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Apresentação da pesquisa:
Esta pesquisa que está em desenvolvimento no Programa de Pós-Graduação em História da
UEMA tem um histórico que vem de projetos de pesquisa realizados ainda na graduação.
Como fonte, temos o Livro de Linhagens do Conde d. Pedro, do século XIV, e as narrativas
míticas presentes no nobiliário português. Temos como objetivo futuro aprofundar a
investigação acerca da presença feminina nos Livros de Linhagens, considerando os dois
contos melusinianos presentes: a Dama do Pé de Cabra e a dona Marinha. Estes ainda
precisam ser cuidadosamente comparados e discutidos. Para além disso, buscamos discutir o
ensino de Idade Média e as temáticas de gênero, partindo do pressuposto de que a Idade
Média ibérica é pouco trabalhada nas escolas e nos livros didáticos, visto que é necessário
discutir as disputas políticas e ideológicas que giram em torno da construção do currículo base
para as escolas brasileiras, e um melhor aproveitamento dos tempos históricos que auxilie na
reflexão crítica e ajuda a transformar a realidade, principalmente dos grupos sociais
desprivilegiados. A produção de um material didático voltado para os estudos de Portugal
medieval está dentro do planejamento desse projeto. Agimos a partir dos aportes teóricos da
Nova História Social e da História Cultural, sendo conceitos essenciais para a pesquisa:
imaginário social, maravilhoso político, reminiscências e memória coletiva.
Roteiro de produção:
Ainda que com um caráter provisório, pois as discussões sobre o tema ainda são iniciais e
deverão ser modificadas depois de reflexão mais profunda, apresentamos um roteiro de
dissertação:
Polyana Muniz1
Introdução
À medida que os estudos humanos e sociais avançam, novos paradigmas e
entendimentos são debatidos acerca do passado. Graças a essas transformações, sabemos que
até mesmo a pesquisa dita “completa” ou a verdade inquestionável sobre um fato é fruto de
seu tempo e de um ponto de vista – passíveis de investigação e discussão. De uma forma
interessante, podemos somar os conhecimentos sobre um passado àqueles do nosso presente,
de modo que os aspectos que conseguimos reconstituir nos servem para os mais variados usos
políticos, sociais e identitários.
O que faz um tempo histórico ser mais ou menos presente? O que podemos dizer sobre
a presença da Idade Média em nossa sociedade? De que forma, como brasileiros, lembramos e
usamos o medievo? Assim como no Brasil, a circulação de povos, culturas e ideias, por vezes
em conflito e por outras em convivência, legaram para a Europa medieval aspectos sincréticos
e regionais, ainda que sob uma lente cristã. O discurso sobre um tempo histórico tende a ser
generalizante, e com a Idade Média não poderia ter sido diferente. Buscando considerar as
especificidades regionais e debater as histórias em disputa temos como fonte de análise o
Livro de Linhagens do Conde d. Pedro e a narrativa A dama do pé de Cabra, conto com
elementos melusinianos que está inserido no nobiliário do conde d. Pedro de Barcelos, e que
descreve a origem da família Haro, senhores da Biscaia.
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Mestranda em História no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual do Maranhão
PPGHIST-UEMA.
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Mas de qual mito estamos nos referindo? Partiremos de uma perspectiva estruturalista
para depois explorar o contexto de produção da narrativa literária e sua utilização em
Portugal, considerando uma discussão teórica sobre os conceitos de memória, imaginário
social e ideologia.
Esse padrão foi traçado por Claude Lecouteux a partir da metodologia de análise de
contos maravilhosos de Vladimir Propp. As constantes do enredo, ainda que adaptadas
localmente, fazem da Dama do Pé de Cabra um exemplo de texto melusiniano. Ainda que a
origem do mito não seja uma preocupação, não há dúvida sobre sua raiz comum com as
tradições folclóricas dos povos de origem céltica. José Mattoso, historiador português que
editou e comentou a publicação do Livro de Linhagens percebe uma clara prova do encontro,
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As primeiras narrativas com esse padrão datam dos séculos XII e XIII e faziam parte de uma literatura voltada
para o entretenimento das cortes, produzidas em língua vulgar. Outras eram escritas em latim pelos curiales na
corte de Henrique II. Como exemplo temos De nugis curialium do livreiro Walter Map, escrito entre 1181-1193
e que possui duas narrativas com o padrão melusiniano e Otia Imperialia de Gervais de Tilbury, escrita entre
1210-1214, e que também possui dois exemplos (MORÁS, 1999, p. 229).
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Nos séculos XIII e XIV as narrativas começam a serem adaptadas com temas fundacionais e a obra mais
popular é O romance de Melusina e a nobre história dos Lusignan, escrito em 1392 pelo livreiro Jean d’Arras,
produzido para o duque de Berry. A personagem, Melusina, é nomeada e ganha notoriedade, virando parte da
tradição folclórica da França e sendo representada em diversas ocasiões (MUNIZ, 2015, p. 20).
