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A EVENDICIDADE PATRIARCAL NO CONTO I LOVE MY HUSBAND, DE

NÉLIDA PIÑON

Caio Vitor Marques Miranda (Doutorando - Universidade Presbiteriana


Mackenzie)

Resumo:
A ideologia da mulher dentro da produção artístico-literária foi um tabu
muito recorrente na América Latina até os anos 70. Após isso, a produção de
autoria feminina ganha atenção e se transforma em um campo de pesquisa
científica dentro das universidades, devido ao contexto do feminismo -
movimento social que busca a igualdade de oportunidades e direitos entre
homens e mulheres e denuncia a sociedade patriarcal que as apaga como
sujeito. Nesse sentido, objetivamos analisar – à luz do dialogismo de Bakhtin -
o conto I love my husband(1980), de Nélida Piñon, pertencente à primeira fase
da literatura de autoria feminina, em que ela denuncia, por meio de sujeito-
personagem, a realidade dos anos 70/ 80.

Introdução

Na literatura, a voz masculina é predominante. Enquanto à mulher lhe


era negado o direito de ler e escrever, assim ao homem cabia a tarefa de
retratá-la. Em um primeiro momento (Idade Média), elas eram idolatradas,
homenageadas com cantigas pelos seus amados que faziam questão de que
toda a praça soubesse de seu amor. Depois, são associadas a divindades,
comparadas a deusas, a elementos celestiais, e mesmo com “mundo em
mudança”, amá-las e tê-las por perto era uma utopia. Décadas mais tarde, na
era romântica, a figura feminina é motivo de muita dor para os homens,
pautada na impossibilidade de ter um relacionamento amoroso com elas.
Paralela a esse momento, a produção literária emprega também um discurso
que acabava por reforçar os ideais patriarcais acerca da inferioridade e
submissão da mulher. Em narrativas do século XIX, conhecemos muitas
histórias com esse perfil, e quase nenhuma escapa dessa imagem, somente no
final desse mesmo século, as conquistas femininas começam a surgir tanto nas
histórias literárias como nos feitos históricos da sociedade burguesa – que era
mais registrada até então pelos autores da época.
No século XX, a mulher deixa de ser excluída do âmbito artístico –
momento em que era retratada apenas pelo discurso masculino – e passa a
representar sua própria voz, sua imagem na sociedade, seus desejos, seus
personagens e suas ideologias. Inclusive, para Tonelo (2015), a figura feminina
foi, durante todo esse tempo, mal representada nas artes, já que ela não
possuía voz ativa e o que tivemos foi, então, a má interpretação de um discurso
masculino traduzindo a voz da mulher, uma visão ditada pela sociedade
machista e patriarcal da época. No entanto, após a chegada do feminismo no
país, essa realidade muda e a temática de suas produções se constrói a partir
dos valores patriarcais, de seu empoderamento e de sua busca pela
identidade, como acontece nos contos de Nélida Piñon, em especial no que
selecionamos como objeto de análise: I love my husband. Desse modo,
objetivamos evidenciar a primeira fase da literatura de autoria feminina: a
feminista, no conto em questão, à luz dos fundamentos de dialogismo de
Bakhtin (1997), mostrando como o sujeito discursivo critica os valores
patriarcais vigentes na segunda metade do século XX. Assim, o conto
enquadra-se na primeira fase da literatura de autoria feminina proposta por
Zolin (2009).

