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Desconstruindo falas do falo

Nordestino: uma invenção do falo de desconstruir essa imagem que vem sendo
desenhada e redesenhada por uma extensa
– uma história do gênero masculino produção cultural e intelectual desde o começo
(Nordeste – 1920/1940). do século XX.1
Albuquerque Júnior, doutor em História Social
pela Universidade Estadual de Campinas e pós-
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de.
doutor em Educação pela Universidade de
Barcelona, depois de publicar A invenção do
Maceió: Edições Catavento, 2003. 256 p. Nordeste e outras artes (Cortez/Massangana,
1999) e vários livros e artigos – boa parte tendo
como temática central o gênero masculino –,
acaba de publicar esta obra que figura entre as
primeiras produções brasileiras em história sobre
Quando Durval Muniz de Albuquerque Júnior masculinidade.
parafraseia Paul Veyne na página 21 da Somando 256 páginas, Nordestino: uma
introdução de Nordestino: uma invenção do falo invenção do falo – uma história do gênero
dizendo que, “se tudo é história dos homens, logo masculino (Nordeste – 1920/1940), que se
ela não existe”, ele já anuncia a que veio: seu encontra dividido em dois capítulos, sendo o
livro não é uma história dos homens enquanto primeiro “A feminização da sociedade” e o
espécie, mas sim do gênero masculino, pois não segundo “A invenção de um macho”, tem uma
dicotomiza os gêneros masculino e feminino ampla e rigorosa pesquisa em jornais impressos,
como realidades distintas e homogêneas, como principalmente no Diário de Pernambuco, textos
fez boa parte da historiografia das mulheres, dos históricos e memorialistas, romances, artigos e
excluídos, da sexualidade e até do gênero obras clássicas de autores como, entre outros,
inspirada no marxismo, o que permitiu a essa Gilberto Freyre, Luiz da Câmara Cascudo, Sérgio
historiografia concluir que toda a memória da Buarque de Holanda e Euclides da Cunha.
sociedade e toda a história da humanidade No primeiro capítulo, trabalhando
fossem dos homens; outrossim, esse livro, não é basicamente com a obra Ordem e Progresso de
uma história assentada na idéia da existência de Gilberto Freire e com material de articulistas do
uma “psique feminina” em oposição a uma Diário de Pernambuco, o autor recompõe um
“psique masculina” de experiências assimétricas discurso tradicionalista em que as mudanças
de um “eu masculino” – racional, pragmático e sociais que aconteceram no Nordeste desde o
utilitário – e um “eu feminino” – irracional, final do século XIX até os anos 1940 eram vistas
sentimental, fantasioso –, idéia tão cara a autores como um processo de feminização da
como Nancy Chodorow, Joseph Pleck e David sociedade. As mudanças que propendiam para
Lisak; tampouco, não é um livro que não se a quebra das hierarquias sociais, o avanço da
sobrepõe à dicotomia entre esfera pública e modernidade, a ascensão da República e a
esfera privada imposta, sobretudo, por Habermas; progressiva vitória da cidade sobre o campo
ainda, não é um livro que traz um discurso eram descritas a partir de imagens que remetiam
vitimário ou masculinista, o qual fornece aos a significados de gênero em que a sociedade
homens um estatuto de vítima de um conjunto estaria se feminizando. Esse discurso agenciava
de fatores psíquicos e sociais – discurso que um conjunto de metáforas em que as mudanças
acabou ganhando adeptos no Brasil como históricas passavam a ser vistas no feminino, ou
Sócrates Nolasco. É, pois, uma pesquisa seja, mulheres que solapavam o lugar tradicional
minuciosa, contando pelo menos quatro anos de dos homens, o lugar de pai, de patriarca, e
trabalho, que tem por objetivo principal a análise, constatavam com angústia um tempo de homens
sob uma perspectiva de gênero, da construção que se desvirilizavam. Processo que Gilberto
histórica e cultural da identidade do nordestino Freyre descreveu como sendo aquele que levou
tal qual ainda hoje nos é transmitida: “cabra ao declínio do que chamou de sociedade
macho”, “cabra da peste”, símbolo da virilidade patriarcal.
e da força, “valentão”, bravo, entre outros... Inicialmente o autor mostra como, nos
Constitui-se, também, como intenção do autor discursos masculinos, as fronteiras de gênero

