos de uma sociedade pouca organizada, que não protege uma
inocente para pura e simplesmente acautelar as suas instituições incapazes de
investigar um crime quando tinham à sua frente dezenas de possibilidades de
recolher indícios de toda a ordem. Pedimos que se dê tempo ao tempo, para que as
instituições atinentes se concentrem nos indícios que ainda se encontram ali fora,
antes de fazer um juízo de valor apressado e perigoso, muito perigoso para o nome
da Justiça. Porém, aconteça o que acontecer nesta audiência e no julgamento final,
recorremos, primeiro, ao vosso bom senso, solicitando a este Tribunal, que a nosso
ver, anda às apalpadelas, como quem anda às escuras num apartamento
desconhecido, que declare a minha cliente inocente, caso estiverem a tratá-la como
ré deste Tribunal. Deixem, meus senhores, que a ciência tome conta deste processo
para nos apresentar os indícios capazes de nos fornecer informações que nos
ponham na pista certa. Posto isto, e se as coisas correrem pelo vosso lado,
recorreremos, em segundo lugar, às entidades mais altas para que oiçam as nossas
vozes. E mais, se julgais com o coração, não esqueçais de que o coração do homem
é um templo de onde deve sair coisas com afecto e amor. Quando as suas portas se
encontram fechadas para um homem ou uma mulher, ele também está fechado para
Deus. Tenho por mim uma consciência pacificada porque uma alma limpa e uma
consciência limpa são como pão e vinho para o corpo. É o que tenho para vos dizer
neste momento.
– Pois bem, senhor defensor, nada ocultaremos do que pensamos. Na nossa
opinião, a senhora que se encontra ao seu lado, foi cúmplice no crime ou foi quem o
organizou, embora não o tenha cometido com as suas próprias mãos. Temos até
agora poupado nas palavras que a colocam na posição de ré, temos-lhe dado o
benefício da dúvida desde que iniciámos esta audiência para não cair
apressadamente em erro. Portanto, temos virado a nossa atenção, talvez
erradamente, para o réu presente e para outras questões. A sua cliente, devia estar
trancada atrás das portas da prisão neste momento, porque há razões de sobra para
o fazer. Entretanto, dado à natureza do crime, julgo ser pertinente e sensato
recomendar a todos o arquivamento do processo até o apuramento de mais provas
concretas, para não cair no precipício que a dúvida cria.
– É muito sábio o modo como procedeis no assunto, senhores doutores. Estamos
aqui para nos defender e continuamos a fazê-lo, no meio da desgraça que nos assola
e aflige. Porém, não queremos permanecer sob a afronta de semelhante suspeita e
profunda injúria. Aprendemos muito cedo que não se deve acusar alguém
simplesmente por vagas suspeitas ou por ouvir dizer.
A Juíza, depois de consultar todos os jurados e pedir a todos para se aproximarem
da tribuna, esclareceu alguns pontos importantes apurados até o momento. Depois
de todos terem regressado aos seus respectivos lugares, a mesa de acusação pediu
a palavra, mas não lhe foi dada a oportunidade porque a atenção estava virada para
a mesa de defesa. A Juíza olhou para a acompanhante e disse:
– Alguém muito próximo de si sabia que este réu tinha qualquer delito anterior e
que a suspeita cairia mais facilmente sobre ele. A coisa, segundo nos parece, foi
arranjada de tal maneira que criou confusão na cabeça de toda a gente. Porém,
devemos recordar a todos de que simples indícios não são provas para condenação
e que o próprio “dominus litis”42 pede a absolvição do réu aqui presente. O indício
não é meio de prova, mas sim, fonte de prova indirecta. Nós não estamos perante
vagas suspeitas, mas sim, diante de um quadro de razões e indícios que qualquer
cidadão comum pode deduzir. Entretanto, achamos por bem adiar, por um tempo
indeterminado, este trabalho, dar tempo ao tempo, elucidar mais esse mistério e
reforçar os indícios. Mas não esqueçais, meus senhores, que onde o corpo anda,
também anda a sombra. A sombra da insatisfação, a sombra do protesto calado, a
sombra da desgraça, a sombra do medo e do infortúnio. Da mesma maneira, a
verdade é acompanhada pela mentira. Ficais, por enquanto, com os benefícios da
dúvida. Além disso, não existe transparente juízo de certeza para acusar o réu
presente de homicídio em causa nem de atribuir cumplicidade à acompanhante. Por
isso, o veredicto tem de ser o de inocente. Voltemos a repetir: este Tribunal não pôde
apurar um juízo de certeza e por este grande motivo o processo vai ser arquivado e
o réu fica livre como um passarinho – concluiu a Juíza.
Houve sussurros que faziam-se ouvir à distância, os olhares penetravam o espírito
dos presentes e adivinhava-se o pensamento dos mais chegados da família, pondo
e sobrepondo sombras de dúvidas. No entanto, o defensor sublinhou a necessidade
de evitar que se crie na sociedade demasiado orgulho que muitas vezes produz o
tirano. E acentuou que, quando excessos de imprudências em vão se acumulam em
indivíduos que têm o poder nas mãos precipitar-se-á do auge do poder num abismo
de males sociais, de onde não mais se poderá sair. O defensor prometeu continuar
a trabalhar para que ninguém neste país sofra injustiça. Estamos num bom caminho
– pensou, pois, os jurados mostraram competência e maturidade nas decisões
tomadas. Fortaleceram o valor do trabalho judiciário, valorizaram o trabalho da
polícia e a estratégia de combate ao crime, ao tomar uma decisão acertada e
justiceira. Mas o defensor também compreendeu a insistência do Tribunal em
aclarar o problema o mais urgente possível, a preocupação de proteger toda a
sociedade e as suas instituições e que levaria entranhado na alma, as lembranças de
um clima de debate saudável e ponderação na tomada de decisões. Deu um abraço
de vitória à sua cliente, votou-lhe um riso interior, olhou algum tempo para o papel
que tinha na mão e mentalmente para os jurados e pensaram os dois: veremos mais
tarde. Os dois entreolharam-se uns segundos, sem dizer nada, como se lessem na
alma um do outro. Ambos vieram ao mundo com profundas rugas de sabedoria no
42Costuma-se fazer referência ao Ministério Público com duas expressões latinas: “dominus litis” e
“custos legis”. “Dominus litis” significa “dono do litígio”, ou seja, titular da acção, aquele que tem
legitimidade jurídica para ajuizá-la. A expressão refere-se em geral à acção penal, de que o MP é,
quase sempre, o titular privativo.
Mas vamos dar-lhe o benefício da dúvida, por que não possuímos a capacidade de
adivinhar e isto é bom para ela.43
CAPÍTULO XXXIV
Nos fins dos anos 80 e começo dos anos 90 houve, um baralhar de religiões no
pequeno espaço geográfico cabo-verdiano. O que mais se destaca aqui é um
pequeno agrupamento de aderentes a um deus antigo do tempo da Babilónia.
Nunca se ouvia falar de tal deus nas nossas ilhas. Era o deus dos assírios. Esse deus
era adorado por um grupo de cabo-verdianos. Alguns juntaram-se ao grupo pela
atracção e por afinidade do nome Pazuzu. Aquiles liderava o grupo que, pouco a
pouco, se tornou uma comunidade de 8-10 pessoas. Era um ateu ferrenho, aliás, era
um agnóstico como preferiam alguns chamá-lo. Pazuzu era tanto o deus dos assírios
como o dos babilónios. Era o deus mais venerável desses povos durante os primeiros
43Esta audiência foi inspirada numa obra clássica – Édipo – de Sófocles que se encontra no –
http://www.dominiopublico.gov.br/
milénios antes de Cristo. Para os que tiveram a sorte de visitar o Museu de Louvre,
como Aquiles, devem ter já travado conhecimento com o deus mitológico dos
assírios e dos babilónios.
Como esse deus teve impasse no país, não se sabe e as influências babilónicas não
têm precedentes na nossa terra. Pazuzu era o rei dos demónios e dos ventos, filho
do deus Hanbi, sendo este um deus cruel e maldoso, senhor de todos os espíritos
malignos que povoam a terra e/ou o inferno. O filho saiu o pai, isto é, Pazuzu não
poderia ter saído muito diferente do pai. Representava também, o vento de sudeste,
transportador da tempestade, da carência e da seca. E como a seca é um fenómeno
periódico em Cabo Verde, os aderentes a este deus deviam ter sido influenciados
por um tal fenómeno.
Este deus é normalmente ilustrado com uma combinação de vários animais e
algumas partes do corpo humano. Por exemplo, cabeça de leão ou de cão, de falcão,
pares de azas, com rabo de escorpião e um pénis serpenteado, com a mão direita
apontada para o céu e a esquerda para baixo, indicando o céu e o inferno,
respectivamente.
A veneração a esse deus parece ter muito a ver com a onda de profanação da Igreja
Católica na altura e deve-se à coincidência que têm os acontecimentos climáticos no
nosso país com o que o deus Pazuzu representa. O vento de sudeste traz a seca e a
fome durante a estação seca, a miséria e gafanhotos durante a estação das chuvas.
Na falta de um Deus dos cristãos que os protegesse, descobriram um deus do
satanás que coincidiu com o Pazuzu, por este os satisfazer melhor na altura.
Dois ventos que sopravam alienadamente de direcções diferentes. O mesmo deus
era associado ao vento frio de nordeste e representava uma força que combatia o
poder dos deuses ruins, como o seu odiado inimigo Lamashtu. Este era um demónio
feminino que ameaçava as mulheres quando estavam a dar à luz. Era um deus que
causava desgraça às mães e às crianças durante o parto porque adorava beber o
sangue dos recém-nascidos. Apesar de Pazuzu possuir um espírito mau, ele
exorcizava outros espíritos maus, protegendo assim, os homens das pragas e
infortúnios causados por outros deuses numa forma concorrencial. Portanto,
Pazuzu, era, ao mesmo tempo, um antagonista dos demónios e um ajudante dos
que estão a ser alvo de outros demónios. Era oportunista e hipócrita.
Segundo Aquiles e seus amigos, Nero estava a ter uma ajuda especial do deus
Pazuzu, protegendo Judith e Daniel e todos os seus colaboradores. A palavra Pazuzu
significa, nalgumas das ilhas de Sotavento, o ar ou sopro que sai do ânus sem fazer
ruído (um peido silencioso). É muito difícil identificar o dono de um pazuzu deixado
no meio de muita gente. O “criminoso” fica livre porque tanto um como o outro
pode largar um pazuzu no meio de camaradas sem que alguém identifique a origem.
Nero estava a ser possuído pelo Pazuzu, o espírito mau, que o livra de todos os
“perigos” que a justiça representa. A morte de Renato foi um grande pazuzu
espalhado no meio social cabo-verdiano. O seu assassino ainda está por descobrir.
Fátima conhecia muitos dos membros da igreja satânica e sabia algo do que se
passava lá dentro. Já tinha dado muitos passos para esclarecer sobre a morte de
Paín, mas sem resultado. Estariam os membros dessa igreja envolvidos na morte do
amigo e, ao mesmo tempo, na onda de profanações da Igreja Católica? Os
pensamentos dela decorreram sobre a sanguinária morte, sobre os problemas que
se situam no âmago social e não encontrava um remédio universal para os resolver,
porque não havia liberdade de expressão naquele tempo. Ela, não gosta de ver
sangue a correr e só a ideia de um tiro que faz jorrar sangue dum amigo a faz pensar
no sangue a esguichar na sua cara como uma língua de fogo. O povo da Babilónia
considerava o sangue como o espírito sagrado. O próprio Sócrates asseverava que o
segredo da vida se encontrava no sangue e que o corpo humano era principalmente
constituído pelo sangue, juntamente com alguns outros elementos como a água, sal
e bílis. Se o sangue fosse envenenado ou afectado por alguma doença, o corpo
humano morreria com isso. Fátima não pôde aguentar a ideia de viver uma vida
inteira sem ter uma resposta convincente sobre a morte dum amigo leal, nem
encontrar um lenitivo para a sua dor. A sua mãe ensinara-lhe que a justiça é um
conceito feminino e que a feminidade tem muita contribuição a dar na sociedade.
Assim resolveu agir de maneira diferente.
– Escrevi uma carta ao senhor Presidente da República, na altura, pedindo
esclarecimento sobre o tipo de conversa que teve com o nosso amigo comum. Não
para lhe pedir satisfações, mas para podermos chegar mais perto das causas do
assassinato. Nunca tive uma resposta, e nem sei se a carta chegou ao seu destino ou
dobrou a esquina dos Correios. Se bem que era de esperar. Tinha enviado uma cópia
aos meios da comunicação da capital e nem um fumo de lá saiu – disse Fátima muito
preocupada.
– Não era de esperar mais. Também falei com o chefe da redacção do maior jornal
do país. Sabes o que ele me disse? Que estava a perder o meu tempo! Pediu-me para
contactar a acompanhante e pedir explicação à polícia que investigou o caso –
queixou Marta.
Fátima e Marta entreolharam-se. Ficou uma impressão palpável no ar que dava a
sensação de que houve uma conspiração naquela calapitcha44 toda. As duas
comentaram algumas passagens durante o julgamento, principalmente quando
- Há coisas que não compreendem da Escritura e, por isso, usam alguns versículos
da Bíblia para justificar o assassinato. Mas Jesus anulou tudo aquilo quando veio ao
mundo. Foi Ele que nos ensinou a amar os nossos inimigos e a dar outra face – disse
Marta.
– Sim as palavras podem ser poderosas. Tão poderosas e perigosas que extremistas
as usam para matar indivíduos inocentes. Eu não compreendo esta maneira de
pensar. O Satanás é, para mim, uma das figuras mais discutidas na teologia.
– Aprendi muito cedo que Satanás antes era um anjo – pensou Marta.
– Não apenas um anjo, mas um arcanjo expulso do céu. Job identifica-o como filho
de Deus – acrescentou Fátima.
– E príncipe do inferno. No livro de Moisés não existe a palavra satanás. É só ler a
Bíblia – disse Marta.
– Mas...estou a pensar, de onde veio o satanás desse grupo infame?
– Não só da Bíblia Sagrada, mas também, das religiões do Oriente – replicou Marta.