REPRESENTAÇÕES DA FIGURA FEMININA NA LITERATURA

Como postulado de forma introdutória, na literatura, a voz masculina é


predominante desde as primeiras produções literárias. À mulher foi negado o
direito de ler e escrever e ela foi relegada a ser retratada pelo homem. Nas
primeiras produções literárias, cantigas trovadorescas, as personagens
femininas eram idolatradas pelos seus amados que divulgavam seu amor em
público. Depois, são associadas a deusas, a elementos celestiais, e, mesmo
com as mudanças sociais, amá-las e tê-las por perto era uma utopia. Décadas
mais tarde, na era romântica, a figura feminina é motivo de muita dor para os
homens, pois, ainda idealizadas, eram vistas como impossibilidade para eles.
Com isso, o contexto social era reforçado e legitimado pela literatura. Em
narrativas do século XIX, conhecemos muitas histórias com esse perfil, e os
exemplos que não seguem esse caminho são escassos, somente no final
deste mesmo século, as conquistas femininas começam a surgir tanto nas
histórias literárias como nos feitos históricos da sociedade burguesa – cujo
retrato era apresentado nas produções da época.
No século XX, a mulher ganha espaço no âmbito artístico e passa a
representar sua própria voz, sua imagem na sociedade, seus desejos, seus
personagens e suas ideologias. Inclusive, para Tonelo (2015), a figura feminina
foi, durante todo esse tempo, mal representada nas artes, já que ela não
possui voz ativa e o que tivemos foi, então, uma má interpretação de um
discurso masculino traduzindo a voz da mulher, uma visão ditada pela
sociedade machista e patriarcal da época.
Para Zolin (2009), o que tivemos de registro da mulher foi de uma figura
feminina sedutora, vulgar, imoral, “uma megera indefesa e incapaz e, entre
outros, o da mulher como anjo capaz de se sacrificar pelos que a cercam”. Em
outras palavras, o maniqueísmo era representado pela mulher: ora causando o
mal aos homens e as suas famílias, pois eram sedutoras e perigosas, ora como
seres celestiais. O que ocorre poucas vezes, uma vez que apenas essa última
traz um ponto de vista positivo acerca da sua imagem.
Assim, para mudar essa realidade, o feminismo trará para a literatura a
consciência de dar visibilidade à produção literária realizada por mulheres e
trazer questionamentos sobre a visão de submissão que existe. Nessa primeira
fase de produção literária de autoria feminina, ainda havia reprodução do
comportamento machista, estereótipos de mulheres donas de casa, mulheres
felizes com seu casamento. Posteriormente outra visão sobre as mulheres
passou a aparecer, aquelas que fogem e conseguem ter sua independência,
aquelas que estudam, mulheres que refletem sobre seu papel na sociedade,
mulheres que lutam pela desigualdade social e tentam, de algum modo,
ressignificar sua presença na terra.
Neste novo panorama de produção literária de autoria feminina após os
anos 70, temos, para Zolin (2015), três fases dessa literatura. A primeira
titulada “feminina”, a qual traz enredos de mulheres que reproduzem a
realidade patriarcal, com submissões e objetificação da mulher. A segunda, por
sua vez, ficou conhecida como a ‘feminista” ou a “fase da ruptura”, já que
nessa produção, a figura feminina se recusa a seguir os moldes tracionais e se
mostram independentes, sem, muitas vezes, a presença dos homens. Por fim,
a terceira fase, denominada como “fêmea” ou “mulher”, traz uma busca pela
identidade feminina, que compartilha desejos e anseios, sem mais críticas
dilaceradas contra o sistema opressor de seu passado.
Aqui, nesse artigo, voltamo-nos a evidenciar a realidade patriarcal que
nos é contada por uma personagem que reconhece tal contexto, mostra-se fora
dele pelo viés subjetivo, mas decide racionalmente seguir a vida como lhe foi
imposta. Para essa ilustração, valemo-nos da ideia de dialogismo, defendida
por Bakhtin (2010), como vemos a seguir.

