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Universidade Federal do Ceará

Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação


PIBIC 2015/2016 (Iniciação Científica) - Edital 01/15
Relatório Técnico

A Absurda Inconsistência da Escrita: Relações entre a Narrativa


Fantástica, a Mulher, a Morte e o Mal.

Resumo
O projeto buscou ampliar os estudos do grupo Vertentes do Mal na Literatura. A partir da leitura de
contos fantásticos de diferentes autores portugueses, observou-se a presença recorrente de
narrativas construídas de forma a entrelaçar a mulher, seu poder de sedução e o mal, ocasionando
consequências terríveis, geralmente ligadas à morte. Dessa forma, essa pesquisa rediscutiu
características da literatura fantástica, em duas baladas e quatro contos portugueses românticos e
quatro contos modernos, buscando explorar os recursos estéticos estruturantes do gênero, bem
como analisar de que forma estas narrativas apresentam aspectos do imaginário religioso que
relaciona o mal à figura feminina e à morte. Assim, essa pesquisa discutiu como a linguagem
contribuiu para a organização do gênero, além de verificar como a temática do Mal está relacionada
à figura feminina, que recebeu grandes influências da tradição clássica grega e do imaginário
religioso cristão aproveitados de diferentes maneiras pelo Romantismo e pela Modernidade, mas
que compartilham valores culturais comuns há muito enraizados no imaginário ocidental. A análise
do corpus selecionado ocorreu a partir de pressupostos estéticos e narrativos que permitiram
verificar informações substanciais sobre o modo de aproveitamento dos recursos estilísticos
próprios do fantástico e do simbolismo ligado às temáticas utilizadas. Assim, nos textos românticos,
percebe-se a mulher mais como vítima do Mal advindo de várias instâncias: traição, estupro,
assassinato praticados por homens; quando surge o sobrenatural, este representa um castigo para
aquele que em vida lhes causou tanta dor e sofrimento. Nas narrativas modernistas XX, a mulher é
aproximada da figura da bruxa medieval, além de relacioná-la sedução, ao encanto por meio dos
seus atributos físicos. Apesar de outras influências estas ainda resguardam muito dos traços da
cultura ocidental cristã que criou uma imagem muito negativa e pejorativa da mulher.

1. Objetivos Cumpridos
Objetivo Geral:
Analisar como se constrói a narrativa fantástica observando como se dá o tratamento das temáticas
Mulher, Morte e Mal, em sua relação com o imaginário religioso, em contos portugueses localizados
no Romantismo e, em contraposição, na primeira metade do século XX, para discutir que
elementos na narrativa contribuem para a criação dessa vertente literária. (T)

Objetivos específicos:
1. verificar que processos da construção narrativa são de fato utilizados nos contos escolhidos afim
de salientar o "efeito de fantástico" presente no texto; (T)
2. discutir diferentes propostas de análise de narrativas fantásticas, visando a avaliação crítica dos
conceitos existentes sobre o fantástico e o realce dos procedimentos estéticos, especialmente, os
linguísticos e semânticos; (P)
3. discutir como o imaginário religioso alimenta a construção da alegoria do Mal relacionado às
temáticas da muher e da morte, na literatura portuguesa de um modo geral e nas narrativas
analisadas; (T)
4. propor uma reflexão compreendendo o fantástico como uma organização de recursos estéticos
resultantes em um certo efeito que pode até ser encontrado em literaturas não fantásticas e
explicar como esse efeito se tornou uma marca forte da Literatura Portuguesa. (T)

2. Resultados
Em nossa pesquisa, analisamos de modo comparativo obras pertencentes ao Romantismo e
Modernismo português que tivessem como temática a relação que muitas vezes se estabelece
entre a mulher, o mal e a morte. O corpus da nossa pesquisa consiste de duas baladas poéticas de
Alexandre Herculano: Leonor e Noiva de Sepulcro publicadas na obra Poesias (1850), além de um
conto do autor acima citado, A dama pé de cabra; de Rebelo da Silva: A torre de Caim; de Osório
de Paiva: A torre derrocada; de Pinheiro Chagas: A igreja profanada, todos estes autores
românticos, e contos de quatro autores modernos: de Hugo Rocha, A noite de Walpurgis; de
Aquilino Ribeiro: A reencarnação deliciosa; de Jorge de Sena: O físico prodigioso; e de Almeida
Faria: Peregrinação. Todos os contos citados foram publicados na Antologia do conto fantástico
português, organizada por E. M de Castro Mello (1974).
