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FACULDADE DE LETRAS
Belo Horizonte
2018
Monalisa Cristina Teixeira
Belo Horizonte
2018
Agradecimentos
Aqueles a quem dirijo meus mais profundos agradecimentos não precisam nem sequer ser
nomeados.
Epígrafe
Tendo em vista a crescente relevância dos estudos feministas e a expansão das linhas de
pesquisa em Literatura e Gênero, este trabalho busca estabelecer um paralelo entre a figura da
acabadora, protagonista do romance Accabadora, de Michela, Murgia com a bruxa histórica,
objeto de perseguição da Inquisição Católica, tomando como base referencial a obra Calibã e
a Bruxa: Mulheres, Corpo e Acumulação Primitiva, da historiadora Silvia Federici. Para tal,
examinaremos o romance e o texto histórico, perpassando as particularidades de abordagem
deste último, para, posteriormente, estabelecer as semelhanças entre os objetos de estudo.
Parole chiavi: letteratura italiana; letteratura e genere; Silvia Federici; Michela Murgia;
strega.
Sumário
1 Introdução…………………………………………………………………………………...7
2.2 O Corpo…………………………………………………………………………………...12
2.3 A Mulher………………………………………………………………………………….14
4 A Bruxa…………………………………………………………………………………….24
6 Considerações finais……………………………………………………………………….40
7 Referências bibliográficas………………………………………………………………...42
7
1 Introdução
Ao longo dos séculos e até onde vai nossa memória comum, o papel social da
mulher sempre esteve atrelado a um lugar de subordinação. Poucos são os nomes femininos
que nos vêm à memória quando se fala em grandes personalidades da história da humanidade.
Temos, como se sabe, vários exemplos de mulheres com as mais diversas ocupações que se
destacaram e estão no imaginário popular como figuras de referência, no entanto, a operação
que vemos acontecer frequentemente é a de apagamento de grandes mulheres que
contribuíram para a arte, a literatura, a matemática e as ciências de um modo geral.
Silvia Federici, em seu livro Calibã e a Bruxa: Mulheres, Corpo e Acumulação
Primitiva, traduzido recentemente pelo Coletivo Sycorax, nos conta sobre a história do corpo,
em especial o da mulher, desde a Alta Idade Média até o fim da Caça às Bruxas na Europa,
por volta do século XVII. Esta obra nos permite entender como o papel da mulher foi
mudando de acordo com as necessidades de um modelo econômico cada vez mais ganancioso
que conduziu o mundo ao capitalismo configurado como conhecemos hoje.
De acordo com a autora, até certo ponto da história, as mulheres tinham
autonomia e até mesmo algum poder, sendo elas, majoritariamente, as conhecedoras da
“medicina”: atuando como curandeiras, ganhavam respeito da população, o que lhes garantia
certo status social. A Caça às Bruxas teria sido, então, um meio de controlar o poder que essas
mulheres possuíam, já que ofereciam ameaça tanto à Igreja Católica, cuja doutrina monoteísta
se via em risco, caso as crendices/superstições refletidas na atuação das curandeiras
ganhassem força, quanto aos Estados, entre outros fatores, graças aos seus conhecimentos de
ervas medicinais que lhes permitiam contribuir para o controle de natalidade, prática
perseguida durante as crises populacionais que ocorreram na Europa (após a Peste Negra e em
decorrência da carestia). Federici nos mostra como se criou o mito da bruxa e como, graças à
Santa Inquisição, as mulheres passaram, em definitivo, para o lugar subordinado que,
posteriormente, as levou à invisibilização.
Sempre com a temática da mulher em primeiro plano, Michela Murgia, que em
2009, publicou o romance Accabadora, em que conta de Bonaria Urrai e Maria Listru, mãe e
filha, habitantes de um vilarejo (fictício) no interior da Sardenha. Com um olhar literário,
muito mais sutil do que aquele teórico de Federici, aborda temáticas delicadas, como adoção,
relação mãe e filha e eutanásia.
8
À data da publicação, a autora, que vivia nos Estados Unidos desde 1967, se
encontrava na Nigéria, onde ensinava Filosofia Política e Estudos Internacionais na
Universidade de Port Harcourt, o que lhe permitiu presenciar uma operação de cercamento de
terras e destruição das relações comunais – implementadas pelo governo como resultado das
negociações com o Fundo Monetário Internacional para o controle da crise da dívida – muito
semelhantes àquelas do capitalismo nascente por ela e Fortunati descritas. Todos esses
acontecimentos, somados ao seu retorno aos Estados Unidos, pois a chegada da crise às
universidades fez com que ela não conseguisse mais se sustentar, levaram-na a retomar seus
estudos sobre a acumulação primitiva e sobre a importância do corpo feminino para a
viabilização deste fenômeno.
Esses estudos culminaram em sua obra mais famosa, Calibã e a Bruxa: Mulheres,
Corpo e Acumulação Primitiva, publicada originalmente em inglês pela editora Autonomedia,
em 2004, na qual Federici nos conta o percurso da mulher enquanto sujeito social ao longo
das mudanças políticas e econômicas na Europa Medieval e Moderna. Com grande enfoque
no período da Caça às Bruxas, portanto entre os séculos XV e XVII, a historiadora nos
apresenta o processo que atravessa o continente europeu na transição do feudalismo ao
capitalismo.
Apesar de concentrar sua narrativa nesse período, ela nos traz, também,
informações de períodos anteriores, como algumas observações sobre a organização da igreja
no século XII e sobre os crimes de heresia, julgados e condenados em tribunais religiosos
entre os séculos XIII e XV, que são de fundamental importância para a compreensão das
regiões em que se deram as perseguições mais intensas às mulheres acusadas de bruxaria.
10
Cabe ressaltar, porém, que houve resistência por parte da população europeia,
principalmente aquela dos estratos menos abastados, para exigir suas terras de volta, a
diminuição das taxas sobre a produção e produtos agrícolas, bem como uma menor
intervenção religiosa, em especial no tocante às suas vidas sexuais.
1
De acordo com Thomas Hobbes, “o coração [é] apenas uma mola [...] e as articulações apenas muitas rodas”
(apud FEDERICI, 2017, p. 255).
12
2.2 O Corpo
A autora faz largo uso de fontes históricas, citando episódios em que o corpo dos
trabalhadores foi cerceado, liberado, explorado, novamente cerceado e assim sucessivamente,
sempre de acordo com a necessidade dos governos e da Igreja. É interessante observar aqui
que a assim chamada moral cristã é, frequentemente, muito menos relevante do que se
costuma imaginar para esse período, podendo-se encontrar exemplos em que “até mesmo a
Igreja chegou a ver a prostituição como atividade legítima (...) [pois] provia um antídoto
contra as práticas sexuais orgiásticas das seitas hereges, e era um remédio para a sodomia”
(FEDERICI, 2017, p. 106). Isso aconteceu entre 1350 e 1450, período em que muitos Estados
regulamentaram a prostituição em resposta a ataques proletários, com intenção de tranquilizar
os jovens revoltosos, dando-lhes acesso a um privilégio até então restrito a homens mais
velhos. O apoio da Igreja tinha como uma de suas motivações a visão de que a prostituição
seria uma “cura para a sodomia” (homossexualidade). Novamente, podemos observar que isso
se deu não por questões morais, mas sim devido à crise demográfica que acometeu a Europa
depois da Peste, antes disso a homossexualidade era amplamente praticada em algumas
cidades, como Florença e Pádua (ibidem, 2017).
mágico (as especificidades desse pensamento serão discutidas mais adiante); em segundo
lugar, que a crença era um empecilho para o desenvolvimento do capitalismo.
