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O MARAVILHOSO EM MEIO A ENCANTAMENTOS E REDENÇÕES

NOS CONTOS TRADICIONAIS BRASILEIROS

MICHELLI, Regina (UERJ)


reginamichelli@globo.com

Resumo
Muitas narrativas da tradição constroem-se com base em encantamentos, cujo
esquema principal é haver príncipes e princesas encantados, algumas vezes
em decorrência de uma maldição. Para se libertarem, carecem da intervenção
de outras personagens, cuja atuação assinala a necessidade de passar por
sacrifícios e provas para acabar com o encantamento. Por redenção entende-
se uma condição em que um ser foi amaldiçoado ou enfeitiçado e é redimido
desse estágio através de certos acontecimentos no enredo. Considerando-se a
incidência dessas histórias, este artigo, desdobramento de pesquisa de pós
doutorado, tem por objetivo apresentar uma reflexão sobre os processos de
redenção e sua funcionalidade nas narrativas tradicionais brasileiras,
especialmente quando se pensa no público receptor infantil. Defende-se a
importância de se oferecer esse tipo de histórias às crianças não só pelo prazer
que o contato com o mundo maravilhoso do “era uma vez” lhes oferece, como
pelo fato de a leitura proporcionar a aprendizagem de valores éticos. Além
disso, o processo de identificação operado pela narrativa durante a recepção
aproximaria a criança desse tipo de enredo, estimulando-a à leitura. A
fundamentação teórica que orienta a pesquisa centra-se nos estudos
específicos de Literatura Infantil, do maravilhoso e de psicologia, destacando-
se os trabalhos de Marina Warner, Tzvetan Todorov, Marie Louise Von Franz e
Bruno Bettelheim. Por corpus, os contos da tradição brasileira recolhidos por
Câmara Cascudo, publicados na obra Contos tradicionais brasileiros.

Palavras-chave
Encantamento. Redenção. Contos tradicionais brasileiros.

Introdução

Nas obras destinadas às crianças e aos jovens, observa-se a presença


do maravilhoso: fadas, ogros, metamorfoses, objetos mágicos circulam nos
contos “acendendo” o olhar dos leitores ou ouvintes daquele texto. Por
maravilhoso resgata-se a conceituação apresentada por Todorov:
Relaciona-se geralmente o gênero maravilhoso ao conto de fadas; de
fato, o conto de fadas não é senão uma das variedades do maravilhoso
e os acontecimentos sobrenaturais aí não provocam qualquer surpresa:
nem o sono de cem anos, nem o lobo que fala, nem os dons mágicos
das fadas (para citar apenas alguns elementos dos contos de Perrault).
(2004, p. 60)

O maravilhoso situa a história em um espaço e um tempo diferentes do real


cotidiano, remetendo ao mundo do “era uma vez”, onde a emergência de
eventos e seres sobrenaturais não é questionada pelo narrador, pelas
personagens e nem mesmo pelo leitor.
Durante o século XIX, em plena efervescência do realismo, impôs-se a
centralidade no conhecimento científico da realidade, tendência que se
manteve até meados dos anos 60 do século XX. A narrativa maravilhosa foi, de
certa forma, execrada, acusada de promover a alienação através da resolução
dos problemas graças ao toque de magia, criando ilusões. As fadas - cuja
existência já rareava nos contos dos irmãos Grimm e de Andersen, cabendo a
execução do maravilhoso a outros seres – parecem desaparecer, exiladas para
a terra das sombras. Se o pêndulo pendeu para o realismo, nele não
permaneceu eternamente. Os contos de fadas – ou contos maravilhosos -
foram relidos e revisitados, recuperando-se a importância desse tipo de
narrativa. Harry Potter, O Senhor dos Anéis, As crônicas de Nárnia e tantas
outras obras evidenciam a necessidade de o maravilhoso permanecer em meio
à tecnologia e à informatização do mundo contemporâneo, onde florescem
também versões cinematográficas que apostam no sucesso de releituras dos
contos da tradição.
No cenário do maravilhoso, observa-se que muitas narrativas
tradicionais constroem-se com base em encantamentos, algumas vezes em
decorrência de uma maldição. A forma do encantamento varia de uma história
para outra e pode implicar aprisionamento da personagem encantada, ora a
uma aparência que não lhe é própria, geralmente animalizada, ora a espaços
fechados, como cavernas e torres, ou mesmo ao cumprimento de um destino.
Emerge, nos contos, uma personagem refém de um encantamento e
dependente da ajuda de outrem para se redimir, com quem quase sempre se
casa ao final da história. A atuação da figura redentora assinala
frequentemente a necessidade de passar por sacrifícios e provas para acabar
com o encantamento.
Considerando-se a incidência dessas histórias e o público receptor
infantil, este artigo tem por objetivo apresentar uma reflexão sobre os
processos de redenção e sua funcionalidade nas histórias recolhidas por Luís
da Câmara Cascudo e publicadas na obra Contos tradicionais brasileiros, cuja
primeira edição data de 1946.