Notou-se que as ambientações relacionadas à Natureza e a narrativas medievais se fazem muito
presentes nos textos românticos e modernos; sim nos modernos, devido ao recuo temporal por eles
utilizados, que se valia muito de paisagens campestres. Este caractere difere-se um pouco da
estratégia adotada por Poe, já que ele investia em ambientes mais fechados como o interior das
casas, palácios, ao passo que no corpus da pesquisa acontece um movimento na direção oposta. A
pesquisadora Maria Leonor (1978) chama a nossa atenção para o elemento Natureza sombria que
foi adotado nos escritos do Romantismo e como foi importante para o efeito pretendido pelos
autores, ressalta-se que até então, nenhum grupo de autores ou escola literária havia se utilizado
deste recurso, que posteriormente seria amplamente difundido, mesmo em outras épocas.
Lembremos que a descrição dos ambientes lúgubres, obscuros e porque não aterradores tiveram
grandes influências do gótico alemão e do romântico inglês.
As obras analisadas serviram para revelar a maneira como a literatura portuguesa fantástica trata a
relação existente entre a figura feminina e seu "poder" de ocasionar o mal, que muitas das vezes
gera a aniquilação do ser, isto é, a morte. Primeiramente, devemos traçamos um paralelo entre o
modo que a mulher era retratada no Romantismo e no Modernismo, além de atentarmos para as
influências advindas do gótico alemão, e do Romantismo inglês que tiveram grande destaque em
Portugal nas obras de autores românticos como, por exemplo, Alexandre Herculano. Já com
relação ao Modernismo notamos como uma nova perspectiva da vida agitada e da consciência
humana agora cindida será representada nas obras literárias.
Nos textos da época romântica, percebe-se a mulher muito mais como vítima do Mal advindo de
várias instâncias como a traição, o estupro, o assassinato praticado pelo gênero masculino; depois
disso, quando surge o sobrenatural através da figura feminina, este geralmente é constituído como
um castigo para aquele que em vida lhes causou tanta dor e sofrimento. Outra abordagem bastante
utilizada pelos autores era a de associa a mulher ao crime contra a religião, mais especificamente
contra Deus, fazendo com que elas blasfemassem, e, logo após a blasfêmia vinha o castigo por
terem sido tão descuidada ou inconsequente ao proferir palavras amargas contra o Criador, ou
ainda valorizam o relacionamento com o amado mais do que o amor de Deus pela humanidade. O
curioso, aqui, é que Deus mandava a Morte na figura do amante há tanto esperado e que somente
depois do pacto ser estabelecido, era que a mulher recebia sua punição: a morte em si. Outro crime
também imperdoável perante os olhos da Igreja Católica era adultério, que já condenava a mulher
ao inferno, independentemente das circunstâncias.
Nas narrativas da primeira metade do século XX, a mulher é aproximada da figura da bruxa
medieval, imaginário este muito baseado na tradição popular, além de relacionar a personalidade
feminina à sedução, ao encanto por meio dos seus atributos físicos. Percebemos, então, que
apesar de ter outras influências a época moderna ainda resguarda muito dos traços da cultura
ocidental cristã que criou uma imagem muito negativa e pejorativa da mulher, o que acabou
justificando muitos atos de crueldade nas narrativas, tendo em vista que o gênero masculino quase
não sofre sanções por seus comportamentos inadequados, enquanto a mulher é podada por
diversas instâncias, sejam sociais, religiosas ou populares.
