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Anais do Seminário Nacional Vanguardas, Surrealismo e Modernidade

UFRGS 05/04/2010 – 09/04/2010 |Alan Noronha

James Joyce para quem tem medo


Alan Noronha

ABSTRACT
James Joyce, one of the key writers of what we now conceive as
modernist novel, has been received in Brazil in many ways: as genius, boring,
pedantic, comical or master of the writing art craft. The differences of
perception between the ones who read the original works and the available
translations is great. In the present article I discuss some elements of the
composition of the book Dubliners, showing how certain theoretical
constructions help to illuminate the reading of the stories. Dubliners is a book
which has cohesion, and is unified in terms of language, ideas, symbols and
ambiance.

Keywords: James Joyce, modernism, epiphany, flow of consciousness.

RESUMO
James Joyce, um dos escritores chave do que entendemos hoje como romance
moderno, tem sido recebido no Brasil de diversas maneiras: gênio, chato,
pedante, cômico ou mestre artesão. A diferença de percepção entre quem leu as
obras originais e as traduções disponíveis é grande. No presente artigo eu
discuto alguns elementos da composição do livro Dublinenses, mostrando como
certas construções teóricas ajudam a iluminar a leitura das histórias.
Dublinenses é um livro que tem coesão, e é unificado em termos de língua,
idéias, símbolos e ambientação.

Palavras chave: Joyce, modernismo, epifania, fluxo de consciência.

Alan Noronha, UFRGS. Rua Padre João Batista Réus, 1547 apto. 208, Porto Alegre, Brasil.
alannoronha@yahoo.com.br

Revista Contingentia, Vol. 5, No. 2, novembro 2010, 01–10 1


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1 Introducão
James Augustine Aloysius Joyce, um dos irlandeses mais conhecidos no
mundo, viveu a maior parte de sua vida longe da Irlanda. No entanto, ela está presente
em seu trabalho, e especialmente a cidade de Dublin lhe deve o fato de tê-la colocado no
mapa literário do século XX. Antes dele outros irlandeses haviam alcançado renome no
universo da literatura de língua inglesa, em especial Oscar Wilde e Jonathan Swift, mas
foi Joyce quem colocou a cidade de Dublin como primeiro plano em suas obras.
O colonialismo inglês, o catolicismo e o provincianismo foram seus alvos
constantes. Tendo como palco a Dublin do início do século, esses três elementos são
dissecados e mostrados à população, como em um espelho distorcido. Assim formou-se a
idéia inicial para o livro de contos chamado Dublinenses. Joyce queria mostrar à
sociedade de Dublin como ela estava paralisada, corrompida e decadente. Nem mesmo os
esforços do movimento Crepúsculo Celta (Celtic Twilight) eram suficientes, segundo ele,
para sacudir os irlandeses de sua letargia. Nomes famosos como W.B.Yeats e Lady
Gregory fizeram parte desse movimento que buscava um renascimento da cultura e das
tradições irlandesas. Joyce, apesar de admirar e de ter sido apoiado por Yeats, manteve
sempre uma distância em relação a esse grupo. Ele estava mais interessado na obra de
Henrik Ibsen, especialmente na fase realista, e em mitologia grega. Após abandonar
Dublin e ir morar em diferentes cidades e países europeus, Joyce manteve a mesma
relação conflituosa e afetiva com a cidade. Quase todas as suas obras são ambientadas lá,
e ele prestou atenção minuciosa a detalhes como nomes de ruas, lugares, objetos e
práticas dublinenses, chegando várias vezes a perguntar por esses detalhes em cartas a
seu irmão para melhor compor os livros.
O mesmo cuidado com os detalhes referenciais foi aplicado à construção
textual. Os contos de Dublinenses são peças literárias cuidadosamente elaboradas, mas
que à primeira leitura podem dar uma impressão superficial de realismo cru, e de serem
pequenos momentos de vida rapidamente esboçados. Embora tenham ficado por muito
tempo ofuscados pelas obras posteriores, nas últimas décadas há uma tendência a se
reavaliar a importância desses contos. Muitos críticos conhecidos têm dado atenção a
eles, incluindo Robert Scholes, Anthony Burgess e Harold Bloom.