1 Encantamento e redenção

A palavra encantamento refere-se a ato de feitiçaria através do qual um


ser vivo apresenta-se inanimado ou transformado em outro ser. Liga-se à ideia
de bruxaria, magia, feitiço, maldição, mas também a maravilha, enlevo,
tentação irresistível.
Os contos de fadas nem sempre apresentam uma explicação para o
motivo do encantamento. Para Marie-Louise Von Franz, “uma maldição é
frequentemente infligida sem que haja uma causa. É um estado em que a
pessoa entra de modo involuntário, em geral inocentemente, ou quando existe
culpa, esta é de pouca monta” (1993, p.19-20). Em muitos contos, o começo da
história já introduz uma personagem encantada, sem que haja qualquer
questionamento sobre o porquê de ela se encontrar em tal situação. Sobre a
maldição, a mesma autora considera que
O tipo de maldição pode variar. Numa lenda ou conto de fadas, um ser
é geralmente condenado a assumir uma forma animal ou a ser um
horrendo velho ou velha que, através do processo de redenção,
converte-se num príncipe ou princesa. Pode ser certos tipos de animais
de sangue frio ou quente, frequentemente o urso, o lobo ou o leão, ou
aves – o ato, o corvo, a pomba ou a coruja – ou talvez uma serpente.
Em outros casos, alguém é amaldiçoado e forçado, por isso, a cometer
maldades e a ser destrutivo, sem que deseje agir dessa maneira. Por
exemplo, uma princesa tem de matar todos os seus apaixonados mas,
no final, quando redimida, ela dirá que a maldição a forçou a tal
comportamento, mas que agora tudo acabou. Esses são os principais
tipos de má sina que ocorrem a uma pessoa num conto de fadas e dos
quais ela é redimida. (FRANZ, 1993, p.7-8)
Na obra O significado psicológico dos motivos de redenção nos contos
de fadas, Marie-Louise Von Franz realça que este tipo de narrativa não aborda
tanto o problema da maldição, quanto o método de redenção. Por redenção a
pesquisadora refere-se especificamente “a uma condição em que alguém foi
amaldiçoado ou enfeitiçado e é redimido através de certos acontecimentos ou
eventos da história.” (1993, p.7). Esses acontecimentos sugerem a execução
de determinadas tarefas segundo uma prescrição por vezes detalhada que, se
não for seguida à risca, promoverá o insucesso ou o adiamento da redenção.
Para que a redenção ocorra, é necessário ainda respeitar o tempo certo não só
para dar início à tarefa libertadora, como para aguardar o desenvolvimento do
processo em que o herói (ou heroína) se vê envolvido.
Se o tipo de maldição pode variar, igualmente variam os motivos ou
estratégias para que a redenção ocorra. Von Franz lista uma série de motivos,
dos quais se destacam: banho; fogo; beijo; ingestão de determinados
alimentos; fazer perguntas ou manter-se mudo; lançar uma pele ou uma
camisa sobre a personagem ou retirar/destruir a pele de animal; superar a
repulsa ou amar aquele que se apresenta amaldiçoado; decapitar ou
desmembrar a personagem enfeitiçada; ser fustigada com varas ou espancada,
o que pode atingir tanto a personagem encantada, como a redentora.
Observa-se nos contos recolhidos por Câmara Cascudo a incidência de
muitos desses motivos, sem que haja, porém, uma relação entre determinado
encantamento e a estratégia de redenção.