– Já me tinhas explicado isto, agora lembro-me.
CAPÍTULO XXXV
Anno vigesimo
política sobre o assunto? E porque é que o próprio Renato não disse mais sobre
quem o baleou ou o mandou matar? Por que tudo caiu no silêncio? Qual é a
verdadeira razão do assassinato? Quem ganhou com a morte de Renato, a curto e a
longo prazo?
Fátima telefonou à Marta numa terça-feira, o dia em que completou vinte anos após
a morte de Renato Cardoso. Era ainda cedo e o tempo prometia chuva. A ferida ainda
não tinha cicatrizado no espírito das duas amigas. A sua intuição feminina dizia-lhes
sempre que, aqui mesmo no país, se encontrava tudo que seria preciso para apanhar
o assassino. Tudo o que se procura será descoberto e aquilo que se descura escapa
às mãos da Justiça. Se nenhuma comprovação for apresentada, se a companheira
de passeio não viu qualquer coisa que possa esclarecer à sociedade civil a respeito,
uma breve revelação indiciária poderia facilitar muitas coisas. Mas como revelar
indícios após vinte anos? Uma coisa é certa: há um assassino solto no nosso meio.
Se não estiver no nosso meio, ele ou ela, encontra-se a gozar de alta protecção e de
uma certa imunidade num país estrangeiro qualquer ou simplesmente vive,
aparentemente, descontraído/a, provavelmente com uma certa dose de imunidade
que o/a coloca em cima da lei, mas com uma consciência perturbada em qualquer
lugar do mundo.
– Mas ó filha, como e para quê teria o homicida praticado uma acção dessas, se
não fosse feita mediante subornação? Para quem fez isso? Não paro de pensar nisso.
Não paro de ouvir uma voz íntima e crítica a segredar-me nos ouvidos. É a voz do
silêncio que vibra no fundo escuro, cujo lugar não sei explicar, uma voz clara,
pertinente e persuasiva, que propaga no meu ser como ecos do passado, como o
radar que toca a minha mente e volta ao ser, constantemente – sublinhou Marta.
– Olha, também a mim me ocorreram essas perguntas todas. O que estranho é que,
depois do assassinato, ninguém pensou seriamente em descortinar o que aconteceu
ou castigar o criminoso. Pouco interesse despertou na nossa sociedade. Nem mesmo
os mais achegados! Sinto muita pena de dizer isto! O que impediu uma investigação
aprofundada do que se passara? Acho que alguém instigou a outrem para deixar de
lado os factos incertos para só pensar no que está para diante. É a maneira mais
cómoda de resolver problemas, arquivando o processo. Tanto a culpa como a
consciência já se tornaram conceitos vazios – reclamou Fátima.
– Certamente, mas não se tem onde pegar. O que acontece se voltarmos à origem
desse crime e o pusermos em evidência? O que perderíamos com isso? É do interesse
do povo cabo-verdiano encontrar e punir o assassino pelo crime cometido, quem
quer que tenha sido o matador. Tudo isso é um flagelo que nos tortura diariamente,
pois temos o espírito perturbado pelo horror e pelo desespero que nos atormenta.
47 Laissez-faire e laissez passer significam a mesma coisa no sentido empregado aqui. Usa-se em
francês para significar literalmente "deixar fazer", e “deixar passar” sem interferência do Estado. o
Estado deve "deixar o mercado fazer", sem interferir no funcionamento deste,
CAPÍTULO XXXVI
esforços voluntários individuais que se afogam na falta de verbas e acabam por ter
um destino no fundo das gavetas. Na maioria dos casos, são afogados pela tacanhez
política que nem às gavetas chegam. Daí a falta da sua acessibilidade à comunidade
e o facto de se tornar um hábito de como camuflar as coisas que deveriam ter alta
prioridade num país democrático. Fátima apontou de novo o dedo para Marta e
disse:
– A investigação em Cabo Verde deve ser assumida como sendo responsabilidade
do Estado democrático. É um factor importante no desenvolvimento do país. As
autoridades competentes deste país devem assegurar que haja uma investigação
compreensiva, transparente e completa de modo a levar os culpados deste e de
quaisquer outros crimes à barra da justiça, sem demora, dado que a Constituição
desta nação nos garante este direito de protecção individual e da família. Isto é
importante para um país que se diz democrático.
– Além disso, minha amiga, a investigação deve ser feita imparcialmente. Deve-se
criar um departamento com a missão séria de promover projectos de investigação,
independente de outras instituições. Temos essa tendência insular, aliás mesquinha,
típica de países pequenos, de deixar a penumbra do medo assombrar o pensamento
livre dos indivíduos e marginalizar as pessoas que trabalham com afinco para
descortinar um crime, seja ele de cariz social, económico, passional ou político, etc.
Acho que o Ministério Público devia ter uma posição firme no sentido de que a
investigação criminal estivesse aberta a todas as instituições do Estado, inclusive as
privadas, assim como, todas as que são capazes de colher informações que possam
ser úteis no cumprimento da acção penal. Temos de ter sempre instituições
independentes que certificam que ninguém está acima da lei. Isto não aconteceu no
caso do nosso amigo comum – reafirmou Marta.
– Sim, de acordo. Deve ser da competência da polícia judiciária a primeira parte da
investigação, incumbindo a segunda, ao Ministério Público. Uma limitação do
inquérito policial conduz a uma posição de insuficiência, de mediocridade, uma vez
que, as investigações não devem ser realizadas apenas por uma entidade. Digo isto
porque uma outra entidade pode apresentar denúncias, independentemente da
existência de um inquérito policial. Uma investigação criminal dev e ser muito mais
ampla que uma actividade da polícia judiciária. Uma actividade de investigação deve
ser regrada, isto é, deve haver uma norma legal que regula, precisamente, como
deve agir um órgão em procedimento investigatório, com um esquema de controlo
para certificar que tudo está a ser feito de acordo com as leis e com as regras
policiais. É isto que se faz aqui no país? Penso que não. Temos exemplos de sobra.
Pondo isto, pergunto agora: qual é a contribuição que devemos dar neste sentido?
Qual é o nosso dever moral quanto a isto? A força da Constituição devia muito bem
comunicação e pelas pessoas nas ruas. Os motivos económicos e políticos são duas
faces da mesma moeda, de que menos se fala. Por quê? Recordemos que na altura
do assassinato não havia liberdade de expressão. Vivia-se, repitamos, com medo.
Renato era capaz de competir tanto para o lugar de Primeiro-Ministro como para o
de Presidente da República. Além disso, defendia o pluripartidarismo ou o pluralismo
político, com muito afinco e muita determinação. Portanto, era uma pessoa que
tinha consciência das suas obrigações, que atribuía grande importância aos seus
ideais, que era capaz de dizer claramente as suas opiniões aos que com ele
conviviam, aos que só pensavam em defender os seus territórios económicos e
políticos, pensando que algo mais além do que aquele limitado território privado,
não existia. Era capaz de dizer distintamente e com convicção: os senhores estão
apenas a lidar com coisas mundanas; estão a roubar o direito de expressão a esta
nossa gente; estão a servir de luz e guia para iluminar um povo humilde que sabe
como ultrapassar as suas dificuldades apenas com uma lanterna na mão apalpando
algo que é maior que si mesmo, algo que ascende todas as coisas passageiras da
vida. Mas a vossa luz é ténue e o vosso guia anda às palpadelas. Eu quero fazer o
meu dever, lutar por uma vida melhor para todos. Mas qual era a resposta que uma
pessoa como Renato recebia? Se o senhor Renato tivesse passado pelo que
passámos, pelas nossas experiências e pelo trabalho árduo executado debaixo de
condições péssimas, veria que o que passámos também tem valor e um significado
maior ou melhor que os seus feitos! E Renato ripostava por sua vez: meus caros
amigos, não podemos viver eternamente lamentando e evocando o passado,
referindo-nos aos feitos heróicos do pretérito. Vamos encher a taça de convívio para
limpar o HOJE dos preconceitos e mitos de ONTEM e do medo do futuro, porque
ninguém o conhece; não existe nada debaixo do sol que impeça o homem de
ultrapassar a linha traçada por vós, uma linha, que só vós mesmos podeis dizer, ser
intransponível e incontornável!
– Bem, compreendo onde queres chegar. Sabemos que, tanto Renato como os seus
críticos, procuravam um ideal. Mas são ideais diferentes. Renato procurava valores
comuns e uma vida melhor para todos, eles procuravam o poder, a utopia, o dinheiro,
o prazer, a riqueza e, cada um, com os seus motivos, cada um com os seus meios
para atingir o fim procurado. Um a contradizer o outro, embora todos estivessem a
caminhar para uma meta específica, a curto ou longo prazo e com algumas
dificuldades. Um dia, compreenderão quem, afinal, serviria melhor ao povo destas
ilhas, um povo massacrado e oprimido, que sofre as penúrias da comunidade. Temos
uma tendência nata de acusar os outros pelos seus males cometidos porque
pensamos que nós estamos a fazer a fazer o bem e o justo. Este modo de pensar não
resolve conflitos de pensamentos. A pessoa que consegue ultrapassar todas essas
coisas mesquinhas que engendram conflitos, a pessoa capaz de ultrapassar as
CAPÍTULO XXXVII
Morreu um homem político. Para muita gente, esta foi a história mais mal contada
no final do último século. Parece ser também uma história apaixonante que
submergiu na onda da praia de Quebra-Canela na tarde de 29 de Setembro de 1989.
Leitores, ouvintes e telespectadores de todo o mundo, acompanharam-na através
da comunicação social, como se fosse a morte de um cowboy. Ainda hoje se ouve o
eco do tiro que aconteceu naquela praia, casual e esporadicamente. Porém, nem
casual nem esporadicamente se sabe o que é feito do processo, das investigações
do assassinato do político e do homem Renato Cardoso. Para a Polícia Judiciária, foi
uma investigação fácil e célere, nada difícil por que excluíram logo no princípio um
factor importante. A morte não foi motivada politicamente, dizia um comunicado
oficial. E isto contribuiu para que às questões políticas fosse dada pouca atenção.
Houve pistas verdadeiras e falsas. Houve arguidos, suspeitos, mas o que é feito das
provas de sangue, do ADN, das mordeduras, dos arranhões e dos resultados do
detector de mentira? Ficou uma lacuna nos argumentos sobre os motivos. Ou talvez
não. Mas se sim, vista sobre uma perspectiva criminal, para muita gente entendida
circunstâncias que não foram desvendadas. Coisas do destino. Se ele fosse nessa delegação não
teria morrido.48
Vejamos:
[...] neste aspecto, ele teve uma grande desilusão aquando do penúltimo Congresso do PAICV
antes da mudança e em que ele, nitidamente, contava ou esperava que, dado ao desempenho
dele no Governo e, digamos, a contribuição que ele dava ao partido, pudesse ser eleito para a
Comissão Nacional do PAICV. 49
48 José Luís Fernandes Lopes, Artiletra de Novembro/Dezembro de 2014, A viagem que não
aconteceu.
49 Idem
50 Dr. Carlos Veiga – Artiletra de Novembro/Dezembro de 2014
um lado, não se conhece ainda a identidade do killer. Por outro, é sabido que o Dr. Renato
Cardoso, talentoso reformista do regine, vinha enfrentando sérias dificuldades para levar avante
as suas ideias de reforma. A esse propósito, constou que no mesmo dia em que viria a encontrar
a morte, teria sido recebido pelo Presidente da República, a quem teria exposto sua intenção de
demitir-se. Verdade? Faça-se uma investigação séria e diga-se toda a verdade sobre o caso. A
Terra tem que saber.51
Os primeiros detidos levados à esquadra – aqui pertinho da minha casa – eram na sua maioria
voyeurs que frequentavam o lugar do crime...
Estava eu dizendo, a polícia quando não encontra um criminoso, atira-se logo a um. Como
queriam arranjar provas a todo o custo, não tiveram desfaçatez nenhuma em apresentar estas
duas grandessíssimas provas: "Badiu Boxero era um desempregado e dormia na Praia de
Gamboa". Ainda bem que não foi na Praia da Gamboa o crime, senão a polícia nem precisaria de
uma só prova. Aliás, uma vez que – "dizem" – a Judiciária Portuguesa não deparou com vestígios
nenhuns na Quebra-Canela, temos todo o direito de duvidar se o crime teria sido praticado
mesmo nesta praia.52
O réu foi absolvido! ”Badiu Boxero” foi absolvido a meio da manhã de ontem, por entre palmas
da assistência, que no final da audiência não lhe regateou abraços, provas de contentamento pelo
desfecho dum julgamento atentamente seguido pela opinião pública. Também a testemunha e o
conjunto de declarantes não sofreram qualquer sanção, pelo que o processo foi arquivado. 54
CAPÍTULO XXXIII
As espectativas de Marta
Djonzinho sempre sonhara fazer justiça ao seu admirado amigo. Desde o dia em que
Marta lhe contou o conteúdo dos seus sonhos, não arredou os seus pensamentos
da solução dos problemas relacionados com a morte de Paín. Os sonhos da Marta
eram intrincados e continham impossibilidades lógicas. Eram uma maneira de
contornar os intricados problemas. Não lhe saiam da mente e, pouco a pouco,
aqueles sonhos foram absorvidos pelos seus próprios sonhos. Então, Djonzinho
escutava com atenção o que Marta relatava sobre a possibilidade de encontrar o
assassino de Renato mesmo passados muitos anos. Os recônditos da mente dele
estavam povoados desses sonhos e o homem queria encontrar uma resposta
científica.
Marta era uma das amigas de Renato e é licenciada em criminologia. Juntou-se ao
grupo formado por poucos indivíduos, a pedido dos seus próprios constituintes, para
fazer a investigação do local do crime, muitos anos depois do assassinato. Ela sabia
que era uma impossibilidade que não cabia na lógica dos seus amigos mais
chegados. Sonhou com Quebra-Canela e imaginara em transformar essa
impossibilidade em possibilidade.
Notou a hora exacta em que chamou o Roberto para consultar o primeiro achado.