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pareciam estar se misturando: as mulheres detrimento do cavalo de sela, símbolo de
usavam cabelo à la garçon e os homens distinção e de masculinidade; trouxera o
raspavam suas barbas. Por um lado, o crescimento da prostituição em função do fim
refinamento da vida moderna, exigido pela da proteção que, na sociedade patriarcal, era
moda, levava os homens a uma delicadeza de dada, pelos homens poderosos, às meninas
falas, gestos e atitudes. “Os homens duros de pobres que defloravam e da substituição
antigamente agora amoleciam, perdiam a progressiva das prostitutas nacionais por
virilidade, a potência” (p. 49). Por outro lado, estrangeiras; trouxera o aumento do número de
constatava-se a participação crescente das suicídios entre os homens, o que parecia
mulheres na vida pública, particularmente no demonstrar o enfraquecimento do sexo
mundo das letras, o que deixava os homens masculino, “que vinha se deixando levar, cada
ansiosos, pois freqüentemente o discurso vez mais, pelos desatinos do coração, como
masculino procurava reafirmar a superioridade faziam as mulheres” (p. 115); trouxera a
do intelecto masculino sobre o feminino, o que, desnacionalização e a desvirilização da culinária
para o autor, mostra que os homens já não e a desvalorização das manifestações de cultura
estavam mais seguros disso. Essas mudanças popular; enfim, a modernidade, aparece no
revelam um processo de horizontalização dos discurso tradicionalista como uma “mulher
costumes, em que a verticalidade e a hierarquia devoradora, que não perde tempo em deformar
estariam sendo ameaçadas pelo alastramento e destruir as manifestações viris da tradição
do feminino pela sociedade, pela supressão das patriarcal” (p. 123-124). Para Durval, a vitória da
fronteiras entre etnias e raças – conseqüente à cidade sobre o campo aparece no discurso
Abolição –, pelo progressivo acesso ao mundo tradicionalista como fazendo parte de uma
da política de parcelas da sociedade, antes tendência de suavização da vida, de
excluídas, com o advento da República e pela desvirilização dos costumes, de horizontalização
débâcle da sociedade dita patriarcal. das hierarquias, de desnaturalização da
O autor detalha como a República foi vista existência e de introdução do artifício da
como um regime de política desvirilizada através sedução, apanágio feminino, em toda a
de uma série de metáforas que remetiam aos sociedade, tornando superficial a vida na
papéis de gênero, e a imagem que se pretendia cidade.
construir era a de um processo de passagem de Após apresentar essas preocupações e
um período marcado pela simbólica do angústias do discurso tradicionalista diante das
masculino para um período marcado pela mudanças vivenciadas no começo do século XX,
simbólica do feminino, em que até alguns o autor encerra o primeiro capítulo com uma
fundadores da República seriam homens quase excelente reflexão sobre a invenção do
sempre “prejudicados pela tal delicadeza patriarcalismo, conceito que atravessa todo o seu
feminina” (p. 87); esse trabalho nos ajuda a trabalho. O autor não está interessado em analisar
perceber como a emergência da participação em que medida o patriarcalismo é a realidade
política da mulher e a emergência do feminismo da Colônia ou do século XIX. Seu interesse está
concorrem para esse processo de feminização em se perguntar por que, no começo do século
da sociedade, o que para Gilberto Freire seria passado, intelectuais como Gilberto Freyre
outro indício da ruína da família patriarcal. descrevem esse período como patriarcal. Seu
A vitória no plano econômico e no plano interesse é a emergência desse conceito, a que
político da cidade sobre o campo, vista por práticas discursivas e não-discursivas ele está
Gilberto Freire como fator decisivo para o que ligado. Antes de se preocupar se o conceito dá
identificou como crise da sociedade patriarcal, ou não conta da realidade, o autor preocupa-se
foi reconhecida pelo discurso memorialista como em historicizá-lo. Para ele, o conceito de
um distanciamento progressivo entre o homem e patriarcalismo emerge a partir de uma reação a
a natureza; os homens nesse momento se esse processo que o próprio Freyre e o discurso
aproximavam da superficialidade, da histeria e tradicionalista vinham identificando como
da frivolidade da cidade – características feminização da sociedade. Aquela sociedade
designadas como pertencentes ao mundo marcada pelo poder masculino, pelo império dos
feminino – e se afastavam da natureza, da vida pais, sociedade das parentelas, fundamentada
familiar do campo e das casas de engenho, em relações paternalistas, se modificava
expressões da solidez de poder e fortuna das progressivamente por um processo visto como de
famílias patriarcais. A modernidade da cidade desvirilização, de declínio de um dado modelo
trouxera a velocidade do automóvel em de masculinidade em que as fronteiras de gênero