De acordo com Federici (2017, p. 257), “o substrato mágico formava parte de uma
concepção animista da natureza que não admitia nenhuma separação entre a matéria e o
espírito, e deste modo imaginava o cosmos como um organismo vivo”, ou seja, o
mecanicismo teorizado por Descartes e Hobbes, que terminou sendo de grande interesse para
os capitalistas, dá origem a um grande embate filosófico quando toca os trabalhadores, pois
suas crenças religiosas vão no sentido oposto.
Para além disso, esse pensamento foi a base para o estabelecimento da relação
corpo-trabalho, assim como havia já acontecido com a terra durante os cercamentos e tomadas
de terras dos camponeses na Idade Média: o trabalho (produção) passava a ser considerado
algo dinâmico, enquanto o corpo era cada vez mais visto como algo estagnado, a menos que
se aplicasse sobre ele uma força – como na Lei da Inércia, de Isaac Newton. De acordo com
Federici, segundo essa lógica, o corpo deve ser cultivado, assim como a terra, para produzir os
resultados desejados. A dificuldade encontrada foi cultivar os corpos como somente corpos
fornecedores de trabalho antes da destruição do pensamento mágico, que permitia que esses
trabalhadores dispusessem de uma concepção completamente diversa de si próprios. Portanto,
tornou-se necessária a erradicação da crença mágica que interfere diretamente nos interesses
da classe dominante, e tal eliminação passa diretamente pelo terceiro pilar do livro: a mulher.
14
2.3 A Mulher
Dois exemplos desse apagamento mencionados por Federici são as obras de Karl
Marx e Michel Foucault. Em O Capital, Marx, não leva em consideração o trabalho
doméstico e reprodutivo não remunerado realizado pelas mulheres porque, em tese, este não
contribui para fazer girar a economia. Segundo a autora, porém, sem a reprodução da força de
trabalho e da manutenção da vida doméstica realizada pelas mulheres, o capitalismo nem
sequer poderia existir. Outra informação que não é levada em consideração na obra marxiana
é o fato de que grande parte da riqueza gerada e acumulada no início do capitalismo foi fruto
de um trabalho igualmente não remunerado – o escravo –, exercido, inclusive, por mulheres.
Foucault, por sua vez, é acusado por movimentos feministas de não só não fazer o recorte de
gênero nas suas análises sobre a sexualidade, o corpo e o poder, como de se apropriar de
conhecimentos gerados pelo movimento. Em consonância com as feministas, Federici afirma
que a análise de Foucault é tão voltada para o modo como se desdobra em muitos o poder
investido no corpo, que nem sequer critica as suas origens, como se manifesta ou como é
exercido.
Portanto, podemos inferir que a intenção da autora é a de mostrar como esse outro
lado da história foi fundamental e as razões pelas quais foi colocado de lado. Ao longo da
obra relata como se criou um terror ante o que era feminino e tudo o que lhe concernia à
medida que as mulheres demonstravam resistência às mudanças na sociedade circunstante.
Este, como se pode imaginar, era o objetivo maior da Caça às Bruxas.
15
Partindo da Idade Média, por volta do século XII, com o cercamento de terras
comunitárias e o estabelecimento de um sistema monetário, vemos que as primeiras
prejudicadas são as mulheres pertencentes à classe servil. Se até então elas tinham alguma
autonomia no que dizia respeito à sua capacidade de sobreviver e alimentar os filhos por conta
própria, neste ponto, a situação começa a mudar: o cercamento de terras tirou o direito das
mulheres de serem proprietárias de uma parcela da terra que cultivavam – o que antes era
permitido a todos os trabalhadores, independentemente do gênero, não lhes incluindo, porém,
no sistema de trabalho assalariado.
Essa redução de autonomia foi a razão pela qual, algum tempo depois, já sem o
direito ao cultivo de subsistência, vemos que uma grande porcentagem do êxodo rural
europeu é composta por mulheres. Migrando para as cidades por falta de condições de
melhorar sua qualidade de vida nos campos e ali encontrando uma situação igualmente hostil,
observam-se dois fenômenos: um é o da formação de guildas (associações de pessoas com
interesses comuns que visavam proporcionar assistência e proteção aos membros), das quais
várias mulheres faziam parte, sendo algumas formadas exclusivamente por mulheres; o outro
é o de crescimento do número de mulheres executando funções que posteriormente se
tornariam “trabalho de homem”, como ferreiras, padeiras, açougueiras, pedreiras, chapeleiras,
cervejeiras, entre outras. Em relação a esse segundo fenômeno, cabe observar que a
obstetrícia no período era praticada quase exclusivamente por mulheres, fossem elas médicas,
parteiras ou sage-femmes (mulheres sábias), sendo até contratadas pelos governos para
atuarem na saúde pública.
É importante ressaltar que foram as mulheres que deram origem aos movimentos
heréticos em todas as suas aparições durante os séculos X e XI e que, em seu interior, elas
desfrutavam de igualdade em relação aos homens, havendo inclusive registros de sacerdotisas
16
e pregadoras, sobretudo entre os cátaros. Essa característica lhes proporcionava tanto uma
grande mobilidade, pois perambulavam para levar a todos suas doutrinas, quanto o respeito
desfrutado por uma autoridade religiosa. Os cátaros, aliás, é importante que se diga, tinham
como principal divindade de culto uma figura feminina, a Senhora do Pensamento.
No entanto, também no século XIV, a Europa teve de enfrentar a Peste Negra, que
dizimou de 30 a 40% de sua população total. Com a crise demográfica e todas as outras
consequências sociais trazidas pela epidemia – como o aumento do preço para se contratar um
trabalhador ou a pouca importância creditada às convenções sociais, já que se podia morrer a
qualquer momento –, toda a organização europeia foi modificada. Assim, percebe-se que,
indiretamente, a peste foi responsável por um rearranjo das classes sociais e teve forte
influência sobre a implementação de um novo sistema econômico, o capitalismo, e de novas
ideias.
sentido que deixaram de existir consequências para o(s) criminoso(s) – frequentemente eram
realizados em grupo – caso a vítima fosse pobre; a consequência, como se sabe, recaía sobre a
mulher, que, muitas vezes, tinha como única opção mudar de cidade e entrar para a
prostituição – esta sim, considerada crime. Além de tais medidas, em princípios do século XV,
deu-se início a uma pregação contra o celibato e à redução do número de casamentos
realizados. A necessidade de mão-de-obra fez com que a Igreja rapidamente se recordasse do
“Crescei e multiplicai-vos” e o celibato, o uso de contraceptivos e abortivos, bem como o
abandono de crianças, foram criminalizados.
Essa espécie de eutanásia religiosa envolvia uma série de práticas ritualísticas, tais
como remover qualquer figura, imagem ou outro tipo de representação sacra do ambiente em
que estivesse o moribundo ou seu corpo – medalhas de batismo, por exemplo, para evitar que
os santos, protegendo a alma do doente, impedissem que ele morresse. De acordo com Martín
2
Segundo Di Rollo (2013), Fill’e anima é uma expressão sarda que designa a condição de uma criança que é
entregue, voluntariamente, por sua família biológica a uma família adotiva que se responsabilizará por ela,
havendo, até mesmo, o consenso da própria criança. Não envolve nenhum procedimento legal/institucional, o
que acaba gerando menos traumas na criança adotada. Importante ressaltar que, de acordo com Fara (2010), a
prática existiu até meados da década de 1970, quando foi introduzido o novo código de direito familiar.
