Você está na página 1de 3

A construção social do prazer

O orgasmo e o Ocidente: uma ocidental: séculos XVI e XVII, com o binômio prazer
e dor; do século XVIII a 1960, quando, após uma
história do prazer do século XVI a “liberalização dos costumes” nos primeiros cem
nossos dias. anos, manifesta-se um retrocesso com o
puritanismo; e a partir de 1960, quando o autor
MUCHEMBLED, Robert. dedica-se à contraposição entre um hedonismo
europeu e a continuidade do modelo repressor
São Paulo: Martins Fontes, 2007. 377 p. nos Estados Unidos.
A primeira fase, marcada pela acentuada
desconfiança em relação ao feminino e intensa-
(Tradução de Monica Stahel do original
mente influenciada pelo discurso religioso,
L’Orgasme et l’Occident: une histoire du apresenta no extremo da suspeição as preten-
plaisir du XVIe siècle à nos jours. Paris: sas bruxas. Observa-se nas transcrições dos
Seuil, 2005). interrogatórios uma sexualidade profundamente
deturpada, traduzida em coitos dolorosos com
íncubus (demônios masculinos) e esterilidade. A
ansiedade provocada pelo corpo feminino, cuja
Traduzido no Brasil dois anos após seu luxúria é disseminada na iconografia, pode ser
lançamento na França, O orgasmo e o também observada no interesse suscitado pelas
Ocidente é o segundo livro de Robert dissecações, quando são buscadas respostas à
Muchembled publicado no país, que começa natureza considerada fria e úmida das mulheres,
a receber a produção de um autor destacado além de sua vinculação ao pecado original.
na historiografia francesa contemporânea. Paralelamente a esse cenário, delimita-se
Voltada ao percurso do prazer ao longo dos a imagem da esposa centrada na procriação
últimos cinco séculos nos discursos religioso, sem recurso ao prazer dentro do casamento
literário e político, essa obra analisa comparati- que, por si só, é o destino dos incapazes de viver
vamente França e Inglaterra e, no século XX, os virtuosamente. No início do século XVII, os
desdobramentos da revolução sexual nos cânones anglicanos e católicos quanto ao
Estados Unidos, enfatizando o impacto da volúpia casamento refletem uma mesma intenção
nas mentalidades. ordenadora e, em ambos os lados do canal,
Seguindo sua análise em Uma história do intensifica-se a vigilância moral nas paróquias,
Diabo,1 de como o medo do Maligno construiu revelando a importância do policiamento
uma identidade coletiva da Europa ocidental, através do olhar externo previamente ao recal-
estimulada pela descoberta do Novo Mundo e camento. Nesse sentido, a própria exigência da
pelas reformas religiosas, nessa nova obra confissão desde o Concílio de Trento contribui
Muchembled explora como o prazer, seja em decisivamente para o enraizamento da culpabil-
sua busca, seja em sua repressão, não apenas idade nos católicos, que têm suas práticas
impulsionou indivíduos, mas também dinamizou sexuais questionadas pelos confessores.
os países abordados. Observa-se, após cada No entanto, apoiado em fontes jurídicas
voga repressiva, um período de busca pela liber- francesas e inglesas, o autor revela que o rigor
tação das amarras impostas e uma conseqüente moral apregoado pelos discursos eclesiásticos
revitalização intelectual, e desse desequilíbrio não se enraizou nas comunidades imediata e
entre sublimação do prazer e hedonismo intensamente segundo o apelo dos reformado-
ressalta-se a construção dos comportamentos. res. Assim, ressalta-se a necessidade de distinção
Diferentemente de Michel Foucault,2 o autor entre os discursos e as práticas, considerando-
foca nos meados do século XVI, a partir da se, sobretudo, que uma rígida normatização
conjunção de esforços entre Igreja e Estado no moral é lentamente difundida a partir do grupo
sentido de controlar os corpos e disciplinar as em que se difunde primariamente, para apenas
consciências de seus sujeitos, uma intensa paulatinamente atingir outros escalões sociais.
repressão do prazer, recuada apenas a partir Muchembled dá novos contornos à tese
da década de 1960. Seguindo essa evolução, de Max Weber de que o protestantismo traçou
a obra divide-se em três partes, correspondentes os rumos do capitalismo nascente, pois seria no
à concepção da sexualidade no mundo esforço em direção ao autocontrole e à depura-