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se confundiam. Nessa linha de raciocínio, a formação discursiva naturalista, com conceitos,
noção de patriarcalismo é mais uma metáfora temas e enunciados vinculados à formação
do que um conceito; uma grande imagem que discursiva nacional-popular de matriz culturalista”
ajuda a descrever um período. Ora, a noção de (p. 164). Analisando esse discurso, o autor nos
patriarcalismo não pode ser entendida fora desse mostra como a identidade regional nordestina é
momento histórico vivido pelo autor, que o inventada como uma “reação viril” diante da
identifica como um momento de declínio do passividade da região; o tipo nordestino surge
masculino. como um tipo voltado para a preservação de
Para além dos críticos do patriarcalismo, um passado regional, tradicional e patriarcal que
como Thompson,2 por exemplo, Durval Muniz diz estaria desaparecendo e dando lugar a uma
que “o problema da noção de patriarcalismo [...] sociedade “matriarcal”, efeminada. É interessante
não está precisamente na descrição insuficiente lembrar que, de acordo com o autor, nesse
que faria do passado, mas nas motivações que discurso, está se falando do nordestino enquanto
embasam esta leitura do presente e sua homem, um macho, não enquanto palavra que
repercussão posterior para o entendimento da serve para se referir a toda a espécie humana,
história brasileira” (p. 141). “O fato de o termo não pois a idéia de nordestino que está emergindo é
descrever a totalidade das relações, ser frouxo, pensada no masculino, não havendo lugar para
não o invalida, pois não nos parece que o seja o feminino nessa figura.
mais do que termos como ‘feudalismo’ ou Assim, o autor recupera com muita
‘burguês’: estes também são abstrações, competência o discurso “iridescente” do
generalizações que estão longe de descrever nordestino. Um tipo regional que emerge de um
toda a trama social num dado período histórico” discurso eugenista que procurava naturalizar os
(p. 143). comportamentos e valores do nordestino; de um
No segundo capítulo, recuperando o discurso antropogeográfico que procurava
discurso que chama de regionalista, Albuquerque explicar as características físicas, os traços
Júnior estuda a emergência da idéia de Nordeste subjetivos e os códigos culturais do nordestino
e de nordestino. Nessa empreitada o autor nos como produto da natureza particular da região;
mostra que o recorte regional Nordeste e a de um discurso literário que desenhava o
identidade regional nordestina surgem em torno nordestino como aquele que partilhava da
dos anos 20 do século passado se configurando superioridade dos fortes, temido, capaz de tudo,
lentamente até se afirmar, de forma definitiva, a valente, corajoso em uma região que até a
partir dos anos 30. Apesar de surgir como termo mulher é “macho sim senhor”; de um discurso que
para designar a área de atuação da Inspetoria agenciava uma série de imagens e enunciados
de Obras Contra as Secas, o recorte regional que constituíam os tipos regionais anteriores como
Nordeste, no discurso das elites, aos poucos, vai o sertanejo, o brejeiro, o praieiro, o vaqueiro, o
ganhando conteúdo histórico, cultural, coronel, o senhor de engenho, o caboclo, o
econômico, político e até artístico. matuto, o beato e o retirante; enfim, de discursos
O autor é rigoroso na análise de uma série tradicionalistas ou regionalistas que localizam o
de enunciados desse discurso regionalista que falo como significante central na forma de ser
concorrem para a emergência da idéia de do nordestino. “Assim, a figura do nordestino ao
Nordeste e nordestino. Aos temas da seca e da ser gestada, nos anos vinte, vai agenciar toda
crise da lavoura, passando pelo Movimento uma galeria de tipos regionais ou tipos sociais
Regionalista e Tradicionalista – encabeçado por marcados por uma vida rural, por uma
Gilberto Freyre – e pela literatura de cordel, somar- sociabilidade tradicional, e, acima de tudo,
se-á um discurso eugenista de cunho desenhados com apanágios masculinos” (p. 227).
evolucionista na configuração e construção do Notadamente de inspiração metodológica
Nordeste enquanto recorte regional e do na obra de Michel Foucault,3 especialmente o
nordestino enquanto termo que surge para seu “método arqueológico”, Durval Muniz de
nomear os habitantes de uma área inicialmente Albuquerque Júnior apresenta um trabalho de
compreendida entre os estados de Alagoas e muito valor para as ciências humanas e para os
Ceará e às vezes aplicado, com menos estudos de gênero e história cultural no Brasil. Mas,
freqüência, para nomear também os habitantes também, de igual importância para a sociedade
do Piauí e do Maranhão. atual que ainda se depara com relações
Segundo o Durval, “a elaboração da hierárquicas e desiguais entre gêneros, etnias e
figura do nordestino vai se dar pelo cruzamento gerações. Procurando “desconstruir as falas que
de conceitos, temas e enunciados vinculados à inventaram o falo”, o autor contribui assim com