O DIALOGISMO DE BAHKTIN

Mikhail Bakhtin, filósofo e linguista, é um dos mais importantes


pesquisadores no que tange à linguagem humana, sendo pauta teórica de
várias áreas do conhecimento que rompem as barreiras das linguagens. Em
sua trajetória, debruçou-se sobre vários temas, desde estética literária, a
conceitos do discurso, como dialogismo, polifonia, cronotopo e carnavalização.
Aqui, focamo-nos no dialogismo que aparece em um de seus estudos do
círculo de Bakhtin - grupo de importantes estudiosos russos - e é defendido
pelo autor como fruto de nossa memória discursiva interior e exterior:

“Um produto ideológico faz parte de uma realidade (natural ou social)


como todo corpo físico, instrumento de produção ou produto de
consumo; mas, ao contrário destes, ele também reflete e refrata uma
outra realidade, que lhe é exterior” (BAKHTIN, M. (VOLOCHINOV, V.
N.) p.29 – pdf do livro, 1997)

Para Bakhtin (1997), a orientação dialógica é inerente a todo discurso,


qualquer enunciado responde e se relaciona com um anterior, que permeia
esse novo discurso. Além disso, todo discurso admite uma atitude responsiva
do seu interlocutor, dessa forma, ao realizar um enunciado, espera-se que o
ouvinte reaja a ele, respondendo-o.
Ainda para o autor, o dialogismo desdobra-se em duas formas dentro
dos mecanismos da linguagem do sujeito: uma de acordo com a alteridade do
ser, ou seja, a produção do discurso é elaborada de modo consciente, sabendo
o que dizer, como dizer, quando fazê-lo e o indivíduo, ao reproduzi-lo, já prevê
a réplica/refutação do seu interlocutor, assim, toda produção é proposital. Já a
segunda, se refere à natureza dialógica do sujeitou, ou seja, a enunciação é
reflexo de suas vivências e relações socioculturais, enunciados que vem dos
outros que ele manteve algum tipo de relação discursiva e hoje se encontra
interiorizada de modo inconsciente.
Nesse sentido, vemos a produção discurso de um sujeito como uma
ação viva, interligando-se com duas realidades que passam a coexistir:
passado e presente. Essas, de modo inconsciente, podem apresentar as
contradições do tempo, do espaço e dos valores: ao produzir o discurso, de
acordo com minhas vivências transculturais, posso discorrer um
posicionamento arcaico e não permitido nos dias atuais, por exemplo, uma fala
racista. Ou ainda: ler um romance contemporâneo que prega o estereótipo da
mulher dona de casa apenas mediante de seu enunciador é contraditório numa
realidade onde se debate sobre igual gêneros.
É necessário ressaltar que, para Bakhtin (1997), a situação social está
intrinsecamente relacionada à produção de linguagem. Se a palavra, para a
abordagem bakhtiniana, consiste no signo ideológico por excelência, então, ela
registra as menores variações das relações sociais. Ela representa a unidade
em que se cruzam as várias formas de contexto, comunicação e discurso.
Os textos literários, portanto, dentro do viés de Bakhtin, são fruto das
práticas verbais de um sujeito, que resgata – consciente ou não - uma
variedade de ideologias, que dialogam constantemente com as realidades
efetivas do ser. Cada discurso é uma memória axiológica:

“as obras rompem fronteiras de seu tempo, vivem nos séculos, ou


seja, na grande temporalidade, e assim, não é raro que essa vida (o
que sempre sucede com uma grande obra) seja mais intensa e mais
plena do que nos tempos de sua contemporaneidade” (BAKHTIN,
2010, p. 364).

Nesse sentido, passamos analisar o conto de Nélida Piñon, na


perspectiva dialógica de Bakhtin, o qual resgata a primeira das fases
mencionadas – a patriarcal, apresentando um sujeito discursivo que justifica
ironicamente, várias vezes, o amor pelo seu marido com práticas machistas
que exerce.

