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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS


DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS
BACHARELADO EM LETRAS – CICLO BÁSICO

Introdução ao Estudo da Língua Portuguesa II


Turma: 2020203
Período noturno
Prof. Dr. Waldemar Ferreira Neto
Aluno: Gonçalo José de Sousa Junior
Número USP: 757807

Resenha do filme “Traídos pelo desejo”

O filme “Traídos pelo desejo” (The Crying Game), indicado a seis categorias do Oscar em 1993,
interliga diversos temas em uma só narrativa. A partir de uma premissa política, o cineasta irlandês
Neil Jordan aborda xenofobia, homossexualismo, intolerância e o senso comum.

No início, a película adota o formato de um thriller político com a história de um seqüestro de um


soldado inglês pelo grupo paramilitar Exército Republicano Irlandês (IRA). O pano de fundo é a
questão separatista da Irlanda a partir dos atentados terroristas contra o governo britânico. O
objetivo dos sequestradores é trocar o soldado por um membro da organização preso. Caso
contrário, ele seria executado no prazo de três dias.

O filme se desloca para o começo da amizade incomum entre um dos seqüestradores, Fergus
(Stephen Rea), e o seu seqüestrado, Jody (Forest Whitaker). Durante a convivência forçada, os dois
se aproximam e desenvolvem certa cumplicidade. Trocam confidências, contam histórias pessoais e
revelam segredos. Fergus é o homem errado no lugar errado, pois apresenta uma natureza dócil, o
oposto do que se espera de um sequestrador. A narrativa política se transforma num drama delicado
sobre relações humanas e aceitação.

Uma das revelações de Jody é sua paixão pela namorada, a cabeleireira Dil (Jaye Davidson). Prestes
a ser executado, Jody pede a Fergus que procure Dil, após sua morte, para lhe dizer o quanto a
amava. Movido pela culpa, Fergus cumpre o último desejo do soldado. Tempos depois, o
guerrilheiro se aproxima de Dil, mas não conta toda a história. E por uma razão bem objetiva: ele
também cai de amores pela cabeleireira. Mas há um segredo a ser superado. Um segredo que vai
colocar em xeque seus valores e convicções. Dil na verdade é um homem.

O teor político discretamente se retira do foco. Também fica em segundo plano a chamada
Síndrome de Estocolmo, curiosa relação de temor/dependência que provoca sentimentos de amizade
da vítima por seu agressor após contato íntimo e prolongado. À época, o filme de Neil Jordan
quebrou alguns paradigmas por tratar temas então polêmicos de forma franca e aberta numa
produção mainstream.

A discussão agora é sobre formação de identidades e a importância do senso comum na definição


das relações sociais. A discussão sobre a verdadeira natureza das pessoas é a verdadeira essência do
filme de Neil Jordan. Esta tese fica caracterizada pela fábula do sapo e do escorpião, contada duas
vezes durante o filme, por personagens diferentes. Aqui, vale a abertura de parênteses para
relembrar a fábula. Durante a travessia de um rio, o escorpião pede a ajuda do sapo, que teme um
ataque durante a travessia. Ele reluta, mas ajuda o parceiro. No meio do rio, o sapo sente o agulhão
do escorpião em seu dorso. Antes de afundarem juntos, o escorpião justifica. “É a minha natureza”.

Voltemos ao enredo do filme. O ex-guerrilheiro de Stephen Rea, que já havia transposto barreiras
ideológicas e preconceitos raciais, agora se encontra num dilema sobre a sexualidade. Quando o
protagonista vê o órgão sexual masculino na mulher amada, ele entra em choque. Ela já havia se
apaixonado esperando que ele fosse mulher. Agora, ele continua apaixonado por um homem? Ele
abandona o sentimento? Aí, entra a discussão sobre o senso comum.

Agner Heller afirma que o saber cotidiano é a soma de nossos conhecimentos sobre a realidade. O
conhecimento pode ser adquirido por meio de estudos e pesquisas. Porém, existe um tipo de
conhecimento presente no cotidiano, passado de forma contínua de geração em geração. Ele é
aprendido por meio da observação, além de vivências e experimentações sobre o mundo e se
concretiza no meio popular em decorrência da repetição cultural. É formado por axiomas, verdades
que não precisam de argumentos, são intuitivas e que não têm como ser refutadas. O senso comum
não depende de métodos científicos, pois são conhecimentos empíricos. Por conta disso, são
conceitos que podem ou não ser verdadeiros.

No livro “Da divisão do trabalho social”, o filósofo Émile Durkhein considera o senso comum uma
consciência coletiva, ou seja, o conjunto das crenças e dos sentimentos comuns à média dos
membros de uma mesma sociedade forma um sistema determinado que tem vida própria.

Mas o senso comum não dará resposta para o problema enfrentado pelo guerrilheiro irlandês. Ele
entra em choque com a realidade apresentada (o fato de Dill ser um homem). Em certa medida, o
desaparecimento de Jody representou a libertação de Fergus, rumo à descoberta de seus verdadeiros
sentimentos, despertados quando conhece a namorada do amigo falecido. Ele encontra sua natureza.

Nesse sentido, o personagem percorre uma trajetória marcada pelo senso comum, pela
impessoalidade e pela entrega às convenções sociais, aqueles conhecimentos apreendidos sem
reflexão. É o encontro com o soldado britânico e com sua namorada, no segundo momento, que
permite descobrir sua própria individualidade, aquilo que é único e pessoal, sua própria natureza.

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