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© 2021 FERNANDA SCHMITT

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Esta obra literária é ficção. Qualquer nome, lugar, personagens e
situações são produtos da imaginação do autor. Qualquer semelhança com
pessoas e acontecimentos reais é mera coincidência.
Esta obra segue as regras do Novo Acordo Ortográfico.

DIAGRAMAÇÃO:
Larissa Chagas

REVISÃO E COPIDESQUE:
Camila Lima

ILUSTRAÇÃO E DESIGN DE CAPA:


Mirella Santana

Eros: Um amor proibido / Fernanda Schmitt — 2ª Ed; 2021

1. Romance 2. Fantasia Contemporânea 3. Ficção I. Título


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Agradecimentos
Para aqueles que amam de corpo e alma.
Em especial, à minha mãe. Obrigada por sempre acreditar em mim.
Longe o Infante, esforçado,
Sem saber que intuito tem,
Rompe o caminho fadado.
Ele dela é ignorado.
Ela para ele é ninguém.

Mas cada um cumpre o Destino —


Ela dormindo encantada,
Ele buscando-a sem tino
Pelo processo divino
Que faz existir a estrada.

— FERNANDO PESSOA
E studante do curso de Filosofia — graças a Deus, já veterana
—, o meu segundo ano letivo recém começava, o que
significava farra universitária em alguma fraternidade popular.
Ninguém, no entanto, teria imaginado minha surpresa ao
descobrir que seria em uma boate, com bebidas de verdade.
Pensava que a escolhida da vez fosse a dos garotos mais héteros
possíveis da universidade inteira, a Universidade de Chicago, que
todos preferíamos chamar carinhosamente de UC.
E já que havia tocado no assunto… Eu tinha algo sério contra
festas; toda aquela gente acumulada, andando de um lado para
outro feito pinguins e fedendo a cerveja barata feito gambás, se
divertindo como se não tivessem que se levantar cedo para estudar
nem trabalhar no dia seguinte. Eu ficava só com a primeira opção,
mas tinha gente que ficava com as duas.
Eu não precisava daquilo. Estava feliz estudando na minha
querida escrivaninha que tanto amava. Não precisava aliviar o
estresse, e simplesmente porque não havia estresse algum. Tudo
bem, essa parte não era verdade, mas ninguém precisava saber.
Era verdade que minhas irmãs me incomodavam além dos limites
do que eu sabia ser possível e que meus professores não
facilitavam em nada, mas não me importava. Eu me distraía
estudando mitos e desejos humanos.
— Você está fazendo de novo — Margot repreendeu.
Parei de encarar o monte de bebidas acumuladas atrás do
balcão do bar para encarar minha amiga — ou melhor, seus cachos
castanho-claros, lindos e selvagens, espalhados por todos os lados.
Ela os amava mais do que seus olhos azul-acinzentados, embora
amasse cada pedaço de si com plena convicção… e razão.
Com um rosto redondo como de boneca e olhos amendoados,
Margot Linderman era linda, e a única pessoa que me aturava.
Estava ali uma coisa de que eu tinha amado em relação à troca
da farra de lugar: se eu fosse ficar bêbada, seria com bebida de
verdade.
— O quê? — perguntei, completa e vergonhosamente avoada, e
dei um gole no meu martíni, que era muito melhor do que os
ponches misturados a vodca das festas de dentro do campus.
Ela revirou os olhos e bufou, sem estar impaciente de verdade.
Afinal, Margot nunca ficava sem paciência comigo, embora eu
achasse que deveria. Ao nosso redor, todos dançavam, se beijavam
e até mesmo faziam, bem, outras coisas. Se bem que eu não
dormia com alguém havia um bom tempo. Só havia tido um cara
depois de Kurt Monaghan, meu ex. Nada sério, apenas casual.
Tinha sido no banheiro de uma fraternidade, onde rolava a farra. Eu
tinha achado… bom.
— Pensando em vez de curtir. — Entornou seu bourbon e, com
um estampido do copo, se levantou em um instante, oferecendo-me
a mão, cujas unhas estavam pintadas de vermelho. — Pare de ficar
pensando em Platão e conheça homens de verdade. E, de
preferência, ainda vivos.
Era a minha vez de revirar os olhos, mas não consegui evitar o
sorriso em seguida.
— Só estava pensando: quem comemora o início de mais um
ano letivo? — Levantei e segurei sua mão, realmente querendo
saber a resposta.
— A questão é: como eu ainda não desisti de você? — Lançou-
me um sorriso e um olhar hilários por cima do ombro enquanto nos
conduzia bem para o meio da pista de dança, que não parava de
brilhar e de pulsar com o ritmo das outras pessoas. — Vamos
aquecer esse corpinho.
Margot começou a se mexer, ao passo que eu fiquei mais
parada que um poste, encarando seus movimentos sensuais
estrategicamente calculados para os adoráveis calouros que
estavam com a gente na pista.
Ela parou para me encarar, emburrada.
— Que foi? Pode continuar fazendo seus passos de
acasalamento. — Ri com deboche, ganhando um tapa no ombro
logo em seguida. Soltei um “ai” abafado, de modo que ninguém
escutou.
— Ah, vamos lá, Psiquê! — Pôs os braços pequenos em volta
da cintura, fazendo beiço. Visto daquele ângulo, ela até que parecia
bem uma bola de pelos irritada. — Você é a garota mais bonita que
já vi! E falo sério. — Apontou o dedo para mim.
Dei de ombros, fazendo pouco caso daquilo. Todos que me
conheciam me enchiam com aquela frase.
Seus olhos perfuraram meu corpo como lanças muito bem
afiadas.
— Tudo bem! — Larguei meus braços ao lado do corpo e
comecei a me mexer, ganhando total atenção da minha amiga… e
de alguns caras.
Lancei-me sobre ela, juntando nossas mãos e fazendo
movimentos inusitados, o que arrancou uma gargalhada dela, que
me acompanhava sem questionar. O DJ tocava um remix de “Poker
Face”, que até que não estava tão ruim assim.
As luzes dançavam junto conosco, brilhando logo acima de nós
desesperadamente. O DJ estava concentrado no seu brinquedo,
mexendo em botões e outras coisas estranhas, movendo a cabeça
no ritmo do próprio som. A galera estava eufórica desde que
havíamos chegado — devia lembrar: às 19h. Alguns caras se
atreveram a chegar perto de nós, e Margot obviamente agarrou um
deles, que não era tão feio. Provavelmente calouro. Margot preferia
esses, embora mantivesse alguns rolos com veteranos.
Fazia quase uma hora que estávamos dançando adoidadas, e
eu sentia um olhar em especial me queimar. Quando estava pronta
para olhar ao redor e curtir, como minha amiga tinha mencionado, a
própria virou o olhar para trás de meus ombros e deixou o queixo
cair — só não caiu literalmente porque não era possível.
— Achei sua presa da noite — disse ela, maliciosa, com um
sorriso muito irritante no maldito rosto.
Acompanhei seu olhar até as proximidades do bar e me deparei
com um homem de pelo menos 1,90 m de altura e com uma aura
extremamente confiante, visto o jeito de me encarar, como se eu
fosse a presa. O sorriso no rosto dele era irritante, mas… o maldito
era bonito, o mais decente dos homens dali. Na verdade, era o cara
mais gato que já tinha visto.
Os fios de seu cabelo castanho caíam em seu rosto,
desajeitados, ao passo que seus olhos brilhavam em diversão. Seu
maxilar demarcado… ele me intimidava, junto a todas as partes de
seu corpo musculoso, visível mesmo através do terno preto e da
camisa social branca que vestia. Ele estava lá, parado, com seu
paletó jogado por detrás do seu ombro, me observando, entre todas
as outras mulheres. Por um segundo, pensei que era uma dádiva
dos deuses.
— Puta merda, Margot! — Virei minha atenção para ela, que
ainda apreciava a vista, e puxei-a na outra direção.
— Ele é tão gato que dói. — Minha amiga suspirou e, em
seguida, me olhou em súplica. — Dorme com ele por mim?
Franzi o nariz.
— Ficou doida?
— Se não for, eu vou. — Ganhei um olhar semicerrado e cheio
de malícia. — Te pago martínis pelo resto do mês se for.
Um acordo. Ela estava tentando fazer um acordo.
Tentador, visto que o mês mal tinha começado.
Olhei por cima dos corpos dançantes até o lugar onde ele
estava, calmo, agora tomando seu uísque no bar como se não fosse
acabar nunca. Ele ainda me encarava.
Estremeci.
— Tá legal. — Soltei uma lufada de ar. — Feito.
Margot deu saltinhos alegres antes de falar:
— Boa sorte! — Me deu um empurrão, acenando para mim
quando virei meu rosto mais uma vez para ela e fui de encontro ao
homem.
Suspirei, talvez um pouco nervosa por estar enferrujada naquilo
desde Kurt. Tínhamos terminado havia um ano. Um ano sem
ninguém realmente interessante. Bem, eu não tinha certeza de que
queria alguém depois de ter namorado com Kurt no ensino médio
inteiro. Mas Margot tinha.
Para de pensar nele. Já faz um ano, doida.
Tomei coragem e me sentei ao lado dele no balcão do bar
iluminado, que, ali onde estava, parecia uma centelha de luz no
meio da escuridão. Do outro lado, a boate piscava em azul, verde e
roxo.
— Uísque? — A voz melódica entrou pelos meus ouvidos,
causando arrepios em todos os lugares, até nos que eu não sabia
ser possível.
Levantei meu olhar para ele. Para aqueles olhos crepitantes.
De perto, sua beleza parecia amplificada; mais pura, mais
inebriante. Olhei de fato para aqueles olhos, que prometiam algo
grandioso. Minha respiração errante me traiu, acompanhada das
batidas aceleradas do meu coração. Eu continuava a encarar seus
olhos, inebriantes como as chamas do inferno.
Eu estava tão inerte que me esqueci de responder no que seria
o tempo adequado.
— Martíni, por favor — aceitei a oferta, com a voz talvez falha
demais. Meus sentidos todos me traíam. Malditos.
Ele sorriu para mim, um sorriso radiante.
Um sorriso branco, perfeito, que, mais uma vez, fez meus
sentidos estremecerem. Por debaixo da superfície curta de mármore
preto do balcão, meu corpo tremia — as pernas, principalmente.
— Qual o seu nome, princesa? — Sorriu, com curiosidade
flamejando nos seus olhos de uma coloração que nunca tinha visto
antes: âmbar como o sol matinal. Eles me fascinaram.
O bartender pôs o martíni na minha frente, o terceiro do dia.
— Psiquê. — Dei um longo gole na bebida, percebendo seu
olhar, que sabia estar em mim a noite toda. — Di Laurentis.
— Psiquê. — Saboreou as sílabas do meu nome como se
fossem sagradas; sua boca constantemente curvada em um sorriso
travesso, cheio de malícia. — O que a trouxe até aqui, Psiquê? — O
homem se divertia com a situação, diante do efeito causado em
mim. Cafajeste.
Me concentrei na sua pergunta.
O que me levava até ali? Não era o mesmo que ele? Uma
festinha universitária de merda?
— Você não é da UC, é? — Apertei os olhos para ele, curiosa
em relação à sua origem. De onde tinha surgido tamanha beleza?
Ele negou com a cabeça, bebendo do uísque puro.
— Não curso nenhuma faculdade.
De repente, seu terno fez sentido: nenhum universitário, calouro
ou veterano, usaria um terno em uma festa. Quis rir.
Em vez disso, olhei de relance para seu rosto intimidador.
— O que você faz aqui? — perguntei, realmente curiosa,
deixando de lado as constantes provocações. Bem, mais tarde ele
saberia que com fogo não se brincava.
Ele cruzou seus braços, dando de ombros logo em seguida e
balançando o líquido alaranjado à sua frente.
— Procurando por alguém.
— E você encontrou? — Virei-me para ele, curiosa como um
gato.
— Sim, eu encontrei. — Finalmente encontrou meus olhos, que,
diferentes dos dele, eram verdes. Os seus brilhavam como
lanternas.
— Bem, teria presumido que você não tivesse encontrado, já
que ficou me encarando por mais de uma hora — retruquei,
bebendo rápido todo o líquido da taça triangular. Logo retirei com
cuidado a azeitona do pequeno espeto transparente como vidro,
colocando-a para dentro da boca.
Ele me observou com cautela, subindo o olhar da minha boca
para meus olhos.
Parecia que quem fazia as provocações agora era eu.
Satisfeita, dei um sorriso contido.
— De fato. — Sorriu ele, malicioso, para meus lábios.
— Qual o seu nome? De onde veio? — Me vi perguntando sem
pensar muito, com as palavras não podendo ser evitadas.
O moreno me olhou com gosto, talvez admirando por dentro
minha curiosidade.
Juro por Deus e por tudo que era sagrado que nunca, jamais
tinha visto um homem tão lindo em todos os meus vinte e um anos.
Precisava saber sobre ele.
— Eros. De muito longe. — Entornou seu uísque calidamente.
De uma coisa, eu já sabia: ele amava uísque.
E também não sabia se vestir para uma festa, visto seu terno
formal, mas isso o deixava muito gato.
— Eros? — Sem perceber, a pergunta saiu como deboche.
Que mãe colocava aquele nome em uma criança?
Se bem que…
— Seu nome também não é dos mais comuns, princesa. —
Estava virando costume o lance de princesa.
Isso.
— Você tá certo. — Dei de ombros, desejando secretamente
mais um martíni. — Senhor Engomadinho — murmurei, debochada.
— Gosto de estar arrumado em certas ocasiões, mas posso
mudar o visual na próxima. — Piscou um dos olhos de forma
convencida demais.
O que o faz pensar que vai ter próxima? De qualquer forma, eu
mal podia esperar.
— Eu gosto assim — disse, com um sorriso petulante. — Bem,
deveria ser uma pessoa importante.
Ele me acompanhou no sorriso.
— Mais ou menos isso. Mais uma rodada? — Ergueu o
supercílio marcado.
Assenti.
Enquanto ele pedia mais um martíni para o bartender, meu
celular vibrou.

Margot:
Como está indo aí, piranha?

Vai dar uns pegas, intrometida.

Guardei o celular de volta no bolso da jeans escura no momento


em que ele se virou para mim, dessa vez me analisando, como
quando eu estava na pista de dança. Observou meu rosto, meu
corpo. Seu olhar queimava. Eu precisava dar o fora dali com ele.
Precisava…
— Alma — ele interrompeu meus pensamentos.
Confusa e de sobrancelhas erguidas, perguntei:
— O quê?
Subi meu olhar para seus olhos novamente, que só então
percebi estarem sobre seus lindos e pequenos lábios. Ele era…
lindo.
— Seu nome significa alma. — Deu um sorriso debochado, já
que o motivo de eu ter me distraído provavelmente passava pela
sua cabeça.
Eros… Ele era com certeza o cara mais gato em que já tinha
posto os olhos. Seus cabelos castanho-claros eram bem ajeitados,
nem tão grandes, e suas maçãs do rosto, altas. Nariz comprido e
reto. Olhos profundos. Sobrancelhas grossas e escuras.
— Como você sabe? Por acaso fala grego? — debochei,
desviando parcialmente o olhar do dele.
Ele deu um sorriso pra lá de melancólico. E, então:
— Miló pollés glósses.
Fiquei estática por um momento. Talvez em choque. Quem em
pleno século XXI aprendia grego?
— Eu falo muitas línguas — ele traduziu com um sorrisinho no
rosto, reparando em meu desentendimento, e olhou para o copo
vazio à sua frente no balcão.
— É claro que você fala. — Suspirei, revirando os olhos, em
seguida concentrada nele.
Como um cara desses não falaria?
Eros sorriu; um sorriso de fazer pernas ficarem bambas. Então,
sacou vinte dólares do bolso da calça, se levantou e recolheu o
paletó da cadeira alta ao lado.
— Bem, princesa, tenho que ir — ele falou, o que não entrou de
imediato na minha cabeça. Continuei sentada, confusa. — Acho que
já fiquei tempo demais aqui.
Apesar de ter ficado chateada por não conseguir ir junto com
ele, respondi:
— Hã? Claro. Até a próxima, Eros. — Dei uma piscadela e lhe
ofereci um sorriso.
Eu não queria insistir. Ele parecia mesmo ocupado. Como um
daqueles empresários multimilionários. Quem me dera dividir a
cama com alguém milionário.
Eros não saiu de imediato, ficou me olhando por alguns
instantes, o olhar mais uma vez percorrendo todo meu corpo. Mas
ele não me pediu para acompanhá-lo. Em vez disso, deu um sorriso
melancólico e saiu pela porta dupla da boate. Ele era,
provavelmente, o primeiro cara a me recusar.
O que só me fez ficar mais fascinada.
Q uando tinha posto os olhos nela, ficara realmente
deslumbrado.
Quando eu tinha entrado naquele bar, já estava
preparado para algo grande — mesmo que as missões às quais
minha mãe me submetia fossem fáceis —, mas não para Psiquê. Eu
soubera disso no exato instante em que ela havia me encarado de
volta.
Psiquê Di Laurentis era, de longe, a mortal mais bela que já
tinha visto. Talvez chegasse até mesmo à altura da beleza sagrada
das olimpianas, das deusas. Porra, ia até mesmo além! Ela
ofuscava a beleza de todas ao seu redor, as reduzia a meras
mortais.
E eu nunca estivera tão errado em relação às deusas serem os
seres mais lindos já existentes.
Psiquê… ela era o ser mais lindo já existente. Com seus olhos
verdes astutos como gatos, seu corpo incrivelmente curvilíneo, seus
cabelos chocolate e seu rosto transparecendo ferocidade. Eu queria
tê-la desbravado por inteiro. Queria tê-la tomado bem ali.
Era verdade que já tinha me envolvido com muitas mortais, mas
nunca com uma missão. Porque era isso o que ela representava:
uma missão. E eu não conseguiria de jeito nenhum conclui-la. Não
demorava nem dez minutos para isso, mas Psiquê… não
conseguiria fazer aquilo com ela.
Então, de longe, eu a observara. Observara todos os seus
movimentos e goles nada demorados nos seus martínis. O tempo
nunca tinha passado tão rápido. Tinha me deixado ficar entretido por
ela.
E, por mais que já soubesse dos interesses de minha mãe,
havia descoberto um deles naquele instante, enquanto observava
sua beleza extraordinária. E havia sido por isso que tinha decidido
não continuar com aquilo. Poderia omitir a verdade para minha mãe
quando voltasse para casa.
Eu havia tentado — tentado com tudo o que era — abrir as asas
e voar até lá. Voltar para casa e deixá-la.
Porque eu simplesmente não podia me atrair por uma missão, o
que nunca havia acontecido antes. Era verdade que minha mãe me
mandava de encontro com mortais para fazê-los pagar pelo dano
sofrido a ela, o que às vezes eu achava um pouco de exagero de
sua parte.
Mas, tão simples quanto, fiquei encalhado do lado de fora da
boate, na chuva, sem mover um músculo. Não arrisquei olhar para
dentro, para onde ela ainda estava. Se eu olhasse mais uma vez…
Respirei fundo.
Já era tarde demais.
Abri bem as minhas asas e voei. Naquele momento, me deparei
com o terraço de um prédio próximo à Universidade de Chicago.
Nenhum mortal podia ver. Para eles, eu tinha apenas… sumido. No
céu, eu era invisível. Zeus cuidava dessa parte.
Por algum motivo, eu não tinha conseguido voltar para lá em
cima. Eu tinha ficado. Próximo à universidade onde estudava a
extraordinária mortal que tivera a honra de conhecer. Eu só pensava
nos seus olhos, tão diferentes dos meus, enquanto a água desviava
de mim por conta de uma barreira grossa de ar à minha volta. Não
precisava me molhar se não quisesse. Cada domínio de cada deus
no Mundo Mortal podia ser evitado por outro deus.
Suspirei e fechei minhas largas asas brancas.
Não me importava com as câmeras de segurança. Eu não era
identificável nos Estados Unidos — nem em nenhum lugar do
mundo, para falar a verdade — e minhas asas ou qualquer coisa
que nos entregasse aos mortais passavam de meros borrões nas
imagens.
Olhei para o céu, para as nuvens sobrecarregadas.
Esperava de verdade que minha mãe não me procurasse,
porque isso não acabaria bem.
— Oquê? — Margot chiou. Nós duas estávamos sentadas na cama
de casal do meu pequeno quarto, e eu observava suas caras e
bocas enquanto contava o porquê de eu ter voltado com ela
pro apê. Não quisera abrir a boca durante o caminho. Na verdade,
eu estava pensando nele, em seu cheiro cítrico inebriante e em sua
malícia ainda frescos na minha memória. — Ele deixou você? Como
alguém deixaria uma gostosa do caralho para trás?
Eu não sabia por quê.
Mas também não contei que isso me acendera como uma
tocha.
Nós duas estávamos no pequeno apartamento que dividíamos.
O prédio de três andares e tijolos vermelhos era meio capenga, mas
ficava na mesma rua da UC. Aquela rua era lotada de prédios
universitários de três ou quatro andares e constantemente era
poluída por baseados perdidos e vidros de bebida; o que Margot,
como futura bióloga, detestava.
Era um bom espaço para dois quartos, uma sala e uma cozinha
— todos pequenos, mas, ainda assim, de bom tamanho. Tinha vista
para… outro prédio. E para a rua poluída. Porém, para o conforto da
minha colega de quarto, tinha árvores do outro lado, o que a fazia se
distrair um pouco da tragédia.
Nós duas dividíamos os custos e, na verdade, havia sido dessa
forma que tinha conhecido Margot Linderman: estava cansada da
minha família perfeita — que atualmente morava em Peoria, a duas
horas e meia de Chicago — e procurara um lugar para ficar. Havia
um anúncio em um site que dizia: “Ótimo apartamento com um
quarto sobrando e uma ótima colega de quarto para fazer
companhia”. Tinha aproveitado porque achara engraçado e barato.
Então, estávamos ali, Margot e eu, universitárias cem por cento
dedicadas.
— Margot, temos aula amanhã.
Ela continuava com uma expressão real de quem não entendia,
sobrancelhas franzidas e tudo. Minha amiga tratou de superar e se
levantou da cama com um dar de ombros. De pé e olhando
diretamente nos meus olhos, os seus como fendas, ela falou:
— Nós resolvemos isso amanhã. Boa noite. Sonhe com
Aristóteles. — Piscou e saiu antes que meu travesseiro a atingisse,
mas escutei seus risos do outro lado, abafados pela porta agora
fechada.
Idiota.