Se nos detivermos mais especificamente nas baladas e narrativas românticas, perceberemos como
a relação construída entre o poder maléfico e a figura feminina é intrínseca, porque ainda que a
mulher não seja a que gera o mal, ela será portadora dele, ainda que o carregue em si como
instrumento de castigo, de punição de outrem. No corpus selecionado é, na maioria das vezes, o
gênero masculino. O importante a ser ressaltado é que, segundo esta concepção, a mulher estaria
sempre mais propensa às práticas malignas independentemente das circunstâncias. Esta visão de
que a mulher estaria ligada ao mal foi muito reforçada pela doutrina religiosa, sobretudo, da Igreja
Católica, porque parte-se do velho argumento de que Eva %u2013 a primeira mulher %u2013 teria
sido a responsável pela queda do Homem, tanto do homem quanto da humanidade, fazendo com
que o pecado, que gerou a morte, entrasse no mundo, de acordo com a tradição cristã (DUBY,
2001).
Nas duas baladas de Alexandre Herculano, Leonor e Noiva de Sepulcro, encontramos,
respectivamente, os exemplos paradigmáticos de como o Mal se manifesta na produção romântica
portuguesa, na primeira há um crime religioso que acaba gerando morte, enquanto na outra a
mulher é vítima dos males causados pelo homem e a sociedade que não interfere, e algoz do
criminoso que a feriu, isto é, instrumento de justiça divina. No conto, A dama pé de cabra, do autor
supracitado, a mulher também é retratada como uma transgressora de uma lei da Igreja, a da
fidelidade, crime este que causa a perdição da alma, sem nenhuma redenção, por isso mais tarde
se torna um instrumento do Mal para desviar outras almas cristãs do bom caminho.
No conto A igreja profanada, de Pinheiro Chagas, a figura da mulher é retratada mais uma vez
como transgressora das leis impostas pela Igreja, mas desta vez o crime seria duplo, porque além
de profanar o templo, pratica incesto com seu irmão. Osório de Vasconcelos, no conto A torre
derrocada, segue o mesmo fio temático dos demais escritores, a personagem principal comete
blasfêmia por amar mais seu amante do que a Deus, semelhante o que acontece em Leonor, no
entanto o castigo aqui é uma maldição eterna, mas tão cruel quanto à morte. No conto A torre de
Caim, de Rebelo da Silva, a personagem feminina é pura e inocente, em nenhum momento comete
algum ato que possa ser interpretado como mau ou ruim, toda a maldade está ligada a imagem dos
personagens masculinos da estória e por meio de diversas perspectivas, sejam elas naturais,
físicas, religiosas ou sobrenaturais, diferente das outras narrativas nas quais o sobrenatural
(maléfico) surge através das figuras femininas.
Um dos recursos muito utilizados, pelos autores portugueses da modernidade analisados no corpus
escolhido, é o recuo temporal a uma época em que os valores vigentes são muitos semelhantes
àqueles defendidos pelas narrativas românticas, fazendo com que se aproximem os valores das
diferentes recortes temporais. No conto A noite de Walpurgis, de Hugo Rocha, a mulher é
apresentada como uma personagem devota e seguidora dos preceitos cristãos, apesar do narrador
constantemente associa a figura feminina a de uma bruxa, além do mal ser representado pelo seu
arquétipo, o diabo. No conto O físico prodigioso, de Jorge de Sena, as mulheres são colocadas
como feiticeiras, que tiram proveito dos homens e depois os matam, porém o diabo é fiel
companheiro do protagonista.
Diferentemente dos dois contos acima citados, os contos, Peregrinação, de Almeida Faria, e A
reencarnação deliciosa, de Aquilino Ribeiro, que trabalham por outras perspectivas. O primeiro se
vale da fragmentação da vida moderna que se reproduz em todo poema, inclusive em sua
estruturação formal, além de se utilizar bastante do erotismo, além da mulher estar ligada de forma
direta a morte, como uma espécie de sacerdotisa. O segundo, por sua vez, nos conduz para uma
representação feminina, na qual a propensão para o mal ou para a prática do pecado nos é
passada como algo mais natural, quase que intrínseco a sua natureza, mesmo erro cometido
também por Eva, devido sua insatisfação com o estado atual.