19
Clavijo (2015), a prática durou até meados do século XX, ainda que, desde o Concílio de
Trento (1546 - 1563), já houvesse uma grande redução no número de acabadoras.
Assim, a trama gira em torno de Maria Listru e Bonaria Urrai, sua relação de mãe
e filha – a despeito de a menina continuar a ter contato e relação com a mãe biológica –, o
ofício de acabadora, sua relevância na cidade e a forma como as pessoas dali lidam com a
morte. Cabe dizer que esses pontos principais da narrativa renderam material suficiente para
diversos questionamentos, inclusive de diferentes áreas do conhecimento. A complexidade da
história rendeu a Murgia o prêmio Campiello em 2010 e, algo raro para escritores
contemporâneos italianos, Accabadora foi tema de estudos acadêmicos no âmbito da
literatura3, linguística4, pedagogia5 e antropologia6, realizados tanto em universidades
italianas quanto em universidades estrangeiras.
É relevante dizer que Murgia mantinha um blog, de onde surgiu o seu primeiro
livro, Il mondo deve sapere, de 2006. Além das publicações em que narrava sua rotina como
atendente de um call center, começou a desenvolver um trabalho voltado especificamente para
a questão do gênero e, principalmente, da violência contra a mulher. A escritora reproduzia as
notícias de jornais italianos sobre casos de violência de gênero e as reescrevia, deixando clara
a culpa do agressor e explicitando a posição de vítima da agredida, como no trecho a seguir:
8
“QUERIA DEIXÁ-LO – O homem, Nunzio Calabrese, 27 anos, de Reggio Calabria como a garota, foi preso.
A briga explodiu pouco antes da meia-noite de sexta-feira em um albergue da cidade porque a jovem queria
deixá-lo. Depois da agressão, tanto o namorado quanto o proprietário do hotel acompanharam a soldada ao
hospital. (Todas as traduções são de minha autoria.)
9
“AMEAÇAVA-A. A agressão violenta aconteceu em albergue da cidade durante uma briga causada pelo
próprio Calabrese, incapaz de aceitar a escolha de Maria Rossi de terminar a relação. Depois de tê-la agredido
selvagemente, o homem a teria acompanhado ao hospital junto ao gestor do hotel, mas não sem ter antes roubado
seu cartão de crédito.
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La notizia effettiva viene data solo alla quarta riga, ma ormai sembra trattarsi di un
fatto interno all’ambiente militare: la donna picchiata è una soldatessa di 21 anni che
ha appena prestato giuramento. Apprendiamo che a picchiarla selvaggiamente è
stato ‘il fidanzato’ e che lei si trova in ospedale, dove ‘ne avrà’ (cosa?) per un mese.
Il titoletto del paragrafo successivo riprende la tesi colpevolizzante del titolo:
VOLEVA LASCIARLO. Solo ora il giornalista ci dice che il reato della violenza si
è consumato in un b&b, che lui l’ha derubata dalla carta di credito, che l’ha
accompagnata in ospedale insieme al gestore del b&b e che poi si è dileguato.
Nonostante il contesto violento e prevaricatore dei fatti, le parole fidanzato e
fidanzata vengono ripetute a ogni frase: benché sia stato il giornalista stesso a dire
che la donna aveva troncato la relazione, egli continua a definire il rapporto tra
carnefice e vittima con il linguaggio della relazione amorosa.” 10
Esse é apenas um exemplo de diversos outros que podem ser citados. Tendo uma
demonstração clara do seu posicionamento, podemos partir para uma análise baseada nessa
perspectiva, já que, como dito anteriormente, a literatura pode ser usada como ferramenta
política a partir do momento em que se decide inserir nela traços da realidade que desejamos
mudar, pois
tanto quanto sabemos, as manifestações artísticas são inerentes à própria vida social,
não havendo sociedade que não as manifeste como elemento necessário à sua
sobrevivência (...) São, portanto, socialmente necessárias, traduzindo impulsos e
necessidades de expressão, de comunicação e de integração que não é possível
reduzir a impulsos marginais de natureza biológica (...) a produção da arte e da
literatura se processa por meio de representações estilizadas, de uma certa visão das
coisas (CÂNDIDO, 2014, p. 79-80).
O fato de ser muito assertiva sobre seu posicionamento político nos dá algum
espaço para ler sua obra como uma forma de trazer para debate argumentos que fazem parte
do seu discurso público. Na posição de escritora, colaboradora de jornais italianos, titular de
um quadro na televisão, enfim, uma figura que faz parte da grande mídia, Murgia goza da
possibilidade de se fazer ouvir, ao contrário de tantas mulheres ao redor do mundo.
10
“A notícia real só é dada na quarta linha, mas nesse ponto já parece se tratar de um fato interno do ambiente
militar: a mulher agredida é uma soldada de 21 anos que acabou de fazer seus votos militares. O subtítulo do
parágrafo seguinte retoma o tom culpabilizante do título: QUERIA DEIXÁ-LO. Só aqui o jornalista nos diz que
o crime de agressão foi realizado em um albergue, que ele roubou seu cartão de crédito, que a acompanhou ao
hospital junto com o gestor do hotel e que depois desapareceu. Não obstante o contexto violento e abusivo dos
fatos, as palavras dele e dela são repetidas a cada frase: ainda que tenha sido o próprio jornalista a dizer que foi a
garota a encerrar a relação, ele continua a definir a relação entre agressor e vítima com a linguagem da relação
amorosa.
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obras que retratem mulheres tanto nessa quantidade quanto em relação à complexidade das
personagens. Elas são construídas com subjetividade, tendo cada uma suas próprias questões
internas para além da imagem externa.
Outro ponto de relevância numa perspectiva feminista é que, apesar de todas essas
mulheres se relacionarem com personagens masculinos, eles se reduzem a uma espécie de
pano de fundo. Elas independem deles para que suas vidas aconteçam, apesar das dificuldades
que se apresentam e da dor que a ausência desses homens pode causar.
Tanto Bonaria Urrai quanto Ana Teresa Listru são viúvas, sendo que Bonaria não
se casou com esse homem, o grande amor de sua vida, mas, desde sua morte, manteve o luto e
não quis se relacionar com nenhum outro. Apesar de carregar o sofrimento do amor não
vivido, sua vida não se interrompeu pela falta daquele que deveria ser seu esposo; Ana Teresa,
por sua vez, não apenas se casou, como teve quatro filhas, a quem teve de passar a sustentar
sozinha após a morte do marido, chegando mesmo a trocar a filha caçula – considerada um
erro – pela promessa de ter regularmente algum alimento para si e para as três outras filhas.
Já Giannina Bastíu sofre com a morte do filho mais velho e é descrita como “la
donna più a lutto che avesse mai pianto un morto a Soreni”11 (MURGIA, 2009, p.99). É de
costume dizer que a maior dor que uma mãe pode sentir é a de perder um filho, mas com o
passar do tempo e a aceitação da perda, também ela retoma sua vida normal.