2 Contos de Encantamento, Câmara Cascudo

No prefácio à obra Contos tradicionais brasileiros, Câmara Cascudo


distingue características dos contos populares, como antiguidade, anonimato,
divulgação e persistência. Acrescenta ainda a necessidade de a história não
ser marcada por elementos relacionáveis a um local, a uma época ou mesmo a
nomes próprios, traços que parecem apontar para a preservação de uma
ambiência indefinida que remete ao “Era uma vez”.
O pesquisador propôs, para a estruturação da obra, uma divisão dos
contos em doze sessões. As narrativas do maravilhoso, como os contos de
fadas ou de magia, integram a parte “Contos de Encantamento”, expressão
também usada pelo folclorista português Consiglieri Pedroso.
Várias histórias compõem-se de elementos maravilhosos, incluindo a
metamorfose; nosso recorte, porém, concentra-se nas que apresentam
príncipes e princesas encantadas, especialmente as narrativas que pertencem
ao ciclo do noivo – ou noiva – animal. Analisando o simbolismo sagrado
referente ao animal nas artes plásticas, Aniela Jaffé evidencia a ligação entre o
humano e o animal: “As mais interessantes figuras pintadas nas cavernas são
as de seres semi-humanos disfarçados em animais, por vezes encontrados ao
lado da imagem do animal verdadeiro” (1977, p.235). Na psicologia junguiana,
o animal simboliza o instintivo. Jaffé explica que o homem deve reconhecer e
integrar seus instintos, seu “ser animal”, o que lhe será benéfico: “O homem
primitivo precisa domar o animal que há dentro dele e torná-lo um companheiro
útil; o homem civilizado precisa cuidar do seu eu para dele fazer um amigo.”
(1977, p.239).
O psicanalista Bruno Bettelheim dedica um capítulo de sua obra ao ciclo
do noivo-animal – ou noiva-animal - nos contos de fadas (1980, p.317-349),
temática abrangente ao masculino e ao feminino. As histórias passíveis de
serem incluídas neste tipo relacionam-se, na visão do pesquisador, à
ansiedade sexual e à percepção do sexo como algo animalizado que só o amor
pode transformar em relação humana: “Nestes contos de fadas quase sempre
o amor da mulher salva o noivo-animal, e, pela devoção, o homem desencanta
a noiva-animal. Um outro exemplo portanto de que o mesmo tema de um conto
de fadas se aplica igualmente a homens e mulheres.” (1980, p.322).
Cabe destacar ainda o fato de o animal estar presente desde a infância
na vida dos seres humanos, o que justifica seu aparecimento e importância nos
contos para crianças, assinalando que a vivência desse estágio será
ultrapassada. Nos contos de fadas, a personagem animal surge em muitas
histórias, mas nem sempre como ser encantado carecendo da redenção, como
o Gato de Botas ou o lobo da história de Chapeuzinho, famosos personagens
de Perrault. Em outras narrativas, porém, é príncipe ou princesa encantados ou
submetidos a um destino que lhes tolhe a origem nobre, como Riquet do
Topete, a Bela Adormecida e Pele de Asno, para ficarmos ainda nos contos de
Charles Perrault.