Este olhou para ele e disse:
– Djonzinho, precisamos de algo para aumentar isto. Lá no escritório temos um
lente de aumento. Vai lá buscá-lo sem demora. Traz, também, a máquina fotográfica
que se encontra ao lado do computador, dentro da caixa com o aparelho que serve
para estabelecer a idade do achado. O datador C 14. Traz tudo.
Djonzinho entrou de novo na imaginação de Marta, fechou os olhos por uns
instantes e viu-se a bater freneticamente com os dedos no volante quando passava
por Chã d’Areia e avistou um grupo de gente que cruzava a estrada. Matutava sobre
o vaivém de pessoas e questionava para onde iam todos, quem são e porque
estavam ali naquele determinado momento. Olhou para o relógio que marcava
14h23 e tirou do bolso um lenço amarrotado para limpar o suor. Desejava que o
caminho estivesse livre somente para ele. O tempo andava depressa e ele precisava
do caminho livre. Estava a sentir-se como um doido a desafiar outro doido atrás das
paredes da prisão. Tomou consciência de que se mantinha parado no trânsito, com
o coração a bater-lhe no peito como um tigre aprisionado. Procurava combater a
fadiga que se apoderava dele. Passou-lhe pela mente o atropelamento de um grande
homem de letras em São Vicente, de outro em Algés em Lisboa e de tantos outros.
Imagens caleidoscópicas verteram-se-lhe sobre os sentidos. Um homem morto no
chão, sangue, gente que se junta, um camião enorme, polícias, cães. Pediu a nossa
senhora da Graça para lhe dar a paciência necessária. Aquela paciência de Job que
reveste de esperança muita gente. Sentiu-se aliviado, depois de alguns minutos, e
compreendeu, em poucos minutos, que dentro de si morava muita coragem e
paciência. Ouviu uma voz que dizia:
– Que demora, Djonzinho – comentara Marta agora contente ao vê-lo chegar.
Djonzinho não disse nada. Com serenidade, sentiu o olhar dela e os movimentos da
sua mente incidirem sobre ele. Não faz mal, murmurou ela dentro de si. Trabalhou
para o Estado durante muitos anos e, por isso, conhece a fundo, a paciência e a
impaciência de muita gente quando as coisas não andam bem. Marta também era
uma funcionária do Estado. Este tem a mágica tendência ou o efeito de transformar
os indivíduos em obedientes e conformistas de gema, indiferentes aos problemas
dos outros, auto-suficientes e meros titulares de cargos públicos. Estes sentem-se
como sendo o próprio Estado, tornam-se uno com o sistema. Confundem-se com o
todo, como se fossem o próprio sistema. O que não está longe da realidade do nosso
país.
Porém, neste momento, o sistema deve ser posto de lado. Com os olhos fechados,
o Djonzinho reflectia sobre o estado de espírito da Fátima que, pelos vistos, estava
impaciente. Olhava para Marta como quem aguarda algo libertador. Algo que
ajudasse o grupo a dar mais um passo na investigação, ficando mais perto do que
realmente aconteceu.
A voz da Marta soava amena, pingava de algo açucarado, quando pediu a atenção
de todos. Os seus olhares colaram-se ao dela durante alguns segundos. Depois disse:
– Minha gente, estamos a fazer um trabalho sério e, neste momento, ocorreu-me
à mente a necessidade de incluir no nosso grupo um agente de investigação policial
competente – pensou ela, e acrescentou – o Zé de Canjinha é a pessoa mais indicada
neste momento. Este trabalho exige muita paciência de todos nós. Ele é capaz de nos
servir e dar mais coragem.
– Não sei, Marta. Temos de ter cuidado com os servidores do Estado. Nem sempre
são neutros na tomada de decisão. O Zé é, de facto, uma pessoa íntegra, mas todo
o cuidado é pouco – comentou Fátima.
– Roberto, o que dizes tu sobre isto? – Perguntou o Djonzinho.
– Acho que devemos esperar um pouco, aprofundar as nossas investigações,
remoer os resultados encontrados sem alarmismo que põe termo ao nosso trabalho.
O envolvimento do Zé pressupõe o envolvimento dos meios de comunicação e vai ter
um grande impacto no nosso trabalho num sentido negativo – assegurou Roberto.
A imaginação de Marta reflectia os seus sonhos e, assim, continua as escavações
sobre um monte de areia com mais de meio metro de altura que já havia sido
revolvida à procura de algum sinal ou indício da presença de algo que contribuísse
para acrescentar algo ao repertório. Parecia uma escavação arqueológica. Mas não
estava longe disso. Só que ninguém do grupo tinha experiência no campo da
arqueologia. Roberto olhava frequentemente para o seu relógio, como se tivesse
pouco tempo para estar ali. Só mais tarde, Djonzinho compreendeu que era um mau
costume dele. Mas o relógio de Roberto não era igual ao seu. O dele é daqueles que
andam de acordo com a maioria dos que recebem a onda radiofónica do relógio
atómico. Eram 14h49 quando Marta instruiu ao grupo sobre a continuação da
investigação. Anotou o horário correcto no seu caderno, o número de fios de cabelo
encontrados, um pedaço de fazenda e colocou tudo numa caixa de recolha de
amostras. Djonzinho pensou logo no que significariam tais amostras depois de tanta
gente ter pisado essa praia após tanto tempo!
A certa altura no desenrolar do pensamento de Marta, isto é, no magma estrutural
dos seus sonhos, Djonzinho imaginou-a, a instrui-los.
– Já estou esgotada por hoje e penso que todos estão cansados. Uma outra coisa
importante que nos vai dar trabalho é encontrar o manuscrito sobre o projecto.
d’nós Ilha. Uma procura no Porton d’nós Ilha. Mas o portão é grande demais para
uma vistoria minuciosa ao local.
Djonzinho sentiu alguém passar os braços sobre os seus ombros, fazendo-o
regressar ao mundo real. Estava tão embrenhado no encadeamento lógico das
aspirações da Marta que se perdeu no mundo das ideias.
Estava a reconstruir o cenário final, mergulhado no onirismo em que Marta o
colocou. Estava a dar uns retoques finais a uma investigação que nunca tinha sido
feita. Estava acima de tudo, a reconstruir algo que compensasse a psique do grupo,
algo que justificasse um trabalho inédito. Sonhos são sonhos, de qualquer maneira.
Mas são, muitas vezes, o que se encontra recalcado dentro de nós. Eles,
simplesmente, sobem à superfície da mente, algumas vezes, como uma realidade.
CAPÍTULO XXXIX
56 http://pt.wikipedia.org/wiki/Cidade_Velha#cite_note-2
– Em 1520 foi construído o primeiro pelourinho na ilha, que hoje é este monumento
nesta linda praça. Como foi dito há pouco, – prosseguiu Marta – neste local encontra-
se a mais antiga igreja colonial do mundo, a Igreja de Nossa Senhora do Rosário, no
estilo gótico português (manuelino). A Rua Banana, que conduz à igreja, foi a
primeira rua de urbanização portuguesa nos trópicos. Vamos passar por lá daqui a
nada.
– O que significa estilo gótico ou manuelino? – Interrompeu Zé.
– Marta voltou a cara para Zé, estacou, olhou demoradamente para ele e
respondeu: o estilo manuelino é um estilo arquitectónico que se desenvolveu no
reinado de D. Manuel I e continuou após a sua morte. É uma variação portuguesa do
gótico, bem como, da arte luso-mourisca o arte mudéjar, isto é, uma mistura árabe
e portuguesa, simbolizando o poder régio daquele tempo. Portanto, o termo
"manuelino" foi derivado de D. Manuel I.
– Como é que queres correlacionar a história da Cidade velha com o assassinato –
perguntou Djonzinho depois de o calafrio ter sido minimizado.
– Djonzinho, chegaremos lá dentro de poucos minutos. Depois, tiras as tuas
conclusões. Quero vos iniciar num assunto importante para poder explicar o por quê
de cá estarmos. Pois, a Sé Catedral da cidade começou a ser construída, em
localização privilegiada, frente ao oceano, em 1555, e foi terminada em 1693,
quando a cidade já tinha perdido muito de sua importância. Foi atacada e,
totalmente, danificada por piratas em 1712, tendo ficado em ruínas, tal como hoje é
observável. Reparem nas ruínas à nossa frente. Imaginem apenas um pouco da sua
beleza no tempo manuelino. O Forte Real de São Filipe, lá em cima, que guarda esta
cidade do alto de 120 metros, foi construído em 1590 para defender a colónia
portuguesa de ataques dos estrangeiros. Aqui mesmo, temos o Convento de São
Francisco, construído em meados do século XVII, foi usado como local de culto e de
formação.
– Então, podemos dizer que aqui, na Cidade Velha, se encontra o berço da cabo-
verdianidade – intercedeu Fátima.
– Correcto, Fátima. Daqui, espalhámo-nos por toda a ilha. Daqui, partimos à
conquista de outras ilhas e do mundo. Chegámos e partimos desta cidade. Os
umbigos dos nossos antepassados estão enterrados aqui, possivelmente, onde
pisamos com os pés – completou Marta.
Marta passou para frente do grupo e conduziu -o às ruínas. Djonzinho sentiu outro
arrepio quando lá chegaram e tinha a impressão de que os outros também o
sentiram, mas ninguém se deu por vencido. O tempo pesava sobre os seus ombros
como uma imagem petrificada a olhar para eles. As paredes guardavam, em silêncio,
a história mal contada dos colonizadores, o destino de muitos povos, o segredo que
ninguém haveria de desvendar. Marta olhou ao redor e pediu para os outros se
aproximarem dela. Contou-lhes toda a história ligada ao local.
Depois de algum tempo a observar as ruínas, voltaram ao veículo e conduziram em
direcção à Fortaleza. Entraram pela porta principal, à direita, e num silêncio forçado
pelas circunstâncias. Começaram a vaguear, cada um na sua direcção.
– Aqui, meus amigos. Aqui, neste lugar histórico, aqui, deve estar escondido, de
uma maneira ou de outra, o que procuramos.
– Oh céus! O que procuramos numa ruína? Os ossos dos escravos? A dentadura de
um governador? O segredo dos donos dos escravos? A vergonha colonial? O destino
dos escravos ou as correntes que prenderam os seus pés na luta pela fuga? Os
protestos calados? Os chicotes da ignorância? Os penicos dos escravos? –
Questionou Djonzinho.
– Calma, Djonzinho. Segundo os zunzuns que andam pela cidade, os documentos
acerca do Projecto sobre a restruturação do poder e o Caminho para o
pluripartidarismo em Cabo Verde, estão escondidos no Porton d’nós Ilha, ou pelo
menos aqui se encontra uma pista – esclareceu Marta.
Marta arregalou os olhos, quase que caiu de costas.
– Então, é aqui o Porton d’nós Ilha? – Indagou outra vez Djonzinho.
– Há várias interpretações de Porton d’nós Ilha. A mais plausível é ser aqui onde
estamos. A capa do disco de Ildo Lobo, onde ele interpreta o Porton d’nós Ilha, está
ilustrada com a imagem deste local. Porton d’nós Ilha é considerado Cidade Velha,
por ser a primeira entrada de escravos e senhorios em Cabo Verde. Quando dizemos,
entrada, podemos também, dizer saída de escravos rumo a outras paragens, como
a nossa história relata. Vamos, portanto, dar início ao nosso trabalho, antes que seja
tarde. O grande problema é, por onde começamos? Onde procurar exactamente?
Este lugar é sacrossanto património nacional. Não podemos mexer nele. Zé, que
dizes tu sobre isto? – Perguntou Marta.
– A única coisa a fazer aqui, sem mexer em coisas santas, é vasculhar as paredes,
milímetro por milímetro, voltar as pedras soltas e colocá-las, depois, no seu
respectivo lugar, sem criminalizar os nossos actos. O meu trabalho, a minha
profissão não permite uma coisa diferente – explicou o Zé. – Mas o simples mexer de
uma pedra causa um grande problema.
que restaria era fazer uma análise retrospectiva, tendo pela frente as consequências,
isto é, a morte a tiro de uma pessoa pública. De resto, se isso fosse verdade, tudo
ficaria abandonado no fundo de uma gaveta. Era um sonho muito feliz. Temos de
tirar daí algo frutífero.
Nos momentos em que a dor mais a apertava, Marta pensava que, antes de se
pensar nos aspectos morais e mentais de um assunto que apresenta grandes
dificuldades, como a morte de um amigo, tão caro e fiel, o pesquisador, se é que
houve algum, devia principiar por se apoderar dos problemas mais elementares
antes de fazer ou pensar noutras coisas. Pensou que, por mais pueril que este
exercício possa aparecer, aguça as faculdades de observação e ensina para onde se
deve olhar e o que procurar. Pela manga de camisa de um homem, pelas unhas,
pelos seus sapatos, pelas joelheiras das calças, pelas calosidades dos seus dedos,
especialmente, pelo indicador e polegar, pela sua expressão, pelos punhos da
camisa, pelos arranhões, pelos cabelos, pelo sangue, pela mordedura, pela fricção
das partes corporais com outros indivíduos ou coisas, pelos rastos ou pelas
pegadas... em cada uma dessas coisas, a profissão de um investigador é claramente
indicada. Que um conjunto delas deixe de identificar um investigador ou indagador
competente, em qualquer coisa, é virtualmente inconcebível, isto é, não cabe na
cabeça de ninguém. Marta é da opinião de que entre todos os delitos do mundo
criminal, existe um acentuado grau de parentesco. Há sempre elementos de amor,
de ódio ou inveja que culmina em vingança. Os que ficam vivos, para resolver o caso,
devem ou têm de usar um pouco de raciocínio e uma certa porção de intuição. Nos
casos complexos, como o do Paín, tinham de assegurar os indícios durante um
determinado espaço de tempo, em que o local da morte deveria ser vedado ao
público, a fim de ver as coisas de perto e com olhos de águia. A observação é de
capital importância em qualquer indagação criminológica ou científica. Quando a
observação e dedução são justapostas, quase todos os móbeis ficam um pouco mais
transparentes que até uma criança do ensino primário é capaz de os identificar. Por
outras palavras, quando a observação atempada e a dedução lógica se juntam a
métodos convencionais, as investigações adquirem transparência. Como Marta
comentou anteriormente numa conversa com a Fátima, é extremamente perigoso
teorizar antes de possuir dados concretos e indícios palpáveis porque destrói o
raciocínio. Pois, há coisas visíveis aos olhos do observador atento, treinado em
investigar assuntos criminais, mas que são invisíveis para os não treinados nesse tipo
de trabalho. Ora, se uma manada de bois ou um exército de homens tivesse passado
57 Moreira,
José Carlos – Não há crimes perfeitos? Alfragide, Portugal. Edições ASA II, S.A., 2009.