2 Lendo Joyce
Phillip Herring 1 elaborou uma chave para a interpretação de Dublinenses
usando três palavras que aparecem no primeiro conto: gnomon, paralisia e simonia.
Herring afirma que, de acordo com o dicionário Oxford, gnomon significa “um
paralelogramo no qual está faltando outro paralelogramo menor na parte superior
direita.”, e também “um relógio de sol que mostra as horas fazendo sombra sobre
parte de um círculo”. Ambas as definições têm em comum a idéia de algo faltando,
algum tipo de elipse que Joyce aplica à estrutura dos contos, sendo essa, segundo
Herring, a novidade de sua abordagem. Herring escreve (tradução nossa):
“Por esta palavra gnomon eu afirmo mais que meus precursores, porque ao
perceber princípios gnomônicos funcionando, os leitores podem ganhar
novos insights em relação aos personagens, estrutura e técnica narrativa –
não em toda a obra de Joyce, mas em suficiente dela para garantir um
exame sistemático desses princípios. Joyce provavelmente sabia que em
grego a palavra significa ‘indicador’”. 2

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A estrutura gnomônica é uma estrutura da qual pedaços estratégicos foram


conscientemente removidos para criar efeito estético. Ela cria significado e simbolismo,
assim como as outras duas palavras chave. Sem ter consciência desse procedimento, o
leitor pode simplesmente achar que os contos estão mal elaborados e incompletos, ao
invés de perceber que esses pedaços que faltam são essenciais para o entendimento do
texto.
Paralisia e simonia agem no nível da descrição moral da cidade e de seus
habitantes. Herring revela que na época de Joyce “paralisia” era um eufemismo comum
para a sífilis, um fato simples mas que ilumina muito da leitura dos contos:

“O quanto é útil, então, evidência extratextual como o interesse de Joyce em


sífilis (como mostram suas cartas) e o fato de que paralisia era um
eufemismo comum para sífilis na época? Começamos com este exemplo
porque está em questão aqui não meramente como interpretamos um conto,
mas se é ou não possível de fato interpretar Joyce com algum grau de
validade.”

Mesmo não sendo tão extremos como Herring, o que poderia nos levar a uma
análise reducionista, podemos notar que ao lidar com Joyce cada detalhe pode significar
bastante quando apropriadamente contextualizado. Contudo, a falta da informação
precisa não torna a leitura impossível. Não é preciso um curso para ler Joyce (pelo menos
antes do Finnegans Wake). No caso dos contos de Dublinenses os princípios
gnomônicos, além das noções de paralisia e simonia, ajudam bastante.
Vejamos a terceira palavra chave: simonia é a venda de favores divinos,
bênçãos, cargos eclesiásticos, prosperidade material, bens espirituais, coisas sagradas,
etc. em troca de dinheiro. Ou seja: corrupção na igreja. Considerando que a igreja
irlandesa sempre foi um elemento fundamental na definição da identidade irlandesa, o
uso da palavra simonia é direto o suficiente. De fato, logo no primeiro conto “As irmãs”,
vemos a morte de padre Flynn, que sofria de “paralisia” do corpo e da alma, e que era
uma grande influência no garoto protagonista. Este conto é fundamental para a
compreensão do que vem a seguir: além de apresentar as três palavra-chave aqui
trabalhadas, ele estabelece o tom e a ambientação para o que virá. Logo na primeira frase
o padre tem um ataque fatal, o terceiro, e Joyce nos coloca sem cerimônia na Dublin
católica e decadente que ele conhecia, vista pelos olhos e percebida pelos sentidos de
uma criança.
O livros está claramente, mas não explicitamente, dividido em contos da
infância (os três primeiros), da adolescência (próximos quatro), maturidade (outros
quatro) e vida pública (quatro finais). Joyce mostra uma unidade espacial – a cidade,
através de um recorte temporal, o qual inclui as fases de desenvolvimento de personagens
que poderiam muito bem ser versões mais velhas dos contos anteriores de cada seção. Se
em Ulisses temos uma unidade temporal – um dia na vida de vários personagens, em
Dublinenses e em Um retrato do artista... acompanhamos os personagens durante algum
tempo, mas sempre com cortes, elipses, gnomons.
Os contos de Dublinenses nem sempre acompanham o esquema de introdução,
problematização, tensão e resolução. Muitas vezes nos encontramos no meio de algum
conflito, e acompanhamos personagens andando em círculos ou tendo epifanias, e os
finais várias vezes são suspensos, aparentemente incompletos e sem resolução. “As
irmãs” é um bom exemplo. O próprio título é um sinal de deslocamento. Apesar de a