2.1 Os príncipes encantados e suas heroínas

Alguns contos recolhidos por Câmara Cascudo apresentam, na condição


de protagonistas, personagens masculinas amaldiçoadas sob a forma animal:
“O Veado de Plumas” (2004, p.51-56), “O Príncipe Lagartão” (2004, p.57-59),
“Maria Gomes” (2004, p.67-71), “O Papagaio Real” (2004, p.76-78), “A Bela e a
Fera” (2004, p.118-121). Os dois primeiros pertencem à série em que a
maldição do príncipe provém da própria mãe. Com dificuldade de engravidar, a
mãe pede: “Dai-me um filho nem que seja” com cara de bicho. Nos três últimos,
não há qualquer explicação para a procedência do encantamento.
Em “O Veado de Plumas”, um príncipe descrito com vários atributos
positivos - forte, inteligente, agradável, com sabedoria e virtudes mágicas –,
possui um único senão: em vez de rosto, apresenta focinho de veado. É
mantido escondido de todo o reino e, uma vez rapaz, decide aventurar-se pelo
mundo. Chega a uma cidade e cumpre, de forma mágica, a tarefa que lhe
garante o prêmio de receber seu peso em ouro e a mão de uma das três
princesas do reino. Cara de Veado recusa o ouro e casa-se com a mais jovem,
única a aceitá-lo. O rei, pai da princesa, promove torneios bastante
concorridos. O protagonista pede à esposa para comparecer às festas e, sem
que ela saiba, participa como homem muito bonito, vence as provas e dedica-
lhe a vitória. Ao chegar ao castelo, a esposa narra a Cara de Veado tudo o que
ocorrera, jurando preferi-lo ao cavaleiro desconhecido, ao que ele responde
enigmaticamente, “Menos dois” (2004, p.53). Ao entrar num quarto velho
existente no castelo, ela descobre as roupas suntuosas (correspondentes às
“peles” que aparecem em outras narrativas) usadas pelo tal cavaleiro
desconhecido, reconhecendo nele o marido. Ocorre, porém, um elemento
complicador: a fidelidade da esposa diminuía o tempo de encantamento
(menos dois anos a cada prova); a “curiosidade” dela, segundo a narrativa, ao
penetrar no quarto fechado, fora do governo da casa, obriga o marido a sair do
castelo. Ele desaparece numa nuvem branca e inicia-se a peregrinação da
princesa até o reinado do Veado de Plumas. Em seu caminho, encontra com a
Lua, a Noite, o Sol, buscando ajuda, o que obtém com os Ventos. Eles não só
a conduzem ao reino procurado, como lhe explicam a forma de desencantar o
Veado de Plumas: quando ele se abaixar para beber água, ela deve agarrar-se
firmemente a ele. A redenção ocorre graças à ação persistente da princesa,
responsável pela metamorfose do Veado de Plumas que adquire
definitivamente a forma humana. O casal retorna ao castelo da família dele e o
desfecho apresenta a rainha-mãe, muda todo esse tempo, recobrando a fala,
“sinal de que Deus lhe perdoara” (2004, p.56).
No conto “O Príncipe Lagartão”, a rainha invoca Deus, pedindo-lhe um
herdeiro mesmo que com a aparência de lagarto. Seu desejo é atendido e o
filho é criado como príncipe. Preocupados com a possibilidade de o filho morrer
de fome - ele corta o bico do peito das amas -, os pais oferecem gratificações a
quem conseguir alimentá-lo. Maria, moça órfã, honesta, trabalhadeira,
inteligente como uma fada e querida por todos, resolve o problema. Na época
de o príncipe se casar, ele escolhe Maria. Na noite de núpcias, ela repara no
marido com a forma humana, tirando sete capas e colocando-as ao chão. Os
dias se passam e a rainha pergunta insistentemente sobre o filho; descobrindo
a verdade, orienta a nora acerca do que fazer para desencantá-lo. A redenção
ocorre com a metamorfose do príncipe lagartão em homem (“fim da
penitência”, 2004, p.59), em meio a ritual que traz elementos da religiosidade
cristã. Em alguns contos, a interferência dos pais quanto às peles é geralmente
nociva, atrapalhando o processo de redenção.
Nestes dois contos, o desejo obsessivo materno por um filho, sem
pensar nas consequências, é atendido como se representasse uma punição ao
desejante, punição, porém, que se realiza no objeto desejado, espécie de
maldição que se efetiva na transformação física do filho. A redenção repousa
em outras mãos femininas – as da esposa -, geralmente filha caçula e única a
aceitar, como marido, um ser de aparência não humana e repulsiva. A
fidelidade e a persistência, bem como a bondade e a capacidade de amar das
esposas, emergem também como motivos de redenção.
Dos contos “Maria Gomes”, “O Papagaio Real” e “A Bela e a Fera”,
deter-nos-emos nos dois primeiros, deixando de lado o terceiro por ser
bastante conhecido.
Em “Maria Gomes”, a personagem título é abandonada na floresta pelo
pai viúvo por ele não ter como sustentar os filhos, numa sequência narrativa
que lembra os contos “O Pequeno Polegar”, de Perrault, e “João e Maria”, dos
irmãos Grimm. Maria chega a um velho casarão, em ruínas, e é recebida por
uma voz misteriosa (o que também remete à história de Eros e Psique ou
mesmo a algumas versões de “A Bela e a Fera”). A heroína vive bem nesse
local, até que a voz lhe pergunta se deseja ver o pai adoentado. Diante da