58OscarWilde em De profundis, seguidos da balada do Cárcere de Reading, Portugália Editora,
documentos e estudos, 2008.
59 Moreira, José Carlos – Não há crimes perfeitos? Alfragide, Portugal. Edições ASA II, S.A., 2009.
60 Educação emocional – Claude, Steiner e Paul Perry, Cascais, Portugal, 2000 - Biblioteca
Pergaminho, pergaminho@mail.telepac.pt
CAPÍTULO XL
Roberto estava no seu escritório, numa pequena reunião de orientação com pessoal
da investigação e de vendas, quando recebeu um telefone da Marta. Era um
telefonema assustador que o fez saltar do assento. Suspirou pesadamente como se
estivesse a falar com alguém sentado no tecto do escritório. Sentou-se de novo na
sua poltrona e coçou a cabeça, atordoado. Não sabia verdadeiramente o que dizer.
Voltou a passar a mão pelo cabelo, nervoso e irritado. O telefonema da Marta
ecoava ainda nos seus ouvidos muito tempo depois de esta ter já desligado.
– Roberto, a Fátima deseja falar contigo sobre um problema muito recente e
urgente. Ela quer que nos encontremos os três daqui a uma hora.
Meia hora depois, Roberto caminhava a passos largos em direcção a um táxi, na Rua
Flor de Brava. Um momento mais tarde, estava a atravessar a toda a velocidade a
Chã d’Areia rumo ao Plateaupolis (Praia). Depois de ter saído do veículo, andou uns
minutos, sempre a olhar de um lado para outro, certificando-se de que ninguém o
seguia. Dobrou a esquina e entrou na casa da Fátima que o esperava juntamente
com a Marta. Verificou o relógio e olhou para as duas.
– Olá, Roberto – cumprimentou Fátima.
– Olá, estou mesmo curioso. O que se passa?
– Peço desculpa por te arrastar até cá, Roberto. Mas queria informar-te de que
estamos a ser vigiados. Não podemos viver desta maneira.
CAPÍTULO XLI
Pressentimento
a cabeça, mexeu os braços e, de repente, tomou coragem e deu um salto para fora
da cama. Não viu vivalma. Certificou-se de que a porta estava entreaberta, as luzes
acesas e as janelas estavam de par em par. Depois de ter fechado as portas e as
janelas, voltou para a sala para apagar a luz quando se deparou com um sujeito de
cara bem conhecida com uma arma na mão a brincar como se fosse um cowboy.
Estava vestido de preto e trazia um lenço branco à volta da cabeça. Pensou em atirar-
se pela janela para o meio da rua e sair a correr como um doido, mas tinha fechado
a porta. Sem coragem, sentou-se numa poltrona vis-à-vis ao vulto preto que tinha
os olhos pregados na arma de fogo. Como se uma sombra lhe passasse pela mente,
previu os movimentos da arma e a morte a aproximar-se dele. Um assombro total,
um medo tremendo. Seria a morte que chegava? Seria um sonho? Não, isto não
pode ser. Estou em casa. Beliscou-se a si mesmo para se certificar de que estava ali
sentado.
Encarou o vulto de pistola e balbuciou:
– Aquiles! O que fazes aqui?
– Encontraram o que estavam à procura?
Novamente, pensou se seria uma ilusão o que estava a acontecer naquele momento.
Uma partida que a memória lhe pregara? Um sonho dentro de outro sonho?
Esforçou-se muito e desejava que tudo não passasse de um truque de mente.
Djonzinho considerara como muito provável a hipótese de se tratar duma invenção
da memória, mas chegara à conclusão de que não devia ser porque o homem se
encontrava a uns passos dele com uma arma de fogo apontando na sua direcção. A
imagem era demasiado nítida e convincente. O modo como o homem falava, os
gestos que fazia, tudo parecia intensamente real. Não, não podia ser falsa. O cheiro,
o palpitar do seu coração, a luz, o ruído lá fora, o som das palavras, a arma de fogo:
o realismo da encenação provocava nele uma impressão forte de que nenhuma
imitação ou invenção da mente, por mais perfeita que fosse, conseguiria transmitir.
Além do mais e, partindo do princípio de que estava ali a ouvir e a falar para um
individuo de carne e osso, explicava muitas coisas acerca da situação. Tanto no plano
da lógica como no das emoções, a cena era real. Com o medo a borbulhar na pele e
com os olhos fora de órbita pregados nos dele, balbuciou de novo:
– Não! Deixa-me em paz. Deixa-me dormir sossegado. Amanhã, tenho muito para
fazer e depois digo-te qualquer coisa.
Sorridente e sarcasticamente, apontou a pistola para a mesa onde se encontrava um
saco preto estendido. Djonzinho sentia a morte a aproximar-se com nitidez.
Levantou-se da poltrona, mas as pernas tremiam-lhe de tal forma que quase não se
conseguia manter de pé. Arrastava-se com dificuldade. Tremia de medo.
– Achas que vais conseguir dormir com uma pistola apontada à tua cabeça? Pensas
que estou aqui para brincar? Quero saber todos os detalhes sobre os documentos e
o seu paradeiro. Tu não vais dormir nunca mais, caso não me informes sobre o vosso
achado. Tudo está a meu cargo a partir de agora.
– Por favor, não me faças mal. Vai-se embora que eu quero dormir. Tenho uma
família para cuidar. Por favor, não me faças mal.
O ar tornava-se rarefeito e custava-lhe a respirar. Os objectos que o rodeavam
convertiam-se em coisas estranhas e ficou com a sensação de que o mundo se ia
fechando, o céu ia cair em cima dele. Sentia-se a ficar às escuras e não conseguia
abrir os olhos, ficando com as pálpebras bem cerradas. O estafermo à sua frente
transformou-se num monstro diabólico. Viu dois cornos a nascer-lhe na testa,
apontando para ele que estava a estremecer de medo. Paralisado, não conseguiu
pronunciar mais palavras.
– Não te perguntei sobre a tua família. Tu tens duas escolhas a fazer neste
momento. Morrer agora ou informar–me sobre o achado.
– Não posso morrer. Os meus amigos estão lá fora à espera de mim. Se eu morrer
tu também vais morrer logo depois – disse, procurando desencorajar Aquiles.
Djonzinho não queria morrer, mas também não sabia de nada concreto que o
livrasse da morte. Porém, tinha uma coisa importante a fazer naquele preciso
momento. O demónio à sua frente já lhe tinha declarado que guiava os seus
destinos. Sentiu o demónio a acordar dentro de si. Queria dar cabo de Aquiles. Mas
como fazê-lo com o peso do medo que paralisava os seus movimentos? Ajoelhou-se
e pediu-lhe o favor de sair para poder dormir. Logo compreendeu, pelos
movimentos da cabeça de Aquiles, que o pedido era inútil. Os ruídos que o rodeavam
iam-se afastando para longe, o suor irrompia de todos os poros, o corpo começava
a tremer, as pulsações tornavam-se mais rápidas e tão fortes que quase se ouviam
à distância do homem sentado na poltrona. Sentiu um calor infernal a nascer dentro
de si e uma raiva a crescer do íntimo. Como sair do enredo? Sentiu a garganta seca.
Uma voz abafada vinda do seu íntimo chegou aos seus ouvidos. Parecia vir das
profundezas da terra. Agudizou os ouvidos. A voz ia aproximando, dizendo: calma.
É preciso raciocinar neste momento! Abriu por fim os olhos e fixou o olhar na mesa
ao lado. Confirmou que o mundo estava exactamente no mesmo sítio e que ainda
fazia parte dele. Pouco a pouco, os sentidos voltavam à normalidade. Tinha a
consciência de que o vulto à sua frente era Aquiles.
– De acordo. Vou buscar o que tenho para que me possas deixar dormir.
Aquiles levantou-se apontando a arma para Djonzinho que ia em direcção à mesa
do canto onde tinha um pau de madeira maciça igual ao bordão de basebol.
Primeiro, abriu a gaveta da mesa e mexeu nos papéis. Depois, dobrou o corpo,
alongou a mão direita para segurar o bastão. Sentiu-se sem coragem ao ouvir os
passos de Aquiles logo atrás de si. Tomou coragem de novo e levantou-se como uma
fera com raiva no olhar e, quando foi dar com o pau na cara daquele desgraçado de
quem nunca gostou, tudo voltou ao normal e ele estava deitado na sua cama,
naquela escuridão de breu. Era só ver o estado em que ficou a cama! Mas o Aquiles
não ficou a dever-lhe nada.
A mente humana funciona assim. Se os nossos inimigos são poderosos, somos
capazes de destroná-los nas nossas mentes. Eis o segredo que todos nós temos.
Somos fortes na nossa imaginação e nos nossos sonhos. 61
CAPÍTULO XLII
Um caso esquecido
Marta foi acordada pelo barulho de veículos atravessando a rua contígua. O clarão
do dia filtrava-se através das cortinas das janelas antigas de um prédio de 2 pisos de
estilo colonial, iluminando todo o quarto com uma luz brilhante que mostrava as
partículas reluzentes da poeira suspensa no ar. Ouviu o barulho de punho a bater na
porta. Não deu importância ao bater. Depois, a batida na porta tornou-se mais
intensa.
– Marta, estás aí? Como te sentes?
– Sim, estou óptima. Tu, Djonzinho, a estas horas? O que é que se passa?
– Não consegui dormir toda a noite, pensando nos documentos.
Estava, horrivelmente, quente e Marta sentiu-se banhada em suor. Não se mexeu
durante alguns segundos. Não ouviu os passos do Djonzinho a afastarem-se, mas um
pouco depois, chegou-lhe aos ouvidos um barulho como se do acender de um
fósforo se tratasse. Encaminhou-se em direcção à porta. Abriu-a, mas não o
convidou para entrar.
– Djonzinho, ainda é muito cedo!
– Sim, eu sei Marta, sinto a cabeça pesada e tinha de sair cedo para dar umas voltas
e aliviar o mal-estar. Receio ter bebido demais ontem à tarde. Sinto-me bastante mal
e como estava aqui perto, queria aproveitar para falar contigo. Só uma chávena de
café me faria sentir mais humano e aclarar-me-ia a cabeça.
– É melhor comeres qualquer coisa! Uns ovos, talvez?
– Ela não nos vai esclarecer sobre coisa alguma, a não ser que tenhas uma grande
influência sobre ela. Além disso, não se encontra acessível, ninguém conhece o seu
paradeiro.
– Podemos tentar. Encontramo-la no Poeta depois das quatro – brincou,
acrescentando: ela está longe a gozar da liberdade que nós não temos, ela e o senhor
Delgado.
Ouve um momento de silêncio. Os ovos estavam a cheirar deliciosamente.
– Posso fazer-te uma pergunta muito pessoal? – Interrogou Djonzinho.
– Desembucha.
– O teu marido encontra-se na prisão?
Marta aproximou-se dele, com os olhos no chão, muito surpreendida, sorriu e
disse com tibieza:
– Não, ele não se encontra na prisão.
– Desculpa o meu atrevimento. Sou muito maçador. Vou ver se emendo os meus
erros.
– Começa hoje mesmo.
– Prometo-te. E juro.
– Trabalhamos juntos, Djonzinho. Temos de ser objectivos e profissionais. Os ovos
estão prontos. Vamos lá tomar o pequeno-almoço juntos. Temos muito que pensar
mais tarde – disse-lhe Marta.
– Ganhaste, como sempre. – Disse Djonzinho
CAPÍTULO XLIII
Habeas data
No dia seguinte, não corria aragem pela manhã bem cedo. O mar parecia estar a
receber os abraços solares da manhã, com aquela cor linda emitida pelos reflexos
dos raios de ângulos estritos. Nas ruas da pequena povoação, não se via sequer uma
alma viva. Ali perto, à beira-mar, uma brisa fresca corria amenamente, espalhando
o cheiro da maresia e refrescando com salitre a face dos banhistas.
Vou tomar um banho senão fico grelhado e a cheirar a babosa (aloé vera) – disse o
Djonzinho para si mesmo quando voltou para casa, despindo a camisa de algodão.
Depois foi ter à Fortaleza e, aí, sentou-se sobre uma pedra. Levantou-se para
inspeccionar o lugar. Andava de um lado para outro à procura dos documentos.
Tinha uma convicção muito grande de que algo estava escondido ali em qualquer
lugar. Pressentiu algo que não sabia bem explicar.
À medida que palmilhava o terreno, sentia a diferença do eco ou do som emitido
pelo chão que pisava. Trilhava o areal de uma ponta à outra e cada vez mais se sentia
convencido de que havia diferença na intensidade do eco emitido pelos passos.
Ficava, também, cada vez mais convicto de que se fizesse um ziguezague e se
aproximasse de determinada área, sentia as ondas sonoras a aumentarem de
volume. Recordou as técnicas que o amigo Totone usava para descobrir um cano de
água partido a uma profundidade de mais de 2 metros. Correu para o seu carro
estacionado a cerca de duzentos metros de distância e foi à loja de bugigangas para
comprar um balde, uma colher de cal e outros apetrechos que julgara serem
necessários para o trabalho. Uma hora depois já se encontrava de novo na mesma
localidade que emitia um cheiro muito especial. Pegou do balde de dez litros de
volume e começou a sondar o local. Virou o balde de boca para baixo sobre o chão
e, palmo a palmo, escutou os ecos emitidos subterraneamente, pondo o ouvido
direito directamente sobre o fundo do balde. Algo de estranho lhe encheu de
curiosidade. Ao aproximar-se do centro de maior intensidade, fez um sinal no chão
com uma pedra de forma triangular. Levantou-se para se certificar de que ninguém
lhe estava a vigiar. Tirou do bolso um lenço amarrotado para limpar o suor.