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possivelmente antigo, de culturas, que não são originárias do Portugal medieval, mas
anteriores a sua formação.
Para investigar tais fenômenos tem-se utilizado duas vertentes teóricas: analisar esse
tipo de literatura como um contraponto as pressões sociais ou dar ênfase aos substratos pagãos
desses contos. Considerando que não devemos retirar a narrativa de seu contexto de produção
e nem ignorar as possíveis influencias que sofreu, utilizamos a ideia ensejada por Antonio V.
P. Morás do mito como fonte de criação literária, o que pressupõe alteração e alienação de
sentido, e não um espelho da narrativa original. Nesse sentido, não lidamos com mitos, mas
com suas reinterpretações. Por conseguinte, um conto ou novela podem derivar de um dado
complexo mítico, mas sua presença escrita já pressupõe um processo de
elaboração/interpretação de um certo autor.
As tradições orais são pautadas pela repetição, mas também pelo dinamismo de sua
constante transformação e aperfeiçoamento. Para Albertini, as práticas de conservação e
atualização correspondem a um constante processo de negociação, não podemos assim
acessar uma tradição em ‘estado bruto’. As narrativas históricas são influenciadas pela
tradição oral, que por sua vez possuem dimensão política e aspectos em disputa.
(ALBERTINI, 2006, p. 25.)
O pacto realizado entre homem mortal e mulher sobrenatural adquirem para Aline
Silveira um modelo dos pactos vassálicos e matrimoniais, que seriam idealizados a partir da
literatura laica, de modo que representariam os valores da época. (SILVEIRA, 2002, p. 10)
Essa explicação é de suma importância, visto que insere e dá sentido à construção da
narrativa, dentro do contexto histórico das relações medievais, como também procura
intermediar as possíveis funções originais do mito fundador (e suas regulamentações próprias)
aos usos simbólicos adaptados para sua fase ‘alienante’, isto é, no momento histórico
estudado, de utilização política do maravilhoso e do imaginário.
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De modo geral, na Alta Idade Média, do século V ao século XI, percebe-se um ambiente de maior rejeição, até
repressão ao maravilhoso. A Igreja tinha preocupação em modificar, ressignificar ou destruir os elementos
considerados perigosos da cultura tradicional e pagã, que tinha grande apelo na sociedade. Nos séculos XII e
XIII, o contrário ocorre, e o maravilhoso parece irromper nos temas de estudos intelectuais e é claro, na literatura
e cultura em geral (FRANCO JR, 1996, p. 21).
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Podemos perceber alguns aspectos simbólicos que giram em torno dos padrões
melusinianos. “O simbólico expõe as relações entre as diversas culturas, espaços e grupos
sociais pelos quais a narrativa transita” (AMADO, 1995, p. 134). O mais importante seria a
questão da natureza. No conto português, Dom Diego Lopes, estando caçando por suas terras,
ouviu cantar uma mulher em cima de um monte. O encontro dentro do meio natural é exposto
já na primeira parte da narrativa, representando a origem da misteriosa fundadora da
linhagem, e as características que a enquadram no poderio dos Haro, já que este “era senhor
daquela terra toda”. Fica aqui retratado a capacidade do senhor de governar aquela terra, pois
conseguirá controlar um ser mítico e sobrenatural que era originado daquela região, através do
casamento. O senhorio e a linhagem surgida dessa união legitimam o controle, e um pacto
com a natureza do local5.
Segundo os estudos de Siqueira, houve figuras míticas próprias da região da Biscaia
que estariam ligadas à figura da Dama, sem a necessidade direta da personagem ser uma
‘cópia’. A fundadora da linhagem dos Haros reúne em torno de si diversos elementos do
folclore local, tendo esses a função genética que os elementos célticos e nórdicos tiveram na
literatura melusiniana (SIQUEIRA, 2002, p. 42). A representação diabólica da cabra e do
bode acontece de forma mais recorrente no final da Idade Média. Existiu, no entanto, na
Península ibérica uma deusa representada por cabras de nome Ategina. Além disso, a figura
de Besojaum, personagem mítico guardião das montanhas bascas, uma espécie de fauno
também com características semelhantes parece fornecer as influências diretas para a
formação da narrativa, nesse caso, inclusive na sua forma oral, mais antiga. Desse modo,
outra questão de discussão é levantada sobre as origens da Dama do Pé de Cabra, no que
tangem as influências externas e internas para a produção do conto linhagístico, problemas
delimitadores que permeiam nossa análise.