resposta afirmativa, a voz impõe-lhe algumas condições, como não revelar
onde nem como está vivendo e atender aos rinchos do cavalo branco,
interditos a que ela deve obedecer. As visitas se sucedem e, quando o pai
morre, ela quase perde o animal que a leva sempre de volta. A narrativa revela
que a voz misteriosa pertence ao cavalo branco, que é um príncipe encantado,
precisando da atuação da heroína para cumprir sua sina e ser redimido. Para
que tal aconteça, a voz orienta a moça a vestir-se de homem e montar o
cavalo, a quem deve ouvir os conselhos e de quem não deve se separar. Ao
chegar a um palácio, Maria emprega-se como jardineiro e desperta a paixão do
príncipe. Ele tenta provar que os olhos do jardineiro são de mulher, tarefa para
a qual recebe a orientação da rainha mãe. O príncipe, por fim, descobre a
verdade, marca o casamento, mas a jovem foge e se casa com o cavalo
redimido em cavaleiro majestosamente vestido.
Na história de Maria Gomes observa-se a obediência da personagem
feminina àquele que, no começo, representou a sua salvação pelo acolhimento
no velho casarão, garantindo-lhe não só a sobrevivência, como a realização de
alguns desejos. A narrativa, porém, acusa o revés dessa situação inicial ao
caber à moça redimir o cavaleiro de sua forma animal. Mesmo transfigurada
em homem, Maria Gomes conquista o amor de um príncipe, mas, com direito à
escolha de quem deseja para marido, desdenha o amor do príncipe e segue
fielmente as orientações do então amigo cavalo, com quem se casa e vai morar
no velho casarão, transformado em um lindo palácio com muita criadagem.
Não há, na narrativa, qualquer menção à origem do encantamento do príncipe
cavalo, cuja redenção parece repousar na fidelidade e na dedicação da heroína
ao longo do tempo.
A história de “O Papagaio Real” inicia com a apresentação de duas
irmãs, uma boa e a outra preguiçosa e maledicente. A bondosa é visitada pelo
príncipe papagaio, redimido em aspecto humano ao mergulhar numa bacia
com água colocada no meio do quarto; as gotas de água caídas transformam-
se em ouro. A segunda percebe a movimentação no quarto da irmã e, com
inveja, enche o peitoril da janela e a bacia com cacos de vidro que ferem o
papagaio, dobrando-lhe o tempo de encantamento. Para redimi-lo, a moça
precisa ir ao reino de Acelóis, lugar que ninguém conhece. Durante a viagem
pelo mundo, esconde-se, à noite, em uma árvore na mata, quando escuta
umas vozes, inicialmente de animais esquisitos, conversando, sequência
narrativa que se repete por três vezes. Na segunda, uma das vozes diz que
vem de Acelóis e que o príncipe está doente, o que a moça interpreta como
estando na direção certa. Na terceira, falam sobre como curar o príncipe: “O
remédio é ele beber três gotas de sangue do dedo mindinho de uma moça
donzela que queira morrer por ele!” (2004, p.77). O motivo de redenção é o
sangue, mas segundo um ritual previamente definido. A heroína chega ao reino
e diz ao rei que salva o príncipe se ele lhe der “de tinta e papel [portanto, por
escrito] metade do reino e de tudo quanto lhe pertencer” (2004, p.77). O
príncipe se cura e reconhece a jovem como a sua noiva, do tempo em que
estava encantado em um papagaio real, indicando, de certa forma, que a
metamorfose definitiva já havia ocorrido. O príncipe fica curado, mas seu pai, o
rei, rejeita o casamento por a noiva não ser princesa. A moça argumenta que o
príncipe pertence ao rei, mas cabe-lhe, a ela, a metade de todos os bens reais,
logo, se o rei não quiser lhe dar o príncipe inteiro, ela levará a sua metade,
reproduzindo a história que remete à sabedoria de Salomão. Diante disso, o rei
cede.
A heroína consegue se casar com o príncipe, graças à ardilosidade e à
inteligência ou mesmo à intuição, uma vez que se precaveu contra qualquer
atitude do rei ao lhe pedir antecipadamente a metade de seus bens. A
personagem feminina tem voz, argumenta e exige o que lhe cabe por direito,
evidenciando amadurecimento em relação à ingenuidade que apresentava no
começo da história. Se não foi culpada pelos vidros que feriram o príncipe,
tenta consertar o estrago realizado pela irmã, a quem abandonara. Tal como
Psique, empreende a busca ao noivo, preservando a própria vida ao se
esconder na árvore, momento em que ouve e presta atenção às vozes, aos
“sinais” transmitidos. A narrativa presenteia-nos com uma heroína que não é
tola, pelo contrário, é bastante determinada e perspicaz: persiste na demanda
ao reino de Acelóis e, embora não tenha recebido a ajuda específica de
alguém, deduz estar no caminho certo. Ao chegar ao reino, impõe condições e
exige o cumprimento do acordado, anulando a resistência da figura detentora
do poder, o rei, pai e senhor. Ela é a figura redentora, redimindo o príncipe de
sua doença mortal. Por seu turno, a figura masculina mostra-se frágil,
dependente das mãos femininas para se salvar (do sangue proveniente do
dedo mindinho); é a personagem a ser desencantada e curada, passiva,
portanto, da atuação de outra personagem, a salvadora.