Maria Listru, por sua vez, não tem nenhuma ligação com um personagem
masculino que pudesse implicar grande dor; ao contrário, a sua relação afetiva mais relevante
é com Bonaria Urrai. Nem mesmo o esboço de romance que ela vive com Piergiorgio Gentili
durante sua estadia em Turim é intenso a ponto de fazê-la sofrer quando retorna à Sardenha,
apesar de muito importante na construção da sua subjetividade ao longo da narrativa.
A respeito das relações, como mencionado, a relação de Maria Listru com Bonaria
Urrai é o ponto principal do enredo. Maria foi criada por ela, mas essa relação de mãe e filha é
11
“A mulher mais de luto que já chorou um morto em Soreni.”
23
particular porque escolhida: Bonaria escolheu Maria como sua filha, ela a percebeu. Depois
que Bonaria tomou Maria como sua fill’e anima, a garota não foi separada de sua mãe
biológica, mas entre elas não existia um vínculo igualmente sólido. Entretanto, ao descobrir
que Bonaria é uma acabadora, Maria decide sair de casa, por considerar a prática imoral e
inaceitável o ato de tirar a vida de alguém, apesar das circunstâncias em que o ritual ocorria e
com a aceitação de toda a comunidade. É interessante observar que, anos depois, quando
retorna à casa de Bonaria Urrai, ela mesma acaba desempenhando um papel muito
semelhante: convencida de que a mãe continuava viva, apesar de tão debilitada, devido à
culpa por ter concordado em participar da morte de uma pessoa saudável, ela procura Andría
Bastíu para que ele vá visitar Bonaria e perdoá-la. Quando o rapaz finalmente aceita seu
pedido, Maria tira a vida da mãe e põe fim ao seu sofrimento.
Assim, percebemos que essas duas mulheres constroem um laço sólido de afeto e
respeito. Bonaria forma a mulher que Maria viria a ser de uma maneira muito curiosa, já que
ao longo da narrativa ela quase não fala e, quando o faz, é sempre muito enigmática – diversas
vezes Maria só entende algo que a mãe lhe diz anos depois. Apesar disso, é bastante claro que
as duas são muito parecidas em diversos aspectos e, à medida que Maria cresce, a semelhança
aumenta. O entendimento de Maria a respeito das poucas palavras de Bonaria se expande à
medida que se vê forçada a lidar com as agruras da vida. Junto com esse esclarecimento, vêm
a retomada do laço familiar, a compreensão sobre o ofício da acabadora e a aceitação de seu
legado, o que se dá apenas nas últimas páginas da trama.
Murgia cria uma narrativa complexa e rica em detalhes bastante delicados que lhe
deram um reconhecimento do qual hoje usufrui e, a nós, a possibilidade de explorar as
temáticas abordadas ao longo da história. Porém, antes de seguir adiante na análise de
Accabadora, vamos conhecer um pouco mais sobre a bruxa, fundamental pilar do estudo aqui
proposto.
12
“A acabadora sarda, a última mãe, a mulher que, em nome da coletividade, intervém junto aos agonizantes,
acelerando seu fim, aquela que concede a paz e se faz testemunha da passagem do assistido a uma outra vida.”
24
4 A Bruxa
Como vimos no capítulo sobre Calibã e a Bruxa, no fim do século XIV e início do
século XV, a legislação começou a convergir para o que posteriormente seriam algumas das
principais acusações contra as bruxas. Antes mesmo da existência da concepção de bruxa, a
Igreja já demonstrava certo receio em relação às mulheres que dispunham dos seus corpos e,
sobretudo, de sua sexualidade, como nos ensinam os estudos de Federici e suas referências às
pregações católicas contra o suposto poder de controlar os homens através do sexo.
De acordo com Silva (2012) Graças aos mitos pagãos ligados, em especial, à
mitologia grega, egípcia e suméria, a figura da mulher era frequentemente associada à
feitiçaria. Ainda se mantinha a concepção dos cultos ancestrais que relacionavam o feminino
à escuridão da noite, ao mistério da lua (relacionada aos ciclos do próprio corpo feminino) e à
frequente correlação das divindades femininas pagãs com o mundo dos mortos. A historiadora
Nereida Soares da Silva (SILVA, 2012) cita Ísis (Egito), Isthar (Mesopotâmia) e Hécate, que
eventualmente aparece referida como Ártemis (Grécia), como deusas feiticeiras. Apesar de
cada uma delas ter domínios não compartilhados com as outras, as três são referenciadas
como deusas noturnas, ambíguas, ligadas à lua e ao reino pós morte.
Os ditos movimentos heréticos, presa principal da Inquisição antes das bruxas,
eram frequentemente considerados hereges por cultuarem alguma dessas deusas ou, se não
elas, alguma outra nelas inspirada, como pudemos ver com os cátaros, que cultuavam a
“Senhora do Pensamento” (FEDERICI, 2017, p. 83). Outro ponto relevante ressaltado por
Silva (2012) é a constante associação do feminino ao noturno, ao desconhecido, algo que não
se pode acessar. Cabe evidenciar que essa foi uma operação que durou mais de um século,
com o objetivo de gerar terror na população contra as mulheres. Como nos mostra Federici,
foi graças a esse artifício de marginalização da mulher como sujeito social, a seu isolamento,
à destruição de práticas exclusivamente femininas e à construção da “mulher ideal” que hoje
conhecemos – “passiva, obediente, parcimoniosa, casta e de poucas palavras” (FEDERICI,
2017, p. 205) – que a Inquisição teve grande êxito em transformar a sage-femme na bruxa
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temida e perseguida, eliminando assim qualquer risco de resistência que essas mulheres
pudessem porventura opor aos lugares de poder.
Essas informações são o básico para a compreensão do que é a bruxa, afinal.
Vemos se formar o esboço de quem é essa figura-referência para as mulheres que não seguem
os desígnios da santa Igreja, que se comportam como os pontos fora da curva. A constante
comparação da mulher com a noite e com a lua sinaliza o medo de um certo mistério que a
circunda, algo que pelo homem é desconhecido.
Carlo Ginzburg, historiador que se dedica a pesquisar o desenvolvimento de
micro-culturas agrárias na Idade Moderna, célebre pela obra Os andarilhos do bem (publicado
originalmente em 1966 pela editora Einaudi), onde investiga os cultos de comunidades rurais
que foram interpretados como bruxaria pela Inquisição, culminando na perseguição das
referidas populações. Posteriormente investigou um caso inquisitorial específico sob as já
mencionadas condições de culto, cujos resultados foram apresentados em O queijo e os
vermes (publicado pela mesma editora em 1976). O autor demonstra a relação das supostas
praticantes de bruxaria com deusas pagãs, estabelecida tanto pelos inquisidores quanto pelas
acusadas, no seguinte trecho:
Nas suas instruções aos bispos, Regione de Prüm (morto em 915) condena,
juntamente com várias outras crenças supersticiosas, as das mulheres que, iludidas
pelo diabo, acreditam cavalgar à noite com Diana 13, deusa dos pagãos, e o seu
cortejo de mulheres, em direção a lugares remotos (...).
Não há dúvida de que as cavalgadas noturnas das mulheres adeptas de Diana são
uma variante da “caça selvagem”; e explica-se assim a espantosa presença de Diana,
“deusa dos pagãos”, entre esses mitos populares - identificação erudita, na realidade,
de inquisidores teólogos, pregadores, facilitada por algumas analogias objetivas
(GINZBURG, 1988, p. 62-63).