Outro ponto que deve ser devidamente discutido é a utilização dentro da sociedade
medieval e nas narrativas linhagísticas, do matrimônio. Na época, verdadeiras negociações
eram realizadas a partir do casamento, instrumento político de alianças e de constituição de
reinos. É a partir dele que se instituem alguns dos mais importantes valores medievais, a
caritas – a caridade que representa o amor de Deus, que organiza politicamente as relações
entre vassalos, entre famílias, através do qual se ascende socialmente. É dele o ponto de
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Este dom Diego Lopez era mui boo monteiro, e estando uu dia em sa armada atendendo quando verria o porco,
ouvio cantar muita alta voz ua molher em cima de ua pena. E el foi pera la e vio-a ser mui fermosa e mui bem
vestida, e namorou-se logo dela mui forte-mente, e preguntou-lhe quem era. E ela lhe disse que era ua molher de
muito alto linhagem, E el lhe disse que pois era molher d’alto linhagem que casaria com ela se ela quisesse, ca
ele era senhor daquela terra toda. (Livro de Linhagens do Conde D. Pedro, Título IX, p. 138-139).
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Pela sua própria formação, o casamento se situa entre o sobrenatural e o natural. Como
explica Duby, o que se exaltava nas mulheres medievais partia de interditos. O de ser virgem.
O de ser uma esposa fiel. O de que dar filhos, homens. O mito representa o contrário. É a
mulher quem diz as proibições e quem regulamenta os ritos que envolvem a magia de que é
responsável. Portanto, parece correta a associação entre os pactos feéricos e os pactos
vassálicos e matrimoniais medievais, onde a figura feminina é necessária para as negociações
e constituição dos tratados, ou seja, a formação da família nobre.
O fato de também praticarem os ritos oficiais não o fazem menos coeso, pois essa não
era uma preocupação advinda desse meio, mas sim do clero (MATTOSO, 1987, p.184). Não
havia uma necessidade de coerência. Outrossim vinha do modo como lidavam com o sagrado
e o natural, sobretudo nas necessidades de respeitarem uma ordem do universo, forças
naturais que eram essenciais para sua forma de subsistência (próprias da sociedade agrária).
Sabe-se muito pouco sobre a religião popular no Portugal medieval, além do que é
exposto de forma geral sobre as origens antigas das suas práticas mágicas e ritos, e de sua
mutabilidade e os aspectos sincréticos que a mesclaram com o cânone oficial. Seus métodos
de análise são bastante diferentes dos aspectos sobre a política ou economia, dado que os
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documentos responsáveis por seu tema são de origem clerical, que ignoram, ocultam ou
desacreditam-na. No entanto, as crenças populares, apesar de clandestinas, influenciaram
muitas manifestações da mentalidade corrente. Muitos dos pressupostos e aspectos litúrgicos
foram assimilados na sua formação mais antiga (MATTOSO, 1988, p. 397-398). Um exemplo
disso é o respeito a objetos sagrados, guardados em locais especiais, muitos desses antigos
templos pagãos. Ou as formas de ‘domesticação’ dessas crenças, como as procissões ou as
festas dos loucos. Para Delumeau, os processos de cristianização, no entanto eram
A cultura foi caracterizada por uma crescente produção laica, o progresso da língua
vernácula e em traduções, assim como a entrada de conteúdo estrangeiro nos meios culturais.
O livro, como agente de cultura, era um dos mais importantes veículos, ainda que
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Portugal no século XIII é um reino independente, que surgiu de Castela, o reino gerador. Para manter-se assim
precisava ter um papel de destaque na Reconquista, expulsando os inimigos dos cristãos da Península Ibérica.
Assim foram fazendo todos os reis portugueses, iniciando-se com Afonso Henriques (1139-1185), o que lhes
conferia autoridade frente à nobreza. Ser rei era manter a ordem interna, garantindo a paz entre os bellatores e
aumentar os territórios portugueses, expulsando de lá os muçulmanos que os ocupavam. (ZIERER, 2003, p. 13)
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considerando as limitações da época. (MARQUES, 1986, p. 419) A escrita foi ganhando mais
espaço, desprendendo-se do monopólio clerical, de forma que o tabelionato se difunde,
crônicas, testamento, documentos fiscais etc. A leitura exposta era frequente em aulas de
universidade, mosteiros e conventos, nas igrejas, nas cortes e nas casas de nobres, clérigos ou
burgueses, como meio de educação ou como literatura de entretenimento.
A produção do Livro de Linhagens do Conde d. Pedro aconteceu em um momento
marcado pela centralização régia e por uma reestruturação da nobreza senhorial, que vinha
perdendo disputas importantes, em revoltas e campanhas contra mulçumanos, e não criava
fontes de rendimento duradouras. O enfraquecimento desta permitiu, a partir de meados do
século XIII e XIV, a ascensão de uma nobreza de origens diferentes, vindas da pequena
nobreza fundiária, de zonas setentrionais rurais ou montanhosas, participando da política,
muitas vezes em função de proximidade em relação ao rei (MOCELIM, 2007, p. 188).
Por pertencer a uma camada inferior na nobreza, viam a necessidade de apropriar-se das
tradições das famílias que entravam pelo casamento, ou criavam (e adaptavam) mitos que
explicassem o seu sucesso inesperado, de forma a manter os privilégios e posições
conquistadas.