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um trabalho que ajuda a pensar e ver aqueles Feministas, IFCS/UFRJ, v. 6, n. 1, p. 91-112, 1998; LISAK,
que foram reunidos sob o termo de nordestinos e David. “Sexual Aggression, Masculinity and Fathers.” Signs,
aquela região que foi designada como Nordeste v. 16, n. 2, Winter, 1991, apud OLIVEIRA, Pedro Paulo. Op.
de forma plural. cit.; HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera
pública: investigação quanto a uma categoria da
1
VEINE, Paul. Como se escreve a História. Brasília, EDUNB, sociedade burguesa. Tradução de Flavio Kothe. Rio de
1982; CHODOROW, Nancy. The Reproduction of Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984; NOLASCO, Sócrates. O
Mothering. Berkeley: University of California Press, 1978; mito da masculinidade. Rio de Janeiro: Rocco, 1993.
CHODOROW, Nancy. Psicanálise da maternidade: uma
2
THOMPSON, Edward Palmer. Costumes em comum. São
crítica a Freud a partir da mulher. Tradução de Nathanael Paulo: Companhia das Letras, 1998.
C. Caixeiro. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1990; PLECK,
3
FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. 6. ed. Rio
Joseph. “Men’s Power with Women, other Men and Society: de Janeiro: Forense Universitária, 2002.
a Men’s Movement Analysis.” In: KIMMEL, Michael S., and
MESSNER, Michael A. (eds.). Men’s Lives. Boston: Allyn and
Bacon, 1994, p. 33-41, apud OLIVEIRA, Pedro Paulo. Fernando Vojniak
“Discursos sobre a masculinidade”. Revista Estudos Universidade Federal de Santa Catarina

“Mulheres italianas” e imaginário coletivo


Imagens femininas: contradições, instalado no Sul do Brasil sem sofrer qualquer
alteração de seus valores, práticas e lutas. A
ambivalências, violências. autora analisa o mito da mamma – ora
representado pela mulher laboriosa e resignada,
FAVARO, Cleci Eulália. ora dominadora e corajosa – na perspectiva de
desconstruí-lo, visando a forjar um novo
Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002. 258 p. conhecimento histórico que contemple a
participação de tais mulheres na formação
histórica, cultural, política e econômica da Região
Colonial Italiana do Rio Grande do Sul, entre as
últimas décadas do século XIX e meados do
Cleci Eulália Favaro teve sua formação no século XX. A autora defende a validade de seu
Rio Grande do Sul: graduou-se em História pela trabalho afirmando que as mulheres foram
Universidade de Caxias do Sul, concluiu mestrado excluídas da história da imigração italiana do Rio
(1986) e doutorado (1995) pela PUC–RS, e desde Grande do Sul. Usando o recurso da história oral,
1990 é professora e pesquisadora na na modalidade história de vida, Favaro percebe
Universidade do Vale do Rio dos Sinos, em São que as lembranças daquelas mulheres são
Leopoldo. Ao longo de sua trajetória acadêmica, profundamente vinculadas à história de suas
vem se especializando em discutir as relações famílias e às suas experiências de gênero.
de trabalho no espaço urbano industrial da No primeiro capítulo (“La donna (in)móbile:
sociedade do Rio Grande do Sul a partir da uma aproximação histórica ao tema”), a autora
inserção dos imigrantes de origem européia – e, estabelece um debate com Engels 2 na
de modo especial, das mulheres – na região expectativa de refletir sobre o papel da mulher a
estudada. Dentro desse recorte temático, partir da origem da família, da propriedade
questões como representações, relações de privada e do Estado. A análise aponta que,
gênero, história da família e história econômica primeiro, com o surgimento da propriedade
vêm sendo contempladas com base em amplo privada e, depois, do Estado, o papel da mulher
trabalho de pesquisa, publicado em revistas e passou a ser hierarquizado e submetido a
congressos de história. mecanismos de controle, como o casamento
Na obra Imagens femininas: contradições, institucional e códigos que legitimavam os direitos
ambivalências, violências,1 Favaro defende a de herança. Com o advento e expansão do
tese de que é preciso romper com o mito ainda capitalismo, acentuou-se consideravelmente a
presente no imaginário coletivo de que a mulher distinção entre o público e o privado. Nas
italiana teria atravessado o Atlântico e se sociedades industrializadas, entre os séculos XV

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