Para além das características já mencionadas, existe também o medo que a mulher
gera. Por milênios, quem dava a vida, a cura e a morte era a mulher, não somente através da
gestação e amamentação, mas também pelo uso de ervas, como retratado pelos depoimentos
recolhidos pelo pesquisador Sandro Oddo, em Bagiue: Le Streghe di Triora - Fantasia e
Realtà (ODDO, 2016). Segundo Federici (2017), por serem elas as responsáveis pelas
plantações e colheitas, eram elas quem conheciam o medicamento e o veneno; eram também
elas que ajudavam umas às outras na hora do parto e que tratavam do corpo daqueles que
morriam, bem como dos rituais que se seguiam ao óbito.
13
Lembrando que no sincretismo, Diana é a correspondente romana à helênica Ártemis, deusa-virgem da lua, da
noite e da caça. De acordo com a tradição, ela vagava pelas matas acompanhada de suas sacerdotisas, mulheres
caçadoras, também virgens, que se dedicavam exclusivamente a segui-la (Ver BERMEJO BARRERA, José C.;
FERNÁNDEZ CANOSA, José. A. 1997).
26
Por lidar constantemente com essa relação dicotômica entre vida e morte, cura e
doença, bênção e maldição, colocou-se em prática todo um artifício para que a mulher
despertasse um sentimento igualmente dual na sociedade. Tanto o horror quanto a sacralidade
parecem se envolver com tudo o que diz respeito ao feminino, mesmo com o grande
crescimento do número de adeptos à religião católica desde o século I, quando esta se tornou a
religião oficial do Império Romano, até o século XIV, por ocasião da publicação de uma das
obras mais cruéis da história da humanidade, Malleus Maleficarum ou O martelo das
feiticeiras.
Essa publicação, escrita pelos inquisidores alemães Heinrich Kramer e James
Sprenger (1484), e autorizada pelo então papa, Inocêncio VIII, trata dos crimes de heresia e
feitiçaria, e descreve minuciosamente como identificar, julgar, torturar e condenar uma pessoa
que pratica a bruxaria, na maioria, mulheres. Na sua Primeira Parte – Das três condições
necessárias para a bruxaria: o Diabo, a Bruxa e a permissão de Deus Todo Poderoso” –, nos
apresenta a Questão VI - Sobre as bruxas que copulam com o Demônio. Por que
principalmente as mulheres se entregam às superstições diabólicas. Este trecho se dedica a
diminuir a mulher física, intelectual e espiritualmente em relação ao homem, e essa
inferioridade seria a razão para que um maior número de mulheres se entregasse à feitiçaria.
Segundo os autores:
Convém notar que esses dois inquisidores não eram os únicos empenhados em
reduzir a mulher intelectualmente. Em um primeiro momento, a criminalização da
prostituição foi um dos maiores problemas que elas tiveram de enfrentar, uma vez que ser
prostituta era razão suficiente para ser condenada por bruxaria, além do poder que os homens
adquiriram sobre as mulheres com esse tipo de medida, já que lhes bastava fazer uma
acusação para que a vida da acusada fosse destruída social e legalmente. Posteriormente, as
leis dos países europeus foram colocando a mulher em um lugar cada vez mais secundário,
27
processo nomeado por Federici de “infantilização legal” (2017, p. 200): perderam o direito de
realizar atividades econômicas por conta própria, de fazer contratos ou representar a si
mesmas em tribunais, chegando a serem declaradas “legalmente imbecis” na França, enquanto
as viúvas alemãs não tinham permissão para gerenciar seus próprios negócios, sendo-lhes
designado um tutor, e não podiam viver sozinhas ou com outras mulheres.
Federici (2017) relata que além dos escritores católicos, muitos filósofos
humanistas, dramaturgos e contrarreformadores compartilhavam a opinião de que as mulheres
eram exclusivamente emocionais, incapazes de se governar, selvagens, esbanjadoras e
luxuriosas, em resumo, inerentemente inferiores aos homens. Graças a essa suposta falta de
comedimento associada à fraqueza de intelecto e de espírito, as mulheres seriam, de acordo
com os inquisidores Kramer e Sprenger, enormes ameaças, uma vez que a maldade dentro
delas toma proporções imensas naquelas que se desvirtuam do caminho de Deus. Neste caso,
faz-se uma comparação da mulher com Eva, capaz de conduzir o homem à maldade por meio
da sexualidade, lembrando-nos sempre de que esse discurso se repete desde antes de existir a
concepção de bruxa. Tal maldade é natural à mulher, mas ao homem é impingida, pois, como
visto no trecho citado, a ele cabe “espalhar a glória magna de Deus”.
Pontificam os inquisidores:
Toda essa lascívia, característica de todas as descendentes de Eva, deveria ter sido
expurgada por Maria: “contudo, no Novo Testamento, há uma mudança do nome de Eva para
Ave (conforme nos diz S. Jerônimo), e todo o pecado de Eva é expungido pela bem-
aventurança de Maria” (SPRENGER e KRAMER, 1993, p. 116). No entanto, por ter sido a
mulher criada a partir de uma costela do peito de Adão, uma costela curva, sua natureza é
incompatível com a retidão do homem e a consequência disso é sua inferioridade na fé:
28
Assim, vemos que o grande esforço da Igreja era o de diminuir tudo o que fosse
relativo ao mundo feminino e que esse esforço foi amplamente apoiado e, pouco a pouco,
introduzido no imaginário comum. No entanto, como é possível que seres tão irrelevantes e
incapazes causassem medo em toda a população de um continente – chegando até a atravessar
o oceano graças à conquista das Américas? Segundo Federici, a razão é que, para evitar a
perda do poder religioso e social, as mulheres tiveram de ser dominadas e silenciadas. Certo,
dentro da lógica capitalista, todos os integrantes das classes mais baixas também foram
dominados, esta não é uma exclusividade do sexo feminino, porém, deve-se levar em conta
que a diferença reside no ponto em que a mulher perdeu qualquer direito ou possibilidade de
autonomia, sendo-lhe proibido até mesmo visitar amigas ou família e sair na rua. Seus corpos
foram institucionalizados, tornando-se máquinas de reprodução da força de trabalho
necessária para sustentar o novo sistema político; caso conseguisse exercer alguma função
remunerativa, seus ganhos eram diretamente repassados ao marido; o controle de natalidade
tornou-se crime e, de repente, algo que foi praticado desde sempre tornou-se o pior crime que
poderia ser cometido, sendo a condenação para uso de contraceptivos ou realização de abortos
ser queimada viva na fogueira. Até mesmo a obstetrícia, desde sempre praticada por
curandeiras, lhes foi proibida, pois sob o regime de Caça às Bruxas as parteiras eram com
frequência acusadas de oferecer os recém-nascidos – em especial do sexo feminino – ao
demônio; simultaneamente, a medicina formal começava a se constituir.
Cada uma dessas prerrogativas são poderes isolados que foram retirados das
mulheres ao longo do tempo e, reunidos e listados, vê-se que não eram tão poucos como
costumamos imaginar. Federici sustenta que foi fundamental para a manutenção do poder a
criação de hostilidade em relação à mulher, seu isolamento e a tomada de seus recursos. Se,
ao longo da história europeia, diversas insurreições populares foram iniciadas ou compostas
por mulheres, o melhor a se fazer, para evitar que isso se repetisse, foi retirar qualquer
possibilidade de elas ainda conseguirem exercer qualquer poder sobre a opinião pública. E
assim foi feito.