Como irmão do rei Afonso IV, o conde estava preocupado em acentuar a ancestralidade
da monarquia portuguesa, colocando o monarca como elemento organizador da sociedade,
mas que deveria levar em conta a importância da nobreza e seu papel de colaboradora nos
feitos da monarquia, como não o fez seu pai D. Dinis ao desprezar os valores juramentados da
vassalagem. Além de tudo, o conde era também membro da nobreza, e pretendia justificá-la
junto à monarquia. O bom relacionamento entre rei e nobreza dependia para o bem comum do
reino.
É importante lembrar a situação de ameaça que a nobreza se encontrava
economicamente frente às crescentes formas de comércio e relações econômicas emergentes.
A disputa de poder e formação de alianças que giravam em torno do poder régio neste período
são expressas através das tensões nos Livros, mas não deixa, segundo Barros, de justificar
ideologicamente uma posição social e uma hierarquia em oposição a outros grupos sociais,
percebendo assim uma “solidariedade de classe”. Seja para inserir-se socialmente ou para
afirmar um poder em decadência, a utilização da literatura genealógica apresentava
simbolicamente uma forte declaração de poder, e de pertencimento.
As fontes genealógicas medievais portuguesas são um fenômeno específico da região
ibérica, e a historiografia especializada afirma que devem ser analisadas a partir de sua
singularidade. Na Península Ibérica foi bastante popular, em Portugal especialmente ganhou
pleno desenvolvimento, sendo considerada nos estudos atuais um gênero literário a parte.
Enquanto o restante da cultura genealógica europeia (que eram relatos curtos, secos e
estereotipados) vai diminuindo no final nos séculos finais da Idade Média, na Península
Ibérica esse gênero floresce.
Para José D’Assunção Barros (2008), os nobiliários portugueses constituem um gênero
híbrido, suspenso entre a genealogia e a narrativa. Assim, o conceito de narrativa (contar uma
história, não importando o teor: histórico, anedótico, exemplar etc.) e o de genealogia (que
tem como objetivo perpetuar a memória/história das linhagens) se entrecruzam nas produções
chamadas de nobiliários, isto é, os Livros de Linhagens. O que caracterizaria esse hibridismo?
O fato de que no texto linhagístico, uma narrativa de fundo mítico (como a Dama do Pé de
Cabra) poderia coexistir com outras de pretensões historiográficas.
Como principal papel, desempenhavam a função de reconstrução social da memória
familiar, principalmente no seio da nobreza feudal (BARROS, 2008, p. 160). Buscavam
atender uma necessidade social da vida pública, na medida que regiam a vida das pessoas
através da observação de suas genealogias e do grau de parentesco. A utilidade de conhecer
seus ancestrais funcionava para evitar casamentos incestuosos ou para definir direitos
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Nas palavras de José d’Assunção Barros “se no caso da Memória Individual são os
indivíduos que, em última instância, realizam o ato de lembrar, seriam os grupos sociais que
determinariam o que será lembrado, e com será lembrado” (BARROS, 2011, p. 322). Essa
perspectiva nos aporta teoricamente para debater os usos da memória em um tempo histórico
distante como o medieval.
Considerando a utilização ideológica dos relatos míticos percebemos um trabalho de
enquadramento da memória, isto é, segundo Michael Pollack, a (re) interpretação do material
fornecido pela História que controla a memória coletiva e autoriza o discurso aceito
socialmente. Esse enquadramento é feito por seus atores profissionais e deixa rastros:
monumentos, museus, livros (POLLACK, 1989, p. 11). Diz respeito também às tensões entre
os grupos sociais que pretendem veicular a sua memória, muitas vezes por estarem
ameaçados. Era exatamente isso que ocorria com a nobreza do século XIV.
Ainda, as relações entre a constituição da memória e a identidade desembocam no que
chamamos de memória familiar na Idade Média. É a partir da identidade herdada, composta
dos símbolos e de um passado lendário que se diferenciavam dos outros grupos sociais e entre
si mesmos. A identidade é um dos elementos principais do projeto político – ideológico
presente no Livro de Linhagens, visto que tinha concepções pan-hispânicas que construíam a
ideia de ‘amor e amizade’ entre as casas portuguesas e espanholas, que deveriam se unir
frente a um inimigo em comum, relacionando-os a partir das mesmas premissas da
solidariedade familiar.
A construção da identidade é um fenômeno que se produz em referência aos
outros, em referência aos critérios de aceitabilidade, de admissibilidade, de
credibilidade, e que se faz por meio da negociação direta com outros. Vale
dizer que memória e identidade podem perfeitamente ser negociadas, e não
são fenômenos que devam ser compreendidos como essências de uma pessoa
ou de um grupo (POLLACK, 1992, p. 5).