Chicago amanheceu nublada no dia seguinte, como quase


sempre. Eu não tinha dormido muito bem naquela noite, pensando
nele. Agora, olhando pela janela da sala de aula enquanto o
professor do meu curso falava, minha cabeça estava em outro lugar.
Talvez no céu, porque, juro por Deus, Eros era perfeito. Mesmo. Em
questões físicas, é claro.
Porque eu não o conhecia.
O que me intrigava.
Eu gostaria muito de conhecê-lo.
Margot tinha ficado me enchendo o saco o tempo todo no curto
caminho até a UC, mas ela se distraía com uma poluição humana
aqui e ali, pondo-a no seu devido lugar. Ela levava isso a sério. Era
um dever de vida.
Não havia contado nada a ela, que realmente tentava entender
por que ele teria me recusado. Ela tinha dito que éramos “perfeitos
um para o outro, dois gostosos”. Ela dera risada, ao mesmo tempo
que eu tentava entender.
Podia estar ficando paranoica ou algo do gênero, mas ele
estava em conflito quando tinha ido embora. Seus ímpares olhos
âmbar — encantadores e inebriantes — pareciam se mover com
aflição.
Em geral, eram os homens quem me procuravam. E era eu
quem recusava.
Mas estava disposta a procurar por Eros. Não um apesar de,
mas um porque ele havia me recusado. Eu odiava a atenção tanto
quanto a amava. Era bom se distrair de vez em quando, mas todos
prestavam atenção só na porcaria da beleza, que, de verdade, não
sabia de que lado da família a puxara — da minha mãe, talvez?
Ninguém queria de fato me conhecer. Só uma noite casual ou
alguns amassos.
Não que eu estivesse procurando por alguém. Isso só… me
incomodava.
Na verdade, não tinha procurado ninguém dessa forma desde
Kurt Monaghan. O maldito Kurt Monaghan. Nós tínhamos namorado
durante o ensino médio, éramos um bom casal: ele, o atleta; e eu, a
mocinha. Com os músculos e a altura que o basquete
proporcionava, todas as garotas o desejavam. Ele tinha me
conquistado por enxergar além do meu físico. Eu me abrira a ele,
me doara a ele. Nós tínhamos nos amado. De verdade.
Mas eu havia tido de terminar.
Kurt podia me amar e me enxergar, mas ele havia parado de se
importar com o nosso relacionamento. Quando nossas vidas
universitárias haviam começado, ele já viajava muito por causa dos
jogos de basquete. Não me ligava, não me respondia. Então eu
tinha terminado.
Respirei fundo.
Não queria estar pensando nele um ano depois de tudo.
A aula acabou. Levantei-me da mesa e fui até onde Margot
estava me esperando, em algum banquinho de pedra no campus
que possuía uma grama verdinha e brilhante na luz das 16h. Era
bem extenso, composto por prédios de tijolos vermelhos como o que
morávamos, onde cresciam trepadeiras que davam um ar antigo a
eles e onde aconteciam as aulas. A gente estudava à tarde, e a aula
de Margot acabava antes da minha.
Quando a avistei, ela acenou. Estava sozinha, sentada em um
banco bem no meio do campus, que era composto por algumas
árvores e dava para a rua.
Olhando para os prédios atrás dela, a universidade parecia ter
saído de um livro vampiresco das trevas. Pareciam prédios da Idade
Média. O que, de certa forma, me dava uma sensação boa. Talvez
por amar História.
Ela não ficou de pé, então fui até lá.
Pelas sobrancelhas erguidas, presumia que era essa a hora de
contar sobre o dia anterior.
— Nada melhor que um lugar ao ar livre para me contar tudo. —
Margot me deu uma piscadela e pôs uma mecha de seu cabelo, que
beirava o loiro, para trás da orelha. — Ele te deu um número ou
alguma coisa assim?
Um suspiro escapou pela minha boca enquanto permanecia de
pé.
— Não. — Desviei o olhar para a circulação de pessoas pelo
campus. Algumas estavam sentadas em bancos como nós, outras
na grama. — Eu disse que não tinha nada para contar, Margot.
Ela bufou.
— Ele estuda aqui na UC?
Neguei com a cabeça, mechas de cabelo balançando.
— Merda, assim parece que ele não está interessado. — Ela
revirou os olhos, talvez com raiva dele. Eu confessava que esse fato
o fazia parecer ainda mais interessante. — E qual o nome do infeliz
gostoso?
Com um sorriso, respondi à pergunta:
— Eros.
Não tinha dito seu nome desde a noite anterior.
Ela piscou algumas vezes e, então, deu uma gargalhada, como
previsto.
— Como aquele deus? O deus do amor? — sugeriu, entre
risadas, realmente tirando proveito da situação.
Ergui a sobrancelha. Não tinha associado a isso.
— Qual é, Psiquê? Você é quem estuda mitos humanos e sou
eu quem tenho que te lembrar disso? — Revirou os olhos, pondo-se
de pé, a mochila devidamente nas costas.
— Eu só não tinha pensado nisso, babaca. — Empurrei-a de
leve com o ombro, e ela fez careta.
Margot vestia um cropped azul tomara-que-caia, uma calça
jeans clara e sandálias bege hoje, enquanto eu vestia uma regata
de alcinhas preta e de cetim, uma jeans azul-escuro e sapatilhas
pretas.
— Ele deve ser ótimo na cama, amiga — provocou ela.
Revirei os olhos.
Eu bem que queria confirmar a teoria.
— Você parece um cachorrinho abandonado. Queria que ele
tivesse te levado para a cama, não é? Isso é óbvio, na verdade.
Quem não ia querer? — questionou ela, ainda provocativa, fingindo
estar com a cabeça nas nuvens.
Expressei facialmente que, sim, eu queria, mas eu não era tão
boa em fingir.
Porque, por mais que eu quisesse, aquilo me mostrava que
Eros não era como os outros. Se havia sido uma jogada, ele poderia
se considerar quase um vencedor.
— Safada! Você gostou disso, não foi?
Esbocei um sorriso, um que dizia tudo.
F azia uma semana desde que havia descido ao Mundo Mortal,
desde que meus olhos haviam se deparado com Psiquê Di
Laurentis, a mortal mais linda de que já tivera conhecimento.
Eu não conseguia admitir, mas estava preso a ela; à sua lembrança.
Era loucura não cumprir uma missão da minha mãe.
E ainda mais mentir a ela.
Afrodite não era fácil de se enganar, mas tinha de funcionar,
porque eu não conseguia tirar Psiquê da cabeça. Queria decifrá-la.
Queria prová-la. E era doido por querer me envolver com uma
missão.
Mas eu vinha tentando me desvencilhar da ideia… sem
sucesso. Além do mais, não podia deixá-la com minha mãe por aí,
que era capaz de fazer coisas muito piores com ela, do tipo que
fazia minhas flechas parecerem inofensivas. Sua inveja a levava
longe.
Era isso o que me havia feito chegar até ali. Psiquê não era
dona de uma beleza comum, e eu precisava urgentemente sair do
conforto do meu mais novo apartamento para encontrá-la, porque
eu já não aguentava mais.
Por esse motivo, estava onde estava.
Desencostei-me da parede externa de tijolos vermelhos da
universidade assim que a avistei passando pelo corredor e
adentrando uma porta dupla de carvalho escuro com alguns livros
na mão. Sem delongas, segui-a, me deparando com uma enorme
biblioteca quando entrei no espaço.
Dois andares de muitas estantes.
Lugares rústicos não costumavam chamar a minha atenção,
mas esse era especialmente belo. Passava um ar de que coisas
incríveis já tinham acontecido ali dentro. Eu, não sabia se feliz ou
infelizmente, sentia o sexo. Às vezes, era excitante. Às vezes,
inconveniente, como agora.
Em geral, inconveniente. Sentir que alguém estava excitado era
tão irritante quanto perfeito para certas ocasiões.
Eu também causava isso quando entrava no mesmo ambiente
que eles, os mortais. Talvez por isso alguns deles tenham me
olhado como se eu fosse um troféu, com sorrisos maliciosos e
olhares melancólicos nos rostos.
Não podia negar que não era.
Psiquê estava entregando um de seus livros para a bibliotecária,
com a sua amiga ao lado. Então, virou-se e disse algo para a
garota, logo se direcionando a algumas estantes do primeiro andar,
o nosso.
Com as mãos nos bolsos e um sorriso de quem não queria
nada, passei pela sua amiga e fui direto até onde Psiquê tinha se
locomovido. Reparei no olhar de cima a baixo que a mortal me
lançou, talvez querendo soltar um assovio.
— Olá — disse com um sorriso para ela, que vasculhava uma
estante que dava de frente para uma sala de convivência com sofás
verde-vivos.
Ela me olhou de volta e, quando notou que era eu, ficou estática
por um segundo.
Mas logo um sorriso genuíno moveu seus lindos lábios
carnudos.
Eu não deveria estar ali, mas estava.
Eu não deveria estar fazendo aquilo, mas fazia.
Psiquê Di Laurentis era meu enigma, e eu nunca os deixava
sem resolvê-los.
— Eros? — Ela removeu o livro da estante, que se intitulava
Mitologia grega.
Não pude evitar o sorriso, o que causou um rubor em suas
bochechas. Eu sabia que tinha alguma participação no fato de ela
estar procurando por esse título, que agora ela apertava forte contra
o peito. Psiquê ajeitou a mecha, que caiu por trás da sua orelha,
talvez envergonhada.
— Se você quer saber algo sobre mim, pode perguntar, princesa
— sussurrei na sua orelha, o que soube no mesmo momento ter
eriçado os pelos do seu corpo. Seus braços, suas pernas.
Dei um sorriso e olhei para seus olhos, que pareciam uma
floresta inteira.
Ela se recompôs.
— Só porque você tem o mesmo nome que um deus, não
significa que seja por você. — Ela me encarou. — Posso passar?
Eu ainda estava apoiado na estante, impedindo a passagem.
O corredor não era muito longo, mas talvez um pouco escuro.
Encarei-a por alguns instantes. Meus olhos percorriam seus
olhos, seus lábios, seu pescoço. Ela não recuou. Parecia disposta a
passar por mim e me esquecer, mas meus sentidos me diziam outra
coisa.
Liberei passagem, e então ela zarpou, nem um pouco hesitante.
Fui atrás dela.
— De qualquer forma, posso te ajudar com isso, princesa. Sou
bom nesse assunto. — Sorri, caminhando ao seu lado, com destino
à outra estante, do outro lado do corredor. Algumas pessoas nos
olhavam, talvez querendo silêncio, talvez querendo outra coisa.
Estava alheio a isso. Minha concentração estava em apenas uma
pessoa.
— Mesmo? — Ela parecia não acreditar enquanto passava a
mão por alguns livros de lombadas diversas. — Você, craque em
mitologia grega?
— Greco-romana — corrigi, o que não importava naquele
momento, mas que me fez ganhar um olhar curioso. — Mas aviso
que você pode querer saber mais sobre Eros, deus do amor, do
erotismo, do sexo… — Fui diminuindo o tom, alterando o olhar entre
seus olhos e seus lábios.
— Talvez algum dia. — Ela me queimou com o olhar. — Por que
está aqui? Me disse que não era da UC.
Dei mais um sorriso a ela, me aproximando pouco a pouco.
— Bem, eu estava por perto e lembrei que uma garota incrível
estudava aqui — respondi aos murmúrios. Minha boca foi até seu
ouvido. — O que mesmo?
Ela deu um longo suspiro quando toquei sua cintura, apertando-
a contra a estante, em um corredor que tinha fim e que era até
mesmo privado. Talvez, se alguém tirasse algum livro dali…
— Filosofia, talvez? — Apertei ela um pouco mais, que enfim
perdeu o fôlego.
Sorri diante disso.
Ela assentiu e, então, para minha surpresa, inverteu as
posições.
— Você sumiu — Psiquê disse, baixinho e devagar, os olhos
vidrados nos meus.
— Eu não sabia que voltaria — retruquei, apreciando a troca de
murmúrios.
Ela sorriu.
— Mas voltou. — E então se afastou. — Com uma roupa bem
melhor, devo dizer — debochou do meu ótimo gosto, concentrada
no que eu agora vestia: uma camiseta preta e uma calça jeans
escura, ambos sem graça. Afinal, a verdadeira graça estava em
vestir ternos Armani.
Encarei-a. Eu gostava dela.
Respirei fundo e, sentindo que ela também sentia algo por mim,
sorri. Ela subiu o olhar para mim. Fixei a atenção nos seus lindos
lábios.
— Por que está aqui? — ela repetiu a pergunta de pouco tempo
antes.
— Queria que você me mostrasse a cidade. Sabe, sou novo por
aqui. — Dei de ombros, ao passo que ela revirou os olhos e se
afastou, indo até o balcão de locação de livros; um balcão longo de
madeira escura, com uma mortal idosa de cabelos grisalhos sentada
atrás dele.
A idade de velhice deles não era nada se comparada à minha
atual. Ela era para mim como um embrião era para ela.
— Esses aqui. — Ela sorriu para a senhora e, então, tornou a
olhar para mim novamente. — Você não precisa de muito para
conhecer Chicago. São só prédios — desdenhou, tentando me fazer
mesmo acreditar que não estava interessada.
Se eu fosse um mero mortal, talvez acreditaria.
Mas eu podia sentir que estava.
Inclusive, podia sentir sua amiga nos encarar de onde estava,
de pé, não muito longe dali, perto dos sofás. Ela sorria enquanto
fingia prestar atenção no celular. Mechas de seu cabelo castanho-
claro caíam como uma cascata à sua frente. Era a mesma garota
que acompanhava Psiquê Di Laurentis no bar.
— Aposto que conhece lugares interessantes nessa cidade que
não prédios, princesa. — Dei o melhor de meus sorrisos. Algumas
cabeças se viraram para mim, e eu pude sentir a tensão. — Acredito
em você.
Ela me olhou de cima a baixo.
Talvez tentando confirmar o quanto eu era lindo. Não era
sempre que se deparavam com a beleza de um olimpiano. Psiquê
Di Laurentis podia se considerar sortuda.
— Tudo bem, eu vou pensar. — Ela pegou os livros alugados do
balcão e disse um fraco obrigada para a bibliotecária.
Sorri de novo, porque já sabia a resposta.
Psiquê se virou para mim.
— Quer meu número? — perguntei, secando-a com o olhar.
— Quero. — Ela esquadrinhou meu rosto, assumindo uma
postura ereta.
Peguei uma caneta que estava em cima do balcão, lançando
um olhar de agradecimento à velha mortal. Em seguida, me voltei
para Psiquê e peguei sua mão.
Ela ergueu a sobrancelha, que logo desceu conforme fui
escrevendo meu recente número de celular na palma delicada.
— Pronto. — Devolvi a caneta para onde estava e ergui os
olhos até ela. — Foi um prazer fazer negócios com você.
— Não disse que eu podia.
Meus lábios subiram em mais um sorriso. Eu sabia que Psiquê
Di Laurentis largaria todos os compromissos para fazer um tour pela
cidade comigo, que em breve meu celular estaria apitando com a
chegada de uma mensagem. O que só poderia ser ela, porque ela
era a única pessoa na Terra que tinha o número de Eros, o deus do
amor.
Me aproximei do seu rosto.
— Até mais, Psiquê.
Ela se enrijeceu sob minha aproximação e soltou um longo
suspiro.
Me afastei, mas aproveitei enquanto pude.
Encarei-a nos olhos, seus lindos olhos verdes, e me perguntei
mais uma vez o que eu estava fazendo. Nunca antes uma mortal
tinha me atraído tanto, mas Psiquê era diferente.
E já havia decidido muito antes de segui-la por aquelas portas
duplas que ela valia a pena.
M eu corpo todo se aliviou quando Eros saiu.
Ou apenas… parou de ficar tenso.
Um suspiro escapou por entre meus lábios.
Eu já havia desistido da ideia de que nos encontraríamos de
novo, mesmo fazendo apenas uma semana que tínhamos nos
encontrado naquele bar no centro de Chicago. Afinal, eu não tinha
seu número… ainda. Abri a mão e encarei o número escrito ali, em
algarismos elegantes, enquanto seu cheiro ainda preenchia minhas
narinas.
Apertei os livros contra o peito e fui até Margot antes que ela
viesse até mim.
— A-mi-ga! — ela deu um gritinho de empolgação, o que foi
repreendido pela bibliotecária. — Ele veio na UC só pra te ver? —
sussurrou, mesmo que agora estivéssemos a um passo da saída.
Sorri, desviando o olhar do dela.
— Ele estava por perto. — Dei de ombros.
— Você é uma sortuda do caralho. Você tem quase que
literalmente o homem mais gato do mundo ao seu encalce. — Ela
suspirou, desviando o olhar para o céu ainda nublado. — O que ele
te disse lá dentro?
Senti minha pele queimar ao lembrar o que tinha acontecido lá
dentro.
— Que quer que eu mostre Chicago a ele.
Ela parou de súbito, no meio de um dos corredores externos da
universidade.
— E o que você disse?
Sabia que Margot ia me matar.
E ela também sabia.
— Que eu ia pensar.
Ela ficou estática, talvez em estado de choque.
— Você tem noção de que você praticamente recusou uma boa
noite?
Lancei um sorriso a ela e retomei a caminhada, ao passo que
ela me acompanhou.
— Você não dorme com ninguém desde o início do ano, o que é
muito, muito triste — continuou seu discurso de sempre. — Tenho
quase certeza de que ainda não superou o Kurt, depois de um ano.
Suspirei.
— Não quero falar sobre isso.
— Você descobriu o sobrenome dele? — Ela voltou ao assunto
inicial.
As árvores do campus sacudiram. Os jornais diziam que a
previsão para aquele dia era de chuva. Eu quase podia sentir as
gotas, mesmo que elas ainda estivessem lá em cima, em meio às
nuvens.
Fiz que não com a cabeça.
— Mas… — Estendi a mão no ar para ela, o que a fez pegá-la
de imediato e analisá-la.
Dei risada.
— Você é uma caçadora, Psiquê. — Ela deu uma risada
nasalar, subindo e descendo as sobrancelhas e finalmente soltando
a minha mão. — Falando em presas… Eu vou sair com Justin hoje,
tudo bem por você?
O que significava um apartamento inteiro para mim e uma boa
noite para ela.
— Tá, tudo bem.
Ela tinha razão sobre minha vida sexual: era deprimente.
Mas tinha quase certeza de que Eros não queria só um mísero
tour pela cidade, ele só podia estar tirando uma com a minha cara.
A palma da minha mão riscada por caneta parecia coçar. Era
perigoso eu estar com aquele número, podendo fazer o que eu
quisesse.
Quando cheguei ao apartamento, adicionei um novo contato ao
meu celular e fui direto para o banho. Assim que a tinta da caneta
começou a sair da palma da minha mão, todos os lugares do meu
corpo pareceram ferver em protesto.
Talvez não só por isso, mas por também lembrarem de hoje
mais cedo.
Toquei nos mesmos lugares onde ele tinha tocado.
Na minha cintura, na minha mão, no meu pescoço — bem, esse
último só tinha sido atingido drasticamente quando ele sussurrara
coisas que me teriam feito ceder a tudo o que ele pedisse.
Ergui a cabeça para o jato de água do pequeno chuveiro. Só
tínhamos um banheiro no apê, o qual era tenso de dividir com
Margot. Ela passava horas se preparando para passar a noite com
mais um cara.
Suspirei, a água escorrendo livremente pelo meu corpo.
Desejei dormir bem naquela noite.
Não o fazia desde 18 de setembro.
M argot tinha inventado de novo.
— Ah, vamos, vamos, vamos! — ela disse, agarrando a
minha mão e balançando a cabeça loucamente enquanto
estávamos sentadas na grama do campus em formato de U. A parte
aberta dava direto para a rua dos prédios universitários.
Hoje tinha aberto um sol incrível, como se Deus estivesse muito
feliz e tivesse piedade de nós por um instante. Chicago era
conhecida pelas nuvens cinzas que percorriam todo o céu, sem um
mínimo espaço entre elas para que a luz pudesse passar.
Olhei bem para minha amiga, com sua cabeleira devidamente
domada. Usava bermuda jeans azul colada e blusa de algodão
verde-clara, com os dizeres Amiga do meio-ambiente estampados,
que ela tinha ganhado em um sorteio do seu curso de Biologia.
Ela sabia que, se insistisse muito, eu iria.
— Por favorzinho. — Fez beiço.
Revirei os olhos.
Talvez eu me arrependesse.
— Tudo bem, mas…
— Isso! — Ela se levantou em um pulo, pondo as mãos ao alto,
empolgadíssima.
Sorri pelo seu entusiasmo.
— Espero que essa festa seja do caralho, Margot.
— Vai, sim! — Ela se sentou comigo na grama verde mais uma
vez e pegou as minhas mãos. — Eu prometo solenemente.
Ergui as sobrancelhas, achando graça.
Bem, parecia que os héteros tinham ficado ressentidos. Quase
duas semanas depois, eles iriam fazer uma festa em sua
fraternidade, que ficava fora do campus, na mesma rua em que eu e
Margot dividíamos o apê. Ou seja, a rua que dava para a
universidade.
Só que muito longe, mais para o fim da rua.
Desse jeito, ninguém os impediria de dar uma festa e tanto.
— A gente vai pegar muito.
— Uhum. — Dei de ombros, fazendo pouco caso daquilo.
Ela ergueu a sobrancelha.
— Psiquê. Sei que você só pensa no Eros, mas você vai pegar
muito, sim. Nem que você mande uma mensagem pra vocês se
pegarem lá. Senão, eu te expulso do apartamento.
Dei uma risada nasalar, desacreditada. Margot e eu éramos
como líquen, não viveríamos separadas. E, droga, só estava
fazendo essa maldita comparação porque Margot não parava de me
encher com assuntos de Biologia.
— Tá legal. — Levantei da grama com meus livros colados no
peito e dei umas espalmadas na bunda. Estendi a mão para ela. —
Vamos estudar, bióloga festeira.
Ela sorriu e, com um impulso, se levantou da grama verde,
ficando cara a cara comigo.
— E, lembre-se, nada de…
— Copos ou qualquer coisa feita de plástico.
Um brilho percorreu seus olhos e ela apertou um pouco mais
seus livros contra si.
— Você aprende rápido.
Puxei o freio de mão do carro de Margot, um sedan prata de
cinco lugares. A gente revezava as vezes em que tínhamos de
dirigir e, bem, naquele dia era eu a escolhida. Sabe, eu não
detestava dirigir, mas também não era uma maravilha.
A fraternidade era toda branca. Tinha duas colunas gigantes
jônicas de mesma cor na sua entrada, como aquelas dos templos
dos deuses gregos. O prédio era bem alto, na verdade. Letras
gregas determinavam o nome da fraternidade em um cartaz
pendurado entre as duas colunas, bem no alto. O fundo era azul-
escuro; as letras, brancas e douradas.
— Saudades, Theta Zeta. — Margot suspirou, olhando para o
cartaz.
Por fora, a fraternidade era uma bagunça: copos espalhados,
papel higiênico jogado para todos os cantos, casais se pegando ou
pagando boquete — cá entre nós, tinha muito mato para isso — e
variedades.
Margot estava com o coração saindo pela garganta. Ela não
gostava cem por cento de festas, até porque tinha muito plástico e
coisas prejudiciais ao meio-ambiente. Sem conseguir se segurar, ela
recolheu alguns deles pelo caminho, voltando frequentemente para
pegar o resto.
Eu ajudei-a, colocando um copo vermelho dentro do outro.
Aquela era uma das coisas que se tinha de fazer sendo amiga de
Margot.
Ou seja, ser amiga de Margot Linderman ajudava o meio-
ambiente.
Quando entramos na fraternidade, que era manchada de rosa,
verde e azul constantemente por luzes piscantes, fomos direto para
a cozinha e largamos os copos na lixeira certa, a vermelha.
— Universitários — Margot resmungou. Logo me encarou e
pegou a minha mão. Luzes coloridas manchavam nossos rostos.
— Vem, vamos.
Ela me puxou até o meio da pista, que fervia com veteranos e
calouros dançando. Algumas garotas me olharam de cima a baixo.
Garotos também.
Engoli em seco.
Não queria me importar com aqueles olhares odiosos, mas eu
me importava.
— Não quero dançar agora — disse perto do ouvido da minha
amiga.
Ela assentiu.
Margot sabia que eu os odiava. Odiava tê-los olhando para mim
como se eu fosse um obstáculo em suas vidas. Eles queriam ser eu,
mas não faziam ideia do inferno que era. As garotas sempre me
olhavam com inveja. Os garotos sempre me olhavam com um
desejo sujo.
Portanto, Eros…