3. Discussão
Os contos, que estão reunidos na obra Antologia do conto fantástico português (1974), constituem
a maior parte do nosso corpus, algumas características basilares do gênero em si guiam os autores
tanto românticos quanto modernos de Portugal, dentre as principais estão a questão formal, já que
o conto, geralmente, é curto consegue prender a atenção do leitor mais do que um romance, por
exemplo; a intensidade do acontecimento puro, livre de um caráter demasiado estetizante, a
intensidade não se liga apenas a circunstâncias tensas, mas toda e qualquer que coloque o homem
numa posição de reflexão a respeito do cenário no qual está inserido. No caso do conto fantástico
se utilizará do elemento sobrenatural para gerar a quebra da normalidade cotidiana, na maioria das
vezes. Definições e conceitos esses presentes na obra Filosofia da composição, de Edgar Allan
Poe (2008). Além do que já foi mencionado, ainda se destaca de maneira notável a precisão com a
qual Poe nos descreve a criação dos ambientes (cenários), nos contos e nas baladas em análise.
Analisamos o gênero fantástico baseando-nos em fundamentações teóricas de alguns autores já
muito consagrados no estudo do gênero como Todorov (1975), Furtado (1980), por exemplo, e
outros mais recentes, mas que agregam novos traços aos conceitos antes formulados como
Batalha (2011). Partiremos, agora, para a análise comparativa dos textos de modo a ressaltar como
as temáticas da mulher, do mal e da morte relacionam-se nas narrativas em foco, e quais são as
implicações provenientes dessas conexões.
Iniciemos nossa discussão pelas baladas de Herculano: Leonor e A Noiva de Sepulcro. Na
primeira, a mulher é um ser que provoca a transgressão da lei divina, no momento em que
blasfema contra Deus, ao saber que seu amado havia morrido em combate. Essa perda a deixa, e
neste instante, profere palavras de acusação contra Deus e impróperios. Ela é punida com a morte
por se opor ao divino. Vale a pena chamar a atenção para o fato de que as mulheres são
retratadas, muitas vezes, como os seres que se guiariam mais pelos impulsos do que pela razão,
tudo isso baseado na crença de que a mulher por ter sido criada a partir da costela do homem
estaria mais ligada ao carnal do que homem, que foi feito por Deus a partir do barro: "A ratio seria
virilis: a razão não é senão um princípio masculino; quanto ao feminino, identifica-se ao appetitus,
ao desejo." (DUBY, 2001, p.48). O sentido final é que a mulher apesar de ser dotada de razão, sua
parte animal, instintiva prevalece enquanto no homem prevalece o racional, portanto, o espiritual.
Tal conclusão origina um imaginário misógino, visto que a propensão ao erro seria intrínseca à
natureza feminina e, por isso, falharia e conduziria os homens à falha também. Visão está muito
propagada pela Igreja Católica, através dos padres, que perdura até hoje na mentalidade cristã
ocidental. Logo, a mulher é portadora do Mal, em certa medida, já que blasfema contra Deus, mas
não é associada à figura diabólica diretamente. No entanto, podemos entendê-la dessa forma se
pensarmos no Diabo como o rebelde, aquele que se opõe a vontade divina.
Em Noiva de Sepulcro, do mesma modo, a mulher é vítima. É descrita como alvo constante dos
desejos de D. Sueiro, que fazem-no matar a esposa Dona Dulce para ficar com Elvira a quem tirara
a pureza. Tempos depois, mata-a envenenada por desejar uma misteriosa dama. Ao longo da
narrativa, fica claro que todo mundo sabe ou suspeita dos crimes que o fidalgo cometeu, no
entanto, ninguém o confronta. A justiça vem por meio da figura feminina de modo sobrenatural,
porque as mulheres que ele matara, voltam em formas de espectro para puni-lo por suas ações.