Constituía-se assim verdadeiro projeto político, já que para as famílias ali citadas se
encontrava um “enorme capital de prestígio coletivo e, portanto, uma fonte de legitimidade
suscetível de evidentes utilizações políticas” (PICOITO, 1998, p.143). Sendo uma compilação
das histórias particulares das famílias nobres dominantes no século XIV, em vésperas da crise
social de 1383. Não se pode esquecer que na época, os Livros de Linhagens tinham status de
documentos históricos.
Uma das premissas sobre a memória é que ela é seletiva. Nem tudo fica registrado.
Ainda que não possamos falar de um sentimento nacional, nos moldes do século XIX, a
constituição do Estado Português posteriormente utilizará os aspectos medievais e a unidade
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do reino como discurso fundacional de seu país. A memória nacional, segundo Pollack, é
bastante organizada pois constituiu um objeto de disputa importante (POLLACK, 1992).
Esse trabalho de organização, a partir da perspectiva de Pierre Nora, não corresponde
mais a memória em si. Isto porque a memória é viva e está em constante evolução, aberta à
dialética da lembrança e do esquecimento, e está sempre conectada ao presente (NORA,
1993). Como oposto, a História (o enquadramento da memória) não é senão uma
representação do passado, que só conhece o relativo e tenta regular aspectos deste que
normalmente aparecem em uma narrativa sem falhas (como é o caso do Livro de Linhagens).
Os lugares de memória, nascidos da vontade de preservar uma memória que já não
existe mais (os mitos regionais antigos), podem ser identificados nos nobiliários a partir do
momento em que condensam os discursos, por vezes contraditórios, em uma narrativa que
pretende registrar todo o reino ibérico. As narrativas escolhidas, inclusive a da Dama do Pé de
Cabra, foram registradas de forma planejada, segundo Aline Dias da Silveira (2002), de
acordo com as pretensões do autor. Se há um projeto, é em razão do grupo que ele representa
desejar expandir ou construir seu poder. E para fazer sentido, deve ser construído a partir de
uma mentalidade que é compartilhada por todos desse grupo, dando-lhe importância em
detrimento do Outro.
Qual o papel da memória na sociedade medieval? Pensando nas sociedades sem
escrita, Le Goff atribui a memória coletiva um caráter ordenador, que se interessa pelos mitos
de origem, o prestígio das famílias dominantes exposto através das genealogias e na
organização dos saberes técnicos e mágicos. A partir do desenvolvimento das práticas
escritas, essas dinâmicas foram transformadas, propiciando o inicio de celebrações,
monumentos, lugares. O medievo representa a partir da perspectiva de vários tipos de
memória que circulavam na Antiguidade, uma mudança profunda. A cristianização da
memória, considerando a religião e a ideologia dominante, provocará os contatos previamente
discutidos entre a cultura erudita e popular, e que afetou os demais estratos sociais dessa
época.
Ainda, “a memória tinha um papel considerável no mundo social, no mundo cultural e
no mundo escolástico e, bem entendido, nas formas elementares da historiografia” (LE GOFF,
1994, p. 449). As fontes utilizadas para o registro histórico eram em sua maioria fontes orais,
o que não constituía problema para os eruditos da época. Ainda assim, os ‘historiadores’
medievais do século XII e XIII falavam em uma ‘memória frágil e fugaz’, o que elevava a
escrita a confiabilidade (GUENÉE, 2006). A utilização das fontes orais ocorria
principalmente nas cortes, com elementos de entretenimento, oscilava entre poesia e verdade.
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apresentou para a Dama do Pé de Cabra, “como senhor daquela terra toda”, o que
complementava a um dos propósitos do prólogo do LL, “saberem os nomes daqueles donde
veem e algŭas bondades que em eles houve; os reis haverem de conhecer aos vivos com
mercees por os merecimentos e trabalhos e grandes lazeiras que receberom os seus avoos”
(LL, Prólogo, p.57).
Segundo Irene Freire Nunes (2010), era constante a vinda à Península de jograis
provençais, que encontraram acolhimento nesse meio após o desmantelamento de outras
cortes devido as cruzadas contra os cátaros. Desde 1170 era rainha de Castela uma filha de
Leonor de Aquitânia e Henrique II Plantageneta (que eram ligados a figura sobrenatural da
Melusina), também chamada Leonor, esposa de Afonso VIII, cujo cortejo nupcial era
acompanhado por cavaleiros ingleses e franceses (e juntos desses jograis e trovadores) que
influenciara na corte o gosto pela temática de Bretanha e pela lírica narrativa dos lais, o que
pode explicar a proximidade literária das narrativas linhagísticas dos Haro frente aos contos
melusinianos, espalhados na época em várias regiões da Idade Média.