Parei de caminhar com minha amiga até os fundos da
fraternidade, onde mais gente estava, porque alguém me olhava da
porra da escada. A porra dos mesmos olhos âmbar que eu
reconheceria em qualquer lugar.
Eros. Fora só eu pensar nele que — puf! — ele tinha aparecido
na base da escadaria que levava até os aposentos dos veteranos da
Theta Zeta. Com um olhar predatório, ele sorriu para mim. Desci o
olhar até suas roupas, que eram diferentes dessa vez: uma
camiseta de algodão preta, uma jaqueta de couro marrom por cima
e uma jeans escura. Seria por causa do meu comentário nada
recluso na noite no bar? Lembrei que ele tinha me abordado com
aquele mesmo estilo de roupa na biblioteca.
Eu admitia que ele parecia ainda mais atraente, apesar de a
jaqueta não delinear seus músculos dos braços como deveria. Mas
eu tinha um vislumbre de seu peitoral bem ali, onde a camiseta
aparecia.
Engoli em seco.
Senti o olhar de Margot se alternar entre nós, e ela sorriu,
saindo de mansinho.
Eu queria ficar sozinha com ele.
Mas, quando ele começou a caminhar na minha direção… senti
algo estranho. Uma brisa fria, embora a festa estivesse quente
como o inferno, com gente acumulada em todos os cantos
possíveis.
Ignorei.
Porque Eros estava agora na minha frente, e eu tinha perdido o
fôlego. De perto, ele me causava uma confusão por dentro, como se
todos meus sentidos colidissem. Eu falava coisas sem pensar, eu
sentia coisas que não queria sentir. Eu não me controlava.
— Você, por acaso, está me perseguindo? — perguntei,
provocativa, alternando o olhar entre sua boca e seus olhos.
Eros usava um perfume impossível de não sentir. Eu me
perguntei se era perfume ou seu cheiro natural. O mesmo de antes:
cítrico.
Ele se aproximou.
— Não sei, princesa. Talvez você esteja me perseguindo —
sussurrou à minha orelha.
Meus pelos se eriçaram, minhas pernas tremeram e meu fôlego
escapou mais uma vez.
— Duvido muito. Por que estaria? — provoquei, focando em
seus olhos extraordinários. Eu nunca tinha visto olhos daquela cor
antes.
Um sorriso malandro se abriu naquela boca perfeita.
— Você parece ter uma queda por mim, querida Psiquê.
A verdade é que eu quebraria por ele.
Por ele, eu deixaria o posto de presa. Porque, para ser sincera,
eu estava cansada de ser a presa. Eu também sabia ser uma ótima
predadora.
E Eros poderia muito bem ser minha provação.
— Não? — Ele aproximou nossos corpos, tocando na minha
cintura.
Fitei seus olhos.
Eu gostava daquele jogo.
— Acho melhor rever alguns aspectos. Você quem me pro-
cura
todas as vezes — disse, sem mover meu olhar do dele por um
milímetro sequer. Gostava de jogar com ele.
Seus lábios se curvaram em um sorriso.
O que você quer de mim? O que você quer de mim, Eros? Eu
precisava saber. Ele precisava me contar.
Porque eu toparia tudo.
Eu poderia apostar em onde eu estava suando naquele
momento.
— Você me instiga — ele murmurou.
Quis suspirar.
Eu sabia que caras como Eros eram encrenca. Confiantes,
intrigantes demais. Era assim que dormiam com quem queriam,
faziam o que queriam. Eles levavam ruína e destruição a suas
presas.
Mas eu não era mais uma presa.
Eu era a maldita caçadora.
Era eu quem levaria ruína e destruição a ele.
E ele não precisava saber disso. Eu podia brincar com ele o
quanto quisesse, porque conhecia aquele jeito de olhar. Mesmo que
ele tivesse me recusado daquela primeira vez, ele me olhava com
desejo.
— Mesmo? — Aproximei minha boca da dele. Eros causava
arrepios em mim, mas eu também podia causar arrepios nele. Eu
podia sentir.
Eros sorriu.
— Princesa, você não vai querer brincar comigo.
Também sorri.
— É aí que você erra.
Algo sombrio passou pelos seus olhos, mas não recuei.
No escuro, eles pareciam bolas flamejantes. Eu deixaria elas
me queimarem se quiserem. Secretamente, deixaria que elas
fizessem tudo o que quisessem. Eros me instigava da mesma
maneira. Eu podia senti-lo em todos os lugares.
— Você está me perseguindo — sussurrei muito próxima a ele.
Podia sentir nossas respirações se entrelaçando.
Eu queria que ele me levasse dali.
— Você ainda não me ligou. — Me encarou, confiante demais.
Sorri.
Por mais que quisesse muito, eu estivera me segurando.
Gostava de ter esse poder.
— Ainda temos muito tempo para isso, meu bem.
Eu sentia olhares sobre mim, sobre ele. Naquele momento, não
ousei desviar o olhar do seu. Chamas queimavam no meu interior.
Eu estava quente. Meu sangue fervia perto dele. E eu não sabia se
podia me segurar por muito mais para não o levar para o quarto.
Minha respiração estava desregulada desde quando havia sentido
seu olhar naquela escadaria.
— Psiquê — ele grunhiu. Pelos eriçaram. Seu cheiro cítrico
chegou às minhas narinas mais uma vez.
— Eros. — Encarei-o. Eu precisava deixá-lo se quisesse vencer
aquele jogo, por mais que não quisesse que acabasse tão cedo. —
Até logo. — Eu sorri o melhor de meus sorrisos.
Ele apertou minha cintura, mas nenhum grunhido saiu por entre
meus lábios. Eu apenas saí e segui até os fundos da fraternidade,
que ainda pulsava ao nosso redor. Quase que no mesmo instante,
eu vi, de soslaio, garotas se aproximarem dele. Ele sorriu para cada
uma delas, mas seu olhar me alcançou por último.
Caminhei de queixo erguido até um barril de bebida, já que
minha amiga trocava alguns amassos com um cara de cabeleira
loira. Agarrei a mangueira e espirrei um pouco dentro da minha
boca, dando goles rápidos. Ninguém estava usando.
A verdade era que eu não conseguiria agir como uma pessoa
normal sabendo que Eros estava ali.
Senti alguém me olhar. Virei meu olhar até perto de uma mesa
de pingue-pongue, onde jogavam Beer Pong. Um cara mais baixo
do que ele, menos bonito também — bem, eu duvidava muito que
alguém o ultrapassasse ou até mesmo o alcançasse na beleza.
Mas eu sorri de volta.
Precisava extravasar toda aquela tensão.
T inha me mudado de Peoria havia pouco mais de um ano para
cursar Filosofia em Chicago, na UC. Dera graças a Deus
quando isso tinha acontecido, porque eu sinceramente não
aguentava mais minha família, os Di Laurentis. Eles tinham ficado
chocados quando eu dissera o curso que queria. Só sabiam que eu
queria ir para Chicago, onde estava uma das melhores
universidades do país.
Em parte, era por isso mesmo que meu sonho era ir para lá. Em
outra, era para me ver livre deles. Sentia que em Peoria era
impossível de respirar.
Eu não suportava a minha família. Era uma daquelas famílias
perfeitas, em que todas as filhas deveriam se casar e se
comprometer. Minhas irmãs, Cassidy e Karen, ambas mais velhas
do que eu, eram piores que Shalley, nossa mãe. Queriam tudo à
perfeição e tinham de casar cedo. Nossa mãe havia sido o ícone
inspirador delas.
Ela havia tentado fazer o mesmo comigo, a caçula, mas eu
felizmente a impedira. Quando ela tinha visto que eu não era igual
às minhas irmãs, recatada e obediente, desistira de primeira. Eu
claramente era uma decepção para todos eles.
Lembrava-me de quando eu havia dito a eles que estava
namorando com Kurt. Eles tinham feito uma festa. Sim, uma muito
grande. Para todos os seus amigos, já que eu não tinha nenhum.
Nossa família era muito reconhecida em Peoria, meus pais tinham
dinheiro por causa da imobiliária. Eram donos de quase toda a
cidade.
E eu os odiava.
Porque não eram eles mesmos nem com os outros, nem com a
família. Eram de repudiar, já que só se importavam com dinheiro e
casamento. Quando eu havia terminado por vontade própria com
aquele babaca, eles tinham ficado tão decepcionados que não
falaram comigo por uma semana. Então, depois, quando tudo tinha
voltado ao normal, tentaram me empurrar para um monte de caras
ricos e mimados como eles. E aí eu tinha me mudado, para meu
infinito alívio.
Ligava só uma vez ao mês para eles.
Meu pai, Henry, era com quem mais dava para ter uma
conversa civilizada. Mesmo assim, era ganancioso como ninguém.
Lembrava-me também de ter perguntado por que as minhas
irmãs tinham nomes de verdade e eu, não. Ela havia dito que não se
lembrava; que só viera na sua cabeça. Bem, comigo ela era sempre
assim: simplesmente não se importava.
Viver lá me dava um constante aperto no peito, uma sensação
ruim e irritadiça. Felizmente, eu estava agora a mais de duas horas
de Peoria e agradecia todo santo dia por isso.
Dei um gole no meu martíni e folheei a página do livro de
mitologia greco-romana. Que lugar melhor para se ler um livro em
paz que não em um bar em plena terça-feira? Eu desconhecia.
Eu estava na parte de Ares e Afrodite, que haviam tido oito
filhos: Fobos, Deimos, Anteros, Himeros, Adrestia, Harmonia,
Pothos e Eros, sendo esse último o primogênito. Eles haviam sido
encurralados em uma armadilha feita por Hefesto, marido de
Afrodite, no meio do sexo, daí seus filhos.
Afrodite estava cansada da ausência do marido e, então, o traía
com Ares.
Suspirei antes de ir direto para a página de Eros, deus do amor,
do erotismo, do sexo… e afins. Como Eros havia me dito. Conforme
ele crescia, fora se revelando um deus de beleza ínfima. Na
mitologia, ele era representado como um deus muito belo, ganhando
de todos os irmãos nesse quesito.
Ele possuía asas e se divertia no que era chamado de Mundo
Mortal, fazendo pessoas se apaixonarem usando suas flechas. Às
vezes, ajudava Afrodite em algumas missões.
Dei mais um gole no martíni. O bar estava vazio na terça à tarde
— sim, a primeira coisa que havia feito quando tinha saído da aula
tinha sido vir até ali, com o livro em mãos —, o que estava
colaborando muito para a leitura.
Meus olhos eram rápidos nas palavras.
Em uma das últimas linhas sobre Eros, falava sobre uma
missão. Não tinha detalhes — como o objetivo dela. A única
informação era de que o deus fracassara.
Fui para a página seguinte.
Não dizia mais nada.
Já havia terminado a parte sobre Ares e Afrodite. Fiquei
intrigada. Queria saber mais sobre o deus do amor. Dava a
sensação de que eu estava aprendendo sobre Eros, o real, e não o
mitológico.
Terminei o segundo martíni do dia e olhei para o meu celular.
Desbloqueei a tela e fui até os contatos.
Cliquei em Eros e chamei.
N a tarde seguinte, enquanto bebia do meu copo de uísque e
observava a cidade pela parede envidraçada, paralela à
entrada do apartamento, a todo tempo esperando pela sua
ligação, meu celular começou a vibrar da mesa de centro entre o
sofá e a lareira.
Eu tinha decidido procurar um lugar para ficar na noite em que
havia conhecido Psiquê. Não em um motel, pelos deuses! Meus
sentidos se aguçavam tanto nesses locais que me dava enjoo. Eu
não estava interessado naquilo naquele momento — o que soava
um pouco estranho.
Acabara por encontrar uma placa de Aluga-se no nono andar de
um prédio — um duplex para ser mais exato. A cobertura, para ser
mais exato. Havia perguntado para o porteiro quem cuidava dos
negócios daquele apartamento e ele havia me encaminhado até o
andar abaixo do daquele, um apartamento ligeiramente menor.
Assim que um homem gorducho tinha atendido a porta, o porteiro
havia ido embora. Eu tinha jogado uma mala preta de dinheiro
mortal aos seus pés, e ele me entregara as chaves no mesmo
instante.
O apartamento era grande demais para mim. Contudo, espaços
pequenos me sufocavam. Estava acostumado a viver em um
daqueles lugares que, se morasse junto com alguém, não cruzaria
com ele com frequência. O lugar que agora me servia de estadia era
revestido por um piso de mármore preto. Alguns móveis e os
banheiros também acompanhavam a cor. A parede e alguns outros
móveis eram brancos. O lugar era, em sua maioria, preto e branco,
como em uma fotografia da década de 1930.
Havia tido sorte em encontrar um tão próximo dela.
— Bom dia — atendi com um sorriso.
— Aqui é a Psiquê — ela disse, talvez um pouco hesitante.
— Sim? — Me sentei no sofá branco e depositei meu copo em
cima da mesa de centro, inclinando-me para frente e encarando o
fogo dançante da lareira. Gostava de admirar aquela dança, por
mais que houvesse chances reais de Héstia aparecer para
perguntar por que não tinha voltado para o Olimpo. Àquela altura,
todo o Olimpo já devia estar sabendo da minha ausência — e
diríamos que era porque eu e Dionísio dávamos certas festas…
diárias.
— Estou livre agora à tarde e à noite.
Sorri como uma criança, satisfeito.
— E você gostaria de me mostrar a cidade?
Uma breve pausa prosseguiu. Do jeito que ela era, sabia que
não admitiria. Confessava que estava me divertindo com aquilo,
mais do que em décadas — talvez séculos.
As chamas continuavam dançando, e podia jurar que um rosto
se delineava naquela luz flamejante. Desviei o olhar para o meu
copo de uísque.
— Pode me encontrar na UC agora?
— Sempre vou ter tempo para você, princesa. — Sorri. —
Chego em cinco minutos.
Psiquê me esperava no campus da universidade, sentada
debaixo de uma grande árvore, lendo um livro. Quando me
aproximei, ela me olhou e deu um sorriso branco lindo, fechando o
livro quase que no mesmo instante.
Parei por um momento para admirá-la com seu sorriso
devastador.
Ela ergueu uma sobrancelha, como que me desafiando a contar
o porquê da pausa, mas logo se levantou, espalmando a bunda para
tirar qualquer sujeira. Eu a observei vir até mim, enfiando o livro
dentro da mochila.
Olhei para a árvore. Ainda bem que não precisei ir até ela,
porque me preocupava de verdade que Deméter fizesse alguma
coisa comigo. Ela nunca havia admirado minhas travessuras pelo
Mundo Mortal. Preferia que eu ficasse lá em cima com a minha mãe,
“aquela intrometida”.
— Que foi? Tem medo de árvores? — Psiquê debochou quando
ficou frente a frente comigo. Olhei para ela e dei um sorriso. Ela
vestia calças jeans pretas e uma blusa cinza de manga comprida e
de algodão, com alguns adereços: dois colares e uma pulseira de
ouro.
— Na verdade, eu estava admirando-as — menti, mas não cem
por cento. As árvores tanto me davam nos nervos quanto me
atraíam, como se fossem uma armadilha perversa da deusa da
colheita. Pus a mão em suas costas. — Onde está sua amiga?
Psiquê deu de ombros, um pouco hesitante pelo contato nas
costas, o que me fez sorrir internamente.
— Pegando algum calouro. São seus preferidos. — Ela sorriu
consigo mesma.
Tirei as mãos de suas costas. Estávamos indo em direção à rua.
— E quais são os seus, querida Psiquê? — Eu queria mesmo
saber.
Aquela mortal… ela me instigava. Era a primeira a de fato fazê-
lo. Todas as outras… eram meras distrações. Meras mortais. Mas
Psiquê havia prendido minha atenção com seu jeito difícil e
enigmático. Seus olhos verdes me encantavam, assim como seu
corpo curvilíneo, mas não era só isso: eu queria muito aprender
sobre ela, sobre as coisas que fazia e gostava.
Não era sexo — embora ela cheirasse a isso, talvez por causa
do dia anterior —, o que soava estranho.
Desejei não sentir mais esse tipo de coisa. Isso me distraía.
Fazia-me querer aquilo… o que eu quisera desde o dia em que
nossos olhares haviam se cruzado naquele bar, mas ela era a droga
de uma missão. Tinha que ser ela?
Suspirei.
— Nós não podemos ir a pé. É muito longe — ela falou quando
estávamos na calçada.
Olhei para ela, seus cabelos castanhos dançavam. Eu sorri.
— Quem disse isso? Nós vamos de carro, princesa. — Tirei o
controle do Audi prata do bolso da jaqueta de couro marrom e
cliquei para que abrisse, o que produziu um som curto e baixo.
Ela me olhou, incrédula.
Fui até a porta do carona e abri a porta para ela.
— Por favor, entre.
Algumas pessoas que circulavam pelo campus e pela calçada
nos olharam. Não por causa do carro, eu sabia, mas por causa da
beleza. A minha — e nem a dela, ouso dizer — não era mortal como
a deles. A beleza dos deuses era extrema, nenhum mortal chegava
aos pés. Exceto a garota que me encarava, seus olhos selvagens
como leões.
Enigmas estampados bem ali, os quais eu logo desvendaria.
— Nunca imaginei que você fosse rico — soltei, sorrindo, quando
ele se sentou ao meu lado no seu Audi prata. Eu estava
achando aquilo engraçado. Lembrei-me do seu traje engomado do
outro dia, de quando o havia conhecido. — Se bem que aquele
terno… Eu deveria ter imaginado.
Deu de ombros.
— Eu vivo bem.
— Então tá. Vamos conhecer Chicago, senhor Vivo-Bem. — Eu
sorri, e ele me acompanhou.
— Para onde, princesa?
Meus olhos se fixaram nos seus.
— Millenium Park, senhor. — Eu dei um sorriso convencido.
Então, coloquei o endereço no celular e, em seguida, o celular na
frente da pequena tela central do carro, para que ele seguisse o
GPS. Dava muito trabalho mexer naquela tela, então desse jeito
parecera mais fácil.
Ele ligou o pisca e entrou na rua, então me lançou um breve
olhar, um olhar âmbar e brilhante, como se tivesse se dado conta
que eu tinha, de fato, aceitado seu convite de lhe mostrar a cidade.
Eu sempre amara Chicago, até antes de me mudar para lá.
Sempre gostara de como a cidade aparentava ter um ritmo sempre
acelerado e vivaz, do tipo Nova York — só que menor, claro.
Gostava de me imaginar debaixo da chuva no meio do movimento
da cidade, já que Chicago era do tipo nublada e ventosa. Não que
céus azuis não fossem consecutivos, só que os nublados eram
mais.
Olhei para seu rosto. Ele parecia ter sido milimetricamente
calculado e cuidadoso para que tudo saísse perfeito. E eu falava
sério no perfeito. Suas sobrancelhas, seus olhos, sua boca, seu
maxilar…
E talvez eu estivesse encarando demais.
— Gosta do que vê? — Eros perguntou em um tom arrepiante,
do tipo bom, do tipo pernas bambas e suspiros longos. Mas eu me
controlei e me ajeitei no banco do carona, olhando para a frente,
para a rua e para os pequenos prédios.
— Talvez. — Me fiz de indiferente quando minhas pernas com
certeza queriam ceder.
Ele dobrou a rua, direcionando o carro ao centro da cidade.
Então, me perguntou:
— Mora aqui há muito tempo? — Percebi que ele queria mesmo
saber. Não era do tipo das perguntas que te faziam só para ter o
que falar.
— Faz um ano. Morava em Peoria com a minha família — falei a
última palavra com certo desgosto, mas não queria que ele
reparasse nisso. Minha família não era um assunto tão importante
assim. Era mais do tipo a se evitar. Olhei para ele, que prestava
atenção na rua, não parecendo olhar muito para o GPS. — E você?
Não parece ser de Illinois. Talvez de um lugar importante como…
Washington.
— Não sou.
Virei ligeiramente meu corpo na direção dele, que parecia não
querer responder àquela pergunta. E não respondeu. Desviei dela:
— Quantos anos? — Alternei o olhar entre a rua e ele. Eu
começaria pelas coisas básicas.
Eros hesitou. Parecia estar querendo desviar de todas as
minhas perguntas.
— Vinte e seis. — Me olhou de esguelha. — Minha vez.
Quantos caras você já levou para conhecer a cidade?
— Um. Você. — Virei o olhar para a rua. Estávamos chegando à
parte dos prédios de verdade, dos arranha-céus. Os arredores da
universidade só tinham construções pequenas, de no máximo três
andares.
Mas quando se chegava ao centro… Era ali que a mágica
acontecia.
Quando o olhei novamente, ele estava com um sorriso
convencido, como se fosse especial. Teoricamente, era ele quem
estava se levando até lá.
— Não é todo dia que alguém vai atrás de você pedindo um tour
pela cidade — falei, irônica. Então, soltei: — Essa coisa não vai
mais rápido?
Era a droga de um Audi.
Nisso, os olhos de Eros assumiram um brilho diferente —
selvagem — e pareciam dizer que era melhor eu me preparar. Eu já
estava preparada havia muito tempo. Ele pisou fundo no acelerador
enquanto entravámos em uma freeway.
Lutei contra a vontade de me agarrar a algo quando a
velocidade foi facilmente a duzentos por hora, o carro ultrapassando
todos os outros em uma diferença muito considerável de velocidade.
Eu olhei para ele, que se concentrava no volante e em pisar o
máximo possível no acelerador. Talvez, se pisasse um pouco mais,
o deixaria em frangalhos.
Ele só parou quando os arranha-céus estavam próximos, então
entramos de fato no centro, entre os poucos e imensos edifícios.
Olhei para ele.
Devia estar parecendo uma mosca espatifada contra um para-
brisas, porque ele sorriu ao também olhar para mim.
— Não queria saber se essa coisa corria? — Seu olhar âmbar
era ainda mais ferino que antes. — Pois bem, ela corre. Agora, à
direita.
Ele dobrou à direita.
— Foi divertido. — Fitei-o enquanto ele olhava para a estrada.
— Então você quer me levar ao parque — constatou, mudando
de assunto. — Vamos fazer um piquenique? — ironizou, com o
supercílio erguido.
— Se você tiver trazido comida — retruquei, no mesmo tom. —
É um dos pontos turísticos da cidade, se quer saber.
— Certo. Onde fica o Cloud Gate.
Só não fiquei surpresa porque todos sabiam da existência dessa
escultura.
— Isso. — Lembrei-me de uma questão. — Faz tempo que está
em Chicago?
— Desde o dia 19 de setembro.
— Desde o dia da boate. — Não tinha como não lembrar. — Se
bem me lembro, você estava procurando por alguém.
— Ela não apareceu. — Uma sombra passou pelos seus olhos
dourados sob a luz aguada do sol. Então era uma garota. Não que
isso importasse. — Fiquei por causa da cidade. Nunca tinha estado
aqui, acredite.
Depois de dobrar à esquerda, o Audi foi estacionado bem em
frente à escultura, o que me deixou surpresa. Ter uma vaga logo ali,
queria dizer. Aquilo era, de vez em sempre, lotado de turistas, o que
tornava praticamente impossível achar uma vaga perto dali.
Havíamos tido sorte.
Saímos do carro e andamos até a escultura metálica. O portal
das nuvens. Tinha uma galera tirando fotos ali, mesmo o céu
escurecendo. A verdade era que havia turistas em todos os horários
possíveis. Pela noite, a cidade ganhava mais brilho. Era quando eu
mais gostava de Chicago.
— É isso — falei para ele, que estava ao meu lado com as
mãos nos bolsos da jaqueta escura e observava a escultura de dez
metros de altura, feita de aço inoxidável. Os últimos raios da tarde
refletiam nela, deixando-a salpicada de laranja.
Observei nosso reflexo retorcido.
Estávamos lado a lado, e Eros era uns vinte centímetros mais
alto do que eu. Sua postura era confiante, ereta. Ele me olhou pelo
reflexo e deu um sorriso cafajeste. Eros era do tipo conquistador,
todas podiam perceber. Do tipo que dormia com quem quisesse e
fazia o que quisesse.
Pensar nisso me fez virar para ele e perguntar:
— Você realmente não tem nada melhor para fazer do que estar
aqui, comigo? — Ergui minha sobrancelha, querendo mesmo saber.
Me importunar parecia ser a única coisa que ele tinha a fazer.
Ele deu de ombros.
— Tenho. — Fixou seus olhos nos meus. A coloração deles
ficava ainda mais interessante com os raios laranjas do sol, como se
pegassem fogo. — Mas não são tão interessantes quanto você,
princesa.