ANÁLISE DO CONTO

Sabemos que a linguagem é um meio de manipulação sócio política,


uma expressão ideológica se tomamos como premissa a ideia de todo
enunciado ser um ato político ideológico, já que, segundo Bahkhtin (2010), é
por ela que se constrói a manifestação do sujeito, em qualquer linguagem. Na
literatura e dentro da produção de autoria feminina, a realidade não é outra.
Nélida Piñon (1937), jornalista de profissão e uma autora consagrada pela
crítica literária, em sua produção discute os papéis femininos na sociedade da
segunda metade do século XIX em diante, com temas que versam sobre o
machismo, violência doméstica, amor, papel da mulher, igualdade de gêneros.
Membro da Academia Brasileira de Letras em 1990 e a primeira mulher
eleita para ocupar a presidência da casa, Nélida ilustra, por meio da ironia e de
outros mecanismos linguísticos textuais, o modo de olhar o feminino, sem cair
no discurso fácil das feministas, aquele em que apenas se protesta. Seu
objetivo antes é o mostrar que a opressão deve ser combatida pela ação e
também pela reconstrução discursiva, pois acredita que assim terá mais
chances de revelar e desvendar a alma das personagens, que servem de
espelhos para ser humano da época- mas não apenas.
Isso é o que acontece no conto em questão: “I love my husband”.
Narrado por um sujeito feminino, sem nome – apenas com o conhecimento de
gênero e classe – (re)vemos os valores cristalizados ainda na família
tradicional brasileira, em que cabe ao homem o sustento, à mulher o trabalho
doméstico e sua subordinação. O título do conto, frase que percorre todo o
texto e o finaliza, nos remete a duas ideias: a primeira, que se trata de um
enredo circular, assim como a aliança que representa um matrimônio, ciclo da
vida em conjunto, promessa de amor eterno, não havendo mudança do
posicionamento; e a segunda, a existência de um sujeito discursivo apaixonado
pelo marido, - que o faz, de primeiro, em inglês, como se não pertencesse a
sua realidade e lembrado desse sentimento no final, posposto a uma
interjeição - justificando-se com posturas patriarcais da sociedade:

Eu amo meu marido. De manhã à noite. Mal acordo, ofereço-lhe café.


Ele suspira exausto da noite sempre mal dormida e começa a
barbear-se. Bato-lhe à porta três vezes, antes que o café esfrie. Ele
grunhe com raiva e eu vocifero com aflição. Não quero meu esforço
confundido com um líquido frio que ele tragará como me traga duas
vezes por semana, especialmente no sábado.

A frieza do casamento é representada aqui pelo café frio, ao


assemelhar-se com o que eles vivem, fugindo totalmente da ideia pré-
estabelecida de um relacionamento amoroso. Assim, discute-se essa divisão
social, sobretudo pela opressão a que é submetida a mulher, que não tem
domínio sobre o próprio corpo, cuja função é servir o marido de todos os
modos. É uma revolução silenciosa, que se faz primeiro no espírito, em seu
processo de percepção da realidade, para depois começar a realizar-se nas
palavras e, por fim, constituir-se como novo mundo.

Ele diz que sou exigente, fico em casa lavando a louça, fazendo
compras, e por cima reclamo da vida. Enquanto ele constrói o seu
mundo com pequenos tijolos, e ainda que alguns destes muros
venham ao chão, os amigos o cumprimentam pelo esforço de criar
olarias de barro, todas sólidas e visíveis. (p. 163)

Esse excerto demostra uma das várias experiências sociais dialógicas


incutidas no seu discurso, ao acreditar que é ingrata dentro do seu papel como
dona de casa – explícito pelas atividades domésticas descritas. Ademais, as
perguntas retóricas permeiam o conto com os questionamentos devido ao
contexto histórico: de um lado, temos a ditadura militar, já em seu final - era o
governo Figueiredo (1979-1985), o último presidente militar; e do outro, a
chegada dos ideais feministas ao país, em que a submissão da mulher dentro
dos moldes patriarcais é trazida à tona das mais diversas formas, seja pelas
manifestações artísticas, seja pelos movimentos de protesto, em que o medo e
o silêncio ainda eram ardis para coibir manifestações mais acentuadas.
Dessa forma, a voz feminina, da dona de casa insatisfeita, mas sem
ação, dialoga com o discurso patriarcal durante todo o texto. Ao falar das
queixas do marido, a narradora, evidencia a polifonia no texto e faz menção ao
discurso que permeia a sociedade na época e determina o lugar da mulher, o
que ela deve sentir ou falar.
É curioso o fato que subsiste no conto, a mulher consciente de sua
subserviência, expondo-a de forma irônica. Em poucos momentos, reclama por
mais liberdade, no sentido de poder fazer sua voz ser ouvida, mas ao mesmo
tempo percebe ser melhor manter a vida dentro do padrão em que fora criada.
Assim, o ethos do sujeito começa a ficar mais claro a cada parágrafo do conto,
uma vez que evidenciamos sua natureza dialógica, o contexto de onde fora
criada e como ela o reproduz:

O que mais quer, mulher, não lhe basta termos casado em comunhão
de bens? E dizendo que eu era parte do seu futuro, que só ele porém
tinha o direito de construir, percebi que a generosidade do homem
habilitava-me a ser apenas dona de um passado com regras ditadas
no convívio comum.

A figura masculina a todo momento expressa, pelo enunciador, a ideia


de superioridade. Dialoga-se, assim, com o sistema social em que homens
adultos mantêm o poder primário e predominam em funções de liderança
política, autoridade moral, privilégio social e controle das propriedades, –
inclusive da mulher que é vista como uma - a ponto de serem “ocos”, no que
tange aos seus sentimentos, já que são muitas as demandas:

Como quer que eu fale de amor quando se discutem as alternativas


econômicas de um país em que os homens para sustentarem as
mulheres precisam desdobrar um trabalho de escravo.

O questionamento retórico do eu remete, mais uma vez, à realidade


patriarcal de sua formação, – que no excerto acima coloca as questões
econômicas acimas dos valores sentimentais – também perceptível na voz da
mãe, quem partilha dessas praticas ao ensinar sua filha que ser mulher é não
se importar com o tempo, mas sim perder-se nele, pois sua função é servir o
outro – família constituída - e não a si mesma:

Ser mulher é perder-se no tempo, foi a regra de minha mãe. Queria


dizer, quem mais vence o tempo que a condição feminina? O pai a
aplaudia completando, o tempo não é o envelhecimento da mulher,
mas sim o seu mistério jamais revelado ao mundo.
Já viu, filha, que coisa mais bonita, uma vida nunca revelada, que
ninguém colheu senão o marido, o pai dos seus filhos? Os
ensinamentos paternos sempre foram graves, ele dava brilho de prata
à palavra envelhecimento.
[...]Só envelhece quem vive, disse o pai no dia do meu casamento. E
porque viverás a vida do teu marido, nós te garantimos, através deste
ato, que serás jovem.

Nesse excerto e no anterior, é possível também verificar a presença do


leitor. As perguntas retóricas dirigem-se à própria narradora, mas revela a
consciência de um “auditório social”, como colocado por Bakthtin (Volochnov,
1997), dirigindo-se também ao leitor, àquele que pode estar se questionando
sobre o que a narradora pode estar pensando sobre essa sujeição. A figura do
pai, dentro dos moldes do conto, expressa, com orgulho a beleza de uma vida
destinada totalmente ao seu marido e aos seus futuros filhos e que é a eles
que se deve viver. Em nenhum dos planos, existe a preocupação com o seu
ser, com a sua alteridade. Era preciso, pois, anular-se para ser. Em outras
palavras, quando casada, liberta-se do pai, quem transfere o poder ao marido,
mas dele passa então a ser propriedade, sem voz, desconhecendo as leis do
homem e as suas, não se posiciona. Torna-se, portanto, um ser relegado ao
“bem querer” masculino.
Observa-se aqui a presença da voz do discurso patriarcal da época
simbolizado pelo pai, a narradora justifica sua condição pela fala parental,
assim, esse enunciado dialoga tanto com esse discurso machista, quanto com
o seu oposto, o discurso feminista que poderia condenar a narradora por se
sujeitar. Essa presença dialógica é demonstrada pela necessidade de justificar
suas ações e resiliência.
Em relação ao discurso patriarcal, do bem-estar da mulher ser
responsabilidade do homem e o desfrutar do corpo e das ações femininas
também caber ao pai, ao marido e aos filhos consiste em uma apreciação
axiológica que se repete no tom de constante agradecimento que cabe a ela ter
ao seu marido. Ele é responsável pela sua “moldagem”, o ato de raciocinar é
responsabilidade dele, a ponto de usar apenas as palavras do homem, já que
tem receio de cometer erros e “apelar para as palavras inquietantes que
terminam por amordaçar a liberdade”, ou seja, a produção de seu discurso é
embasada nas produções discursivas do homem. Quando pensa na ideia de
liberdade, em busca de uma identidade em que se reconheça, em sair de uma
vida imposta - no primeiro momento pela sua família e depois, pelo seu marido
- o sentimento de empoderamento cresce, mas passa, pois a narradora
entende que é um erro:

Ah, quando me sinto guerreira, prestes a tomar das armas e ganhar


um rosto que não é o meu, mergulho numa exaltação dourada,
caminho pelas ruas sem endereço, como se a partir de mim, e
através do meu esforço, eu devesse conquistar outra pátria, nova
língua, um corpo que sugasse a vida sem medo e pudor. E tudo me
treme dentro, olho os que passam com um apetite de que não me
envergonharei mais tarde. Felizmente, é uma sensação fugaz, logo
busco o socorro das calçadas familiares, nelas a minha vida está
estampada.

No final, os valores cristalizados do contexto do conto – subserviência


feminina - se reafirmam na fala do sujeito, assim como ideologia presente no
imaginário da narradora, assumindo uma atitude avaliativa de sua vida.
Resgata-se, então, a mesma frase que inicia o conto, é mas introduzida por
uma interjeição afirmativa que parece indicar uma constante e necessária
obrigação de lembrar-se do seu amor: “Ah, sim, eu amo meu marido” –
destronando qualquer sentimento de afetividade devido ao tom irônico, ou seja,
o não dito pelo seu discurso.
A questão toda não deve ser vista apenas como amar e ser amada, e
sim o quanto a repetição do dessa frase – título do conto - ao longo dele
representa a ironia, sua consciência diante de sua realidade, mas ao mesmo
tempo, seu silenciamento devido aos valores vigentes.

Sou grata pelo esforço que faz em amar-me. Empenho-me em


agradá-lo, ainda que sem vontade às vezes, ou me perturbe algum
rosto estranho, que não é o dele, de um desconhecido sim, cuja
imagem nunca mais quero rever. Sinto então a boca seca, seca por
um cotidiano que confirma o gosto do pão comido às vésperas, e que
me alimentará amanhã também. Um pão que ele e eu comemos há
tantos anos sem reclamar, ungidos pelo amor, atados pela cerimônia
de um casamento que nos declarou marido e mulher. Ah, sim, eu
amo meu marido