29
Viaggio in Sardegna. Undici percorsi nell’isola che non si vede: “le testimonianze sul suo
operato giungono certe almeno fino al 1952, quando nel paese di Orgosolo fu arrestata una
donna accusata di aver praticato questa funzione su uno specifico moribondo”14 (MURGIA
apud SANNA, 2017, p. 107-108).
Levando em conta que, de acordo com Martín Clavijo (2015), o número de
acabadoras na Sardegna esteve em franca queda desde o Concílio de Trento, realizado entre
1546 e 1563, e, como acabamos de ver, Murgia afirma que o último registro de uma
acabadora foi em 1952, podemos inferir que também a Sardenha teria sido submetida a um
intenso processo de Caça às Bruxas, assim como aconteceu na maior parte da Europa entre os
séculos XV e XVII.
Além disso, há outros aspectos que aproximam a narrativa de Accabadora ao
contexto apresentado em Calibã e a Bruxa, sendo o sincretismo religioso um dos mais
notáveis. A relação que Silvia Federici estabelece entre a Igreja e a bruxaria, demonstrando,
inclusive, ter sido a própria instituição a responsável pela descrição de algumas das práticas
mais conhecidas das bruxas, como a realização de sabás e da missa ao contrário, é curioso
observar um desenvolvimento similar na obra de Michela Murgia. A história é ambientada em
Soreni, uma pequena comunidade rural no interior da Sardenha, onde todos são cristãos e
ainda assim a figura da bruxa é central na narrativa, que é permeada de costumes e crendices
populares, superstições que se localizam numa linha tênue entre a religião católica e o
paganismo.
A respeito das tradições e superstições, há muitas delas descritas no romance,
podendo passar despercebidas inicialmente, mas, à medida que se avança na leitura, vai-se
observando que são cada vez mais relevantes. Por se tratar de uma história ambientada num
vilarejo rural, esses hábitos adquirem ainda maior importância, já que, normalmente, não
existem – ou são muito raras – pessoas que desacreditam da tradição, e isso se deve ao fato de
que a religião mantém grupos sociais mais unidos. Em seu livro As formas elementares da
vida religiosa, Émile Durkheim afirma:
(...) vimos que essa realidade, que as mitologias conceberam sob tantas formas
diferentes, mas que é a causa objetiva, universal e eterna das sensações sui generis
que compõem a experiência religiosa, é a sociedade. Mostramos quais as forças
morais que ela desenvolve e de que maneira ela desperta sentimento de apoio, de
proteção, de dependência tutelar que liga o fiel a seu culto. É a sociedade que o
eleva acima de si mesmo (...). Assim se explica o papel preponderante do culto em
todas as religiões, sejam quais forem. É que a sociedade só pode fazer sentir sua
14
“(...) os testemunhos sobre sua atuação, dos que se tem certeza, vão até 1952, quando, na cidade de Orgosolo,
uma mulher foi presa sob acusação de ter realizado esta prática em um determinado moribundo”.
32
Sendo as tradições religiosas tão relevantes, julgo válido dedicar a elas alguma
atenção. Em primeiro lugar, é interessante pontuar a relação da “religião oficial” com as
crendices e superstições de Soreni. Assim como todos os habitantes da cidade, o padre Dom
Frantziscu sabia que ali havia a presença de uma acabadora e, certamente, de quem se tratava.
Entretanto, em momento algum ele interfere ou se posiciona contra esse ofício, o que é
curioso, já que a doutrina católica condena quaisquer tipos de práticas e rituais que estejam
além de seus preceitos.
É interessante observar, também, que, assim como vemos acontecer no nosso
cotidiano, apesar de todos os habitantes de Soreni, até onde se sabe, serem católicos, cultivam
crenças além da sua própria religião. Então, não só o padre compactua de maneira tácita com
a heresia que ali ocorre, como também os próprios fiéis, que, apesar dos dogmas católicos,
dão fé a outras práticas. A questão é que muitas dessas crenças são estreitamente ligadas à
própria fé cristã, como, por exemplo, o pão de bons augúrios feito para o casamento de
Bonacatta, que deve ser oferecido pelos noivos durante o ofertório da missa matrimonial.
Como Maria, a irmã caçula da noiva, destrói o pão e ele precisa ser remendado às pressas para
a cerimônia, Bonacatta chora durante toda a celebração, porque acredita que aquilo trará má
sorte ao seu casamento.
Quello e basta vide Bonacatta vestita di bianco dietro di loro: i pezzi del suo pane
nuziale sparsi sulle piastrelle rosso vino della stanza da letto di sua madre (...). Andò
che, con molto poco senso della scaramanzia, il matrimonio si fece lo stesso, e tra le
lacrime disperate di Bonacatta, il pane fu attaccato provvisoriamente con albume
d’uovo e rimesso qualche minuto nel forno tiepido, perché si saldasse il tempo
sufficiente a far figura nell’offertorio della messa 15 (MURGIA, 2009, p. 49-50).
Outro costume citado é o de deixar as portas abertas para o “jantar das almas” na
noite de todos os santos. Mais uma vez a crença popular está unida à religião católica. De
acordo com o narrado no livro, na noite de primeiro de novembro, todas as casas devem ficar
com as portas abertas – apesar do frio que já se faz presente – e as pessoas devem preparar um
jantar para os familiares mortos, para que eles não lhes façam mal; além disso, nessa noite o
sino da igreja não é tocado. Como se sabe, na doutrina católica, as almas dos mortos não
15
“Isso, e só, foi o que viu Bonacatta, vestida de branco atrás delas: os pedaços do seu pão nupcial espalhados
nas lajotas cor de vinho do quarto materno (...) Então, com muito pouco respeito pela superstição, o casamento
se realizou da mesma maneira, e entre as lágrimas desesperadas de Bonacatta o pão foi provisoriamente
remendado com clara de ovo e colocado por alguns minutos no forno tépido, para que colasse em tempo de
aparecer no ofertório da missa.”
33
vagam pelo planeta; após a morte corporal, crê-se que o espírito vai para o paraíso, o
purgatório ou o inferno, a depender da sua conduta em vida. Ainda assim, todos os cristãos do
vilarejo cumpriam o ritual, que era realizado no dia de todos os santos, dia de uma festividade
católica.
Há também as tradições acerca dos funerais: ao que parece, era comum que
existisse nas casas uma sala específica para a realização de velórios, mas não só, como nos é
relatado: “lui non l’accompagnò nemmeno alla porta, rimanendo seduto sul divano rigido del
salotto dove l’aveva accolta, scegliendo appositamente la stanza per gli estranei, per le visite
moleste e per le veglie funebri, se ne arrivano.”16 (Murgia, 2009, p. 158). Todas as coisas
desagradáveis ficam restritas a esse ambiente, como para evitar que qualquer coisa
potencialmente má entrasse na casa, que o contato com essa presença pudesse contaminar os
habitantes com um mau olhado ou má sorte. Além disso, apresenta-se ao leitor a attittadora,
mulher responsável por chorar e homenagear o morto, lembrando a todos de suas virtudes em
vida.