Por mais que ele não parecesse ser do tipo que tirava fotos, ele
não demonstrou interesse algum nisso em nenhum dos lugares
aonde fomos: o Millenium Park, o píer Navy, a Willis Tower e o lago
Michigan. Também mostrei a ele os canais por onde barcos
passavam.
Ele parecia mais interessado em mim e no que eu falava sobre
os lugares.
Acho que o que mais lhe interessou foram o lago e os canais,
embora parecesse ter gostado de todos eles.
Já era noite quando ele estacionou na frente do meu prédio, o
qual encarou por alguns segundos. Não tinha muito o que ver: era
só um prédio comum de tijolos vermelhos. Quando abri a porta do
carona, ele disse:
— Obrigado pelo passeio. — Sua voz era rouca, o que meu
corpo não deixou passar despercebido.
Eu sorri o máximo que conseguia diante daquele latejar distante
e fechei a porta, me debruçando sobre a janela do Audi prata.
— Tenha uma boa noite, Eros.
M eu apartamento estava em um silêncio profundo quando
saí do elevador com um sorriso satisfeito no rosto. Estava
pensando em como Psiquê parecia ficar cada dia mais
linda e interessante.
Ela era tão diferente das outras, que se entregavam
completamente à devoção. Era até mesmo estranha sua indiferença
a isso, à luxúria. Algumas garotas ficavam tão inebriadas que
pediam Por favor, durma comigo. Eu as admirava, até Psiquê
aparecer e fazê-las parecerem nada.
Algo se mexeu no apartamento, e eu enrijeci. Quando acendi as
luzes, alguém estava sentado no meu sofá. Não um simples
alguém, mas um dos Doze.
— Hermes. — Encarei o homem, que se levantou e veio na
minha direção, parando à minha frente. Mesmo sabendo o que o
trazia até ali, perguntei: — A que devo esse prazer?
— Afrodite está preocupada com você — disse. Capturei
reprovação em seu modo de dizer e de me olhar. Ele possuía
cabelos castanhos ondulados e compridos, que iam até seus
ombros. Seus olhos eram iguais aos meus: âmbar.
— Eu sei — respondi, indo até as garrafas na cristaleira ao lado
da TV. Tinha dois copos baixos na prateleira mais embaixo. —
Uísque? — Olhei para Hermes, que fez um gesto sofisticado de
mão.
— Não vim aqui para isso. Por que não falou com Afrodite?
Dei de ombros, pegando apenas um copo. Levei-o até a mesa
de centro, à frente do sofá onde Hermes estava sentado.
— Não é um tédio ter que entregar mensagens de todos os
deuses, Hermes? — Tentei distrai-lo, mas ele só me encarou mais,
exigindo uma resposta à sua pergunta. Quando percebi que ele não
desistiria, dei de ombros. — Decidi tirar umas férias. Achei que ela
entenderia. Já fiz isso antes.
— Ela me mandou aqui com a mensagem de que deveria te
contar imediatamente a conclusão de sua missão. Posso levar a
resposta até ela — avisou, direto.
Hermes sempre fora assim, inexpressivo. Ele era um dos
olimpianos que não aprovavam minhas diversões no Mundo Mortal.
Todos uns chatos.
Terminei de encher o copo e tampei a garrafa de vidro que
estava pela metade. Se Dionísio visse, o teria enchido no mesmo
instante. Logo dei um longo gole.
— Pois bem, diga que foi concluída com sucesso — eu disse,
controlando a hesitação.
Hermes se levantou, sem desconfiar de nada.
— Vou avisá-la. — O deus me encarou. — Volte antes que ela
venha atrás, Eros.
Sorri. Para ele, era mais vantajoso eu estar com Afrodite, onde
eu não importunaria mortais. Mas, bem, era verdade: Afrodite podia
vir atrás de mim.
Entornei o copo de uísque assim que ele se transportou de volta
para o Olimpo. Todos sabiam que não deveriam mentir para
Afrodite, a deusa que tudo conseguia e que tudo descobria.
Mas não dessa vez, porque eu não conseguiria fazer aquilo com
Psiquê.
Ela não merecia o destino cruel que minha mãe lhe impusera.
Suspirei e enchi meu copo novamente. Por mais que a
estivesse protegendo, algo me dizia que deveria sair daquele Mundo
e voltar para o Olimpo, antes que Psiquê deixasse de ser só uma
missão.
— NOVA YORK, VINTE E DOIS ANOS ANTES —