O sobrenatural aparece por meio da mulher que quebra a normalidade cotidiana, proporcionando,
assim, o fantástico. Ela aparece como a portadora da morte, do castigo, sem, porém tornar-se má,
porque a morte e o castigo afligido a D. Sueiro nada mais é que a justiça divina como castigo para
os crimes cometidos por ele. A mulher, portanto, é o instrumento de justiça/vingança. Sua figura em
decomposição causa horror, nojo, medo etc., porém o mal por ela causado é exclusivo para o seu
carrasco. Outro aspecto muito interessante é que por meio da figura feminina que se estabelece a
normalidade e a quebra do real, dessa forma, seria tanto um dos elementos centrais para o gênero,
além de abranger a morte e o mal. Apesar de sofrer o castigo e de se tornar uma alma penada que
é perseguida pelos espectros das mulheres que matou, D. Sueiro não sofre nenhuma sanção
enquanto estava vivo, de modo que podemos afirmar que as suas ações seriam frutos do desejo
despertados pelas mulheres. Pensamento este adensado ao longo de séculos pela Igreja Católica
que punha na mulher a culpa de levar o gênero masculino a pecar pela luxúria. "Mas percebe-se
que é mais pesado na mulher o peso da sensualidade, isto é, do pecado, dessa 'parte animal' cujo
controle cabe à razão, a qual predomina no macho..." (DUBY, 2001, p.53).
O conto A dama pé de cabra, de Herculano, traz alguns pontos de contato com as baladas
mencionadas, mas, neste a mulher aglutina os dois papéis, o de vítima e o de transgressora
(pecadora), devido à complexidade de sua construção que coloca a mulher tanto como vítima de
um castigo da Igreja Católica, já que o crime do adultério seria um dos pecado mortais condenado a
alma ao inferno. Ao mesmo, na história, a mulher não tinha notícias de seu marido há e o tinha
como morto, portanto, era inocente. A narrativa revela que a dama pé de cabra é o espírito desta
mulher adúltera que habita os penedos e seduz os homens. Entretanto, ela não exerce diretamente
um poder maligno, apesar de encantar suas vítimas, pois, antes de tudo, pede ao pretendente que
aceite suas condições de não mais se persignar ou benzer e estabeleça de fato um pacto com ela.
Assim, o contrato amoroso parte das duas partes, que são livres para escolher.
Além de toda tensão colocada em torno da figura feminina, há o relativismo do que pode ser
considerado mal, de acordo com a perspectiva abordada e a quem está sendo beneficiado pelas
ações praticadas pela dama pé de cabra. Por exemplo, enquanto D. Diogo mantém o juramento
feito, ele a dama e filhos vivem bem, mas quando o pacto é rompido, o mal irrompe brutalmente
sobre todos que moram na casa, inclusive os animais de estimação. Mas se pensarmos pela ótica
religiosa dir-se-ia, que no momento em que o fidalgo descobrira que a esposa tinha os pés forcados
como de cabra, deveria ter se separado dela, pois isto confirmaria uma ligação direta a Satanás. A
mesma dubiedade de caráter se mostra presente quando a dama das penhas %u2013 depois pé
de cabra %u2013 atendo ao filho, D. Inigo que a procura em busca de auxílio para resgatar seu pai
das mãos dos mouros. As ações dela são benéficas para com ele, na medida em que o acordo
estabelecido é seguido.
Temos ainda a imagem da bruxa e da feiticeira medievais aglutinadas na mesma personagem, o
que representa ou reforça as possibilidades de intervenção para o bem ou para o mal, pois a
primeira seria mais ligada ao Diabo, por isso maléfica, e a segunda mais direcionada às práticas
curativas. Na verdade, há alguns elementos que ligam a dama tanto à bruxa quanto à feiticeira. A
primeira voaria em uma vassoura, teria pacto com o Diabo, praticaria seus atos junto com outros
bruxos e não usaria nada além da sua força de vontade ou dos poderes advindos pelo pacto
diabólico, enquanto a segunda se vale de conhecimentos sobre ervas e poções, de encantamentos
e segue rituais. A feiticeira usaria seus poderes dependendo de suas intenções de maneira
benéfica ou maléfica ao passo que a bruxa causaria apenas mal. (NOGUEIRA, 2000).