2.2 As princesas encantadas e seus heróis

Há contos em que a figura feminina sofre encantamentos, como “A


Princesa de Bambuluá” (2004, p.34-40), “O Filho da Burra” (2004, p.79-82), “Os
Sete Sapatos da Princesa” (2004, p.98-99). Outras narrativas integram o ciclo
da noiva animal, como “A Princesa Jia” (2004, p.60-63), “A Princesa Serpente”
(2004, p.92-94), “A Moura Torta” (2004, p.122-124).
“A Princesa de Bambuluá” apresenta um espaço que remete à natureza,
restaurando acontecimentos passados: numa estrada ligando duas cidades, há
uma grande pedra com uma gruta, onde os viajantes pernoitavam, até
começarem a ser acordados por uma voz celestial, de quem viam apenas o
rosto de uma moça, bela como um anjo. A moça perguntava quem desejava
desencantar a princesa de Bambuluá, mas, os que aceitavam o desafio,
acabavam muito feridos. O local passou a ser evitado por todos, até a chegada
do herói, cuja descrição em muito se afasta da aparência física típica dessa
personagem: o rapaz, de nome João, é amarelo e franzino, mostrando-se
cansado, faminto e desorientado. A voz lança-lhe o mesmo desafio e ele o
aceita, mas impõe, como condições, comer, beber e descansar antes das
provas. Para desencantar a princesa, configurando-se motivo de redenção, o
herói é brutalmente surrado em três momentos, sofrendo pancadas e pontapés
em silêncio e sem se defender, apenas rolando serra abaixo para se livrar do
ataque. Desencantada, a princesa cumula seu benfeitor de riqueza, a quem
toma como noivo. Para que o casamento se realize, porém, é preciso que ele
inicie seu aprendizado com uma professora rica e sábia. Após vencer uma
série de obstáculos, o herói casa-se com a princesa.
A figura encantada feminina neste conto é fantasmagórica, comparada
“a uma visagem” (2004, p.34), mas bela e celestial, sedutora. Lembra os contos
melusianos, inclusive pela presença da natureza agreste, narrativas em que se
inclui “A Dama Pé de Cabra”, de Alexandre Herculano, assinalando elementos
que se aproximam do fantástico. A descrição dos atacantes de João reforça
essa ideia: são três vultos mascarados, cobertos com umas capas escuras,
apresentados também como três fantasmas encapuzados. O reino de
Bambuluá, por sua vez, fica depois do Inferno, sendo preciso ultrapassar a
“quentura do fogo do Diabo” (2004, p.37) para lá chegar.
Em “O Filho da Burra”, o herói encontra três princesas encantadas, cujo
encantamento, porém, não se explica por uma aparência disforme ou afastada
dos padrões físicos humanos. A narrativa indica que o enfeitiçamento
aparentemente decorre de elas serem prisioneiras respectivamente de três
monstros - uma serpente, um bicho e um macacão, que é próprio Diabo -, cada
uma vivendo em uma casa. A redenção depende tanto da coragem do herói de
enfrentar e vencer esses opositores, quanto da ajuda dada por cada princesa
ao cortar o vínculo de alimentar o monstro (o que acontecia em meio à
contenda, a fim de restaurar-lhe as forças); os dois primeiros são mortos e o
terceiro foge, depois de o herói cortar-lhe a orelha. A bengala de ferro é o
objeto que, sem ser mágico, ajuda o herói.
No conto “Os Sete Sapatos da Princesa”, uma princesa gasta sete pares
de sapato por noite e o rei promete a mão dela em casamento a quem
descobrir o que acontece à filha e a morte a quem não conseguir. Joãozinho se
apresenta, não bebe o chá de dormideira dado pela aia e vê a princesa chamar
Calicote, um diabinho que fica dentro de um baú embaixo da cama da princesa.
Seguindo os dois, ele descobre a verdade, livrando a moça “do mau fado que
uma fada infernal lhe dera, quando tinha doze anos, com inveja da sua grande
beleza” (2004, p.99). Joãozinho se casa com a princesa. Neste conto, o
encantamento tem origem na maldição lançada por uma fada, submetida a
sentimentos bem humanos. Enquanto está encantada, a princesa age como se
estivesse de acordo com Calicote e com a situação em que se encontra; diante
da revelação do herói, empalidece e desmaia, mas, face ao desaparecimento
do diabinho pela reza do bispo, agradece por se libertar de sua sina.
Dos três contos, apenas o último apresenta uma explicação para a