E ra verão em Nova York, fazia uns trinta graus quando


cheguei às ruas elétricas e pulsantes da cidade. Pessoas
corriam de um lado a outro em pleno ano de 1997, vestindo
sobretudos e macacões diversos, com penteados abrangendo
cabelos volumosos.
Fazia tempo que não descia ali. Estivera, infelizmente, muito
ocupado com Afrodite e os deveres entediantes de um deus.
Mas estava de volta, pronto para voltar à ativa.
E Nova York parecia um ótimo lugar para a mágica acontecer:
tinha pessoas bebendo pelas ruas, bares lotados de gente, boates
fervilhando e pessoas que precisavam de festas melhores, as quais
eu podia proporcionar com grande honra em meu novíssimo
apartamento em Manhattan.
Apolo me dissera uma vez que o futuro daquela cidade seria
esplêndido.
E podia tirar minhas conclusões de que, de fato, era.
A campainha não parava de tocar enquanto eu era um bom
anfitrião, o que me proporcionava muitas idas e voltas até a porta. O
apartamento estava lotado; em sua maioria, por garotas por volta
dos vinte anos. Eu preferia essas, embora não recusasse uma boa
noite.
Mulheres mais velhas também estavam ali, a minoria.
Todas elas me olhavam com desejo brilhando em seus olhos
frágeis, o mesmo desejo que brilhava havia centenas de anos,
desde quando havia descoberto o quão interessante um mortal
podia ser. Eu descia àquele Mundo tão frequentemente quanto
podia: a cada vinte, trinta anos.
Olhei em volta do apartamento enquanto duas belas mortais
estavam ao meu lado, minhas mãos descendo um pouco mais que a
base das costas. Elas constantemente se olhavam entre si e
pareciam querer sorrir. Talvez porque eu fosse um verdadeiro
prêmio.
Não era todo dia que um deus descia ao Mundo Mortal.
Todos estavam dançando sob o disco pendurado no teto. Todos
estavam se divertindo — fosse praticando a arte da luxúria ou não.
Eu também era deus do amor, sabe? Embora essa fosse a parte
menos ativa do meu papel.
As pessoas gostavam mais de pele com pele.
— Não quer subir, amor? — uma das garotas loiras, a da
esquerda, perguntou. A outra olhou em expectativa, mostrando que
era óbvio que iria junto conosco. Um ménage.
Eu era mais fã de ménages do que de orgias, e fazia tempo
desde que me aventurara em qualquer um desses dois.
Esbocei um sorriso para as duas, dizendo:
— Por que não me esperam lá?
Elas se entreolharam e sorriram, logo assentindo em sincronia.
Antes, eu precisava ser um bom anfitrião — além disso, não
havia nada melhor que duas belas moças lhe esperando na cama.
Levantei o copo de uísque no meio da sala, gritando:
— Que a festa comece!
Porque só então eles estariam todos se beijando e trepando em
locais privados. Esses mortais… Tão tímidos!
Ajeitei a lapela do meu terno com calça boca de sino e sorri. Era
tão lindo ver o que eu mesmo tinha criado! Não havia um santo
metro quadrado no apartamento onde não havia gente praticando o
que eu lhes dera como deus.
E, no meio disso tudo, eu senti.
Senti uma brisa fria e, então, um laço… de amor. Era uma
sensação doce e reconfortante, que colocava meu radar para
explodir. Além disso, era algo tão verdadeiro e afável que não
resisti. Virei a cabeça para todos os cantos, procurando por aquilo.
Procurei por toda a festa, até finalmente encontrar: dois belos
mortais se entreolhavam, frente a frente, as testas quase coladas,
perto da extensa janela.
Como dois meros mortais podiam se amar tanto a ponto de me
levar até eles?
Eu nunca havia sentido tão intensamente.
Os dois se acariciavam, sorrindo um para o outro como se o
mundo inteiro fosse só deles naquele momento. Eu não conseguia
tirar os olhos deles. Nunca havia presenciado tamanho amor em
meus milênios como deus.
Compartilhando de um laço inabalável, pareceram não reparar
em mim.
Era algo tão vivo e tão intenso… que também desejei aquilo.
— Não, mãe, eu não estou namorando — avisei Shalley pelo
celular, equilibrando-o no ombro enquanto escolhia o que vestir
para passear com Margot, embora minhas opções fossem quase
todas iguais: peças pretas ou… pretas.
— Aff! Jurava que nesse mês você estaria com pelo menos um
rolo. — Pausa. — Está? — ela perguntou em expectativa. Às vezes
me perguntava como ela não se cansava de repetir a mesma
pergunta todo mês.
— É… Não.
Ouvi um murmúrio de desgosto, que ela não se dava ao
trabalho de esconder.
Rapidamente, Eros me veio à cabeça. Mesmo que isso fosse
trazer orgulho à minha família, queria mantê-lo só para mim… Aliás,
eu podia chamar aquilo de rolo?
Sim, eu podia.
Um alvo estava pintado bem às suas costas, então como não?
Sorri comigo mesma. Ela com certeza piraria se soubesse que
um homem daqueles estava na minha cola. Contaria para toda a
família, e minhas irmãs não saberiam se deveriam acreditar ou ficar
com inveja.
— Como estão as coisas em Peoria? — mudei o foco da
conversa. — Papai? Cassidy e Karen?
Olhava para meu guarda-roupas, tinha camisas brancas e
blusas pretas.
Branco sujaria se eu resolvesse beber martínis… preto, não.
Peguei uma regata de cetim preta com detalhes delicados em
renda. Eu não podia ver nada com renda que eu comprava, fosse o
que custasse. Era meu ponto fraco.
— Ah, estão ótimas. Seu pai e eu estamos atolados de trabalho
por causa da imobiliária, e suas irmãs, cuidando dos maridos. —
Ruben e Carlos. Nomes tão feios quanto eles. Mas o que eles não
tinham de beleza, tinham de dinheiro. E era só isso o que importava
para os Di Laurentis.
— Como está a barriga de Cassidy? Muito grande? —
perguntei, tirando uma calça jeans gasta e folgada do outro
compartimento. Em seguida, juntei-a à blusa, analisando o look.
— Enorme! — mamãe se empolgou. Pelo menos a gravidez de
Cassidy a distraía de mim e da minha solteirice. — Ela completou
seis meses ontem. — Eu sabia, mas deixei-a falar. Era bom mantê-
la longe da minha vida um pouco. — Ruben está todo atrapalhado.
Assim como Henry ficou quando engravidei dela. Uma graça. Você
deveria estar aqui para ver.
Bum! Outra conversa que eu evitava o máximo que conseguia:
o fato de que eu tinha me mudado de Peoria e os havia
abandonado. Para fazer Filosofia. Quem em pleno século XXI
cursava Filosofia? Pelo visto, eu.
— É, mãe… Mas eu estou em Chicago, estudando, lembra?
Preciso prestar o máximo de atenção nesse começo de…
— Sei — interrompeu-me. — De qualquer forma, estamos bem.
Nos avise se algum pretendente aparecer! Até logo, querida.
— Até, mamãe. — E desligou.
Pelo menos ela se esforçava para fingir que se importava
comigo e com minha vida de filósofa em Chicago.
Meus pais me faziam uma ligação todo mês — bem,
inicialmente, porque agora estava mais para mês sim, mês não —
para ver se estava tudo o.k. Eu não sabia se faziam porque se
sentiam obrigados ou se por saudade mesmo. Era difícil
compreendê-los.
Com um suspiro, joguei meu celular na cama e tirei a roupa,
vestindo a regata e a calça jeans. Quando sentei na cama para pôr
as sandálias, meu celular vibrou com uma mensagem. Me estiquei
até onde ele estava e li a notificação na tela.

Eros:
Já estou com saudades, princesa.
Quando vamos nos encontrar de novo?

Depois daquela ligação, agora ele tinha meu número.


Meus dedos foram rápidos enquanto um sorriso puxava meus
lábios.

Me diz você. Não é você que me persegue?

Não desliguei a tela.


Mas ele não me respondeu.
Com uma sobrancelha erguida, levantei da cama e coloquei o
celular no bolso traseiro da jeans. Só precisava colocar minhas
pulseiras e colares e dar o fora do apartamento para encontrar
Margot no Aquário Shedd.
Hoje ela tinha ido trabalhar de táxi, pelo simples prazer de me
ter buscando-a no serviço, a madame. Eu não reclamava, gostava
de dirigir. Me peguei pensando no Audi prata de Eros e no quanto
ele corria.
Peguei as chaves do sedan e caí fora.
Deixei o carro prata de Margot no estacionamento do Aquário.
Encontrei minha melhor amiga lá dentro, dando saída do horário de
serviço e indo para o vestiário. Fui com ela.
— Por que não o trouxe aqui? — ela perguntou de dentro de
uma das cabines enquanto eu estava escorada do lado de fora
encarando a parede ladrilhada de azul e branco, as cores que
remetiam à água.
— Porque eu não queria que você o visse. — Dei de ombros.
Peguei o celular do bolso para ver se ele tinha respondido.
Ainda não.
Guardei-o de volta e olhei para o teto. Eu não deveria estar
esperando por uma mensagem.
— Como assim? — Ela abriu a porta do vestiário com tudo,
ofendida e em suas roupas comuns. Seu queixo estava caído só de
brincadeira, eu sabia. — Eu nem dou pitaco nem nada. — Colocou a
mão sobre o peito, fazendo-se de pobre coitada.
— Ahã. — Lancei um sorriso a ela ao mesmo tempo que me
desencostava da parede das cabines.
Ela foi até sua mochila, em um banco de madeira à nossa
frente, e socou seu uniforme lá dentro. Era engraçado, devo dizer.
Parecia uniforme de garçonete: camiseta azul-marinho, saia branca
e boné azul-marinho de aba branca, com AQUÁRIO SHEDD
costurado bem na frente — como em todas as peças.
— Bem, eu queria conhecer esse rapaz melhor, sabe? Já que
você não para de pensar nele. — Ela ergueu uma sobrancelha,
provocativa. — O que você sabe sobre o gostosão?
Dei de ombros.
— Sei que tem vinte e seis anos, é rico e gosta de uísque puro.
Ele é bastante fechado.
— Um cara misterioso, hein? — Ela fez uma pausa, como se
rebobinando o que eu havia falado. Como se tivesse dado um curto-
circuito em seu cérebro. — Espera… Você disse que ele é rico?
— Ahã. — Sorri. — Ele me levou pro centro de Audi.
— Um empresário milionário! — Ela ergueu as mãos para cima,
como em comemoração. Seus cachos foram para trás com o
movimento. Logo pôs a mochila em um de seus ombros e passou
seu braço pelos meus. — Amiga, você é sortuda. Já te disse isso?
Nos locomovemos até o estacionamento.
— Hoje, não. — Dei risada.
— Hum… Afinal, eu te devo ou não martínis? Você não voltou
com ele para casa.
Suspirei.
— Eu queria, você sabe.
Ela me olhou de esguelha.
— Pena que não conseguiu uma boa noite. Já eu…
Encarei a maldita, que desatou a rir.

— Tá, mas mesmo que eu tenha gostado de ele me recusar, eu


queria dar pra ele. — Virei um shot de tequila no mesmo bar em que
Eros e eu tínhamos nos conhecido, o Esquina Bar. Porque ficava na
esquina. Margot me obrigou a acompanhá-la primeiro na tequila
antes que eu pedisse meu martíni. Já era quase noite, o bar estava
lotado.
Margot fez biquinho.
— Ai, amiga, você tá um caco. Tem teia de aranha no meio
dessas suas belas pernas? — Ergueu uma sobrancelha. Eu ergui
outra.
Suspirei. E então me vi olhando para os lados, procurando por
ele.
Voltei o olhar para ela, que brilhava em amarelo, assim como
todos ali.
Margot fez uma careta.
— É, você tá no fundo do poço. Mais dois shots aqui! — ela
gritou para o garçom de onde estávamos sentadas na bancada.
Logo se voltou para mim de novo. — Não quer que eu peça para
Justin achar alguém para você?
Justin era o cara com quem ela estava atualmente saindo. Na
noite anterior, ela o levara pro apê, eu tinha ouvido tudo. Paredes
finas.
Não respondi.
Estava mais uma vez pensando nele, no seu maxilar, nos seus
olhos penetrantes e persuasivos. Em como eu me sentia perto dele.
Eu estava gostando do nosso jogo, embora estivesse louca para
conhecer seu apartamento — ao contrário de Margot, eu tinha
algum respeito aos ouvidos dos demais —, que, aliás, devia ser o
apartamento.
Eu já estava acostumada com dinheiro, mas o fato de ele ser
rico dava um ar mais… misterioso a ele. Como se ele fosse um bad
boy sofisticado. Ri comigo mesma.
— Gostava mais de quando você pensava em Sócrates —
Margot comentou, girando o último gole da tequila em seu shot.
Entornei a minha, logo acenando para o garçom trazer martínis.
Encarei minha amiga.
— Eu ainda penso em Sócrates, tá legal? — ironizei.
— Um brinde a isso, então. — Batemos nossos copinhos vazios
de tequila para então recebermos duas taças cheias bem à nossa
frente.

Me vi verificando as mensagens quando cheguei em casa e,


bem, tinha um total de zero. Eu não sabia por que queria tanto que
ele me respondesse. Não sabia por que estava pendurada no
celular quando todos sabiam que esse era um hábito das presas.
Não me permiti isso.
Migrei direito para o Instagram, querendo rolar o feed até criar
calos nos meus dedos. Dei-me conta de que ainda não o tinha
procurado nas redes sociais e, quando percebi, já tinha escrito Eros
nas buscas. Eu esperava de verdade que só o nome bastasse,
afinal, não deveria existir muitos Eros por aí.
Mas existia.
Inclusive fã-clubes para o deus da mitologia greco-romana, que
me permiti abrir até dar de cara com várias pinturas renascentistas
de Eros com seus arco e flechas e com suas imensas asas brancas.
Suspirei, então voltei ao feed.
Onde encontrei uma foto recente de meu ex, Kurt Monaghan.
Eu não havia parado de segui-lo, apesar dos pesares. Eu gostava
de imaginar um término saudável em que eu não gritava com ele por
telefone, então não tinha por que não segui-lo.
Kurt tinha postado uma foto ao lado de quem eu presumia ser
seu amigo, com um barril de cerveja ao lado, debaixo de uma
imensa árvore, na calada da noite. Acontecia que, para festas, ele
tinha tempo.
Cliquei no perfil.
A penúltima foto, antes daquela, era uma dele com uma faixa de
basquete no seu cabelo raspado. O que tinha me atraído em Kurt
também havia sido seu físico atlético. Ele era alto, forte, moreno e
possuía olhos castanhos. Ele não sorria na foto, estava sério
enquanto lançava um olhar duro à câmera.
Quando comecei a encarar demais, dei um jeito de desligar o
celular e colocá-lo na mesinha de cabeceira da minha cama de
casal. Fechei os olhos com força e apertei o travesseiro contra mim.
Eu não deveria estar stalkeando meu ex.
E le ainda não tinha me respondido, mesmo depois de três
dias.
Ele deve estar fazendo coisa mais importante. Ele está
fazendo coisa mais importante.
Eu havia tentado não pensar muito nisso nesses últimos dias,
mas o celular parecia fervilhar no meu bolso toda vez que estava ali,
como se fosse criar um buraco e cair no chão. Na aula de
Metafísica, minha perna balançava por cima da outra. Eu ansiava
por mais um encontro com ele, mas parecia que ele tinha desistido
da perseguição.
Como eu podia estar tão atraída por alguém que mal conhecia?
Ele não me contava absolutamente nada. Havia tido
oportunidades para isso, e eu tinha perguntado. O máximo que
sabia sobre sua origem era que ele vinha de muito longe. Todos
vinham de muito longe em Chicago. Aquilo não queria dizer
absolutamente nada.
Eu estava intrigada.
Eros sabia meu nome e sobrenome, onde eu morava, onde eu
estudava, o que eu estudava… Por um instante, isso me assustou.
Ele poderia me sequestrar se quisesse. Ri internamente, embora
pudesse ser um assunto realmente sério. A verdade era que eu não
ligava.
Eu o queria. Queria senti-lo, tocá-lo.
De repente, minha cintura começou a queimar no pedaço de
pele que havia tido contato com sua mão. Eu estava bastante
quente para um dia fresco de outono. Olhei pela janela, tentando me
distrair. A sala de aula ficava no quarto andar, e eu podia ver
universitários rondando o campus verde como esmeralda. O céu
estava mais uma vez nublado naquela tarde.
Desviei o olhar para o professor de meia-idade, que usava
óculos de armação transparente e possuía cabelos grisalhos,
penteados para trás com gel. Eu com certeza não estava com
cabeça para trabalhar a área do autoconhecimento — ou qualquer
outra —, por isso reuni meus materiais e fui embora.
Margot ainda estava no meio de alguma matéria de Biologia, por
isso a esperei no campus. Ela teria detestado se eu fosse embora
sem ela, mesmo ela demorando oitenta e quatro anos a mais do que
eu. E eu sinceramente também não sairia dali sem ela.
A história do líquen.
Abri o livro de mitologia que ainda estava lendo quando me
sentei na grama. Estava na parte de Perséfone, na qual
curiosamente a deusa da beleza aparecia onde envolvia Hades. Ali
dizia que Afrodite não podia acreditar que Perséfone entraria para o
clube das virgens-para-a-vida-toda.
Então, a deusa do amor planejara uma emboscada, na qual
Hades subira para o Mundo Mortal, devido a um terremoto que
ameaçava a escuridão do seu Mundo, e encontrara Perséfone no
meio de uma floresta. Seguindo o plano de Afrodite, o Rei dos
Mortos subitamente se apaixonara pela ingênua deusa e a raptara
para o Submundo, seu domínio.
Estava completamente inerte na leitura e quase terminando o
parágrafo quando Margot soltou um Bu! na minha cara. Eu quase
caí na grama com o susto, o que a fez cair na gargalhada.
— Margot! — ralhei. — Você não cansa de me encher o saco?
Ela fez careta.
— Desculpa atrapalhar sua leitura, senhorita Culta.
No que ela sentou na grama junto comigo, empurrei seu ombro
de leve, o que a fez mostrar a língua.
— Qual é a boa de hoje? — ela perguntou. — Planos?
— Vou estudar o que não ouvi da aula de Metafísica. Ou seja,
toda ela.
Margot ergueu sua sobrancelha.
— Sua paixão tá se apagando?
— Você sabe que isso nunca aconteceria.
Filosofia, para mim, equivalia à Biologia para ela.
— Serve um filme lá no apê?
Ela ponderou, brincando, porque ambas sabíamos que ela não
abandonaria a oportunidade por nada. Nós assistíamos filmes
sempre que dava, era meio que nosso ritual — no sentido filosófico.
— Serve! Eu compro o vinho.
— Combinado. — Ofereci um sorriso a ela.