Com a colher de cal na mão, pensava em escavar um pouco de terra para ver se
encontrava algo que satisfizesse a sua curiosidade. Devia era ter comprado uma
enxada, pensou. Ajoelhou-se, e com a mão esquerda sobre o fundo do balde,
começou o trabalho de afastar a terra e as pedras da área marcada. Media a
intensidade do som de vez em quando. Recomeçou o trabalho enchendo-se de
paciência. À medida que ia abrindo a cova, fazia as suas medições do som. De
repente, deu um salto de atleta. A sua nuca estava a ser lambida pelos últimos raios
solares da tarde. Estava mesmo por cima de algo que lhe incutia curiosidade. Batia
com os pés e sentia um grande eco. Viu uma tampa redonda de cimento e ferro. Era
tão grande que não conseguiu manejá-la. Ficou a ponderar a situação olhando em
todas as direcções e não viu ninguém. Saiu a correr para o veículo estacionado lá
fora e, depois de conduzir por 10 minutos, imobilizou-o à frente de uma cabina
telefónica.
Quando o telefone tocou na casa de Marta, eram já 16 horas e 25 minutos. Era um
regozijo mesclado de euforia quando ouviu Marta levantar o telefone que
costumava estar em cima da mesa no canto da casa.
– Marta, és tu?
– Sim sou eu, Djonzinho, o que se passa? Estás muito excitado e frenético – disse.
– Tenho notícias a dar-te – gritou. – Aqui onde estou, há qualquer coisa que
devemos ver juntos!
– O quê, Djonzinho? Que disparate? Que queres que eu faça?
– Pode ser disparate, mas penso que há algo de importante que todos da equipa
devem ver. Penso que encontrei o lugar onde devem estar os documentos –
acrescentou.
– Que tolice! O que se passa contigo, homem? Estou mesmo curiosa. Onde estás?
– Não importa saber o meu paradeiro neste momento. Vou vos buscar daqui a vinte
minutos. Avisa os outros que estou a caminho? – Acrescentou.
Sentou-se no carro e pôs-se a pensar. Estava nervoso e pensou três vezes antes de
pôr o veículo em movimento.
espantoso o que ela sabe sobre investigação criminal. Além de ser bonita é,
também, inteligente e simpática. Djonzinho quis ficar sozinho para falar à vontade
com ela antes de partir. Não para seduzi-la, mas para preparar uma investigação
minuciosa e rigorosa. Ela arremessou-lhe um olhar desconfiado que o estremeceu.
Certificou-se de que ninguém os estava a ouvir e disse-lhe baixinho:
– Não estás muito à vontade comigo, Marta. Penso que temos muito a conversar.
Concordo que não devemos misturar a profissão com esse olhar curioso que temos
um para com o outro. Tu mesmo o tenhas dito hoje de manhã – atirou num jeito
brincalhão.
– Não estás a confundir esse olhar curioso? – Replicou Marta.
– Talvez – respondeu.
Ela lhe deu uma lição de amizade sincera. Certificou-se de que nada existia nesse
olhar curioso e que todas aquelas formas delicadas continuavam intactas. Ela é
muito platónica e pode induzir qualquer pessoa em erro, de mal-interpretar aquele
olhar curioso. Pediu-lhe para ir buscar a corda na varanda e depois saíram. Pegou
numa garrafa de aqua purificata que tinha na geleira e meteu-a no saco juntamente
com umas bananas. Partiram para a Fortaleza, conforme as instruções do Zé. Ela
ficou a pensar calada. Irradiava uma áurea de beleza do lugar onde estava sentada
no carro. A certa altura, depois de terem percorrido dez minutos de caminho, achou
que tinha valido a pena a conversa lá em casa e que deviriam começar a pensar na
segurança das investigações antes de ser tarde. Djonzinho tinha a cabeça cheia de
projectos, mas fazia um esforço tamanho para arrumar as coisas na sua cabeça e
explicar o que iriam em poucos minutos descobrir.
Desceram do veículo e foram apressadamente em direcção à Fortaleza. Quando
aproximaram, o Djonzinho abriu o caminho com as mãos e passou à frente para lá
chegar primeiro. Não podia conter-se de alegria e curiosidade quando lá chegaram.
Todos penetravam um olhar curioso sobre ele.
– Minhas senhoras e meus senhores – começou quando lá chegaram. – Como vedes
aqui – disse, mostrando com o dedo indicador – temos de levantar esta tampa para
ver o que está lá em baixo. Há um buraco debaixo desta tampa de cimento.
Precisamos de força para retirá-la daqui. Há um eco emitido de um buraco ou coisa
do género aqui em baixo.
Todos ficaram curiosos e davam várias voltas à tampa de cimento. Djonzinho sentiu
o coração a pular dentro do peito. Não só sentiu, mas também, ouviu o som que saia
do peito. Ficou orgulhoso por saber que o que descobriu tinha despertado enorme
interesse à volta da tampa. Com o esforço conjunto, conseguiram mover a tampa
uns centímetros, o suficiente para os mostrar através de uma pequena frincha que
existe um buraco lá em baixo. Já se fazia tarde.
Estavam todos em silêncio, mergulhados no pensamento, quando o telemóvel de
Marta tocou. Marta afastou-se de nós e com a mão sobre um dos ouvidos escutou
curiosamente. Voltou-se com a cara transformada, diria triste. Todos perfuraram-na
com um olhar curioso. Encolheu os ombros para dizer que não trouxe nenhuma
novidade. Alguém está a seguir-nos e temos de estar cientes disso daqui para frente
– disse ela. Entraram, depois, num estado de auto-examinação e de temor. Quem
seria este sujeito capaz de se intrometer num assunto em que não é chamado? Será
que a procura dos documentos está a preocupar outras pessoas? A não ser que
Aquiles tenha um pelotão atrás do nosso grupo a vigiá-lo.
A remoção da tampa foi logo adiada e seguiram para a capital, a fim de se
prepararem melhor para a tarefa seguinte. Marta não disse nada durante o
percurso, mas todos sabiam, por intuição, que algo se estava a passar.
Ela não demorou muito a sentir o sabor azedo das suas actividades. Ao regressar a
casa, encontrou as portas e as janelas violadas e toda a casa revirada de cima a baixo.
O que fazer agora? Não queria comunicar à polícia, mas o Zé já o tinha feito. Não
deu nenhuma informação sobre o grupo nem acerca do telefonema à polícia. Era
um caso isolado. No dia seguinte, começaram a ter em conta possíveis perseguições.
Mas não detectaram nada.
Depois do telefone anónimo, os membros do grupo passaram a agir com mais
discrição e fizeram os planos necessários para evitar qualquer sobressalto. Os seus
movimentos, tanto na capital como fora dela, eram bem ponderados.
– Amanhã, meus amigos. Amanhã vamos remover aquela tampa. Hoje é tarde
demais para um trabalho do género. Voltaremos às quatro horas da madrugada
para lá – comandou, para disfarçar as preocupações dos presentes.
O trabalho começou às 05.20 da madrugada do dia seguinte. Quem iria cuidar da
nossa segurança era o Zé de Canjinha. Eram, como de costume, 5 pessoas, incluindo
Zé e Djonzinho, quando começaram o trabalho de retirar a tampa de cimento com a
ajuda de um ferro maciço e grosso com cerca de um metro e meio de comprimento.
O trabalho exigia mais esforço do que imaginaram. Roberto, homem de força e
calmo, estudou e analisou minuciosamente a tampa. As ideias dele coincidiram com
as do Djonzinho quanto à maneira de retirar aquela cobertura.
– Vamo-nos preparar para levantar a tampa – ordenou com uma certa
determinação na voz. – Algo especial a ter em conta neste momento, senhor
comandante? – Perguntou ao Zé em seguida.
– Nada. Minha gente, vamos começar. Nada a ter em conta e temos tempo
suficiente – respondeu o Zé.
– Agora deves informar-nos sobre o que vamos encontrar aqui em baixo – indagou
Marta.
– Eu também estou a morrer de curiosidade – acrescentou Fátima.
Roberto não disse nada, mas parecia tão interessado como Djonzinho, o que lhe
acrescentou mais um punhado de ânimo ao trabalho.
– Primeiro temos de retirar a tampa antes de saber o que está lá em baixo – disse
um pouco cansado.
– Tu sabes de certeza o que nos espera debaixo desta tampa de cimento – brincou
Marta.
– Claro que sei. Aliás, não é possível ter certezas numa coisa destas, mas tenho um
monte de probabilidades para acertar àquilo que tenho na cabeça. Bem, para ser
mais correcto, não tenho certeza de nada, só tenho uma teoria bem fundamentada
– acrescentou.
Djonzinho estava eufórico, a tremer de alegria. Sentia o coração a saltitar para fora
do peito. Falava muito depressa, com a respiração descontrolada e ofegante. Coçou
na cabeça, preocupado, quando viu a tampa a mover. Era, ainda, muito cedo. Os
grilos cantavam despreocupadamente. Depois, a tampa foi movida mais uns
centímetros. Nada se via, mas um cheiro húmido saiu da frincha aberta. Uma mosca
de cor azul sentou-se sobre uma pedra logo à frente de todos. Marta foi buscar umas
máscaras de papel e distribuiu-as para todos.
Quando a frincha abriu o suficientemente, Marta deixou cair uma pedra no buraco
e não se ouviu quando atingiu o fundo. Todos estavam concentrados numa única
coisa, o vazio. Mas não pode existir vazio num lugar destes. Atirou uma outra pedra
maior e, desta vez, ouviu-se o som do impacto quando atingiu o chão. Fez uma
rápida multiplicação e disse que o fundo estava a três metros.
– O que é que achas que vamos encontrar aqui? – Perguntou Fátima. – Os escravos
enterrados? A estátua de um deles que se rebelou contra o chefe? Os documentos?
– Bem, não estás longe da verdade, Fátima – respondeu Marta.
Na tampa de cimento vê-se inscrito Anno 1590. Mesmo ao lado, um metal gravado
com um texto ilegível. O forte real de São Filipe foi precisamente construído em 1590
para guardar e proteger a Ribeira Grande de Santiago. Depois, foi arruinado pelas
tropas de Francis Drake e, mais tarde, em 1712, pelos chamados piratas franceses,
sob a chefia de Jacques Cassart. Não se sabe ao certo porquê, mas possivelmente,
porque eram contra a escravidão, contra a desumanidade do comércio de escravos.
Ou talvez tivessem interesses meramente políticos!
– Mais força – comandou Djonzinho, puxando pela corda que segurava uma barra
de ferro.
– Falta pouco – gritou Zé.
Ouviram um rinchar da fricção de cimento contra cimento. Marta olhou para
Djonzinho e piscou-lhe um olho e começou a bater palmas de satisfação.
– Ó meu Deus, como é isto possível? Como descobriste isto depois de 420 anos? –
Inquiriu Fátima.
Entreolharam-se em silêncio. Djonzinho levantou-se e sacudiu a poeira das mãos.
– Tenho milhares de ideias, mas nenhuma resposta convincente. Com a tampa fora
do lugar, ficou um buraco suficientemente grande para entrar uma pessoa sem
dificuldades algumas.
Um medo esquisito apoderou-se de todos. Queriam descer, mas não sentiram a
coragem suficiente para fazê-lo.
Roberto despejou a sacola que trazia às costas, ali mesmo à frente de todos. Cordas,
lanternas, lâmpadas de bolso, lápis, papéis, máscaras, canivetes e mais. Com a corda
na mão, Djonzinho não viu outra alternativa. Estudou a corda por uns segundos. O
Zé mantinha-se firme e com os olhos atentos a tudo o que se mexia à volta. Fátima
respirou fundo e não disse nada, mas andava preocupadíssima. Podia ver-se como a
adrenalina forçava o coração dela a bater com mais velocidade. Analisou as paredes
à volta.
– Temos de descer – disse a Marta.
– Porque temos de descer? – Perguntou Fátima.
– Não sei. A curiosidade explica o porquê. Espero que possamos encontrar algo que
nos aproxime daquilo que estamos à procura. Algo que certifique alguma coisa. Mas
como descemos? Isto parece fundo demais. Desces comigo, Roberto? – Perguntou.
– Precisas de ajudas, Djonzinho? – Perguntou Marta.
Não ouviu a pergunta porque estava demasiado concentrado em solucionar um
problema de segurança. Estava à procura de um buraco ou outro sistema para
segurar a corda. De repente, surgiu-lhe a ideia de atar a corda na alavanca de ferro
que serviu para levantar a tampa e trancá-la na parte exterior da parede de onde se
via o mar. Enquanto o fazia, o Zé estava a iluminar o buraco de novo. Depois, segurou
a corda com as duas mãos, dando um esticão forte para se certificar de que ela
estava bem segura.
Marta tinha já nas mãos uma lanterna, uma máscara e outras coisas necessárias.
Com a corda atada à parede, Djonzinho pediu ao Zé que ficasse de fora para
controlar as coisas. Ele foi o primeiro a meter a cabeça no buraco e depois desceu
cheio de curiosidade. Seguiram-lhe os outros três. O cheiro incomodava, mas
adaptaram, rapidamente, à situação. Uma parede logo à frente constituía um novo
obstáculo, mas descobriram, rapidamente, uma entrada numa outra parede que
fazia um ângulo recto com aquela, com uma cruz gravada na sua parte central.
Djonzinho acendeu uma luz e, depois, uma lanterna de mão que trazia no bolso.
Fátima passou para a frente para medir a qualidade do ar. Não detectou bactérias
nem ar contagioso no espaço fechado quase hermeticamente há, certamente,
centenas de anos.
O espaço em baixo era muito maior do que imaginavam. Passando a porta com a
cruz na parede, descobriram logo, no lado direito, no meio da parede, um esqueleto
humano. Uma corrente circular ainda segurava o crânio, duas outras prendiam os
esqueletos nos braços. Na parte inferior, os ossos dos pés estavam, ainda, atados
por uma corrente mais grossa. Um arrepio apoderou-se do Djonzinho. Quando
voltou para os outros, viu que se encontravam a uns metros de dele. Por várias
vezes, pensou em sair dali a correr. Seguiu à frente e percorreu um corredor
comprido. Uma entrada no lado direito conduziu-os a um outro corredor. No fim
deste, havia uma porta de ferro maciço. Estava trancada. Por mais esforço que
fizessem para a abrir, nada resultaria. Roberto lembrou-se da barra de ferro. Tinham
de voltar ao exterior. No exterior, respiraram por uns minutos o ar fresco com cheiro
de maresia. Sentaram-se em forma de círculo e traçaram um plano alternativo.