No conto A igreja profanada, de Pinheiro Chagas, a mulher é representada mais uma vez como
uma rebelde perante as leis da Igreja Católica. Primeiramente, por causa da relação incestuosa que
Inês mantém com seu irmão, um interdito presente em muitas culturas, segundo Bataille (1957).
Depois, ocorre a profanação do templo, referente ao título do texto, justamente porque Inês, seu
irmão e alguns amigos invadem uma igreja na véspera de Natal para profanar o local sagrado com
uma festa devassa. A consequência desses atos vis, segundo a visão religiosa, tem uma punição à
altura, os transgressores recebem como castigo uma eternidade de penitência, pois ficariam para
sempre dentro da igreja profanada no fundo do mar, cantando salmos de penitência. À mulher cabe
o papel de tentadora, porque sua figura apesar de assustadora, no contexto descrito, consegue
seduzir com sua voz os navegantes que velejam por aqueles lugares, como uma sereia.
Já no conto A torre de Caim, de Rebelo da Silva, a mulher aparece apenas como vítima de todo
mal, representado pela desavença entre famílias, gerando ódio e morte. Como o título do conto
anuncia, a história trata da relação entre dois irmãos muito próximos, quando um deles é morto por
um vizinho da família, aquele que sobrevive jura vingança. A narrativa toma um rumo bem tenso,
quando descobrimos que o filho do cavaleiro morto, D. Moço Ansures, apaixonara-se pela neta do
assassino de seu pai, a linda Ausenda. O Caim representaria nessa obra muito mais do que aquele
que tem sua oferta rejeitada e é marcado/amaldiçoado, porque na narrativa portuguesa D. Inigo faz
declaradamente um pacto com o Diabo - arquétipo universal do mal - para vingar a morte de seu
querido irmão. Segundo Consiglieri, "diabo pode apresentasse por vontade própria, mas quando o
faz é com propósitos maléficos ou pode ser invocado e beneficiar de alguma forma que o chamou.
Toda essa solicitude seria com a intenção de roubar as almas de Deus ou desviá-las de seu bom
caminho. (CONSIGLIERI, 1988, p.243).
Ressalta-se que a tentação na qual D. Inigo efetiva de fato o pacto diabólico acontece no ambiente
do deserto, uma clara alusão ao texto bíblico dos Evangelhos de Mateus e Lucas, nos quais é
narrada a tentação de Cristo, que resiste ao mal, porém, o nosso personagem ansiava por este
poder maligno para ser capaz de concretizar a sua desforra contra aqueles que lhe tiraram um dos
seus entes mais queridos. Além do envolvimento do sobrenatural negativo, temos, no fim do conto,
o enlace amoroso entre as almas de D. Moço Ansures, morto de tristeza pela amada. Os dois
agonizam na eternidade juntos, por mais que o cavaleiro negro estivesse ali perto tentando impedir
a união. Portanto, a mulher não é aqui nada além de vítima da vingança.
O conto A torre derrocada, de Osório de Vasconcelos, segue o mesmo fio temático dos anteriores,
a donzela mais uma vez blasfema contra o divino ao preterir a figura do amor de Deus pelo seu
amor terreno. Rosalinda cai na mesma loucura de Leonor ao blasfemar contra o Eterno, mas a
sentença recebida parece ser pior do que a própria morte, porque a maldição imposta não acaba
nela, visto que, quando é transformada em sereia, seu papel é semelhante ao de Inês: desviar os
marinheiros de sua rota e conduzi-los à doce morte. Assim, o crime cometido contra a
religião/divino pode gerar muitoque a própria morte em si, mas também a morte de outras pessoas
inocentes. Logo, a figura feminina é colocada tanto como transgressora de regras, sejam elas
socioculturais e divinas, quanto aquela que sofre o castigo sem ter cometido nenhum ato mau ou
ruim, ou ainda, ser utilizada como instrumento de justiça divina, além de ser uma tentação para as
boas almas.