Paradoxalmente, diversas vozes se manifestam, ao longo do enredo


pelo sujeito que o narra, mas destacam-se: a visão do marido, encarregado de
fazer o país progredir e necessita do suporte doméstico da esposa,
representando o discurso patriarcal vigente; a visão da mulher que quer
completar-se como ser para além das simples atividades domésticas,
demonstrando a voz da mulher que não sabe como agir diante dos discursos
vigentes; a visão de um outro pensamento, mais libertário, ao qual a mulher
sente a necessidade de se justificar e explicar porque não se rebela e se
liberta. Assim, a identidade feminina é camuflada pela primeira voz, pois
ensinaram-lhe a premissa de esvaziamento, de subordinação, o homem como
autoridade de um matrimônio que a objetifica, demonstrando construção da
cultura da sociedade machista. Além disso, a terceira voz também impõe um
fardo à mulher que não sabe o que fazer e como agir diante dos
questionamentos colocados a ela e das obrigações impostas pelo masculino.
A evendicidade do conto, portanto, e os valores apresentados pelo sujeito
discursivo – de modo irônico - remete a escrita de Nélida Piñon à primeira fase
da literatura de autoria feminina: a feminina.
Além disso, é interessante olharmos para o objeto estético dentro do
contexto produzido – meados da segunda metade do século XX – classificado
como literatura contemporânea, que tinha como compromisso, segundo
Shcollhammer (2009), criticar a realidade social e política, respondendo ao
regime autoritário que está em declínio e romper com os valores que eram
pregados por eles. É exatamente isso que o conto faz, com a narradora
submissa, consciente, que emite no seu discurso irônico a submissão
estrutural, Nélida Piñon impulsiona os valores do recém movimento feminismo
ao escrever sobre o perfil de uma mulher que naquele contexto ainda é criada,
segue os moldes estruturais transmitidos pelas famílias e se recusa a um olhar
intrínseco, se nega, ao afirmar-se mulher, a reconhecer sua identidade.
Com os mecanismos ideológicos, textuais, a autora assume seu dever
com a sociedade da qual é fruto, vítimas do patriarcado e denuncia esse crime
cometido por séculos na história: o silenciamento de uma mulher. Ela sugere,
pelo não dito, o rompimento desses valores, igualdade de direitos e a quebra
de estereótipos da construção familiar.

CONSIDERAÇÕES

Nesse trabalho – que tínhamos como propósito mostrar os elementos


em que enquadramos o conto de Nélida Piñon dentro da produção de autoria
feminina – a primeira fase – pelo viés do dialogismo de Bakhtin - evidenciamos
valores arcaicos expressos pelo sujeito-personagem ao reafirmar
constantemente que ama seu marido com atitudes do século XVIII, mesmo
presente em outra realidade: anos 70/80. Tal fato se justifica com as relações
axiológicas vividas pela personagem, ou seja, suas relações pessoais, o que
ela reproduz é fruto de uma família que acreditava nesse quadro de valores,
apagando sua identidade como mulher para servir-se a outro. Entretanto,
consciente desse contexto, ela se vale da ironia e das perguntas retóricas para
criticar os comportamentos a ela ensinados, impostos, tirando-lhe seu poder de
decisão.
Essa é a genialidade de Piñon usada para discutir papeis femininos na
sociedade, uma arma que ela oferece a mulher, aos educadores para mudar
contextos de mulheres subordinadas, maltratadas, desconhecem seus direitos.

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. 4. ed. Trad. Paulo Bezerra. São


Paulo: Martins Fontes, 2010.
BAKHTIN, M. (VOLOCHINOV, V. N.). Marxismo e filosofia da linguagem:
Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem.
Tradução de Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. 8. ed. São Paulo: Hucitec,
1997.

BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética: a teoria do


romance. Trad. BERNADINI, Aurora F. et al. 4. ed. São Paulo: Editora UNESP,
1998.

PINON, Nélida. I love my husband. Disponível em:


<http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/fale/article/view/23148/14078>
Acesso 20 maio 2020.

VOLÓCHINOV, Valentin (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da


linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da
linguagem. Tradução, notas e glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova
Américo. Ensaio introdutório de Sheila Grillo. São Paulo: Editora 34, 2017.

TOFANELO, Gabriela Fonseca, “A trajetória do feminismo na literatura de


autoria feminina”, 2015. Disponible en:
<http://www.sies.uem.br/trabalhos/2015/593.pdf> [15 de mar. de 2019]

ZOLIN, Lúcia Osana, “A literatura de autoria feminina brasileira no contexto da


pós-modernidade”, en Ipotesis, 2009. Disponible en:
<http://www.ufjf.br/revistaipotesi/files/2009/10/a-literatura-de-autoria-
feminina.pdf> Acesso 30 março 20120

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