Margot abriu a porta do quarto com tudo, erguendo uma garrafa


de vinho e duas taças para o alto como se tivesse conseguido fugir
da polícia. Um sorriso travesso deformou seus lábios quando ela
falou:
— Consegui a última garrafa do mercado e roubei duas taças do
Justin!
Minha sobrancelha se ergueu e não pude evitar rir diante da sua
aparência: estava bem ofegante e cansada. Sentada no sofá, com
as pernas dobradas em cima dele e o rosto pacífico, eu estava
parecendo um monge perto dela.
— Você correu uma maratona? — debochei.
Ela foi até a cozinha e colocou as taças e a garrafa em cima da
pequena ilha acoplada à parede, onde havia dois bancos altos como
os do Esquina Bar.
— Há-há-há. Engraçadinha. — Enrugou o nariz para mim e logo
se enfiou debaixo da coberta fina junto comigo. Olhou para a TV, em
que eu havia aberto a Netflix para vasculhar os filmes. Achava que
já tínhamos visto todos os bons de verdade. — O que tem de
interessante para assistirmos?
Dei de ombros.
— Achei que Garota exemplar tem uma proposta interessante.
Tem boas críticas. — Encarei ela, que assentia enquanto eu falava,
parecendo concordar. Meus olhos se tornaram fendas. — Acho que
você se esqueceu de encher as taças, sabe?
Ela passa a olhar para mim e, então, seus olhos se arregalam
de leve.
— Você deu uma rapidinha com o Justin, não deu? — Ergui o
supercílio, entendendo só agora por que ela estava ofegante e fora
de sintonia.
Margot me espiou. Então, levantou-se para ir à cozinha encher
as taças e falou:
— É, foi isso mesmo. — Deu de ombros, culpada.
— E depois a safada sou eu! — repreendi em um resmungo. —
Pelo menos você dá rapidinhas. Eu só ganho… dedos.
Minha amiga caiu na risada, achando muita graça. Ela gostava
de me ver sofrer, assim como eu gostava de vê-la sofrer.
Sofrimentos leves, claro. Mesmo assim, eu sorri diante da sua
diversão.
Me debrucei por cima do sofá, observando-a destampar a
garrafa e nos servir o líquido vermelho-sangue. Tinto suave. Era do
que mais gostávamos. Vinho seco surtia o mesmo efeito que água
do mar na boca. O branco era bom, só que o tinto era melhor, mais
saboroso.
— Isso entre vocês dois está durando mais tempo que com os
outros — concluí, minha sobrancelha erguida em insinuação e
curiosidade.
Ela fingiu que não ouviu, trocando de assunto em seguida:
— Por que não manda uma mensagem pro Eros dizendo Vem
me comer? Aposto que ele viria correndo — ela sugeriu como se
não fosse nada de mais, como se estivesse mesmo cogitando
aquilo.
Margot voltou a se sentar ao meu lado, dessa vez com duas
taças cheias nas mãos. Me entregou uma delas, propondo um
brinde, o que fizemos com um tilintar animado de taças.
Nós nos olhamos enquanto dávamos nosso primeiro gole.
Suave como seda.
— A escolha foi sua de assumir o cargo de predadora — ela
avisou, como se eu não soubesse. — Tem que deixar ele correr
atrás.
Eu sabia.
Dei de ombros. Quando estávamos no meio do filme, lá pelas
21h, fitei meu celular, que permanecia quieto em cima do braço do
sofá ao meu lado, o direito. Eu continuei encarando-o até pegá-lo
depois de verificar o quão atenta Margot estava ao filme — o
suficiente — e abrir as mensagens.
Digitei um Podemos nos ver amanhã? e fiquei olhando o celular
por algum tempo, como se ele fosse sair voando dali. Apaguei a
mensagem, me controlando. Aquele não era o tipo de coisa que
predadores faziam, e sim presas. Queria ser o leão em vez do
antílope.
Nessa parte, estava sendo bastante difícil.
A agonia crescia a cada dia no meu peito, querendo mais dele.
Querendo que ele me respondesse com alguma coisa. Eu precisava
vê-lo de novo; do contrário, ficaria perdida — mais do que já estava.
Nossos jogos melhoravam meu dia em, diríamos, cem por cento.
Encarei a mensagem que tinha mandado para ele.
Me diz você. Não é você que me persegue?
Esperava de verdade que a “perseguição” não tivesse parado.
Eros me distraía na medida certa, com todos aqueles toques e
palavras bonitas. Com seu cheiro cítrico de canela e laranja. Com
seus exóticos olhos de ouro derretido, brilhantes como o sol da
manhã.
Queria saber dos seus anseios, dos seus gostos, das suas
origens. Seu mistério era tão petulante quanto admirável, não podia
negar. Ele parecia de outro mundo, um tão melhor!
Suspirei para a sua última mensagem.
Já estou com saudades, princesa. Quando vamos nos encontrar
de novo?
Se ele queria tanto me encontrar, por que não respondia ao raio
da mensagem? Por mim, podiam ser todos os dias. Todas as horas
do dia. Eu não me cansava dele, do seu jeito confiante.
Estava fascinada.
Eu o queria mais do que nunca.
E meus limites seriam todos quebrados para tê-lo.
E stava indo para a biblioteca devolver os livros alugados. Já
tinha terminado de ler ambos no dia seguinte à noite das
garotas. Era fim de tarde quando entrei no campus
alaranjado da universidade. Não tinha nada de aula naquele dia,
estava livre para fazer o que quisesse — beber martínis, talvez, ou
dar uma volta na areia do Michigan.
Margot tinha aula e trabalho ocupando o dia todo; ou seja, eu
podia fazer o que quisesse, só que sozinha.
Entreguei o livro para a bibliotecária, que me lançou um sorriso
bondoso. Suspirei quando virei de costas para ela, dando uma
olhada em volta da imensa biblioteca. Adorava o fato de que havia
tantos livros perto de mim. A leitura costumava ser meu passatempo
favorito. Por isso, rodei pelo estabelecimento, à procura de algo
para ler.
Passei a mão pelas lombadas dos livros de uma estante no
térreo, uma que era próxima àquela estante. Não fui até lá. Em vez
disso, me obriguei a puxar alguns livros e folheá-los.
Encontrei um que se intitulava Os desejos da humanidade. Saí
da biblioteca só com esse, dessa vez, apertado contra o peito. Do
corredor externo da universidade, olhei em volta do campus,
procurando um lugar para ler. Nisso, meus olhos se depararam com
uma silhueta conhecida que se encontrava no fim do corredor,
olhando diretamente para mim.
Os pelos do meu corpo se arrepiaram, ao passo que este se
aqueceu instintivamente, uma sensação que estava havia uma
semana sem sentir.
Eros lançou-me um sorriso divertido de onde estava, a talvez
vinte metros de mim. Talvez achando engraçada a maneira como eu
o encarava de volta.
Por que ele sumia tão de repente?
Era a questão que martelava na minha cabeça naquele instante.
Não uma pergunta retórica, mas uma cuja resposta eu realmente
queria saber.
Eros não se moveu. Continuou lá, escorado na porcaria da
parede, como se tivesse todo o tempo do mundo. Então, fui
obrigada a ir até ele — como se eu não quisesse tê-lo visto em
todos os dias daquela semana.
— Olá, sumido. — Dei meu melhor sorriso quando ficamos
frente a frente; nem longe demais, nem perto demais. Nos
encontrávamos em uma zona de segurança. Pelo menos para mim.
Ele vestia roupas casuais outra vez, o que parecia ser sua mais
nova moda. Como se ele tivesse colocado o terno formal no lixo.
Eros se desencostou da parede de tijolos vermelhos e me olhou
de cima a baixo, como se para recompensar aquela semana.
Naquele instante, desejei uma boa festa, daquelas que você não
voltava sóbria para casa nem consciente.
Esquadrinhei-o também. Eros parecia ser minha droga naquele
momento; uma das fortes, daquelas que me manteriam bastante
distraída. Como eu precisava dele, dos seus olhos e cheiro
inebriantes.
Nisso, ele diminuiu a distância entre nós em um passo.
— Agora é a resposta para a sua mensagem. Olhou muito para
a tela do celular, princesa? — Inclinou sua cabeça como um
cachorro fazia, debochado. Eu quis socá-lo. Se ele brincasse muito,
acabaria se queimando. — Pelo visto, sim.
Eu fiquei séria.
— Tinha coisas mais importantes a fazer. — Hesitei.
Ele sorriu e olhou para o lado por um momento, as mãos nos
bolsos da jeans desgastada.
— Mentira — constatou, bastante convicto.
— Como está tão certo disso? Nem todas caem aos seus pés.
— Diminuí mais um passo entre nós, encarando-o na imensidão
dourada de seus olhos, que cintilava com o pôr do sol à sua frente.
— Você parece bem caidinha para mim. — Um lado de seus
lábios subiu enquanto ele olhava para os meus, sedento. Seu tom
de voz diminuía com os passos que dávamos na direção um do
outro, o que fazia meu corpo estremecer. Tinha a impressão de que
Eros podia senti-lo.
Minhas áreas vulneráveis estavam ainda mais vulneráveis
naquele momento.
Não sabia se minhas pernas durariam muito mais.
— Quer que eu faça algo para saciá-la? — ele falou à base de
minha orelha em um murmúrio. — Como te pressionar contra a
parede? — Ele fez o que foi dito, apertando minha cintura enquanto
eu estava contra os tijolos vermelhos.
O ar saiu todo de meus pulmões e, em um impulso, afastei-o,
invertendo as posições. Meu dedo indicador estava bem no centro
de seu peitoral agora, e um sorriso me subiu aos lábios. Eros olhou
para o pequeno ponto onde mantínhamos contato, então me olhou.
Ele estava me deixando confusa.
Em um momento, não chegava mais perto do que dois passos
de mim. Em outro, me pressionava contra a maldita parede.
— Você precisa se decidir se me quer ou não — murmurei de
volta, movendo o olhar até seus olhos instigantes, que brilharam em
divertimento. De repente, me lembrei dele falando em grego comigo,
insinuando que sabia outras línguas também. Eu queria que ele me
sussurrasse princesa em todas as línguas possíveis.
Meu olhar não saiu do dele. O dele não saiu do meu.
Fizemos uma competição de nos encarar pelo que pareceu uma
eternidade.
— É você quem precisa decidir isso. Eu já decidi desde aquele
dia, princesa. — Ele me esquadrinhou por inteira, e me senti
despida. Meu corpo tencionou, talvez precisando dele com urgência.
Talvez me dizendo Vá direto ao ponto depois de um tapa doído na
cara. Ele estava em protesto.
Só fazia três semanas.
Ou, simplesmente, fazia três semanas.
— Ah, é mesmo? Você parece confuso quanto a isso. Um dia,
não chega nem mesmo perto de mim. No outro… — Meu dedo saiu
de seu peito.
O brilho de seus olhos deu uma breve vacilada, e um arrepio
repentino me subiu à espinha. Eu não entendia por que aquilo
acontecia.
Ele se desencostou da parede.
— É que às vezes não dá para… evitar.
Minhas pernas vacilaram, como o efeito de um beijo no
pescoço.
Ação e reação.
— Não evite — me vi dizendo sem pensar duas vezes.
A verdade era que ele era perfeito, atraente e excitante como a
porra do deus descrito no livro. Agradeci aos deuses por isso, de
verdade. Quase dei agradecimentos especiais à Afrodite.
— Psiquê… — Ele não chegou mais perto, apenas me encarou
com seus olhos, como se estivesse me devorando com eles. Eu me
senti devorada por eles.
E… Puta merda.
Se eu detestava meu nome, passara a devotá-lo naquele
mesmo instante.
— Não agora — Eros simplesmente disse, dando um sorrisinho
hesitante logo em seguida; um sorriso de quem parecia saber o que
fazia… e, de certa forma, não. Eu queria que ele soubesse por
inteiro. Queria que ele decidisse que agora seria um bom momento.
Antes que eu pudesse perguntar o porquê, ele simplesmente
me falou um Até mais e me deu as costas, deixando-me ali com o
coração na garganta e um ponto em específico pulsando como se
não fosse parar nunca.
Merda, merda, merda!
Qual era o problema dele?
E u havia dado as costas a ela porque agora sabia o quanto
ficar longe de mim a intrigava. Andei até meu apartamento,
aproveitando o dia, embora nublado. Havia tanto árvores
quanto sujeira mortal e universitária pelas ruas. As árvores pareciam
semicerrar os olhos para mim, perguntando-me o que diabos eu
estava aprontando.
— Por favor, que ela me deixe em paz — murmurei sobre
Deméter quando muito certamente eu não deveria estar
murmurando sobre ela, uma dos Doze. Não podia me meter com
eles assim. Já havia feito muita merda nos últimos séculos.
Deixei de pensar na deusa para concentrar-me em um ser em
específico, em um mortal: Psiquê.
Eu a havia deixado com muita relutância, com um controle que
não sabia ter àquela altura do campeonato. Eu queria beijá-la contra
aquela parede. Não um beijo gentil, carinhoso. Um selvagem, sem
pudor.
Ela havia me mandado me decidir, e eu tinha dito que já havia
me decidido, porque, nesses dias que haviam se passado desde
sua mensagem, eu havia decidido ficar. Decidido que a queria e que
não me interessavam limites. Ela valia a pena.
Também andara comprando algumas coisas, mas isso não
importava agora.
Não tinha lhe respondido porque havia começado a me
perguntar muitas e muitas vezes o que eu queria com aquilo. Ela,
ela, ela. Meu subconsciente sabia o tempo todo, desde o dia 19 de
setembro, o dia em que descera ao Mundo Mortal para completar a
missão.
O dia em que me encantara por Psiquê Di Laurentis.
Algo me dizia ser errado levá-la para a cama tão cedo. Eu
queria conhecê-la, saber de seus desejos mortais. Esse me parecia
o certo. O que me era estranho. Desde quando eu, Eros, me
interessava pelos desejos de uma mortal que não os sexuais? Ri no
meio da rua, talvez um pouco preocupado.
Mas eu havia dito a mim mesmo que ela era diferente, que ela
valia a pena.
O que me parecia a mais pura verdade.
Vê-la tão intrigada depois de alguns dias tinha sido até mesmo
divertido. Ela se contorcia toda, talvez por não tê-la respondido.
Talvez por me querer desesperadamente. Não sabia.
Porque ela, com certeza, me queria.
Assim como, havia percebido, eu também a queria.
Eu parecia satisfeito comigo mesmo. Não havia nada com que
me preocupar, exceto com minha mãe — um problema tão pequeno,
não é mesmo? Há-há-há. Eu não ri de desespero dessa vez, pelo
menos não externamente.
Estava satisfeito porque eu enfim havia estabelecido que nada
me impediria de me aventurar com Psiquê Di Laurentis, a porra da
minha missão. Eu estava fodido? Talvez.
Mas em breve seria Psiquê quem estaria. Aí estaríamos fodidos
juntos.
Um no sentido literal e o outro, não.
Porque eu com certeza dividiria a mesma cama que Psiquê Di
Laurentis, nem que eu fosse aprisionado no Tártaro por isso, com
uma companhia nem tão agradável assim. Mesmo que corresse o
risco de ter minha identidade revelada, o que seria o caos no
mundo.
E u estava observando os peixes em um dos corredores do
Aquário Shedd, manchados de azul-escuro pela água dos
tanques, quando Margot surgiu ao meu lado com o celular na
mão e disse:
— Megan Richards mandou mensagem para todo o corpo
estudantil da UC dizendo que vai rolar uma festa de máscaras na
fraternidade dela no Halloween.
A fraternidade das garotas mais metidas da universidade.
— E…? — Continuei observando os peixes de cores exóticas.
O corredor era pouco iluminado, de forma que parecia para os
visitantes que também estavam debaixo da água.
— “E” o quê, Psiquê? Nós vamos! Eu nunca fui a uma festa de
máscaras!
Finalmente olhei para ela.
— Por favorzinho. — Fez beiço. Logo arqueou o supercílio, com
uma expressão petulante e convicta no rosto. — Eu vou convidar o
Justin, você poderia convidar o Eros.
Chegou a minha vez de erguer a sobrancelha.
Não me parecia uma má ideia.
— Dizer “não” não adianta mesmo… — sibilei e recebi um
abraço animado da minha amiga, que logo me deu um soquinho no
ombro.
— Você está bem mais maleável nesses últimos dias —
constatou, encarando-me. — Devo agradecê-lo?
Olhei para ela em repreensão.
— O.k. Não.
— Já está pronta para darmos o fora daqui? — mudei de
assunto logo após um sorrisinho pequeno.
— Prontíssima, meu bem.
Larguei Margot no apartamento de Justin — acho que as coisas
estavam mesmo ficando sérias, só ela que não queria admitir — e
estacionei o sedan na frente da UC, onde tinha uma palestra sobre
alienação no trabalho naquele fim de tarde. Saí do carro e tranquei-
o, indo, então, em direção ao prédio onde rolavam as palestras. Era
uma sala comum, com as classes subindo em degraus.
Quando entrei lá — discretamente, pois a palestra já havia
começado —, a sala estava escura, pouco iluminada. Somente
havia luz onde o professor costumava ficar, agora com foco no
palestrante. Eu e minha bolsa nos instalamos nos fundos depois de
ter subido praticamente todos os degraus da escadaria lateral
esquerda.
Fui em silêncio até lá.
— Marx acreditava que a alienação é quando o produto passa a
não pertencer mais a quem o produziu. Digamos, alguém ajudou na
construção de um prédio de luxo e, depois de pronto, essa pessoa,
por não pertencer ao mesmo nível do prédio, não é permitida a
entrar. O que nos orienta a concluir que…
Eu estava prestando bastante atenção no que o loiro de olhos
azuis estava dizendo até que o meu celular vibrou dentro da minha
bolsa marrom, que mais parecia um saco. Eu dei um suspiro contido
e vasculhei-a até achar o aparelho. Margot devia ter desistido de
ficar com o tal do Justin e agora queria que eu a buscasse.
Não.
Completamente nada a ver.
Porque o nome Eros estava estampado na tela inicial, uma
notificação de mensagem. Na última vez em que havíamos trocado
mensagens, ele tinha me ignorado por completo, dando-me a
maldita resposta à minha pergunta dias depois, pessoalmente.

Eros:
Planos?

Só isso. “Planos?” Como se estivéssemos conversando havia


dias.
Mesmo assim, depois de uma breve lufada de ar entre dentes,
pensei no que Margot havia dito mais cedo. Sobre a festa
mascarada. Não tinha pensado ainda se, de fato, o convidaria.
Mas, ali, decidi que sim.

Apenas uma festa de Halloween, dia 25. Curte máscaras?

Ele me respondeu na hora, o que foi um alívio.

Eros:
Curto. Por quê? Quer me convidar?

Meus dedos foram ágeis ao responder, ao passo que meus


lábios se curvaram em um sorriso.

Sim.

Eros:
Por que está me parecendo que não teria me convidado se eu
não tivesse perguntado sobre seus planos, querida Psiquê?

Eu ainda estava pensando.


Eros:
Então estava pensando em mim.

Cafajeste. Antes que eu respondesse, recebi mais uma


mensagem:
Eros:
Te pego aí?

Dei um sorriso largo.

Nós vamos a pé. Te espero às 20h.

Margot queria ajudar o meio-ambiente ao não queimar


combustível para ir até a fraternidade das garotas, mesmo que não
fosse na nossa rua, e sim na do lado. Ela se sentia culpada por ir a
festas e, de certa forma, incentivar o uso de copos plásticos.
Usaria sua camiseta de Amiga do meio-ambiente.
Eros me respondeu.

Eros:
Combinado, princesa. Estou contando os minutos.

Sorri com a mensagem na tela, o que, de certa forma, me dava


uma luz de que estava no caminho certo. No caminho em que eu
não faria mais o papel de presa. Porque, com ele tão próximo de
mim, não sabia se estava fazendo as coisas certas.
Eros me desconcentrava, tirava totalmente o meu foco. Como
se algo poderoso me fizesse ir diretamente até ele, me oferecesse a
ele. Eu resistia àquela tentação, o que me parecia um desafio. Eu
queria tocá-lo; queria pedir que ele fizesse o que quisesse comigo.
Meu corpo inteiro, da cabeça aos pés, lutava contra aquilo.
Eu estava me dando bem até agora.
Veríamos o que seria de mim no dia 25 de outubro.