Assim como na obra de ficção de Murgia, também na vida da população europeia
que viveu a transição do feudalismo para o capitalismo, o pensamento mágico e as práticas
supersticiosas faziam parte do cotidiano e, já naquele período, a mistura de símbolos e rituais
cristãos e pagãos eram uma realidade. Federici pontua como os mais variados acontecimentos
eram imbuídos de sentido místico e, frequentemente, acompanhados por uma tentativa de
imprimir, até nos atos mais banais e corriqueiros, a força de um poder oculto:
O uso de encantamentos está tão difundido que não há homem ou mulher que
comece ou faça algo (…) sem primeiro recorrer a algum sinal, encantamento, ato de
magia ou método pagão. Por exemplo, durante as dores de parto, quando se pega ou
se solta a criança (…) quando se levam os animais ao campo (…) quando um objeto
foi perdido ou não conseguiram encontrá-lo (…) ao fechar as janelas à noite, quando
alguém adoece ou uma vaca comporta-se de forma estranha, recorrem
imediatamente ao adivinho para perguntar-lhe quem os roubou, quem os enfeitiçou
ou para obter um amuleto. A experiência cotidiana dessa gente nos mostra que não
há limite para o uso das superstições (…). Aqui, todos participam das práticas
supersticiosas, com palavras, nomes, rimas, usando os nomes de Deus, da
Santíssima Trindade, da Virgem Maria, dos doze Apóstolos (…) Estas palavras são
pronunciadas tanto abertamente como em segredo; estão escritas em pedaços de
papel, engolidos, levados como amuletos. Também fazem sinais, ruídos e gestos
estranhos. E, depois, fazem magia com ervas, raízes e ramos de certas árvores; têm
seu dia e lugar especial para todas essas coisas (STRAUSS, 1975 apud FEDERICI,
2017 p. 312).
16
“(...) ele nem ao menos a acompanhou até à porta, permanecendo sentado no sofá duro da sala de estar onde a
recebera, escolhendo justamente a sala para os estranhos, para as visitas incômodas e para os velórios, quando
havia.”
34
17
“Aqui está o mal que me desejam, fizeram um feitiço para me roubar um metro de campo!”
18
“Era uma intenção ruim (...) tocando com prudência os estranhos elementos combinados (...) dentro do saco.”
35
Sembra interessante segnalare come, riportando alla luce antiche tradizione locali,
Lussu rinvenga in contesti culturali del tutto diversi dei tratti di profonda assonanza,
che registra nei racconti per avanzare nell’ipotesi di una matrice comune. Nel
presiedere ai destini di vita e di morte dei membri della comunità, la Sibilla
marchigiana condivide infatti il ruolo dell’accabadora sarda, l’ultima madre, la
donna che in nome della collettività interviene presso gli agonizzanti accelerandone
la fine, colei che concede la pace e si fa testimone del passaggio ad un’altra vita
dell’assistito (LORENZETTI, 2015, p. 969).19
19
“Parece-me interessante ressaltar como, trazendo à luz antigas tradições locais, Lussu encontra, em contextos
culturais completamente diferentes, traços de profunda consonância, que registra em seus contos para avançar na
hipótese de uma matriz comum. Ao presidir os destinos de vida e de morte dos membros da comunidade, a Sibila
marchigiana divide, na verdade, o papel com a acabadora sarda, a última mãe, a mulher que em nome da
coletividade intervém junto dos agonizantes, acelerando seu fim, aquela que concede a paz e se faz testemunha
da passagem do assistido a uma outra vida.”
20
“Se me pedisse para morrer, eu não seria capaz de matá-la só porque é isso o que a senhora quer.”
21
“Bárbara, primitiva e contrária à fé cristã.”
22
“Cuja atividade é considerada reprovável.”
36
negativa da Igreja; talvez ela seja o símbolo de uma geração que desaprendeu a lidar com o
místico e, no caso específico de Accabadora, com a morte.
No entanto, com o passar do tempo, Maria se redime perante sua mãe adotiva.
Uma característica presente em toda a bibliografia que trata da temática da bruxaria é o
aspecto da oralidade. A função executada pela sage femme, independentemente do nome que
ela possua em cada cultura local, é transmitida de mãe para filha. Lorenzetti aponta esse
funcionamento para a sibila: “Al termine della sua vita, una volta espletato il suo compito di
servizio, la Sibilla trasmette il suo sapere ad una donna più giovane che le succederà nella
comunità”23 (2015, p. 968). Como cada comunidade tem a sua sibila, ela desenvolve um papel
importante no âmbito social, com o diferencial de se tornar uma espécie de líder política que
atua em todas as esferas do poder local. Assim, quando ela já está próxima ao fim de sua vida,
passa o conhecimento que possui para a sua sucessora, e este conhecimento se trata não
somente do que tange ao aspecto mágico e ritualístico, mas, para a sibila, trata-se também das
questões políticas da comunidade.
Também na obra de Federici, encontramos referências históricas sobre o caráter
oral da passagem de conhecimento de bruxa para bruxa. O que a autora nos mostra é que a
maioria das acusações de bruxaria recaía sobre mulheres pobres, ou seja, analfabetas. Uma
parcela considerável das acusadas sobrevivia do ofício de curandeira, o que influenciava na
passagem do conhecimento para outras familiares, transformando a função em uma profissão
familiar, sendo essa uma das razões que configurava a acusação de mães e filhas, como já
mencionado. Sobre isso, a autora afirma: “Com a perseguição à curandeira popular, as
mulheres foram expropriadas de um patrimônio de saber empírico, relativo a ervas e remédios
curativos, que haviam acumulado e transmitido de geração a geração” (FEDERICI, 2017, p.
364), referindo-se ao caráter oral da sabedoria das sage femmes.
Uma vítima da perseguição às curandeiras foi Gostanza, que, depois de viúva,
passou a viver com uma sobrinha e outras duas senhoras, também viúvas, e sobrevivia,
justamente, como curandeira, vendendo poções de amor e de cura médica, marcando animais
e desfazendo feitiços. Seu ofício lhe rendeu grande popularidade, mas, nas palavras de
Federici, a Contrarreforma, após o Concílio de Trento, “temendo seus poderes e suas
profundas raízes na cultura de suas comunidades” (2017, p. 363) adotou uma postura muito
rígida contra as curandeiras em geral. Se nos lembrarmos, de acordo com Martín Clavijo
23
“Ao fim de sua vida, uma vez cumprido seu serviço com a comunidade, a Sibila transmite sua sabedoria para
uma mulher mais jovem, que será sua sucessora.”
37
(2015), foi depois desse mesmo concílio que se começou a registrar uma queda brusca no
número de acabadoras.
Também elas, as acabadoras, exerciam algumas dessas mesmas funções. Ainda
que não tenhamos, na obra de Murgia, a descrição de um episódio do gênero, Alessandra
Sanna afirma que a população recorria à acabadora para procurar ajuda para “guarire da vari
mali, preparare erbe medicinali o togliere il malocchio”24 (2017, p. 109), e que esses “erano i
servizi più richiesti a questa donna, che si trovava a metà strada tra sacerdotessa e
fattucchiera.”25 (ibidem, p. 109).