A mulher mais famosa da família foi D. Mécia Lopes de Haro, mulher de Sancho II,
filha de Lopes Dias, Cabeça Brava. Sancho, rei de Portugal, foi tio-avô do conde d. Pedro de
Barcelos, autor do LL, pois foi irmão de Afonso III, pai de D. Dinis (portanto, há ainda uma
ligação distante entre os Haro e o conde Pedro Afonso). Mécia foi retratada como má
influência para o rei de Portugal, e era acusada de fazer feitiços, e, por conseguinte teria sido a
causa da perda da coroa de seu marido, que agiu contra o poder das casas senhoriais
(ZIERER, 2003, p. 152). As mulheres da casa Haro são caracterizadas de forma distinta aos
varões, senhores da Biscaia, e a ancestralidade de Mécia com a Dama do Pé de Cabra a expôs
como bruxa.
Maria Dias de Haro I, filha de Lopes Dias, foi a primeira mulher da família a ser a
herdeira legítima, após o seu irmão, que não possuía filhos. Esta casa com o filho do rei de
Castela, o infante João. Com isso, perde seus direitos no senhorio, visto que o rei concede o
mesmo ao seu próprio filho, o infante Henrique. Posteriormente esses direitos foram passados
para o seu tio paterno, Diogo Lopes (1295-1310) 7. No entanto, o novo senhor da Biscaia
incentivou a criação de vilas autônomas, o que prejudicava as prerrogativas da nobreza local.
Perdendo o apoio dessa nobreza, após um acordo, o senhorio voltou à legítima herdeira, dona
Maria Dias de Haro. Quando esta morre, em 1334, estima-se ser a época que o conde de
Barcelos8 inicia a produção do Livro de Linhagens.
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Referente a data da duração do senhorio.
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Nesse mesmo ano, o rei Afonso XI reconhece os direitos da herdeira, Maria de Haro II, visando o apoio do seu
marido, João Nunes de Lara. Esta era filha de Isabel Afonso, sobrinha do rei D. Dinis, e por isso, prima do conde
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seu contexto. Não importando assim se o conteúdo é falso, mas como se configura sua função
de discurso dentro da dinâmica social. Ainda, explica que apesar das narrativas ideológicas
serem racionalizadas sobre um tema especifico, também possuem elementos que extravasam
o meramente discursivo, possuindo um aspecto formador do campo do imaginário, isto é,
imagens, símbolos, mitos que circulam nos grupos sociais, ligados a memória. Como
exemplo, cita a necessidade quase universal de um mito de origem, que estabelece uma versão
dos acontecimentos e a legitima. (SERBENNA, 2003, p. 02) Nessa perspectiva o imaginário
torna-se elemento importante no campo do enfrentamento político, considerando as
características da sociedade medieval e a importância deste no seu funcionamento.
Dessa forma a utilização das narrativas de origem mítica constituem importantes
exemplos, dentro da Idade Média, de sua função ideológica – seja refletido na reação
folclórica, nos usos familiares através dos nobiliários, ou até mesmo das formas resistência
contra a pressão eclesiástica ou real. Pensando no contexto medieval, Georges Duby articula
as relações sociais a partir de um sistema de valores. Isto porque, “no interior desse sistema é
fortalecida ou enfraquecida a consciência que as pessoas tomam da comunidade, do estrato,
da classe de que fazem parte, de sua distância em relação a outras classes” (DUBY, 1995, p.
131).
Para construir o conceito de ideologia, que se apresenta de difícil realização diante de
sua complexidade e suas relações com a representação e o imaginário (já citado por Le Goff
em O imaginário medieval), Duby (1995) define alguns traços que caracterizariam sua
significação. O primeiro destes traços é o caráter globalizante dos sistemas de valores
oferecidos para a sociedade, representando uma visão do seu passado, presente e futuro, que
seriam integrados a uma visão totalizante no mundo. Nesse sentido estão as representações
bíblicas e os demais textos fundamentais do cristianismo, que serviam de parâmetro para as
relações sociais medievais. Não é por acaso que as primeiras famílias representadas sejam as
linhagens reais bíblicas, que estariam ligadas as demais linhagens históricas.
Para que construam a organização social as ideologias também são deformantes. Para
que atinjam interesses particulares, é necessária uma arrumação coerente de inflexões,
adaptações, distorções. Podemos entender assim a concepção maniqueísta do pensamento
eclesiástico, que através de uma dualidade compôs, por exemplo, o pensamento sobre as
mulheres – e, em última análise, na própria representação das personagens míticas,
transparece esse julgamento. Sem esquecer dos usos dessas mesmas personagens por famílias
nobres, fenômeno contraditório, devido aos aspectos femininos, anticristãos e sobrenaturais
dessas histórias. No entanto, é inegável sua modificação e adaptação, considerando os
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elementos inseridos no texto da Dama do Pé de Cabra, que possui aspectos mais ligados ao
maravilhoso cristão (pé de cabra, proíbe o marido de se benzer).
Outro exemplo significativo das articulações ideológicas do Livro de Linhagens é a
compreensão por parte dos pesquisadores, de que seus dados não são exatamente precisos.