origem do encantamento. As princesas, nos dois últimos, mantêm aparência
bela, carecendo de serem libertadas, tanto dos seres que a aprisionaram,
quanto da maldição lançada. A princesa de Bambuluá, porém, aparece sob a
forma de fantasma e, ainda que apresente um belo rosto e atributos celestiais,
assusta os viajantes como se associada ao mal. De todos os salvadores exige-
se coragem, com o risco de morte. No primeiro conto, o herói precisa suportar
golpes fisicamente dolorosos; no segundo, o protagonista enfrenta monstros e
o próprio diabo, tal qual o do último conto, a quem adere astúcia e perspicácia
em sua atuação para descobrir o segredo da princesa.
Dentre as narrativas do Ciclo da Noiva-Animal, elegemos, para análise,
“A Princesa Jia” (2004, p.60-63) e “A Princesa Serpente” (2004, p.92-94).
No conto “A Princesa Jia”, três irmãos saem pelo mundo. João, o caçula,
chega a um palácio deteriorado, feio, sujo, “lugar esquisito que fazia medo”
(2004, p.60) – configuram-se os elementos para projetar a narrativa no território
do fantástico. João bate palmas e uma voz manda-o entrar e indica-lhe o
quarto de dormir. A voz pertence a uma jia, uma rã muito grande, gorda e de
aspecto repelente. Passado um ano, o rapaz deve voltar à casa dos pais,
segundo o combinado com os irmãos. A Jia prepara-lhe cavalo e um presente
(aparentemente insignificante) para a mãe, de onde saem moedas de ouro e
pedras preciosas. João volta para o castelo da Jia, “cada vez mais nojenta e
amorosa” (2004, p.61). Mais um ano se passa e a história se repete, com
novos presentes mágicos. Ao fim do terceiro ano, eles devem levar as noivas e,
quando João diz não ter uma, a Jia apresenta-se como tal; ele, por gratidão e
com pena, se cala. O retorno à casa dos pais pode ser interpretado como uma
verdadeira “provação” para o herói, que segue montado numa égua lazarenta,
com a Jia na garupa, acompanhado por vários animais. A Jia cai tantas vezes
que resolve montar o galo, o que não consegue. Rindo-se da cena e
compadecido, João ajuda a Jia, momento em que ela se desencanta. Ocorre a
metamorfose da Jia, que se converte em uma bela princesa, processo
extensivo a toda a sua criadagem, transformada até então em animais. Eles
chegam à casa dos pais dele, casam-se e vão morar no palácio recuperado.
Nesta história, o motivo de redenção é a superação da repulsa diante do
ser encantado. O herói demonstra bondade e piedade: não recusou a Jia como
noiva, nem seus presentes, aparentemente tão repulsivos quanto ela. A
narrativa não apresenta qualquer explicação para o encantamento da princesa,
seu castelo e súditos. Segundo Câmara Cascudo, o conto integra o grupo de
histórias com princesas transformadas em animais “cuja quebra do encanto
dependerá da coragem ou da fidelidade dos namorados e servidores” (2004,
p.61).
“A Princesa Serpente” é um conto bastante curioso quanto ao processo
de redenção da personagem título. A princesa, apresentada como bonita e
boa, nasce com a sina de se transformar em serpente durante o primeiro ano
de casada. A solução imaginada por ela é encontrar uma amiga que ocupe seu
lugar no quarto do casal, ao lado do marido durante esse ano, sem a trair (ou
seja, sem consumar o casamento). A princesa encontra tal moça. Finda a
cerimônia de casamento, ela se transforma em uma serpente preta e sai pelo
mundo. A amiga informa ao suposto marido ter feito uma promessa a Jesus
Crucificado de não ter vida comum com ele durante um ano, a que o rapaz se
submete por se tratar de promessa. Cumprida a sina, a serpente retorna,
encontrando-se com a amiga num lugar escondido, onde, ao banhar-se,
recupera a forma humana de antes. A verdade é revelada e a princesa casa a
amiga com um príncipe, seu primo, vivendo todos no palácio.
Tal como em muitos outros contos, a narrativa não oferece qualquer
explicação para a sina da princesa. Afastando-se dos demais, porém, aqui a
redenção não se encontra na esfera de atuação de um herói masculino, com
quem a encantada se casa ao final da narrativa. O conto parece assentar-se no
motivo de redenção da fidelidade, tendo por base a amizade, tal como se vê no
conto “O Fiel Dom José” (CASCUDO, 2004, p.26-30).