Seguindo para além da similaridade entre as funções desempenhadas por todas
essas mulheres e retornando à questão da oralidade e da redenção da fill’e anima, é
explicitado no romance que Bonaria foi, digamos, “iniciada” na prática da acabadora quase
sem querer, quando era ainda muito jovem. As mulheres mais velhas, todas da sua família,
realizaram o ato diante dela, sem lhe dar nenhuma explicação:
Ricordava bene, non era nemmeno quindicenne quando accadde la prima volta, il
giorno che insieme alle donne di famiglia aveva accudito il parto in casa di una
cugina di suo padre; quelle tredici ore di travaglio erano costate più alla madre che al
neonato, comunque nato vivo. Né brodo di pollo né preghiere erano bastate a
fermare l’emorragia, a cui erano seguiti dei giorni di agonia tali da spegnere del tutto
la speranza di una ripresa. La stanza allora era stata liberata da ogni oggetto
benedetto, da ogni dono di buonaugurio e da ogni quadro con soggetti religiosi,
perché quel che prima aveva protetto la puerpera non finisse per legarla a uno stato
di sofferenza senza via d’uscita. Quando la stessa donna aveva chiesto la grazia, le
altre avevano agito per lei in un clima di condivisa naturalezza, dove atto illecito
sarebbe parso piuttosto il non far nulla. Nessuno le diede mai spiegazioni, ma a
Bonaria non ne servivano per capire che alla sofferenza della madre si era posto fine
con la stessa logica con cui era stato reciso il cordone ombelicale del
bimbo26(MURGIA, 2009, p. 92-93).
24
“Curar(-se) de vários males, preparar ervas medicinais ou desfazer mau-olhado.”
25
“Eram os serviços mais solicitados a essa mulher, que se encontrava no meio do caminho entre sacerdotisa e
feiticeira.”
26
“Lembrava bem, não tinha nem quinze anos quando ocorreu a primeira vez, num dia em que tinha acudido,
com as mulheres da família, a um parto na casa de uma prima de seu pai; aquelas treze horas de trabalho
custaram mais à mãe do que ao recém-nascido, em todo caso nascido vivo. Nem caldo de frango nem rezas
foram suficientes para estancar a hemorragia, à qual se seguiram dias de uma agonia tão sofrida que apagara
totalmente as esperanças de uma recuperação. Então esvaziaram o quarto de todos os objetos santos, de todos os
presentes de boa sorte e de todos os quadros de temas religiosos, para que o que antes protegera a parturiente não
a prendesse a um estado de sofrimento irremediável. Quando a própria mulher pediu misericórdia, as outras
agiram por ela num clima geral de naturalidade, em que não fazer nada é que pareceria um ato ilícito. Ninguém
jamais lhe deu explicações, mas nem seriam necessárias para que Bonaria entendesse que haviam dado fim ao
sofrimento da mãe com a mesma lógica com que tinham cortado o cordão umbilical do menino.”
38
Anos depois, porém, retorna à sua cidade natal ao receber notícias de que a acabadora de
Soreni está muito doente. Deixando de lado as mágoas, Maria, que por muito tempo procurou
apagar dentro de si o laço com Bonaria, numa inversão de papéis, se torna a última mãe
daquela que a criou, dedicando-se exclusivamente a tornar a agonia da anciã o mais
suportável possível. A partir desse ponto da narrativa, o comportamento de Maria muda
completamente, abrindo espaço para sua redenção. O processo se inicia quando ela
compreende algo que Bonaria lhe havia dito anos antes. Depois de um ano e meio de
sofrimento e de ser reduzida a um estado deplorável, a velha sente dores tão fortes que passa
as noites gritando e isso, de certa forma, leva Maria à compreensão do que lhe havia sido dito:
“Dopo due settimane di quella tortura, la ragazza cominciò a comprendere cosa intendeva
Bonaria Urrai tre anni prima quando le aveva detto ‘Non dire mai: di quest’acqua io non ne
bevo.’”27 (MURGIA, 2009, p. 152).
O próximo passo de Maria é tentar fazer com que a mãe se sinta em paz para
morrer. De acordo com a tradição vigente em Soreni – e também fora dela, como nos aponta
Sanna (2017) –, uma pessoa que não consegue morrer sozinha, que tem um fim de vida
demasiado agonizante, possui um grande sentimento de culpa relacionado à sua vida. Bonaria
carregava a culpa de ter levado à morte o filho mais velho dos Bastíu, Nicola, que, apesar de
debilitado por ter amputado uma das pernas, era uma pessoa saudável. O rapaz pediu à
acabadora que lhe tirasse a vida pois, de acordo com ele, passar o resto de sua vida naquele
estado de dependência não seria exatamente vida. Depois de muita insistência, ela consente,
mas por ter visto nos olhos de Nicola “la determinazione di chi cerca disperatamente non la
pace, ma un complice”28 (MURGIA, 2009, p. 93), Bonaria passa o resto de sua vida
carregando o peso daquela morte. Maria, então, leva à sua casa Andría Bastíu, irmão mais
novo de Nicola, para que ele pudesse perdoá-la com a intenção de que esse perdão fosse
suficiente para libertar sua mãe da culpa e assim ela pudesse morrer em paz. Esse é o seu
segundo passo para a compreensão do ofício de Bonaria e da compaixão no ato da acabadora.
Tendo passado pela experiência de ser a mãe de alguém, graças à inversão de
papéis com Bonaria, o consequente pagamento da dívida que possuía com ela e a tentativa de
fazer com que a mãe estivesse em paz com seu próprio espírito para poder morrer, Maria
executa a função última da acabadora:
27
“Depois de duas semanas daquela tortura, a garota começou a compreender o que queria dizer Bonaria Urrai
três anos antes, que lhe disse ‘Nunca diga: dessa água eu não bebo.’”
28
“A determinação de quem procura desesperadamente não a paz, mas um cúmplice.”
39
Tanto Maria Listru quanto Bonaria Urrai se tornam acabadoras pela herança
familiar que lhes foi transmitida através da oralidade. O romance não acena a nenhuma regra
escrita e muito pouco é explicado: nada além do estritamente necessário é dito. Bonaria Urrai
adotou Maria por ter visto nela algo que as demais pessoas não percebiam e a educação que
lhe deu fez com que a filha se parecesse com ela à medida em que crescia. Talvez ela tivesse a
necessidade de passar seu ofício para alguém. Vemos, ao longo da narrativa, como a velha
ensina à sua filha o trabalho de costureira. Se Maria não tivesse partido, talvez veríamos como
Bonaria ensinaria também o dom da compaixão e o de ser a última mãe de alguém. Não foi
necessário, no entanto: como havia previsto a sábia acabadora de Soreni, Maria tomou
decisões que jamais sequer lhe poderiam ocorrer, aprendeu a ter compaixão e a ter a força
para intervir e suprimir o sofrimento do outro através da dor da própria mãe.
29
“Entrando no quarto, encontrou o travesseiro à espera sobre a poltrona ao lado da cama e o pegou. Se
aproximou com a certeza que desta vez nenhuma sentimento de culpa a pararia. Talvez foi o gesto de ternura que
viu em Andría a fazê-la abaixar a cabeça para o rosto de Bonaria antes de agir, roçando sua bochecha com os
lábios com uma leveza que não havia sentido desde que voltara para casa. Existem coisas que sabe e basta, e as
provas servem somente para confirmar; foi com a sobra nítida de uma intuição que Maria Listru soube com
certeza que sua mãe Bonaria Urrai estava morta.”
40
6 Considerações finais
como as sage femmes, as curandeiras e a sibila, já que todas elas compartilham funções
comuns. Espero ter conseguido esclarecer, também, a relação de todas elas com as divindades
femininas na antiguidade, que foram, junto com a religião católica e seus rituais, a base para o
surgimento dessa imensa gama de superstições que deram espaço para a atuação dessas
mulheres.
42
7 Referências bibliográficas