Isto porque nem todos os nomes de certa linhagem estão representados nas listas
genealógicas. A omissão de indivíduos pode ser interpretada de duas formas, ou resultam de
conexões entre linhagens afastadas da corte, ou são intencionalmente deixados de lado.
Durante a enumeração dos bastardos de D. Dinis, o conde d. Pedro omitiu o nome de uma das
irmãs e deu seu marido. Não por esquecimento, mas por conta da ligação de sua irmã com os
Lacerdas, casada com um dos pretendentes para o trono castelhano depois da morte de Afonso
X. As relações com João Afonso de Lacerda não eram as melhores, e o conde Pedro Afonso
se manteve ao lado de D. Dinis e dos bastardos Afonso Sanches e João Afonso. As
prerrogativas de poder do conde não impediram de omitir uma irmã, demonstrando que não
há neutralidade nas listas genealógicas, pois não são somente isto. (PIZARRO, 1997, p. 125)
Para Duby, isso resulta na coexistência de vários sistemas de representações, que são
concorrentes, e que condizem com a existência de vários níveis de cultura. (DUBY, 1995, p.
132). “Numerosos traços comuns aproximam essas ideologias, pois as relações vividas, das
quais elas oferecem a imagem, são as mesmas e são edificadas no seio de um mesmo conjunto
cultural e se exprimem pelas mesmas línguas”. Ainda que antagônicas, podem coexistir. A
apropriação de elementos negativos sob o olhar do cristianismo por parte das obras literárias
com a temática melusianiana traduzem essa característica.
Casado a esse atributo está sua função estabilizadora, isto é, aqueles sistemas
representativos que buscam manter as vantagens adquiridas pelas camadas sociais
dominantes, um modo de preservar o status quo. É possível identificar esse papel quando
entendermos sua função social de registrar e organizar uma classe social, conferindo poderes
simbólicos ou perpetuando os poderes existentes às tradições familiares.
A rigidez dos diversos órgãos de educação, a permanência formal dos
instrumentos linguísticos, o poder dos mitos, a reticencia instintiva com
relação às inovações que se enraíza no mais profundo dos mecanismos da
vida, formam um obstáculo para que sejam modificados sensivelmente no
decorrer da transferência que os lega a cada nova geração. O medo do futuro
faz com que as ideologias naturalmente busquem apoio nas forças de
conservação. (DUBY, 1996, p. 133).
Para entender essas sociedades seria necessário considerar o poder das tradições,
justificadas pelo medo da mudança, que prejudicaria sua hierarquia social e os poderes
adquiridos. Possivelmente o agenciamento das técnicas de produção conduziu a fortificação
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da resistência, fator importante nas sociedades de fortes bases agrárias. Tudo que ameace o
rompimento do equilíbrio desse sistema, que deve ser coerente, provoca reações, e para se
proteger “fecham-se numa carapaça de costumes, e [...] mais solidamente e mais comumente,
o conservadorismo apoia-se na própria hierarquia social.” (DUBY, 1996, p. 133)
Aquele estrato dominante segue os modelos ideológicos que defendam seus interesses,
sendo apresentados de forma bem estruturada, e que trazem consigo a qualidade de verdade.
O conde Pedro Afonso, autor do Livro de Linhagens do conde d. Pedro em seu prólogo
discute as razões de sua produção e justifica sua funcionalidade, primeiramente a partir da
validade de suas pesquisas, “E veendo as escripturas com grande estudo e em como falavam
d’outros grandes feitos compuge este livro por ganhar o seu amor e por meter amor e
amizade antre os nobres fidalgos da Espanha” (LL, Prólogo, p. 55).
Por fim, o entendimento dos sistemas ideológicos representados através dos Livros de
Linhagens e dos relatos fundacionais familiares, nos ajudam a entender as transformações que
esses mesmos sistemas sofreram – e em última análise compreender quais ligações possuíam
com a sociedade que representam, pois “se apresentam como a interpretação de uma situação
concreta. Inclinam-se, em consequência, a refletir as mudanças” (DUBY, 1996, p. 138).
Através da defesa dos valores compreendidos pelo sistema ideológico, contra a centralização
real ou a quebra dos pactos familiares e vassálicos da época, tentou-se barrar as
transformações na lógica da sociedade. De forma que as mudanças posteriores também
necessitaram de meios para se legitimar (Revolução de Avis, Expansão Marítima etc.)
Embora lenta, pelo próprio conservadorismo das ideologias, elas tendem a se renovar através
do movimento histórico, pesando inclusive nas estruturas materiais e políticas.
O imaginário, conceito essencial para o contexto medieval, possui alto vínculo com o
ideológico. A construção de seu conceito teve contribuição de importantes estudiosos como
Cornelius Castoriadis, com a obra A instituição imaginária da sociedade (1982), Le Goff e
Duby.