Estavam à procura dos documentos acerca dos Projectos sobre a restruturação do
poder e o Caminho para o pluripartidarismo em Cabo Verde. Porém, desviaram a sua
atenção para uma outra investigação. Da procura dos documentos, passaram à
procura da história da sua origem. Todos ficaram surpreendidos com a descoberta.
A porta era centenária e não, apenas, de vinte anos de idade. Os documentos deviam
estar mais acessíveis. Não trancados atrás de uma porta destas. Mesmo assim, não
podiam recuar. Roberto atacou afincadamente a segurança da corda para se
certificar de que todos estavam seguros e, assim, depositar uma grande confiança
nela. Prendeu-a num canhão centenário mais próximo e retirou a barra de ferro. Da
sacola, retirou um martelo e pediu que todos o acompanhassem. Estando de novo
lá em baixo, frente à porta, atacou-a sem demora com a barra de ferro. A porta não
se mexeu e nem cedeu. Marta, sentiu a ameaça de uma sombra claustrofóbica e
Não acreditavam naquilo que os seus próprios olhos estavam a ver. Diz-se que o
passado é o pergaminho onde se escreve o futuro. Tinham à sua frente esse
pergaminho. A história mal contada dos seus antepassados. A desumanidade
peneirando os seus sentidos, a violência e a crueldade documentadas. Somos uma
criatura estranha no planeta, capazes de destruir a própria humanidade – pensou
Djonzinho.
De volta ao exterior, Fátima e Marta estavam curiosíssimas em saber o que se
encontrava lá em baixo. Queriam descer de novo para constatar com os seus
próprios olhos. Desceram e foram até lá depois do Zé lhes ter relatado o que tinham
visto lá em baixo. Estavam perplexas e sempre a olhar para cima e para as paredes
durante a passagem pelos corredores.
Djonzinho pediu mais luz. Para o assombro de todos, havia em cada prateleira de
uma rocha tosca e rudimentar no outro lado da parede, diferentes esqueletos e
muitos crânios que estavam no chão logo à frente. Mais a adiante, no lado esquerdo,
podiam ver-se 5 pilares que seguravam o tecto. Procuravam os documentos dos
projectos, buscavam o oiro, a prata, o bronze, mas só encontraram a sua história e
o destino dos seus antepassados, escritos nos tabuleiros da gruta, no tecto que os
pilares, teimosamente, seguravam no chão das ruínas e com o cheiro incómodo do
ar alquímico.
Atrás de um grande monte de ossos, logo à frente do grupo, havia uma chapa de
metal prateada cravada na rocha com uma inscrição em latim, com as seguintes
palavras: Magnum opus naturalis – non plus ultra – Vobiscum Lucifer = lucem ferre
– Marc 1:13, 4:15; Lucas 10:18.62
Durante uns segundos, pôs o Djonzinho a pensar nos esqueletos, em cada um,
isoladamente, sem um mausoléu que documentasse o nome que carregava.
Sim, sem um nome.
Talvez um título;
Uma data de nascimento;
O ano do nascimento e da morte;
Se era uma esposa ou esposo;
Uma filha ou um filho morto ao nascer;
62- Magnum opus naturalis (grande obra natural -– non plus ultra (já não existente)– Vobiscum
Lucifer = lucem ferre Lucifer esteja convosco = (portador de luz)
– Vamos sentar-nos que temos muito que falar – disse o Zé cortando o silêncio
aterrador.
O Zé desviou o olhar da janela, dirigindo-o para Roberto e, depois, para os outros.
Voltou a olhar para a porta por onde entrara. Foi até lá, abriu-a, certificou-se de que
não havia ninguém a espreitar, e tornou a fechá-la. Apressou-se em direcção à mesa
triangular. Fixou um olhar penetrante nos presentes e sorriu.
– Amigos, ainda estamos a sofrer as sequelas dos acontecimentos de ontem. Não
pode ser um sonho colectivo. Aquilo foi e é, infelizmente, real. Porque é que tudo
aquilo significa tanto para nós? Foi ou não realidade o que encontrámos? –
Questionou.
– Estamos perante um achado de importância global e nós entramos num
compromisso de grande envergadura – acrescentou Marta.
Fátima respirou fundo e olhou de relance para a janela onde tinha estado Roberto
uns minutos antes. Cogitou, profundamente, no assunto a tratar, na consequência
que o mesmo iria ter na sociedade, na maneira como iria prosseguir a investigação.
Queria gritar de satisfação pelo achado histórico, mas ao mesmo tempo, também,
gritar de tristeza pela dura realidade ali presenciada. Não sabia por onde começar a
conversa. Sentiu-se desorientada e, ao mesmo tempo, sem coragem. Não podia
fazer nada. Havia demasiada verdade no que tinham visto no dia anterior. Via-se nos
seus olhos, sentia-se na sua voz e todos os seus gestos mostravam o pesar que
aquela descoberta causara em si. Todos estavam demasiado pensativos. Os objectos
descobertos são uma relíquia a ser preservada sobre a história cabo-verdiana. São
informações absolutamente secretas, mas deixarão, dentro em breve, de o ser,
chocando contra antigos dados que se enquadravam numa meia dúzias de teorias
existentes e que nunca tinham sido expostas com tal clareza.
Marta fechou os olhos e relembrou o efémero momento do dia de ontem ao passar
pela Rua Pilon di Pó e Rua Banana, roçando nas folhas de bananeira.
Roberto lembrou-nos de que deveríamos documentar tudo o que encontraram
pensando que uma máquina fotográfica daria bastante jeito. Não houve um mínimo
desacordo quanto a isto. Roberto teve grandes dificuldades em se controlar, mas
nada nele transparecia qualquer nervosismo. Todos marcavam passos curtos, todos
estavam convergidos num só pensamento, talvez procurassem um pacote de
silêncio embrulhado noutro silêncio que continha os segredos do tempo.
CAPÍTULO XLIV
Alguns dias depois do achado no Forte Real de São Filipe, na Cidade Velha, os
elementos do grupo reuniram-se de novo para auscultar o pulso das investigações
privadas. Depois de muita conversa, a equipa concordou, entre si, como deveria
prosseguir dali para frente sem fazer alarme acerca do que aconteceu. Depois de um
silêncio perturbador, o Djonzinho sentiu a necessidade de retomar o caminho
deixado para traz!
- Imagine que numa viagem você se depara com duas opções de caminhos: Um
inexplorado, com uma estrada pedregosa e cheios de espinhos, inóspito, sombrio,
desconhecido. Já o segundo, um pouco mais familiar e do qual se pretende desvendar
algo, conhecendo-o melhor, um pouco menos sombrio e com a luz suficiente para
continuar. Qual seria a sua opção? Por onde seguiria viagem? Acredito que seria o
segundo – raciocinou o Djonzinho. – Retomemos o nosso raciocínio. Os documentos
ou as ossadas? – Perguntou por fim.
– Faremos os possíveis para os encontrar, caro amigo. Podes ficar descansado. Já
temos alguns zunzuns. O suposto criminoso não os tem. O principal homem arrolado
neste crime, também não os tem. Devem estar nas mãos dos seus colaboradores,
conforme suspeitamos – acrescentou Roberto.
– Portanto, devem tê-los escondido num lugar seguro e escuro – comentou
Djonzinho.
– Como em todos os crimes, os autores esperam que, tanto a morte como a sua
fuga, venham mais tarde a cair no esquecimento, a fim de voltarem, novamente, à
sociedade e a viverem como um cidadão comum. Embora a sua consciência os
devesse pesar sobremaneira. Os documentos, provavelmente, seriam, mais tarde,
usados como textos de autoria própria, com os quais viriam a elevar-se na sociedade
– disse Marta, continuando – os documentos estão a ser difíceis de encontrar. Não
há, por enquanto, nenhuma luz sobre eles. O caminho está a ser pedregoso. Será que
temos de escolher este caminho apesar de ser pedregoso?
mas pensava que eram apenas umas frases soltas no meio de muitas outras. A partir
de então, ficou a desconfiar se o seu amigo possuía esse dom de adivinhar e ler os
pensamentos. Reparou no trejeito de lábios de Roberto que mantinha os olhos fixos
no tecto.
– Meu caro, Djonzinho, os cegos têm a capacidade de usar melhor os seus sentidos
porque é como se estivessem com os olhos fechados. Quando te vi com os olhos
fechados e as tuas sobrancelhas a moverem-se em todas as direcções, com a
serenidade na tua face, calculei a probabilidade de estares a pensar no que acabaste
de ler nos jornais que te trouxe, aproveitei, então, a oportunidade para seguir os teus
pensamentos e eles estavam no mesmo nível dos meus, isto é, nos arredores da praia
de Quebra-Canela. Tanto tu como eu, temos o interesse de resolver o problema do
assassinato e já sabemos, mais ou menos, quem mandou matar o Renato, só não
podemos declará-lo culpado por não possuirmos os dados necessários e não
podermos usar a hipótese como prova isolada. Nenhum Juiz é capaz de aceitar a
nossa hipótese como prova final. Temos de ter provas científicas para provar a nossa
hipótese – acrescentou Roberto.
– É muito curioso. Porque é que achas que estava ali a pensar em algo?
– Não acho nada. Assim é a natureza humana. Sei o que estavas a pensar
simplesmente observando a tua fisionomia. Esta é o espelho que reflecte as nossas
emoções. As emoções são, em situações iguais, mais ou menos, semelhantes em
duas ou mais pessoas. Ora, não é preciso muito aprofundamento no assunto para
reconhecer as emoções básicas nas expressões faciais de alguém. Basta incidir os
olhos no semblante do outro para entender se ele está tenso ou nervoso, se ele está
a mentir ou dizer a verdade. Porém, quando elas se misturam, é necessário deitar
um olhar mais afiado, mais atento para detectar algo mais específico. Uma dica é
concentrar-se no lado esquerdo do rosto, onde os sinais de emoções ficam mais
marcados, onde podemos ler com mais clareza os sinais emitidos pela mente.
Djonzinho deu-se por vencido e ficou calado a cismar. Roberto ao pensar que, muito
tempo depois, foi preso um individuo do sexo masculino que estava, supostamente,
relacionado com o crime de Quebra-Canela, saltou da cadeira e começou a
praguejar.
– As coisas estão a tomar o caminho que eu previa – disse ele. – Desvio intencional
de atenção – acrescentou.
– Sim, ele vai pagar o pato – comentou o Djonzinho.
– Pagar o pato? O que queres dizer?
63 Moreira, José Carlos – Não há crimes perfeitos? Alfragide, Portugal. Edições ASA II, S.A., 2009.
Um prato de louça caiu sobre uma calçada e desfez-se em pedaços. Para reconstituir
o prato, é preciso juntar os pedaços, minuciosamente, e colá-los com supercola.
Assim é, também, a reconstituição dos argumentos que nos possam conduzir ao
assassinato. Mas ainda temos de procurar todos os cacos partidos e espalhados. 67
– Nós poderíamos contactar algumas pessoas para lhes perguntar directamente
sobre o assunto, mas deparamo-nos com circunstâncias sinistras. Aquelas pessoas
com quem queríamos contactar, não eram acessíveis e não nos podíamos imiscuir
em assuntos desta natureza na altura. As portas estavam fechadas a seta chaves. O
medo travava os nossos movimentos. Não há nada da nossa história, isto é, nenhum
precedente em que nos possamos basear para convencer um magistrado com meras
deduções. Naquele tempo, não se conhecia tão bem o meio em que estávamos a
revolver. Ao falar de altos assuntos de Estado, era necessário ser-se discreto. O
assassino desaparecera sem deixar rastos. Não há nada em que nos possamos
basear para uma busca em terreno profundamente lavrado, revolvido pela charrua.
Pondo todas as coisas (os cacos) no seu devido lugar, temos então, a possibilidade
de ter havido um conluio político, um envolvimento económico ou passional. Depois
de ter sabido das diversas possíveis causas através de conversas com pessoas da
aldeia e indivíduos com relações amistosas com o assassinado, propomos então uma
combinação de causas a considerar.
A acompanhante, possivelmente, não teria perpetuado o assassínio com as suas
próprias mãos, mas nós não podemos permitir que tal situação de incerteza
continue, uma vez que esta se encontrava presente e, por conseguinte, sabe de
tudo. Porque se nega a explicar sobre o facto da morte, isto é, a testemunhar o caso
hediondo perpetuado sobre o seu melhor amigo?
– Foi, provavelmente, contratada e bem remunerada. Houve meditação prévia.
Deve ser a conclusão mais lógica que podemos tirar do caso – respondeu o Djonzinho.
– Não foi possível penetrar a fundo no mistério do acontecimento. A falta de
liberdade de imprensa sufocava as pessoas, servindo-se do medo. Portanto, as
perspectivas não eram muito tentadoras. Isto significa que, tentando nos imiscuir em
assuntos que entravam na esfera política da altura, mesmo numa atmosfera de
crime que ainda cheirava muito a fresco, sabendo os perigos da aproximação do alvo
e o facto de nos estarmos a colocar numa situação difícil, contribuía para refrear o
nosso entusiasmo na resolução do crime – explicou Roberto.
– O que me causa dor de cabeça e que muito me preocupa é o porquê de prenderam
o Badiu Boxero – tornou a insistir o Djonzinho.
– Ora essa, caro amigo. Como disse antes, prenderam uma outra pessoa para fazer
o povo crer que tinham os olhos voltados para outro lado da verdade. Sendo assim,
davam aos verdadeiros criminosos um sentimento de paz espiritual e o tempo
necessário para se afastarem o mais depressa possível e de dar a impressão que a
acompanhante nada tinha a ver com o crime – explicou Roberto.
– Não estou convencido deste raciocínio que, no entanto, parece bastante lógico.