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narrativa seguir a consciência do garoto, ele não está no título. Ele, assim como o leitor,
luta para encontrar sentido em um mundo cifrado, misterioso. Ele se sente julgado e
observado. Sua relação com o finado padre aos poucos vai sendo revelada: estranha,
impositiva, ameaçadora. Ele acha curioso não estar lamentando a morte, e até mesmo
sentir uma sensação de liberdade. A princípio ele nem tem coragem de entrar no velório.
Ao invés, vai para as ruas olhar os anúncios de teatro. Uma possível interpretação em
nível simbólico é que o conhecimento era dominado pela igreja, e a morte dela significa a
abertura para a cultura popular e artística. No conto “Um encontro” isso aparece outra
vez quando os garotos lêem às escondidas aventuras do velho oeste americano ao invés
de estudar o catecismo.
Aqui vemos os detalhes de construção que tanto fascinam Joyce: a casa do
padre se encontra em uma rua chamada Grã-Bretanha, e a data da morte do padre é a
mesma da vitória da Inglaterra sobre a Irlanda em 1690 3. Na parte final do conto
finalmente aparecem as irmãs do título. O foco narrativo muda das percepções do garoto
para os diálogos delas, que expõem a decrepitude do padre morto. Aos poucos torna-se
claro que a paralisia dele não era só do corpo, mas também de sua sanidade mental e
moral.
Segundo Thomas F. Staley 4, este conto marca o momento em que Joyce passou
a dar prioridade à palavra ao invés do mundo (“The word over the world”). Ao invés de
simplesmente contar a história e entreter o leitor com uma representação do mundo,
Joyce trabalha as possibilidades expressivas da língua inglesa para criar uma nova forma
de arte. Estudando as diferentes formas desse conto até chegar à final, Staley notou um
movimento de transição que o colocou cada vez mais próximo de um texto redigível, em
detrimento de um texto legível, nos termos de Barthes 5. De acordo com Staley “It draws
the initial line of a longer narrative enclosure, and is every bit as much the beginning of
the first movement in the orchestration of Dubliners itself”, em tradução nossa “... ele
traça a linha inicial de uma forma narrativa mais longa, e é a cada detalhe o início do
primeiro movimento na orquestração do próprio Dublinenses”. 6
Esse movimento de Joyce começa aqui neste conto, e atinge as últimas
conseqüências nas experimentações de Finnegans Wake, por isso ele merece uma
segunda e uma terceira releituras. A cada vez novos detalhes aparecem, novas camadas
de significado se revelam. Por exemplo: o que conduz o garoto à epifania são os sentidos
aguçados durante o velório. O odor forte das flores que ele sente representa a atmosfera
pesada dos ensinamentos religiosos. Ele bebe o xarope, mas recusa-se a comer as
bolachas porque acha que vai fazer barulho. Ele tem permissão para ver o corpo do
padre. Ao invés de ouvir as preces que são rezadas, ele ouve os sussurros e reclamações
das mulheres. Ao abrir todos os sentidos para a cena, ele chega próximo de ter uma
epifania, provavelmente a revelação de que o conhecimento imposto a ele pelo padre era
parcial e decadente. As irmãs do título o ajudam nesse processo, involuntariamente
abrindo a ele o mundo dos sentidos.
O final do conto não mostra nada de mais, aparentemente. As irmãs apenas
continuam comentando e aguçando a percepção do garoto narrador. A epifania não é
explicitada, não é elaborada em fluxos de consciência como Joyce faria em outros
momentos. Ela está lá, e é apenas intuída pelo leitor. Este é o tipo de conto que em uma
primeira e superficial leitura pode parecer uma bobagem vazia, mas que guarda muitas
surpresas em níveis mais profundos.
Em “Eveline”, um dos contos de adolescência, temos a paralisia da sociedade
de Dublin encarnada na personagem título. A situação dela é emblemática do que as
garotas irlandesas podiam esperar de suas vidas: uma infância feliz, da qual ela lembra