Por ora, consideraremos o imaginário como um sistema ou universo
complexo e interativo que abrange a produção e circulação de imagens
visuais, mentais e verbais, incorporando sistemas simbólicos
diversificados e atuando na construção de representações diversas. De
acordo com essa definição, existe uma interface possível do
imaginário não apenas com o campo das “representações”, mas
também com o âmbito dos “símbolos” (BARROS, 2007, p. 27)
devem ser trabalhados não como um fim em si mesmos, mas como instrumentos de
compreensão de dada sociedade e seu contexto histórico. Ele pode ser extraído de diversas
fontes, seja um discurso verbal, visual, entre outros.
O conceito de imaginário social, segundo Baczko, foi formado a partir do trabalho de
três autores: Marx, Dukheim e Weber. O primeiro, elaborou-o com a intenção de desmitificar,
ligando-o ao conceito de ideologia. Dukheim, para explicar a coesão social através da relação
das estruturas e as representações coletivas. O último, demonstrou “o sentido que os atores
sociais atribuem às suas ações” (SERBENNA, 2003, p. 03).
Para Baczko, é possível identificar em todas as sociedades o uso do imaginário, que
confunde-se com mitos e ritos, pois possuem os mesmos guardiões. No entanto, nas
sociedades antigas os mitos possuem implicações ideológicas, e nas sociedades modernas, as
ideologias escondem os mitos, pois o imaginário social se torna racional, transformando seus
atributos de forma cada vez mais sofisticada, como as propagandas (BACZKO, 1985, p. 300)
Este imaginário se torna social por dois motivos: Se deve a uma orientação que leva o
imaginário ao social, no sentido da produção de representações sobre o ordenamento social, e
das relações recíprocas (obediência, dominação, hierarquia) como também das instituições
sociais – tudo que se refere ao exercício de poder. E designa a participação individual dentro
de um imaginário coletivo. “Um aspecto da vida social, da atividade global dos agentes
sociais, cujas particularidades se manifestam na diversidade dos seus produtos. Os
imaginários sociais constituem outros tantos pontos de referência no vasto sistema simbólico
que qualquer coletividade produz”. (BACZKO, 1985, p. 309)
Dessa forma a utilização da memória, enquadrada nos Livros de Linhagem através de
um processo de seleção consciente e ideológica, serviu ao discurso de uma classe que
precisava se justificar frente ao contexto histórico vigente. Seguindo ao fenômeno medieval
de utilizar matéria oral e elementos de tradições anteriores ao Cristianismo, a reação folclórica
e os aspectos regionais propiciaram a utilização de personagens melusinianas.
Mas quais seriam as implicações dessa análise? Primeiro, podemos observar a
importância da investigação que inclua aspectos sociais a discussões do campo do imaginário,
maravilhoso e da memória. Pensar sobre a Idade Média nesses termos é também refletir sobre
nossa sociedade, que ‘herdou’ partes de certas mentalidades e valores. O estudo das
reminiscências já se provou profícuo para conectar as relações e disputas que ocorrem no
Brasil.
É necessário, é claro, cuidado ao estabelecer relações de ‘continuidade’ ou
‘permanências’ sem que sejamos anacrônicos. Para conceber as ‘reminiscências’, segundo
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Macedo, devemos entender que a Idade Média não se esgota na temporalidade que lhe foi
atribuída, pois há várias concepções sobre este tempo histórico, que devem ser historicizadas
como discursos provenientes de suas épocas e contextos.
Na Europa, o aumento de especialistas no Medievo, conceituada como
‘medievalística’, coincidiu com momento em que a história se esboçava como disciplina
escolar, o que legou a sociedade duas formas de se ‘enxergar’ a Idade Média. A primeira,
‘residualidades’ ou ‘reminiscências’, que são “as formas de apropriação dos vestígios do que
um dia pertenceu ao medievo, alterados e/ou transformados no decurso do tempo”
(MACEDO, 2011, p. 13).
Devemos ter cuidado ao lidar com essa categoria, afinal nenhum elemento se
conserva tal qual no passado, possuindo os mesmos sentidos e usos do período. “Não basta,
porém, o cuidado do historiador em ressuscitar os fragmentos mortos do passado, é preciso
também um olhar de etnólogo sobre as manifestações vivas do presente que carrega aquela
herança” (FRANCO JR, 2008, p. 84). No Brasil existem vários exemplos de manifestações
culturais e realidades sociais que possuem ‘resíduos’ medievais. Dessa forma, não podemos
falar de uma ‘Idade Média brasileira’, mas sim de valores medievais no Brasil9.
9
Em ‘Raízes medievais no Brasil’ o historiador Hilário Franco Jr debate com o clássico ‘Raízes do Brasil’ de
Sergio Buarque de Holanda, e advoga pela investigação da Idade Média como um dos elementos formadores da
sociedade brasileira e para tal trabalha com as noções de sociedade senhorial, cultura arcaizante, a religiosidade
sincrética e informal e a psicologia coletiva. (FRANCO JR, 2008)
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