Queria…
– Não podemos prender e ao mesmo tempo culpar alguém sem primeiro ouvir as
suas declarações. Toda a história da humanidade se encontra repleta de exemplos
de assassinos que nunca são apanhados. Contudo, algum tempo deveria ainda
decorrer antes que o homem “alto, forte e escuro” recebesse a sua paga. Ele ou ela
e os seus colaboradores devem lembrar-se do velho axioma que diz: quando todas
as hipóteses falham, o que resta, apesar de improvável, deve ser a verdade. Ainda
não provamos todas as hipóteses. O trabalho policial, se entendermos bem as coisas,
está terminado, mas o trabalho legal, não deve terminar ainda. As leis não são tão
más a ponto de condenar uma pessoa sem culpa. Sabemos, entretanto, que há
regimes que estão sempre acima da lei, e que há pessoas relacionadas com tais
regimes que se prontificam a colocar-se acima da lei, o que dificulta as investigações
e, por isso, não podemos ser categóricos no nosso raciocínio. Mas nós não estamos
à procura de provas legais, porquanto não podemos fazer nada para resgatá-las.
Pensamos, no entanto, que haveria de decorrer algum tempo antes que o tigre solto
de Quebra-Canela seja apanhado – discorreu Roberto.
– E caso não o apanhem? – Perguntou o Djonzinho num jeito frustrado.
– Aqui está o problema maior de muitos crimes. Os associados no assassinato, com
muita astúcia e audácia que os caracterizava, conseguiram, desde o primeiro
momento, despistar os investigadores, afastando todos os vestígios necessários para
uma investigação rigorosa – esclareceu Roberto.
– Só espero que a Justiça, embora demorada, venha a ter um fim feliz – comentou
o seu interlocutor.
– Suponhamos agora, Djonzinho, que o crime nunca seja resolvido. Sabemos, por
nossa dedução, que terá havido um cúmplice. O assassino, a companheira e um
mandante. Portanto, a trilogia para armar uma emboscada à vítima foi,
provavelmente, assim:
Causa
politica
Jutith
RC Nero
Bettencourt
Causa Causa
económica
passional
seria o seu 60º aniversário. O crime nunca foi resolvido e o autor ou autores não foram
descobertos e punidos. As circunstâncias em que foi cometido, perderam-se ou foram engolidas
pela opacidade que caracterizava o regime político então vigente em Cabo Verde. O partido único
PAIGC/PAICV desde cedo criou um regime de excepção para se defender de eventuais
manifestações de revolta e indignação individuais ou colectivas dos cabo-verdianos contra o seu
domínio. Logo em 1975 fez a lei de boatos (decreto-lei 36/75) que punia autores de rumores
contra o Estado e seus dirigentes. Em 1976 com o decreto-lei 95/76 as forças de segurança e a
polícia, podiam prender qualquer pessoa durante um total de cinco meses sem culpa formada.
Em 1977 avançou com o tribunal militar (decreto-lei 121/77) constituído por juízes nomeados sob
proposta do ministro da Defesa que podia julgar civis classificados pela polícia como subversivos.
Essas leis só foram revogadas pela Assembleia Nacional Popular em Maio de 1990. Sob o chapéu
legal assim criado durante quinze anos, o exército e a polícia, constituíram-se como força de
protecção do regime e dos seus dirigentes e todos os métodos, incluindo tortura, foram utilizados
para reprimir dissidências e crimes. A vontade do regime em usar de todo este aparato nunca foi
posta em causa. Sempre que se sentiu ameaçado agiu forte e duramente. Por isso, toda a gente
estranha que o assassínio de um membro do governo, tenha ficado por resolver. É crença geral,
e a História confirma, que não são encontrados culpados nos assassinatos de graúda em regimes
autoritários ou totalitários (Humberto Delgado, Sergey Kirov,) quando os crimes têm ramificações
políticas. No caso de Renato Cardoso, o porta-voz do regime apressou-se logo no dia seguinte a
garantir que não havia motivação política. O programa de viagens dos dirigentes não se alterou.
O Primeiro-ministro Pedro Pires, manteve a viagem para os Estados Unidos e o Presidente da
República Aristides Pereira, acompanhado do Ministro das Forças Armadas e Segurança, partiu
para Angola dois dias depois. Segundo relatos vindos a público, a polícia judiciária portuguesa
chamada para investigar, concluiu que a cena do crime não foi, convenientemente, salvaguarda
e possíveis indícios do crime perderam-se. A sociedade cabo-verdiana, como bem ilustra a folha
de jornal até hoje presente na montra do Djibla em S. Vicente, ainda pergunta “quem matou
Renato Cardoso"? A angústia perante o hediondo crime, contudo não impede que se celebre a
vida desta figura marcante da vida política, cultural e intelectual de Cabo Verde.68
CAPÍTULO XLV
Algumas pessoas amigas continuam, mesmo passados muitos anos, a insistir na falta
de justiça feita quanto à morte de Paín. Não se cansam de ouvir vozes pertinentes
que, ocasionalmente, surgem na diáspora ou no país natal, pedindo mais justiça e
honra para os nossos homens de cultura. Assim, podemos escutar o que uma voz de
longe diz:
Faz quinze anos que Renato Cardoso foi assassinado na Cidade da Praia. Daqui, de Lisboa, dedico-
lhe o meu pensamento, honro a sua memória e declaro a minha saudade de um amigo bom, de
um homem inteligente, dedicado à sua terra e à sua gente.
Daqui, de Lisboa, do mesmo sítio onde recebi a notícia fria da sua morte, lamento que um manto
inexplicável tenha caído por cima de um assassinato hediondo, cujas razões nunca foram
devidamente explicadas. Desta mesma cidade que o viu crescer como jurista de grande
conhecimento e sabedoria, digo da minha tristeza pelo esquecimento a que os seus votam a sua
memória.
De dentro do que mais profundo existe em mim, rendo a minha homenagem à sua coragem nas
inúmeras lutas políticas que travou e de que resultaram sempre avanços para o progresso do seu
povo. Faço vénia ao seu empenhamento na luta pelos ideais da democracia, cujos princípios
enunciou antes que outros aproveitassem as ondas internacionais para se perfilarem num
combate pelo poder. 69
Todos os aniversários são lembrados pelos amigos de peito. Todas as vezes que
sofremos os efeitos do mau funcionamento na Administração Pública, recordamos
o homem valente que queria desafiar a burocracia lá do Alto Cutelo, promovendo
que cada indivíduo tivesse acesso ao seu direito inscrito na Constituição da nossa
República.
A mesma pessoa citada acima escreve de Lisboa:
Neste triste aniversário, como seu amigo, sinto-me na obrigação de informar os cabo-verdianos
que Renato Cardoso, pouco tempo antes de ter sido abatido por um profissional que não deixou
pistas, tinha sido convidado para trabalhar fora da sua terra, a troco de uma proposta milionária
– que ele recusou – porque, como dizia, a sua gente precisava dele.
E precisava mesmo. Só que já passaram quinze anos sobre o som dos tiros assassinos e a sua gente
já nem se lembra do dia. Os seus pupilos, aqueles em quem ele depositou as suas esperanças,
têm, pelo menos, que honrar a sua memória, a sua honradez de carácter, a sua crença num Cabo
Verde para todos os cabo-verdianos.
Há um silêncio muito pesado à volta do assassinato de Renato Cardoso...
Descobrir quem foi, porque foi, não trará de volta o Renato, mas é um dever que nos cabe sim. A
minha fé de então (1989) nos cabo-verdianos e na pureza do seu carácter tornava ainda mais
hediondo e incompreensível o crime. Mas sempre achei que caberia primeiro ao país, aos
governantes, dar a conhecer melhor quem foi Renato Cardoso. E tentar, também, provocar
alguma pesquisa sobre a sua morte. Mas se calhar eu estava enganada. A sociedade civil unida
poderia, pelo menos, tentar informar-se e começar a agir. Nunca será tarde.70
Nunca será tarde se houver vontade dos responsáveis lá do Alto Cutelo, pois isto é
um problema de Cabo Verde e, por isso, político.
CAPÍTULO XLVI
A trompeta do silêncio
Neste capítulo, soa a voz do silêncio. O silêncio perturbador que fala da indiferença
votada a um ente querido, mas sobretudo, uma voz perturbadora que fala nas
poesias dedicadas post mortem ao malogrado, juntamente com a voz da sua própria
poesia.
Uma voz clara, atinente e persuasiva, que se propaga no nosso ser como ecos do
passado. Um ser que funciona como um radar que reflecte as ondas sonoras do tiro
na praia de Quebra-Canela, ondas que tocam o nosso ser, roçam os pés das nossas
almas, trazendo nas suas línguas a salitre das nossas lágrimas, os gemidos das nossas
dores, constante e teimosamente.
Eis uma maneira de recordar Renato:
Um Silêncio perturbador
A Renato Cardoso – in memoriam
Estrangulada verdade,
Vedada à gazela islenha,
Presa com um estropo,
Encardido, amachucado,
Pelo pendor do tempo,
No enredo da conveniência!
Gemidos de Quebra-Canela
Indiferença
A Renato Cardoso, post-mortem
Uma lembrança
A Renato Cardoso, 20 anos depois
Zanga
A Jomaveiga
Eis aqui alguns poemas de Renato, tal qual cantadas e interpretadas por Ildo Lobo:
Alto Cutelo
Na Alto Cutelo
Simbrom dja catem (dja seca)
Raiz sticado
Djobi agu c’atcha (dja seca)
Agu sta fundo
E omi ca tral (dja seca)
Mudjer um simana
Se lumi ca cendi (na casa)
Ses fidjos na strada
Só um tâ trabadja (pa dozi mirés)
Marido dja dura
Qui bai pa Lisboa (contrado)
Contratado (contratado)
Pa bai pa Lisboa
Terra Bô Sabê
Cremos que poucas são as homenagens deixadas a Renato Cardoso. Isto é injusto,
porque ele merecia mais do que estas palavras curtas, mas profundas de um amigo.
CAPÍTULO XLVII
O desfecho
Neste nosso meio pequeno, há quem conheça o assassino ou, pelo menos, tenha
ideia do seu perfil, mas não existem provas palpáveis para o incriminar. A impressão
digital é prova, um revólver com cheiro de pólvora é prova, mas um investigador
convencido não é prova nenhuma, não importa a sua eloquência e erudição no
assunto em questão. Uma resposta convincente do por quê, nada significa se não se
encontrar um como e vice-versa. Pensamos que estávamos avançados no processo
em que uma pesquisa técnica nos forneceria elementos importantes para nos
aproximar de um melhor esclarecimento. Mas temos sempre à nossa frente uma
pergunta crucial que nos importuna: o motivo. Por que mata uma pessoa outra?
Qual é o motivo que a leva a tal procedimento?
Sentado na varanda da sua moradia, Roberto, filosofavam sobre as razões da morte
de um grande amigo há muitos anos. Queriam encontrar uma razão convincente que
justificasse a morte e quem estaria por detrás deste projecto tão engenhoso mas
tão hediondo e tão desumano.
Uma simples resposta a estas perguntas, mas não de menos importância, é: porque
ele ou ela tem algo a ganhar ou ainda, porque ele ou ela agiu com base no ódio que
alimentava contra a vítima.
Roberto meneou a cabeça em direcção ao Djonzinho, assentiu e acrescentou:
– Motivo passional: ciúmes, rejeição, vingança e outros.
Djonzinho não disse nada.
– Ou talvez, tal indivíduo, se encontre num estado de demência, de psicose… –
disse Roberto, acrescentando – de doença mental.
Djonzinho ficou em silêncio durante mais uns segundos.
– Sabemos que o estado do doente mental é uma expressão que explica a causa da
maioria dos assassínios cometidos no mundo, mas na verdade, não é o motivo
principal ou causa da matança. Há pessoas que acreditam que o assassínio, em si, é
uma prova de demência, podendo este ser premeditado ou não, mas a maior parte
das liquidações, é racional. É intencional. Da mesma maneira que é racional, a razão
que o move pode ser a procura de um ganho material, constituindo um tipo de
criminalidade com fim económico. Isto, também, é um processo racional, na medida
em que envolve um raciocínio prévio sobre o acto, sendo concretizado com base em
motivações que tentam justificar a necessidade de ser praticado. Por meio de uma
razão subjectiva, procura-se expressar uma vontade, tornando-a palpável e
concreta, munindo-se de uma auto-legitimação para alcançar aquilo que se deseja,
O Jornal África……
Um amigo escreveu-me de Lisboa, queixando-se da falta de atenção dada à morte
de um grande companheiro seu, alguém que iria melhorar, consideravelmente, as
condições políticas, económicas e sociais de Cabo Verde. Na carta que me dirigiu,
dizia:
Devo confessar a minha surpresa por este seu contacto, sobretudo, por vir de tão longe e feito
por alguém que – tudo o indica – não viveu o drama que foi o assassinato de um dos Homens,
mais importantes de todo o século XX, de Cabo Verde. A morte de Renato Cardoso roubou ao país
a possibilidade de, nos anos seguintes, ter podido construir uma liderança coesa, forte,
inteligente, capaz de fazer a Cabo Verde aquilo a que, em alguns dos meus textos de então,
chamava “A Suíça de África”.
A ideia de um romance policial decalcado dos acontecimentos de 29 de Setembro de 1989 e dos
dias que lhe antecederam, é capaz de – na impossibilidade de lhe dar a natureza de uma narrativa
histórica – ser útil. É que a morte do meu grande amigo está relacionada com a conquista do
poder que se seguiu (e que já vinha de outros tempos mais recuados).
Daí as suas dificuldades em obter informações. Morto, Renato Cardoso deixou o caminho aberto.
Tive a oportunidade de falar com um inspector da Polícia Judiciária Portuguesa, que, na altura foi
a Cabo Verde para ajudar as investigações. As conclusões dele foram: foi obra de um profissional,
não deixou uma pista, sequer. 78
Mais, num tom, talvez de frustração, mas de uma forma independente e categórica,
como jornalista de grande porte internacional, desabafou num artigo intitulado “O
Fim de um Projecto”:
…Mas, o "África" tinha acabado. Estávamos a 31 de Maio de 1991.