— Olhe só as belezinhas que encontrei! — Margot disse ao


entrar no apê pela noite, balançando sua bolsa de pano na minha
frente, enquanto eu lia Jane Austen sentada no pequeno sofá.
Margot usava sua bolsa de pano no lugar das plásticas e a
levava para todos os lugares possíveis. Nunca saía para trabalhar
sem ela. Sendo sua amiga, obrigatoriamente tivera que comprar
uma — na verdade, ela chegara em um belo dia com uma a mais,
dizendo que agora a sua tinha uma irmã. Com toda a certeza, ser
amiga de Margot Linderman ajudava o meio-ambiente.
Ergui uma sobrancelha ao seu balançar de bolsa, ao passo que
ela se sentou ao meu lado e retirou duas belas máscaras de rosto
de lá.
— Para a festa no dia 25. Encontrei em um brechó em
Chinatown.
Olhei de relance para ela antes de pegar as máscaras em
mãos, deixando meu livro de lado, no braço do sofá.
Ambas eram muito bonitas. Uma delas era dourada e reluzente,
ao passo que a outra era preta, com um leve ar sedutor e
misterioso, as duas cobrindo somente a região dos olhos.
— São lindas — disse, passando a mão por elas, e logo as
devolvi à minha amiga.
— A dourada é a minha. A preta é a sua — Margot declarou e
então as pegou de volta para colocá-las de novo na sua bolsa de
vovó. Então, pôs seus olhos sobre meu livro, que implorava pela
minha atenção. Quase podia senti-lo. — Não quer sair comigo e
com Justin? Nós vamos ao Esquina beber, passei aqui para pegar
dinheiro.
Margot não gostava nem um pouco de que seus rolos
pagassem suas contas. E também não queria ter que “depender de
macho”, conforme ela mesma costumava dizer.
Por mais que adorasse beber, neguei com a cabeça. Poderia
muito bem ir para beber martínis, mas, naquele momento, queria
ficar sozinha com meus pensamentos e com Mr. Darcy. Margot não
insistiu, apenas concordou e foi guardar as máscaras em seu
quarto.
— Até logo — Ela se despediu na porta.
Ofereci um sorriso a ela.
— Se cuide. E beba por mim! — acrescentei antes que ela
sumisse para trás da porta e eu ficasse sozinha no pequeno
apartamento. Consegui ouvir sua risada, que foi diminuindo aos
poucos até sumir.
Meus olhos foram automaticamente até Elizabeth Bennet e Mr.
Darcy, esperando de verdade que conseguisse focar no livro e não
pensar nele. Consegui ler umas dez linhas ou menos do quarto
capítulo antes que minha mente viajasse até seu cheiro cítrico e até
seu sorriso preguiçoso. Se ele estava contando os minutos, então
eu estava contando os segundos. Faltava menos de uma semana.
Eu mal podia esperar.
Me perguntei por que ele me prendia tanto. Eu nunca tinha me
sentido tão atraída assim por alguém. Parecia que, ao chegar perto
dele, meus sentidos se tornavam todos traidores e iam contra todos
os meus comandos. Minhas pernas, meu respirar, as batidas do
meu coração. Todos traidores.
Mas seria mentira se dissesse que não gostava daquilo, de
todas aquelas sensações. Elas me faziam me sentir viva, elétrica,
como havia tempo não me sentia. Estava sempre mergulhada de
cabeça nos estudos, nas aulas, tentando capturar cada mínimo
conhecimento, tanto por dentro quanto por fora delas — das aulas.
Eu ia constantemente à biblioteca alugar livros escritos por filósofos
experientes. Biografias, manifestos, didática. Eram meu refúgio.
Sempre quisera ser filósofa. Era algo que sempre me parecera
extraordinário, que sempre fizera meus olhos brilharem. Queria ser
como Aristóteles, Sócrates, Platão e um bocado de outros grandes
filósofos da história. Queria fazer parte dela. Queria me sentir viva.
E, como um furacão, Eros tinha aparecido para desfazer todos
os meus conceitos de vivacidade. Se antes pensava que isso só
estava nos estudos, Eros me havia feito acreditar em muitos outros
caminhos desse sentimento. Eu me sentia viva quando ele estava
por perto, me descontrolando, me fazendo vulnerável. Meu coração
bombeava sangue com mais força quando ele aparecia de surpresa
na UC.
Fechei o livro. Não conseguiria ler com ele tão presente na
minha cabeça. Então, fui até meu quarto para guardá-lo, me
deparando com a pequena máscara de renda preta sobre a minha
cama de casal. Sentei ali e segurei-a, analisando seus detalhes.
Não podia estar menos do que impecável na noite do dia 25. Queria
aqueles lindos olhos dourados sobre meu corpo a noite inteira… e
não pouparia esforços.