Nos escritos da segunda metade do século XX, começamos por A noite de Walpurgis: a mulher é
apresentada como uma personagem devota e seguidora dos preceitos cristãos, apesar do narrador
constantemente associá-la a uma bruxa, além do mal ser representado pelo seu arquétipo, o diabo.
Apesar de se tratar de uma narrativa moderna, o escritor utiliza o recuo temporal para fundamentar
sua fala, o interessante a ser ressaltado é o impulso de curiosidade da mulher que a conduz até o
local onde será realizado o encontro dos bruxos e bruxas com o seu mestre, o Diabo. Leve-se em
consideração que a Maria dos Anjos não é colocada como uma mulher comum perante os olhos da
sociedade, já que enquanto todo mundo se esconde em suas casas, ela resolvi ir ao encontro dos
bruxos, além de ela não se deixar cortejar pelos rapazes mais conquistadores. Outro ponto muito
relevante é a representação do Diabo não como um ser horrendo e repugnante, e sim como um
homem belo, charmoso. Há quebra da imagem tradicional do diabo com a qual a igreja católica
amedrontou os fiéis baseando-se nesta caricatura infernal: "A iconografia popular medieval do
Diabo era: cornos na figura de um homem, de feições medonhas ou grotescas, forma de um bode,
sua encarnação favorita. E uma longa cauda coberta de pelos." (CONSIGLIERI, 1988, p.241).
Em A reencarnação deliciosa, segunda narrativa moderna, a mulher surge como um ser miserável,
representado pela figura da velha mendiga. Depois vemos como o sobrenatural aparece
curiosamente através do sonho, enquanto manifestação dos conteúdos reprimidos pela consciência
(FREUD, 2000), mas o que acontece é uma terceira explicação, isto é, o suprarreal que parece ser
positivo no primeiro momento, mas se manifesta maligno posteriormente, já que não era um anjo
que falara com a velha. A mulher mais uma vez é pintada como aquela que é facilmente enganada
pelos desejos e vontades terrenas, justamente por não se utilizar da faculdade da razão, assim
como o homem, pensamento esse que se coaduna com a visão misógina pregada por muito tempo
pela Igreja Católica e como afirma Duby (2001). Outro aspecto significativo é o reconhecimento da
mulher reencarnada como uma Eva.
Nas duas últimas narrativas modernas: O físico prodigioso e Peregrinação, a mulher apresenta-se
em papeis bem distintos, pois enquanto a primeira segue o mesmo eixo temático das outras
narrativas que fazem um recuo temporal e se passam na Idade Média ou em tempos mais antigos,
a segunda retrata de forma mais paradigmática o fluxo da vida moderna que é mais caótica e
muitas vezes sem nenhuma lógica aparente. No conto de Jorge de Sena, as mulheres são vistas
de modo geral como bruxas que exploram os homens até que não sejam mais úteis e os matam ,
percebemos até certa animalização do comportamento feminino. Esta postura de se utilizar do
homem e depois se livrar dele aparece em histórias muito famosas na Antiguidade grega como a
ilha de Circe. Apesar de, no conto, o físico prodigioso ser quem tem um pacto com o Diabo, mas
que não fora feito por ele, e sim por sua madrinha, é significativo também que o próprio Diabo
parece se valer da figura feminina para satisfazer seus desejos.
Nos escritos de Almeida Faria, a mulher liga-se à morte, mas não de uma maneira conciliadora,
porque parece mais um fardo, um tipo de maldição que ela tem que suportar até que seja liberta
por meio do amor. Logo após, aquela que era conhecida por causar sofrimento passa a ser vítima
dele, levando em consideração todos os percalços gerados por seu amado.
Em suma, percebemos ao longo da nossa pesquisa como os autores do Romantismo e
Modernismo tratam a relação recorrente entre a mulher, o mal e a morte. Como há pontos de
contato e afastamento, mas que de uma maneira geral a visão da cultura ocidental é muito
influenciada pelo passado conservador e misógino, permanecendo quase a mesma, sofrendo
poucas alterações ao longo da história, o que embasa o comportamento preconceituoso com a
mulher adotado por muitos hoje em dia.

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