Conclusão

À guisa de conclusão deste texto, não das questões abordadas, cumpre

refletir sobre a importância deste tipo de narrativa. Inicialmente pode-se

destacar o prazer que a narrativa maravilhosa proporciona, funcionando

paradoxalmente como um portal através do qual se visualiza melhor o real:

duas características do conto de fadas tradicional: sentir prazer no


fantástico e curiosidade pelo real. A dimensão do maravilhoso cria um
imenso teatro de possibilidades nas histórias: tudo pode acontecer.
Essa ausência mesma de fronteiras serve ao propósito moral dos
contos, que é precisamente ensinar onde se encontram os limites. O
sonhar proporciona prazer por si mesmo, mas também representa uma
dimensão prática da imaginação, um espaço da faculdade do raciocínio,
e pode abrir possibilidades sociais e públicas. (WARNER, 1999, p.18).

Além disso, os contos democratizam as funções sociais de gênero


historicamente definidas. Personagens masculinas e femininas intercambiam
papéis de passividade/fragilidade e de ação heroica redentora, ainda que
executem partituras diferenciadas. Variados são também os motivos ou
processos de redenção, evidenciando a complexidade que cerca a saída de
uma situação problemática limitadora ou aprisionante.
Pode-se ainda questionar o porquê da presença de encantamento e
redenção em tantas narrativas. Para Marie-Louise Von Franz (1993, p.20), uma
das razões para a frequência significativa do encantamento nas narrativas
tradicionais deve-se ao fato de as sociedades primitivas viverem no medo
constante de enfeitiçamento.
Como hipótese para explicar a permanência dessas histórias ao longo
do tempo, a existência de estágios degradados na vida humana, que são
simbolicamente projetados nas personagens dos contos. O desfecho evidencia
a ultrapassagem das dificuldades num claro tributo à esperança.
Observa-se ainda que as narrativas estabelecem certo equilíbrio, uma
espécie de compensação entre as personagens encantadas e redentoras. Há
personagens geralmente da nobreza – príncipes e princesas – que, apesar da
proximidade com as esferas de poder e riqueza material, carecem de auxílio
para se desencantarem; no lado oposto, as personagens redentoras,
geralmente desposando estatuto social aquém dos primeiros, seres humildes e
pobres, porém doadores de amor e compaixão, caracterizando uma nobreza de
outra estirpe, a da alma. Assim, em muitas narrativas ocorre um duplo
melhoramento: o ser encantado, dependente da ajuda de outrem, é redimido,
beneficiando-se igualmente o ser redentor através da ascensão social pelo
casamento e/ou pela aquisição de riquezas materiais.
Por último, cumpre pensar sobre a utilização desse tipo de texto
perspectivando a criança como público receptor. Defende-se a importância de
se oferecer essas histórias às crianças não só pelo prazer que o contato com o
mundo maravilhoso do “era uma vez” lhes oferece, como pelo fato de a leitura
proporcionar a aprendizagem de valores éticos concernentes à amizade, ao
amor, à humildade de se reconhecer falível, à descoberta das próprias
potencialidades, à persistência, ao sacrifício. As histórias mostram que
se desejamos conseguir a egoicidade, atingir a integridade, e assegurar
nossa identidade, devemos passar por processos difíceis, sofrer
provações, encontrar perigos, conseguir vitórias. Só desta forma
podemos dominar nosso destino e conquistar nosso reinado.
(BETTELHEIM, 1980, p.318)

O receptor infantil, de certa forma, também se sente algumas vezes


“aprisionado” em um estágio de evolução que o torna dependente da ação de
adultos, o que pode favorecer a identificação com a personagem encantada. A
história, porém, oferece ainda a oportunidade de ele igualmente vivenciar o
papel do herói/heroína redentor/a. O processo de identificação operado pela
narrativa durante a recepção pode aproximar as crianças desse tipo de enredo,
estimulando-as à leitura. Como as narrativas tradicionais oriundas da oralidade,
em que se incluem os contos de Perrault e dos irmãos Grimm, não se dirigiam
originalmente ao público infantil, pode-se alargar a discussão sobre a
funcionalidade e a importância desses contos para todas as idades.

Referências

BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. São Paulo: Paz e


Terra, 1980.
CASCUDO, Luís da Câmara. Contos tradicionais do Brasil. São Paulo: Global,
2004.
FRANZ, Marie-Louise Von. O significado psicológico dos motivos de redenção
nos contos de fadas. São Paulo: Cultrix, 1993.
JAFFÉ, Aniela. O simbolismo nas artes plásticas. In: JUNG, Carl Gustav. O
homem e seus símbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1977, p.230-271.
PEDROSO, Consiglieri. Contos populares portugueses. São Paulo: Landy,
2001.
TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. 3.ed. São Paulo:
Perspectiva, 2004.
WARNER, Marina. Da Fera à Loira: sobre contos de fadas e seus narradores.
São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

Referência:
MICHELLI, Regina. “O maravilhoso em meio a encantamentos e redenções nos contos
tradicionais brasileiros”. In: DEBUS, Eliane Santana Dias; JULIANO, Dilma Beatriz;
BORTOLOTTO, Nelita; CINTRA, Simone (org.). Anais 6.SLIJ Seminário de Literatura
Infantil e Juvenil e I SELIPRAM Seminário Internacional de Literatura Infantil e Juvenil
e Práticas de Mediação Literária. Florianópolis: UFSC; UNISUL, 2014. Disponível em:

http://pnaic.ufsc.br/files/2015/07/6_slij_2014_anais_2015_02_18.pdf

722 p.; ISSN 2175-9308

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