Estudos Feministas, Florianópolis, 16(2): 691-713, maio-agosto/2008 711


ção do sexo que reside a originalidade da manifesta-se em meados do século XVII como
Europa ocidental moderna. Seguindo o pensa- um exutório, pois, nas palavras do autor, “é
mento de Norbert Elias sobre a civilização dos justamente o jogo entre a autoridade e a
costumes,3 o historiador francês enfatiza o papel transgressão que lhe dá vida e lhe confere um
desse processo no campo afetivo e na inibição status cultural importante, como testemunho da
da volúpia, para reforçar a teoria da repressão discordância entre os princípios e as realidades”
sexual enquanto um motor ocidental. (p. 158). Contudo, apesar de sua indecorosida-
O enquadramento juvenil é, para o autor, de, a pornografia nesse momento endossa os
essencial nesse cenário, e os adolescentes papéis sociais atribuídos aos gêneros, sem
constituem um grupo socialmente definido 4 questionar-lhes a validade.
muito antes do adequamento de sua sexuali- Os libertinos inauguram então o segundo
dade delimitado por Foucault no século XIX. Em período abordado pelo autor, no qual as
meio à reforma dos costumes e ao avanço da relações, outrora embasadas em prescrições
moralização, torna-se indispensável restringir a religiosas e judiciárias, além do controle familiar,
sexualidade dos jovens que, ademais, vêem são refundadas sobre a razão, o saber médico
progressivamente seus círculos e práticas de e uma nova percepção do amor. O princípio
solidariedade reduzidos. Assim, encontramos um da inferioridade feminina encontra a partir
propulsor fundamental na delimitação das desses elementos duas expressões: a esposa,
práticas lícitas que buscam o prazer. que deve ser confinada ao lar para a proteção
Nos grandes centros, ao mesmo tempo de si mesma, e a perdida, conjunção das faces
que se exalta o modelo conjugal para negativas até então projetadas sobre todas as
procriação, entrega-se o prazer à marginali- mulheres. O duplo padrão prega a separação
dade, disseminando-se junto às práticas entre procriação e prazer para o exclusivo
extraconjugais as DST e a ilegitimidade. Assim, benefício masculino, fundamentada não mais
evidencia-se que o prazer, mesmo obtido dentro no temor das penas infernais, mas na razão
do casamento, condena a mulher, pois está médica.
relacionado às prostitutas. O modelo de A disseminação do amor romântico até
masculinidade difundido acaba por remodelar as regiões mais distantes dos grandes centros a
a própria relação entre homens, pois o fantasma partir de meados do século XVIII obtém alguns
da homossexulidade começa lentamente a se resultados importantes analisados pelo autor:
materializar na esfera pública, passando mesmo crescem as separações por incompatibilidade
a amizade masculina à suspeição. Disseminam- na Inglaterra no mesmo período e diminuem
se dicursos contra o “vício solitário”, e nessa drasticamente os processos por traição, pois a
campanha Maurice Daumas ressalta a intenção infidelidade passa a perturbar a esfera privada
de se eliminar a sodomia através da perseguição mais do que a colocar em causa a estrutura
à masturbação e do enfraquecimento dos laços social em questão. No entanto, como Anthony
masculinos.5 Fletcher 7 já apresentou anteriormente, a
Constata-se que, embora no campo concordância dos cônjuges esconde uma
discursivo o prazer não deva ser almejado, sob armadilha para as mulheres que, ao dar seu
pena da perdição eternal, ele não deixa de ser aval na união, não deixam de se submeterem
explorado e encontra então novos meios de aos maridos, mas o fazem através do
expressão que se chocam com a ortodoxia. Na consentimento àquele que, em teoria, foi por
época barroca, o orgasmo ou ‘pequena elas escolhido, e recebem continuamente um
morte’ situa-se paradoxalmente tanto no modelo comportamental adequado através de
campo demoníaco quanto, para escritores uma literatura específica.
como Corneille, no campo místico. Em meio à O puritanismo ultrapassa os limites do
disseminação dos manuais de boa conduta, o reinado de Vitória (1837-1901) e, fomentado
lançamento, em 1655, do célébre manual de pelos filósofos, é adotado pelas burguesias
conduta erótica L’École des filles, 6 cuja enquanto um modelo de vida diferenciador dos
abordagem do orgasmo feminino virá a chocar demais grupos sociais. A necessidade
os espíritos decorosos – sem deixar de ser um despertada de ”triunfo sobre o vício”, do qual
sucesso editorial –, aponta para uma ‘virada despreende-se o autocontrole, conduz a um
pornográfica’, observada na França e na recalque dos prazeres, e Muchembled enfatiza
Inglaterra. o processo de elevação do constrangimento,
Chocando-se com a acentuação do decorrente da sublimação dos instintos pelo
disciplinamento nas grandes cidades e a própria habitus, que situa o limiar da transição rumo à
concentração do poder real, a pornografia inculpação pessoal.