Em 29 de Setembro de 1989, Renato Cardoso tinha sido morto a tiro, na Praia do Quebra-Canela.
Era uma sexta-feira e, na quinta-feira anterior, tinha recebido o telefonema mais extraordinário
que alguma vez ele me tinha feito.
Um parêntesis para explicar que Renato Cardoso e eu mantínhamos uma amizade muito sólida,
com um acordo expresso sobre relações profissionais.
Ele desempenhou funções muito importantes enquanto eu fui delegado da ANOP (Agências de
notícias portuguesas) na Cidade da Praia durante três anos e continuou a fazê-lo, quando eu
resolvi apanhar, já em andamento, o projecto do "África Jornal", que o Xavier de Figueiredo
tinha resolvido fazer avançar de uma forma extemporânea. Era um projecto sobre o qual
vínhamos falando desde 1978, altura em que ele era delegado da ANOP na Guiné Bissau e eu
professor cooperante no Liceu da capital.
Voltarei mais tarde a estes pormenores.
Interessa, agora, falar do telefonema de Renato Cardoso, nessa dita quinta-feira, …durante o qual,
utilizando uma linguagem mais ou menos cifrada, me pediu para ir à Cidade da Praia (eu estava
em Lisboa), porque precisava muito de falar comigo.
Estava com receio… palavra esquisita para quem o conheceu. E explicou: o Presidente da
República, Aristides Pereira, tinha-o chamado para, no meio de uma conversa rendilhada, lhe
dizer que o Carlos Veiga, o jurista que mais dinheiro ganhava em Cabo Verde naquela altura, o
tinha informado que ele, Renato Cardoso, andava a manobrar nos bastidores para formar um
partido político alternativo ao PAICV.
Estávamos numa altura em que o PAICV, sob o impulso de Renato Cardoso e de Pedro Pires, se
preparava para terminar com o sistema de partido único. Ao contrário do que a maioria da opinião
pública cabo-verdiana pensava na altura, o adversário da abertura era Aristides Pereira.
Renato Cardoso era uma inteligência ímpar. Em Cabo Verde, só Amílcar Cabral se lhe pode
comparar. Sabia que o sistema de partido único tinha acabado. Ele tinha feito parte de uma
delegação do PAICV que, na sequência das conversações para a Independência da Namíbia,
retirada das tropas cubanas de Angola (pormenores de que falarei lá mais para a frente), tinha
permanecido em Cuba durante mais de uma semana – Pedro Pires chefiava tal delegação – tinha
tentado convencer Fidel de Castro que o sistema de partido único não funcionava em África.
Renato Cardoso, quando passava frente à multidão que se preparava para assistir ao Festival da
Baía das Gatas, em S. Vicente, de onde era natural dizia: "estão aqui trinta mil pessoas, eu conheço
15 mil, as outras 15 mil conhecem-me a mim". E sorria!
Se havia alguma unanimidade em Cabo Verde naquele ano da graça de 1989 – em Setembro –
chamava-se Renato Cardoso. Ele poderia ter feito a transição de forma inteligente, sem ter que
dividir a sociedade cabo-verdiana como Carlos Veiga fez, apoiando a campanha da insídia contra
os dirigentes de então, feita através do boato, da calúnia, dos panfletos anónimos, que ele nunca
condenou e de que sempre se aproveitou.
Renato Cardoso foi abatido a tiro, numa emboscada em que, de alguma forma, participou uma
mulher. Foi considerado um crime passional, levado a cabo por um marginal, que nunca chegou
a ser identificado, numa situação absolutamente indefensável. Perdeu, de uma vez só, a vida e o
prestígio.
Mais tarde, conversei com um dos inspectores que a Polícia Judiciária Portuguesa mandou a Cabo
Verde para ajudar nas investigações. Estava estupefacto com o profissionalismo de quem tinha
eliminado todas as pistas...
Informações de outra natureza levam-me a concluir, de maneira insofismável, que aquele
encontro foi preparado contra o Renato.
Sem Renato Silos Cardoso, o caminho ficou livre para Carlos Veiga, que, de resto, de forma pública
e notória, se organizava politicamente para aparecer como alternativa ao PAICV. Acabou por
ganhar as eleições em Janeiro de 1991.
É verdade que nesse mês de Setembro fui à Cidade da Praia, mas demasiado tarde: o Renato já
estava enterrado e a minha dor foi ampliada pelo facto de ter sabido que David Hoppfer Almada
– um dos seus mais pertinazes adversários – tinha feito o elogio fúnebre do meu amigo.
Fui mostrar, com os olhos, o meu descontentamento. Pedro Pires estava fora, em viagem de
Estado, tínhamo-nos encontrado no aeroporto de Lisboa, sem palavras.
Aos que, de alguma maneira, estão interessados nesta narrativa, devo uma explicação: Cabo
Verde beneficiou claramente da minha actuação como jornalista: primeiro, como correspondente
da ANOP e depois como director de um jornal especialmente direccionado para a problemática
africana (Jornal África). Todavia, esse benefício tinha como único fundamento a convicção
profunda – que hoje mantenho – de que o único povo que tinha beneficiado com a Independência
tinha sido o de Cabo Verde.
Naquele país, depois de ter deixado Angola e ter passado pela Guiné Bissau, encontrei a terra a
que gostaria de chamar minha e os homens a quem gostei de considerar camaradas. Do ponto de
vista profissional, todavia, sempre cumpri o meu dever. Para ilustrar este facto, mais tarde,
descreverei o modo como consegui entrar no domínio de alguns "top secrets" da diplomacia cabo-
verdiana, facto que lhes provocou alguns dissabores.
Este parêntesis serve igualmente para se entender a pressa que tenho de explicar a relação do
"África" com o poder saído das eleições de Janeiro de 1991. 79
Para finalizar, podemos tirar algumas ilações depois de ler o que diz a comunicação
de massas sobre este assunto delicado relatado ao mundo. Foi um crime
premeditado? Uma conclusão sobre premeditação ou não, fica na posse dos leitores
atentos. Mas devia ser acima de tudo, pura e simplesmente, uma conclusão da
Renato de Silos Cardoso, nasceu em São Vicente no dia 1 de Dezembro de 1951, filho
de Vital Miguel Cardoso e de Lúcia Maria Gomes Cardoso.
Aos dezassete anos, terminou o ensino secundário no Liceu Gil Eanes, São Vicente,
com uma média que, um ano mais tarde, lhe possibilitou concorrer para uma bolsa
82Dados extraídos do livro Liberdade, ainda e sempre…, editado pela Associação dos Combatentes
da Liberdade da Pátria (ACOLP), em Julho de 1997.
Epílogo
Um homem chamado Renato Silos Cardoso estava a ser incómodo para muita gente
e, por isso, devia ser excluído dentre os vivos.
Um homem bem-trajado de nome Nero, ocupara um quarto seguro na cidade da
Praia, com vista para o Seminário de São José. Dispunha de um aposento bem
apetrechado, com um estilo ultramoderno. Acabara de se barbear e usava um
perfume de marca francesa. Quando deu por si à frente do espelho, estava a limpar
a nuca com a ponta de uma toalha branca humedecida. Estremeceu quando a sineta
da porta tocou. Dirigiu-se à porta com uma certa desconfiança. Abriu-a e uma pessoa
entregou-lhe uma carta. Fechou a porta quando o homem saiu. Foi-se sentar perto
da escrivaninha quando o telefone tocou. Levantou-se e pegou no auscultador ao
quinto toque, ouviu uma voz não muito familiar do outro lado da linha. Depois as
coisas aconteceram com rapidez. Algumas horas depois, o país inteiro ficou
boquiaberto. Um assassinato na praia de Quebra-Canela. Ninguém soube quem
matou Renato. Se o Nero se envolveu. Se a acompanhante. Se foi um crime
autorizado e comandado. Se foi um crime passional. Se foi um crime político. Até
hoje nada se sabe. Uma grande dúvida foi arremessada pelos ares do país. Depois,
o mergulho no silêncio de um crime votado ao esquecimento que é o maior inimigo
da verdade e um silêncio perturbador!
Badiu Boxero surgiu no dúbio cenário para justificar a morte executada por um
outro, para preencher a lacuna existente e impor um silêncio desconfortável para
confundir a opinião pública. Num outro cenário diferente, surgiram duas amigas a
vasculhar os grandes porquês, mas sobretudo, para satisfazer a vontade própria e a
do povo cabo-verdiano.
Para encerrar este romance, lembremos de uma mulher histórica que decapitou a
cabeça de Holofernes para salvar sua nação. Surgiu de rompante na cena criminal
cabo-verdiana uma outra mulher com o mesmo nome, digamos, para salvar as
irreverências da época, as convenções e o patrulhamento ideológico que alastrava
a passos firmes no extracto social cabo-verdiano. Era de importância capital travar
um homem e todos aqueles que com ele comungavam a mesma opinião, isto é,
romper o silêncio perturbador em que toda a sociedade cabo-verdiana estava
confinada. É de salientar que a maioria do povo cabo-verdiano ficou muito tempo
sem o relato de uma verdadeira história, como que destinada à obscuridade de uma
inarrável consciência nacional capaz de transcender os limites impostos pelo Artigo
4o. da Constituição da primeira República e como se essa maioria estivesse a viver
fora do tempo ou pelo menos fora dos acontecimentos que se desenrolavam atrás
das cortinas ideologicamente vigiadas. É preciso saber que uma história sem a
participação de todos os homens não é possível. É sobretudo, uma história
aldrabada e corrompida até ao mais ínfimo extracto social. É uma história que torna
a maioria dos homens invisível.
Não é que se pretenda apontar aqui, categoricamente, o culpado da morte de
Renato Cardoso. Longe disso. A morte de Renato aponta para diversas ramificações.
Usou-se, entre outros, do ramo passional para consolidar um acto hediondo num
país com fraco recurso legal para resolver o problema. Esta é uma constatação e
uma convicção pessoal sem nenhuma prova científica que a justifique. Se esta
constatação se mostrar falsa, que se aponte para outras soluções mais evidentes.
Aqui apontam-se apenas os indícios, a condenação fica a cargo das mais altas
entidades em suas respectivas instâncias e a cargo do Povo. Fica um pedido: que a
nossa memória, corrompida pelo mito de melhores filhos do nosso povo e, portanto,
melhores pensadores, não nos conduza ao esquecimento do inspirador político,
Renato Cardoso.
As vantagens políticas da época dominavam tudo, ponto final. As vantagens
materiais eram e são as consequências que daí advêm. No contexto em que se vivia,
as palavras que se usavam eram como trovoadas e não como argumentos num
debate saudável, a não ser para acabar com uma discussão ou silenciá-la. Como o
poder corrompe os que o têm, podendo também, corromper aqueles que procuram
a influência destes, obedecendo aos seus detentores, torna-se imperativo que os
que não se deixam ser corrompidos, procedam de modo a equilibrar o poder. Daí o
perigo de se viver entre poderosos e magnatas, entre líderes e seguidores. Não
precisamos de esperar pelos meios de comunicação em nossa defesa, não
precisamos dos polícias em nossa protecção, não precisamos dos tribunais para nos
julgar. Estes são propriedades dos poderosos que não defendem o cidadão anónimo
e o seu direito de saber, mas puxam para si os melhores tachos materiais, as
melhores posições e são, além disso, supostamente, ou melhor auto-cognomizados
de omniscientes.
A história do crime que se inventariou naquele tempo, em Cabo Verde, de cegueira
humana, com chicotes, pistolas e outras armas de fogo, acompanhada de pontapés,
punhos e faces desumanas, deve ser contada doutra maneira. Hoje, o povo é livre.
É livre para, pelo menos, contar o que passou. Livre comparado com o povo daquele
tempo passado. Em nome do Direito e da Justiça, deve ser ainda mais livre, para falar
no rosto dos outros sem condenação prévia. Renato continua a cantar a mesma
canção de outrora, com a mágoa original que lhe enchia o coração, sem, porém,
estar ciente do facto. O gesto de cantar a mágoa não é nem pecado, nem crime. Mas
o gesto de se sentir espezinhado, sem voz, sem direito e justiça, já é Pecado com
letra maiúscula.
Numa tarde de Setembro de 1989, disparou um revólver em Quebra-Canela. Numa
outra em 2009, duas amigas, juntaram-se para recordar um amigo comum, que foi
morto a tiro e que fazia neste preciso ano, vinte anos sobre a sua morte. A tarde
toda foi usada para reflectir sobre os possíveis atalhos do crime cometido e quem o
cometeu. As duas procuraram, desesperadamente, encontrar a verdade depois de
tantos anos idos sem nenhum caminho que as conduzisse à meta desejada. Elas,
apesar das dificuldades, negaram-se a desistir do projecto e, pouco a pouco,
obtiveram uma mais clara imagem do acontecimento, da paixão que matou o amigo,
da fantasia, da mentira acerca da morte e da embrulhada que fizeram do
assassinato. As duas amigas têm uma imagem quase certeira de como o crime foi
premeditado. Certo é que existe um assassino à solta. Certo é que foi morto um
grande amigo. Certo é que há uma engrenagem bem camuflada. E, muito mais certo
é: que houve uma meditação prévia.83 É a coisa mais certa que existe neste nosso
mundo.
Todas as investigações de cunho privado não tiveram sucesso por razões de ordem
vária. Entretanto, não foram em vão porque tiveram um desfecho diferente do
previsto, trazendo à luz uma parte da história que ainda se conservava debaixo dos
nossos pés.
83 A Bala Mágica que matou o Dr. Renato Cardoso, de José Manuel Veiga, 1994.
A biografia do autor
Nascido no sítio de Monte Tabor da Ilha do Fogo – Cabo Verde, iniciou os seus
estudos secundários na escola de Maria Antónia do Rosário em São Filipe e depois
no liceu Adriano Moreira, hoje Domingos Ramos, na cidade da Praia, interrompido
pelos serviços militares no Mindelo e na Cidade da Praia.
Depois dos serviços militares, ingressou como professor no ensino primário onde
exerceu esta função durante dois anos. Emigrou, nos fins de 1973, para Noruega,
onde chegou a 4 de Janeiro de 1974. Retomou os seus estudos secundários, depois
ISBN 978-82-992928-7-0
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