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com nostalgia, e uma situação atual bem triste. A mãe está morta, o pai já não a trata
bem, chegando até a agredi-la fisicamente. Então surge uma chance de fugir para Buenos
Aires com um marinheiro. Joyce trabalha de novo com os simbolismos: há uma foto de
um padre na parede, que está amarelando. O amarelo e o marrom para ele sempre
representaram decadência. Eveline não sabe nem o nome do padre, apenas que ele tinha
sido amigo do pai dela. Quando criança, ela tinha uma amiga aleijada, antecipando sua
própria paralisia posterior. Alguns amigos foram para a Inglaterra, outros já morreram, e
ela ficou parada. O marinheiro, que se chama Frank (franco), lhe oferece a chance de
começar de novo.
Como seu mestre Ibsen, Joyce está consciente da posição da mulher na
sociedade. Eveline é oprimida pelo pai e pelo irmão irresponsável, e não tem a figura
materna para consolá-la. Ela encontra consolo apenas no amante, que oferece uma casa
em um país estrangeiro e a leva ao teatro. As duas fugas – da viagem e da arte, serão
experimentadas pelo próprio Joyce e por vários de seus personagens, com graus
diferentes de sucesso. Já em Dublinenses aparecem os contrastes entre os que foram, que
nem sempre se deram bem, e os que ficaram, condenados à paralisia. Eveline não está
pronta para dar o passo, e acaba presa na rede de sua própria vida. Não haverá fuga para
ela.
Nas demais seções do livro, Joyce segue desenvolvendo suas idéias e seu jogo
com as palavras, idéias e símbolos. Já em Um retrato... temos o desenvolvimento de um
único personagem, bastante auto-biográfico, chamado Stephen Dedalus. O formato
romance permite elaborações que a concisão dos contos não propicia, mas ainda assim
percebemos o uso de gnomons. Basta comparar a versão final com o projeto anterior
intitulado Stephen Hero: um romance bastante tradicional, com descrições detalhadas dos
personagens e situações em um estilo convencional, que ganhou uma roupagem
drasticamente diferente. Joyce omitiu boa parte do conteúdo de Stephen Hero na
composição de Um retrato... e decantou o estilo para chegar ao resultado que queria. Um
Bildungsroman irlandês, um retrato da formação de um artista em um meio social que o
puxa para baixo e o impede de voar, as amarras do imperialismo, do catolicismo e da
mentalidade provinciana em choque com um adolescente que tenta encontrar sua voz no
mundo. Os conflitos com a sexualidade, o amor e a religiosidade, a culpa e a família,
tudo isso burilado e bastante condensado.
O personagem principal é apresentado inicialmente como criança, e a
linguagem acompanha: as primeiras páginas mostram a sintaxe e o vocabulário com os
quais o pequeno Stephen conta para tentar entender o mundo. Conforme o garoto vai
crescendo, a linguagem vai se sofisticando, até chegar às elaborações estéticas de um
jovem universitário lidando com Tomás de Aquino. Os procedimentos simbólicos
continuam lá: a virgem Maria, a torre de marfim, a revelação. De dentro do próprio
imaginário cristão que tenta negar, Stephen saca as armas que o farão almejar o caminho
do artista.
Um retrato...não é uma obra menor nem uma ante-sala para Ulisses. É uma
obra acabada e muito bem realizada em si mesma, que mantém relações com
Dublinenses e Ulisses pelo uso de alguns personagens, por algumas técnicas de trabalho
da linguagem e pela ambientação. Mas é uma jornada e uma descoberta em si mesmo,
um vôo que vale a pena tentar.

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Notas

1 HERRING, Phillip. Dubliners: The Trials of Adolescence. Reynolds, Mary T.

James. In: Joyce: A Collection of Critical Essays. Englewood Cliffs, NJ: Prentice
Hall, 1993.
2 Idem.
3 SAXTON, Adam. CliffsNotes on Joyce’s Dubliners. New York : Wiley Publishing,

2003.
4 STALEY, Thomas F. A Beginning: Signification, Story, and Discourse in Joyce’s ‘The

Sisters’. In: Dubliners: Contemporary Critical Essays. New York: Palgrave, 2006. p.17.
5
BARTHES, Roland. O prazer do texto. São Paulo: Perspectiva, 1973.
6
STALEY, Thomas F. A Beginning: Signification, Story, and Discourse in Joyce’s ‘The
Sisters’. In: Dubliners: Contemporary Critical Essays. New York: Palgrave, 2006. p. 19

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