712 Estudos Feministas, Florianópolis, 16(2): 691-713, maio-agosto/2008


Não admira, portanto, que nesse cenário expansão do erotismo, tradições seculares não
desenvolva-se a Psicanálise, para desenraizar são repentinamente obliteradas, e não deixarão
os traumas gerados pela repressão sexual sofrida de influenciar as gerações futuras na definição
desde a infância. Do mesmo modo, com o início de seus papéis
da transformação das mentalidades vitorianas, O autor finaliza discorrendo sobre questio-
também as autoridades médicas começam a namentos essenciais no início do novo século,
manifestar-se mais expressamente sobre as quando mais uma vez os jovens do sexo mascu-
“anormalidades” como o homossexualismo, o lino se vêem atingidos pelas mudanças, situando-
sadismo e o masoquismo, e a masturbação se no limiar entre uma secular tradição machista
cede espaço nos debates. e as exigências de respeito à igualdade pelas
Esse processo, no entanto, não se desenrola mulheres. Sobre as ruínas do patriarcalismo,
sem reclames dos moralistas, cuja concepção minorias outrora marginalizadas conquistam seu
de mundo fundamentada no duplo padrão direito à existência aberta e à cidadania, mas
começa a ruir com a quebra de tabus, o que são sobretudo as mulheres as beneficiadas pela
afeta notadamente o desequilíbrio da relação promoção do prazer, libertas da tutela patriarcal
entre os gêneros nos grupos trabalhadores. A lei e da procriação obrigatória.
sobre o divórcio, em 1884 na França e em 1920 Definindo a sexualidade como “a chave
na Inglaterra, assinala uma ruptura primordial nas da civilização moderna” (p. 346), Muchembled
estruturas sociais patriarcais, que recebem se propõe a trilhar um percurso percorrido por
contínuos abalos em suas fundações. Ademais, Michel Foucault, no qual confessamente se inspi-
os anos seguintes à Primeira Guerra Mundial, com ra, mas que com ele não se estagnou. Mais do
a busca de alívio das tensões, são decisivos na que discorrer sobre a historicidade do prazer
proliferação de práticas voltadas ao prazer e nos últimos cinco séculos, de modo inovador
de grupos marginalizados. Muchembled desenvolve uma teoria da
Muchembled atribui um papel capital na sexualidade explicativa da expansão européia
esteira das transformações à publicação, em na Modernidade.
1948, do primeiro relatório de Alfred C. Kinsey, Notas
um anúncio da era de libertação feminina do 1
MUCHEMBLED, 2001.
que o autor classifica como “tirania da 2
FOUCAULT, 1976.
sexualidade obrigatoriamente fecundadora” (p. 3
ELIAS, 2003.
308). Apesar da importância inegável das etapas 4
O autor trabalha mais especificamente o assunto em
seguintes, tendo em vista o longo período históri-
MUCHEMBLED, 1988.
co abordado, elas compreendem um espaço 5
DAUMAS, 2007, p. 327.
proporcionalmente reduzido na obra: a pílula 6
O livro apresenta a educação sexual de Fanchon por
anticoncepcional criada na década de 1950 e
sua prima, Susanne, com detalhes de sua iniciação e
difundida a partir da década seguinte e, na
busca pelo prazer.
década de 1970, o avanço das demandas e 7
FLETCHER, 1995.
conquistas feministas e, mais lentamente, homos-
sexuais, além do peso da legalização do aborto Referências bibliográficas
pela Suprema Corte Americana em 1973, DAUMAS, Maurice. Au Bonheur des Mâles.
elementos essenciais no progresso em direção Adultère et cocuage à la Renaissance
à igualdade dos gêneros, o que inclui a busca 1400-1650. Paris: A. Colin, 2007.
pelo prazer. ELIAS, Norbert. La Civilisation des mœurs. Paris:
A diferença de mentalidade entre os dois Pocket, 2003.
pólos analisados, a Europa ocidental e os Estados FLETCHER, Anthony. Gender, Sex & Subordination
Unidos do século XX, aponta não somente uma in England 1500-1800. New Haven, London:
diferença de valores fundada sobre distintas Yale University Press, 1995.
bases culturais, mas também diferenças internas. FOUCAULT, Michel. Histoire de la Sexualité. Paris:
Mesmo caracterizando a maior permissividade Gallimard, 1976. t. 1.
erótica européia, o autor não deixa de MUCHEMBLED, Robert. L’invention de l’homme
considerar as peculiaridades próprias à Europa moderne. Cultures et sensibilités en France
nórdica e à França, além da divisão americana du XVe au XVIIIe siècle. Paris: Fayard, 1988.
entre o Sul tradicionalista e os estados do ______. Uma história do Diabo: séculos XII-XX.
Nordeste e Nova York. E é o individualismo em Rio de Janeiro: Bom Texto, 2001.
marcha nessas áreas que antecipa a liberdade
sexual, lembrando-se ainda que, apesar dos Silvia Liebel
imperativos do mercado, que ditam a atual Université Paris XIII

Estudos Feministas, Florianópolis, 16(2): 691-713, maio-agosto/2008 713

Você também pode gostar