Acordei às 7h para uma excursão da universidade. Os raios de


sol batiam forte contra as persianas, criando listras douradas no
chão escuro de madeira. Descolei os olhos e grunhi. Eu estava com
sono. Talvez — só talvez — eu tivesse ficado acordada pensando
nele enquanto tentava permanecer de olhos fechados.
Quando saí do prédio, vi um ônibus estacionado na frente do
campus amanhecido, a grama verde como nunca. Eram raras as
vezes em que eu acordava cedo para resolver questões
acadêmicas. Eu tinha perdido o hábito desde que me formara na
escola, dois anos antes.
Olhando para os dois lados, atravessei a rua até a viatura,
embora soubesse que aquela parte de Chicago era menos
movimentada. Apresentei meus documentos a um dos professores
que iam com a gente — apenas dois, o de Filosofia na Grécia Antiga
e o de Ética Moderna e Contemporânea. Ao entrar no ônibus, não
demorei para ser notada pelos garotos, que na hora se empurraram
com os ombros, provavelmente proferindo algum elogio grosseiro.
— Ela é muito gostosa, cara. — Escutei um dos homens
sussurrar para o outro.
Suspirei. Eu simplesmente odiava aquela atenção,
completamente desnecessária. Principalmente a dos homens.
Me sentei na primeira fileira.
Nós íamos ao Instituto de Arte de Chicago para estudar as
obras e suas importâncias e contribuições para a Filosofia. A
verdade era que História, Arte e Filosofia estavam interligadas, eram
como um só corpo. Separadas, não funcionariam, não existiriam.
Olhei pela janela durante o trajeto, observando os prédios, as
pessoas. O dia estava bonito, nada de nuvens cinzentas à vista.
Dentro dos quinze minutos que demorava para chegar até lá, pensei
em como estava ansiosa para a festa mascarada. Em como queria
que chegasse logo, embora faltassem apenas dois dias, mas
quarenta e oito horas — um pouco mais do que isso, na verdade —
pareciam muito tempo para mim. Confessava que estava com
saudade da sensação de tê-lo por perto, das sensações que ele
causava estrondosamente em mim.
Eros era o tipo de cara que emanava problema — para as
garotas comuns. Eu me considerava resistente, persuasiva. Sabia
que não era a única presença feminina em seu círculo social — se
era que tinha presenças masculinas. Mas uma coisa era bastante
certa para mim: Eros parecia manter uma atenção especial sobre
mim, o que fazia meu orgulho aumentar pouco a pouco.
Suspirei quando tive de descer do automóvel com meus colegas
de aula. Éramos talvez quinze ou vinte no total, o que era pouca
gente na sala de aula, mas que, fora dela, se tornava um grupo
bastante considerável. Fiquei na frente o tempo todo, quase colada
aos professores. Eu tinha ido ali para aprender, para anotar. Quando
demos entrada no instituto, que era guardado por um leão turquesa
desgastado pelo tempo, tratei de tirar meu bloco de anotações da
pequena bolsa de ombro que havia trazido comigo.
Primeiro, passamos pelas pinturas, que não eram as únicas
expostas: o instituto também era composto de esculturas e de
vestimentas e artefatos antigos; uma grande exposição, na qual
havia ido apenas uma ou duas vezes durante minha estadia na
grande cidade. A verdade era que passava a maior parte de meus
dias no campus, na biblioteca, no Shedd e no bar. Quase não dava
bola para as grandes relíquias da cidade, as quais costumavam ser
famosos destinos turísticos.
Observei o professor de Ética Moderna e Contemporânea
enquanto falava, meus ouvidos funcionando a todo instante, não
deixando nenhuma informação escapar. Uma folha inteira do bloco
já havia sido usada.
O professor ressaltava a importância daquelas obras: sem elas,
não entenderíamos os momentos da História e, por consequência,
não nos questionaríamos sobre elas. Por que todas as pinturas da
Idade Moderna haviam passado por uma transição para o realismo
na Europa? Qual havia sido a necessidade dessa expressão?
Destaquei as questões com grossos sublinhados. Céus, eu amava o
que cursava!
Quando dobramos o corredor, com o professor ainda falando,
minha atenção foi desviada para um ponto em específico do enorme
cômodo: não era uma obra, era uma pessoa. Tive que piscar mais
do que duas vezes para acreditar no que estava vendo.
Eros estava mesmo ali ou eu estava tendo alucinações?
O que mais me causou choque não foi a coincidência, mas sim
ele estar naquele lugar. Até onde sabia, Eros não era um homem
culto. Discretamente, me desloquei até onde ele estava, de frente
para uma obra de Pablo Picasso chamada Mãe e filho, inspirada em
seu casamento com a russa Olga Khokhlova e em seu filho.
— O que faz aqui? — perguntei meio surpresa, meio admirando
seu passatempo naquela manhã. Quem teria imaginado que Eros
gostasse de arte? Por outro lado, foi estranho como ele não parecia
surpreso em me ver — suas sobrancelhas erguidas não me
convenceram. Pensando bem, se não fosse isso, uma coincidência,
aquilo seria perseguição, o que beirava o ridículo. Tratei de tirar
aquilo da cabeça.
Até porque, quando seus olhos encontraram os meus, senti uma
súbita onda de fraqueza pelo corpo. Maldito fosse. Tive de recuperar
o ar para prestar atenção em suas palavras.
— Psiquê. Que surpresa. — Não parecia sincero. Suspirei mais
uma vez, tentando remover aquela ideia estúpida da minha cabeça.
— Também gosta de apreciar a arte?
Seus olhos me desafiavam a não desviar o olhar. Se valesse
algum tipo de aposta em dinheiro, eu teria perdido, porque
rapidamente olhei para a obra exposta à frente dele. Me virei para
ela.
— Não sabia que você gostava de apreciar arte — retruquei.
O que só o faz ainda mais atraente, queria completar.
— Gosto. Esta, em especial, lembra minha… mãe — falou com
um receio quase imperceptível na voz. — Os artistas dizem que não
há sentimento, e sim paz e força. — Olhei de relance para ver se
estava escrito no pequeno quadrado dourado de informações. Não
estava. E ele não desviou os olhos da pintura. — Não que eu
discorde da parte “paz e força”, mas… Picasso amava a esposa e o
filho. Ele pintou diversos quadros como esse em um bom período.
Tem sentimento. — Então olhou para mim, inclinando um pouco a
cabeça. — O que você acha?
Não sabia o que dizer.
As únicas partes do meu corpo que pareciam reagir eram
minhas pernas. Minhas malditas pernas.
Eros havia sido impecável em sua tese, então era óbvio que
concordava com ele. Me perguntei por que raios ele tinha de gostar
de arte. Tinha certeza de que Deus estava rindo de mim naquele
momento, já que havia colocado um homem supostamente sem
defeitos no meu caminho. Não sabia se devia agradecer.
— Por que se identifica? — me vi perguntando. Tinha certeza de
que, depois de seus bons argumentos, amor de mãe não era a
resposta. Devia ser algo muito mais complexo, mais profundo do
que aquilo.
Seus olhos se moveram para trás de meus ombros.
— Acho que sua turma prosseguiu sem você, princesa. —
Voltou os olhos para mim com um sorriso petulante no rosto.
Olhei para trás e pestanejei.
Pelo visto, a resposta tinha de ficar para depois.
— Tenho que ir se não quiser reprovar em Ética Moderna e
Contemporânea e em Filosofia da Grécia Antiga — disse, um pouco
atordoada. Olhando fundo em seus olhos dourados, percebi que era
tentador deixá-lo. — Nos vemos daqui a alguns dias. Você me deve
uma resposta.
— Minha mãe me ensinou muitas coisas, desde cedo. Coisas
demais. — Após uma pausa breve e levemente sombria, deu de
ombros e então sorriu, as mãos nos bolsos e os fios de cabelo
desajeitados. No sol, eles pareciam quase loiros. — Você tem que ir.
Não quero que você reprove.
Pisquei algumas vezes antes de sair para procurar meu grupo,
ao qual eu parecia não ter feito falta.
Uma questão martelou em meus pensamentos quando o
encontrei na seção de artefatos históricos: o que Eros queria dizer
com coisas demais? Algo me dizia que não era da minha conta, o
que não serviu para me impedir de pensar naquilo… e o que
contribuiu para que eu não prestasse atenção em muito mais coisas.
E então o grande dia chegou, depois do fatídico encontro no
Instituto de Arte de Chicago dois dias antes, que eu
continuava lembrando como uma simples coincidência.
Fazia também exatos cinco semanas e um dia desde que tinha
visto aquele rosto bonito no bar. Mais de um mês e ele não estava
nem aí para me foder. Ou ao menos me beijar, embora isso fosse
mais íntimo. Pensando bem, nada de beijos fora do sexo.
Bem, eu ligava tanto quanto não ligava.
Porque aquilo me mostrava que ele era diferente; mão queria
me levar rápido para a cama e acabar logo com aquilo. Eu sentia
que ele queria me conhecer — talvez eu fosse uma burra, mas
acreditava naquilo de verdade. Quem sabe, eu só fosse mais uma
alienada na linha de produção. Karl Marx teria dito: “É, que pena”.
Não suspirei. Em vez disso, apertei minha máscara com mais
força contra meu rosto. Preta e de renda, ela cobria meus olhos.
Eu e Margot estávamos nos arrumando juntas em seu quarto e,
para falar a verdade, eu estava um pouco insegura em relação à
festa. Nunca tínhamos ido a uma festa de máscaras. Não sabíamos
exatamente o que vestir, mas, depois de Margot gritar um bingo! da
sala assim que olhou os stories de algumas garotas da UC,
soubemos rapidamente: vestidos justos o bastante para ressaltar
nossos ventres — o que era maravilhoso, só que ao contrário,
porque eu não usava vestidos. Não tinha nenhum.
— Eu tenho um pra te emprestar — Margot disse ao olhar para
minha cara de desgosto. Ela sabia que não era porque eu não tinha
vestidos, mas porque eu tinha de usar um. Bastou eu me lembrar de
quem estaria junto que logo passou.
Ela foi até seu guarda-roupas e vasculhou-o. Quando pareceu
encontrar uma peça do seu agrado, exclamou:
— Esse vai ficar lindo! — E puxou um vestido preto que
praticamente consistia em um pedaço de tecido. Me assustei com a
visão imediata de Eros em minha mente, o que, sem dúvida, me
dizia ser aquele que eu deveria usar. Com saltos agulha, descobri
mais tarde, infelizmente — porque Margot me ofereceu martínis.
Uma hora depois, meu coração deu um salto instintivo quando a
campainha tocou.
Subi o olhar na direção da porta do quarto. As batidas
aceleravam a cada segundo, sem que eu tivesse controle. Margot
me lançou um olhar acompanhado de uma sobrancelha erguida, em
dúvida.
— É o seu ou o meu?
Dei de ombros.
— Vou lá ver — disse, controlada.
Bem, eu parecia controlada, porque, se fosse o meu cara,
minhas pernas cederiam como em todas as outras vezes. Eu
parecia uma tola ao tentar permanecer erguida quando claramente
não conseguia.
Quando abri a porta, Justin apareceu de repente, cortando
minha tensão no mesmo momento. Ele era um cara alto, de mais ou
menos 1,80 m — mais baixo do que Eros —, e possuía cabelos
loiros e olhos castanhos. Não era feio. Sua máscara era preta.
Quando me dei por conta, eu estava comparando-o por inteiro a
Eros. Era menos alto, menos bonito, menos musculoso, menos
tudo.
— Margot. — Ele abriu um sorriso ao ver algo atrás de mim e
abriu caminho entre mim e a porta, sem me cumprimentar.
Virei para trás a ponto de vê-los se beijando. Um beijo rápido.
Justin se virou em minha direção com suas mechas loiras.
— Foi mal. — Abriu mais um sorriso, um que parecia forçado. —
Sou Justin. É um prazer te conhecer.
Fui obrigada a dar um sorrisinho. Como se Margot não falasse
dele e mostrasse fotos.
— Justin, essa é Psiquê — Margot me apresentou, alternando o
olhar entre mim e ele. Nós estávamos a uns dois, três metros um do
outro; o que nunca tinha achado uma distância possível naquele
apartamento. — Minha colega de quarto filósofa.
Ele apenas deu um sorrisinho.
Então, acompanhou-a até o quarto, o qual ele já conhecia muito
bem.
Margot ainda não estava pronta, ao contrário de mim. Além do
curto vestido preto de alcinhas e dos saltos agulha de dez
centímetros, eu usava os acessórios de sempre: alguns colares e
pulseiras dourados. A máscara no rosto me deixava misteriosa o
bastante para despertar a curiosidade dele. Estava parecendo um
gato preto. Olhei para baixo. Um gato preto bonito.
— Toc-toc. — Os pelos do meu corpo se eriçaram, então me
virei para a porta aberta e lá estava ele, vestindo calças jeans
claras, sua jaqueta de couro marrom, uma blusa cinza-escuro por
baixo e botinas marrons.
Seus olhos âmbar eram cobertos por uma linda máscara cinza,
o que o deixava ainda mais atraente — era mesmo possível Eros
ser mais atraente? Olhei mais uma vez, analisando-o de cima a
baixo. Sim. Com certeza, sim.
— Uau — ele disse, analisando-me dos pés à cabeça.
Surpreendentemente, meu corpo ficou estático.
— Olá para você também — eu disse, impotente. — Não vai
entrar?
Ele estava escorado no batente da porta, me encarando e
encarando. Seu olhar percorria tudo o que conseguia, o que me
deixava vulnerável, exposta demais. Eu saí de seu caminho para
que ele pudesse, enfim, entrar.
Mas ele não o fez.
Então, fui para o lado de fora, abrindo espaço, e fechei a porta.
Ergui uma sobrancelha para ele, como que perguntando o porquê
de ele não ter entrado. Eu já sabia o motivo por ter demorado tanto:
estava me esquadrinhando desde que chegara.
— Você deveria ser mais discreto — disse, olhando fundo nos
seus olhos, no meio do curto corredor do prédio. Tinha dois
pequenos apartamentos em cada andar. A segunda porta ficava
atrás dele. Atualmente, não morava ninguém ali. O casal viciado em
baseados que intoxicava nosso andar e nosso apartamento tinha se
mudado havia dois meses. O cheiro demorara a sair.
Seus lindos olhos finalmente subiram aos meus.
— Em relação a quê? — Sorriu, cafajeste, pondo as mãos na
parede atrás de mim para me encurralar. Só o que conseguia fazer
agora era olhar nos seus olhos. — Está linda hoje, sabia? —
murmurou para os meus lábios.
Eu sabia. Tinha me arrumado para ele.
— Nós temos que ir. Margot já deve estar pronta. — Continuei a
encarar seus olhos e desejei que aquela festa não existisse mais só
para que eu ficasse ali, com ele. Minhas unhas estavam quase
cravadas na parede atrás de mim enquanto me equilibrava ali, as
mãos perto dos quadris.
Quando a porta ao nosso lado se abriu, a do nosso apê, Eros se
demorou enquanto pôde naquela posição de encurralamento. Eu
parecia uma coelhinha capturada e ele, o lobo.
Praguejei baixinho quando ele se afastou depois de Margot ter
aberto a porta com tudo e se deparado com a gente. A cabeça de
Justin não demorou muito a aparecer também. Então, os dois
ficaram olhando para a gente.
— Ah, vocês estão aí — Margot disse, os olhos semicerrados
nos analisando com agilidade. Justin, por sua vez, parecia só…
olhar. — Estava me perguntando se tinham ido sem a gente.
Ela pousou as mãos na cintura, me olhando em específico,
como que me perguntando se eu seria mesmo capaz de fazer isso.
— Eu não seria capaz — disse o que ela queria ouvir, e ela
pareceu satisfeita.
Pegou na mão do rolo dela e abriu caminho à nossa frente,
deixando-nos, assim, para trás na rua escura.
Nossa rua universitária era pouco iluminada, o que era bom
para os que gostavam de fumar e de beber ali pela noite. Se fosse o
contrário, certamente professores reclamariam mais do que já
reclamavam.
Margot havia dito uma vez que os professores tinham de
reclamar mesmo, afinal, os alunos poluíam a rua constantemente.
Eros meteu as mãos nos bolsos, e eu o olhei. Estava tão
atraente naquela noite, com sua máscara cinza! Aquilo parecia
realçar o mistério em seus olhos, me fazia querer implorar por mais
informações. Eu ainda não sabia quase nada sobre ele, o que me
deu a brilhante ideia de começar uma conversa no meio daquela
noite escura:
— Então… de onde você disse que tinha vindo, mesmo?
— De muito longe — ele repetiu as mesmas palavras que havia
dito.
Suspirei.
— Esperava por um lugar específico… Como Nova York. —
Olhei melhor para ele. — É, você definitivamente parece alguém de
Nova York.
Ele sorriu para os pés, então olhou para mim outra vez.
— Por quê? — quis saber.
— Não sei. Talvez porque… as pessoas de lá sejam agitadas e
ocupadas, com um propósito de vida. Eu pareço ser o seu no
momento. — Fui direta e indireta ao mesmo tempo. Queria dizer que
ele sempre sumia do nada.
— Na verdade, estou… hum… de férias.
Olhei para Margot e Justin a uns dez metros à nossa frente,
rindo de alguma coisa.
— Mesmo? Você sempre desaparece do nada. Presumi que
fosse ocupado.
Ele sorriu um sorriso ferino.
— Não consegue ficar longe de mim?
— E sua família? — soltei de repente. Talvez porque, lá no
fundo, ele já pertencesse à minha rotina. — Irmãos? Pais?
Eros olhou para os dois à frente também.
Então, para mim.
— Sete irmãos mais novos e dois pais convencidos. — Fez
pouco caso disso.
— Caramba, sete irmãos? Nossa, você deve sofrer. — Lancei
uma careta a ele. — Se com duas já sofro…
— Três garotas? Seus pais que devem ter sofrido — ele
debochou com um sorriso solidário.
Dei de ombros, olhando para meus pés novamente e, então,
para o céu limpo cheio de estrelas. Elas estavam tão fortes naquela
noite!
Eros me apontou uma em específico. Uma brilhante.
— Aquela é Júpiter. Um dos deuses romanos. Para os gregos,
seria Zeus.
Olhei para ele.
Então ele sabia mesmo de mitologia — bem, agora também de
astrologia.
— Deus dos céus e dos deuses — reconheci, olhando para
onde ele tinha apontado: uma estrela gorda e feliz no céu.
— Um metido — Eros murmurou, perecendo entediado.
— O quê? — Me desconectei da estrela para prestar atenção
nele outra vez.
Ele sorriu.
— Nada. Como são suas irmãs?
Levei um segundo para responder.
— Muito devotas ao casamento e à família tradicional. —
Suspirei com a cansativa verdade. — Cassidy e Karen. Mais velhas.
— Voltei meu olhar ao âmbar dele, que reluzia de vez em quando
com a luz branca dos postes. — E os seus?
— Cinco homens e duas mulheres. — Ele pareceu angustiado
ao falar homens e mulheres, como se aquilo fosse incomum a ele.
— As… mulheres são as minhas preferidas. Os outros são muito
filhinhos do papai, mas, bem, digamos que eu sou o filhinho da
mamãe.
Eu sorri com aquilo.
Não imaginava que ele fosse filhinho de mamãe, embora ele
falasse do pai com certo desgosto. Decidi não tocar naquele
assunto, porque, se fosse comigo, eu certamente detestaria. Meus
pais eram a última coisa de que gostaria de falar no momento.
— Está aí uma coisa que não imaginava. — Olhei para ele em
divertimento.
Deu de ombros.
— É um fardo a se carregar. Nós dois somos muito próximos.
— Trabalham juntos?
Eros pareceu ficar tenso com a pergunta. Me perguntei por um
instante se havia tocado em alguma ferida com a questão. Desejei
que não, não tivesse. Caso contrário, aquilo ficaria muito
desagradável.
— Trabalhamos — respondeu, simplesmente, com um dar de
ombros; as mãos ainda nos bolsos da jeans.
Eles deviam ter um ótimo negócio.
Os meus pais também tinham, mas preferia não me lembrar de
que minha família era rica. Não gostava de ao que isso me remetia
— ganância, poder, perfeccionismo. Uma família perfeita, sem
defeitos aos olhos de quem via de fora.
Uma mentira fodida.
— Me conte sobre você. O que gosta de fazer? — Eros me
perguntou, curioso.
Nós atravessamos a rua depois dos pombinhos à frente.
Naquela parte da cidade não fazia tanto barulho quanto no
centro, que era carros e pessoas para todos os lados. Porém,
conseguíamos ouvir um som pulsante na direção aonde estávamos
indo: a fraternidade.
— Estudar? Ler? — Dei de ombros. — Não sei.
Resolvi não fazer mesma pergunta a ele, porque já sabia a
resposta que caras como ele dariam. Farra, bebida, drogas, sexo.
Era a exatamente isso que Eros me remetia. Desde o primeiro
contato visual.
— Hobbies de honra. — Ele sorriu. — Já eu… gosto de
trabalhar. — Um sorriso travesso lhe subiu ao rosto, como se o
grande negócio da família fosse algo ousado como uma casa de
prazer.
— E ainda está de férias. — Sorri, debochada. — Instalado
onde, Homem de Negócios?
Eros sorriu com o apelido.
— Não muito longe de você.
O que não me era tanta surpresa, já que estava todo dia me
importunando com sua presença. Eu gostava das importunações,
eram sempre… divertidas. Como na biblioteca, no corredor.
O que me veio à cabeça quando o olhei de volta foi: e nunca me
convidou para ir lá?
Mas, claro, eu tinha que me controlar.
Além do mais, ele havia me contado sobre ele naquele dia mais
do que no mês. Gostei de saber que tinha sete irmãos, que era
filhinho de mamãe e homem de negócios. Relaxei com as
informações. Eu não me sentia mais tão exposta. Tinha dado
somente duas informações naquele dia: minhas irmãs e meus
gostos. Embora não soubesse ao certo meus gostos. Então, uma
informação e meia.
Nós ficamos em silêncio pelos próximos dois minutos, até
chegarmos à fraternidade colorida e eletrizante. Pelas janelas
brancas da casa de marcenaria rosa, de dois andares, pude
presenciar a adrenalina correndo solta nas veias da galera de
dentro, que ouvia um som muito mais alto que nós do lado de fora.
Na frente da casa, só tinha gente mal pra caramba, vomitando
em arbustos ou andando em linha torta, com as cabeças girando.
Só estivera nesse estado quando terminara com Kurt e, olhe só, ele
estava na minha cabeça de novo. Devia ser a época. Nós havíamos
terminado pouco depois de o ano letivo ter começado.
Mandei meu cérebro calar a boca e entrei de vez, ao lado de
Eros, na maldita casa da fraternidade.
E, bem, algo estranho aconteceu: todas as cabeças pareceram
se virar quase que instantaneamente para ele. Para Eros. Como se
ele fosse alguma intervenção divina ou sabe-se lá. Esquadrinharam-
no dos pés à cabeça. Quando perceberam que estava
acompanhado — o fato engraçado: ele quem era meu
acompanhante —, me analisaram também, talvez com desprezo.
A festa pareceu parar.
Margot me olhou por debaixo da máscara, confusa, como que
perguntando Que porra é essa?
Essa era a questão.
Que. Porra. Era. Aquela.
Meu olhar foi até ele, que hesitou por um instante e me olhou de
volta. Eles pareceram voltar às suas atividades normais. Voltaram a
se balançar com mais empolgação.
Era fato que Eros era gato pra cacete, mas ele estava com a
porra de uma máscara. E com uma jaqueta que escondia seus
braços musculosos.
Nós abrimos espaço entre o pessoal para chegar à cozinha a
fim de pegarmos o ponche horroroso que eu tanto temia. Eu com
certeza iria até o barril de cerveja no quintal e espirraria um pouco
na boca em vez daquilo.
Quando chegamos lá, Margot fez questão de vasculhar os
armários, à procura de copos de vidro. Ela rapidamente os
encontrou, estampando um sorriso no seu rosto, que, de certa
forma, reforçava os dizeres Amiga do meio-ambiente da sua
camiseta.
— Você curte ponche, Eros? — ela perguntou, íntima.
— Prefiro bebidas mais fortes.
Ela deu uma breve revirada de olhos, quase imperceptível.
— Você e Psiquê devem se dar bem. — Ela guardou um dos
copos no lugar de onde os tirara. Então, encheu para ela e para
Justin, que só trocava palavras com ela desde então.
— Então, cara, você é da UC?
Quando Eros foi abrir a boca, respondi por ele:
— Ele já passou dessa.
E, quando olhei para minha companhia, notei sua sobrancelha
erguida e seu sorrisinho despontando. Quis dar de ombros.
— Certo — Justin falou, sem graça. Margot me fuzilou com o
olhar. — Vamos dar uma volta? — perguntou para ela, que desviou
o olhar do meu, concordando em ir com ele. Acho que ele não tinha
me curtido muito. Cara entupido.
— Vamos pro barril? — Me virei para Eros, o qual continha
olhos brilhantes no meio de toda aquela luz colorida da festa. Ele
assentiu, parecendo não ter muito o que fazer.
Demorei um pouco para entrar no quintal, por causa do mar de
gente. Então, quando cheguei lá, Eros não estava atrás de mim. Foi
quando senti mãos envolverem meus quadris. Me virei com um
sorriso no rosto, mas me surpreendi e de uma forma muito ruim.
Não era ele.
Um garoto loiro lançava um sorriso bêbado em minha direção.
— Você é uma gostosa — ele disse, o bafo de bebida chegando
até mim.
— E você é um bêbado. — Tentei me desvencilhar de suas
mãos nojentas. Mas ele não soltava. Continuava com um olhar
melancólico. — Me solta — pedi, o que só o fez me apertar mais.
Eu estava acostumada a caras — somente a caras —, e não
caras bêbados me assediando, o que me assustou. Ele parecia
querer descer as mãos para debaixo do meu vestido.
Tentei chutá-lo bem ali, mas algo foi mais ágil que eu — ou
melhor, alguém.
Eros.
Esse, por sua vez, deu-lhe um belo soco no rosto. Um forte o
suficiente para quebrar dentes e deixar uma bela marca para trás.
Eu me assustei com o movimento repentino, dando passos
atrapalhados para trás.
O loiro se desequilibrou e caiu no chão, se contorcendo e pondo
a mão na bochecha logo em seguida. Eu desviei o olhar para Eros,
que possuía um olhar assassino. Não demorou muito para que ele
me olhasse de volta.
Não fazia nem meia hora que estávamos ali e… bem, aquilo
tinha acontecido.
Meu corpo começou a tremer. Pelo que o garoto queria fazer
comigo, pelo que Eros havia feito com ele. Porque aquilo não havia
sido pouco. Eu tinha certeza de que tinha quebrado dentes, certeza
absoluta.
Eros veio até mim, abrindo e fechando a mão.
Instintivamente, dei um passo para trás.
— Você… está bem? — perguntou, talvez preocupado.
— Acho que… sim — respondi, um pouco perdida e assustada.
Puxei meu vestido mais para baixo, no que ele reparou. Olhei
em volta. Ninguém pareceu ter visto de verdade o que tinha
acontecido, como se estivessem desligados. Estavam alheios
demais por causa das drogas que ingeriam ou consumiam.
Olhei nos olhos âmbar de Eros de novo, que parecia querer
uma resposta mais convincente.
— Estou bem. — Desviei para o garoto doído e contorcido na
grama. — Vamos… sair daqui.
Ele assentiu. Então, peguei na sua mão com certa força e levei-
o para dentro da casa, onde Margot dançava em Justin, que erguia
o copo de vidro. Olhei para seu punho: nem um pouco machucado.
Minhas sobrancelhas se ergueram. Levantei seu próprio punho para
ele.
— Tá doendo?
Eros balançou a cabeça para os lados devagar, negando.
Encarei-o profundamente, esquadrinhando seu rosto. Em parte,
procurando por machucados; em outra, apenas… admirando-o. Não
soltei sua mão. Pelo contrário: depois de baixá-la, apertei-a um
pouco mais.
Ele parecia estar querendo matar alguém.
— Ele só foi mais um babaca. — Um que tinha passado muito
dos limites.
— Eu nunca faria aquilo com você — ele declarou, o olhar agora
um pouco perdido, como que tentando entender. Não sabia dizer se
o espírito assassino ainda estava ali.
Larguei sua mão apenas para colocar a minha no seu rosto.
— Eu sei.
De certa forma, eu sabia.
Ele pareceu se confortar. Eu nunca o vira tão… vulnerável.
Quando tirei a mão de seu rosto, Eros pôs a sua na minha cintura
devagar, como se não quisesse me assustar depois daquilo. Eu já
estava mais calma. Havia sido um susto momentâneo. Sabia que
caras universitários poderiam ser babacas àquele nível.
Deixei que ele pusesse as duas mãos na minha cintura.
Antes que ele pudesse fazer ou dizer mais alguma coisa no
meio do corredor escuro onde estávamos, eu me escorei na parede
e o trouxe até minha boca. Nossas línguas se envolveram em um
gesto caloroso. Daquela vez, ele não hesitou em apertar um pouco
mais a minha cintura. Uma de minhas mãos estava no seu rosto; a
outra, envolta em seu pescoço.
Sentia seu gosto, seu calor.
Enfiei meus dedos no seu cabelo desajeitado, deixando-o ainda
mais bagunçado. Então, sorri no meio do beijo, ao passo que ele
desceu uma das mãos um pouco mais. Não hesitei.
Olhei-o nos olhos durante aquela pausa. Então, com um sorriso
assassino, ele desceu os lábios por meu pescoço, me fazendo
morder os meus. Meus dedos apertaram sua nuca. Suas mãos
passearam pela região dos meus quadris.
Logo nossos lábios estavam unidos mais uma vez.
Se antes eu exigia uma resposta a desejos carnais, agora eu já
a tinha bem à minha frente, nos traços irresistíveis de Eros e no jeito
como meu corpo pulsava toda vez que ele estava por perto. Aquilo
era desejo carnal.
D epois de tanta hesitação, eu finalmente sabia que gosto sua
boca tinha. Psiquê apertava minha nuca com convicção,
enquanto eu segurada a sua cintura, descendo as mãos em
intervalos de tempo. Nossas línguas e mentes entraram em uma
conexão profunda e, ao mesmo tempo, em colapso. Língua com
língua, pele com pele.
Minhas mãos passeavam pelas suas pernas, pelas suas
bochechas. Maldito vestido, eu queria fazê-lo em pedacinhos bem
ali.
Psiquê tinha me surpreendido quando havia me beijado. Pelos
deuses, eu amara aquilo.
Quando o beijo acabou, eu sabia que estava ferrado.
Completamente ferrado.
Porque, ao olhar na imensidão verde de seus olhos, eu soube.
Psiquê já não era só uma maldita missão. Ela era muito mais que
isso, mais do que eu queria permitir. E já estava fodido. Soube, bem
ali, que Psiquê não era só mais uma mortal com quem eu tinha um
rolo.
Mas ela simplesmente não podia passar daquilo. Aliás, o que
me fazia pensar nisso? Seu belo corpo, sua beleza sagrada, seu
beijo caloroso? Seu toque, seu sorriso, seu jeito?
Não.
Eu a acompanhei até em casa naquela noite, junto a seus
amigos. Não nos falamos, mas trocamos olhares — bons olhares.
Eu a admirava enquanto ela parecia fazer o mesmo comigo. Então
nos encarávamos nos olhos, mas não sorríamos. Apenas nos
perdíamos um no outro.
Psiquê era tão diferente das outras.
Uma memória me veio naquele momento: Nova York, década de
1990. O casal apaixonado, o quanto eu ansiava pelo mesmo que
eles tinham. O quanto eu tinha percebido de que havia passado
anos fazendo-os se apaixonar e havia me esquecido de mim
mesmo. Minha mãe… ela era um pouco possessiva quanto se
tratava de mim, embora não tivesse um filho preferido. Também não
contribuía para isso. Apenas me incumbia missões e mais missões.
Eu… estava cansado daquilo — e do posto de filho perfeito. Além
do mais, nós tínhamos enfurecido certos deuses no meio de tudo.
Quando pensava em passá-lo — o posto — para um de meus
irmãos, lembrava que eles passavam pelo mesmo que eu, embora
Fobos e Deimos fossem meio desleixados. De qualquer maneira,
todos estávamos entediados lá em cima.
Olhei para Psiquê.
Ela me encantava. Ela me fazia acreditar que eu conseguiria um
laço de amor como o daqueles mortais, que já deveriam estar na
casa dos cinquenta anos de idade. Ainda juntos, eu sabia.
Ela me olhou de volta e me deu um de seus sorrisos
dominantes, me alertando que quem era a leoa ali era ela. Eu sabia
daquilo desde que tinha posto os olhos nela naquele bar de esquina
naquela noite chuvosa de setembro.
Despedi-me dela com um até logo, princesa e fiquei lá, na noite
escura, até ela entrar. Até mesmo um pouco depois. Porque Psiquê
Di Laurentis era minha esperança, para tantas coisas.
A cordei mais cedo naquela manhã de 28 de outubro, um novo
dia. Não sabia ao certo o que, de fato, tinha acontecido entre
nós dois naquela noite. Mas havia sido um beijo, um beijo
caloroso e necessitado. Quisera por tanto tempo fazer aquilo e
finalmente tinha encontrado uma brecha.
Fui para a aula de Ética. Sorri ao concluir que precisava de ética
para com ele; do contrário, passaríamos dos limites. Porque não
queríamos nada além de jogar, certo? Estava sendo ótimo jogar
com ele.
Mas… a forma como ele tinha me salvado, como se tinha se
preocupado!
Tratei de não pensar sobre isso enquanto caminhava,
apressada, até o campus. Eu estava atrasada. Havia passado muito
tempo olhando para o teto depois de ter desligado o maldito e
irritante despertador. Suspirei, tentando não trombar com outros
universitários enquanto travava uma guerra interna comigo mesma.
Quando deduzi que meu lado pensativo estava vencendo
aquela batalha, tratei de bloquear todos e quaisquer pensamentos.
Eu precisava estudar Ética.
Minhas pernas balançavam enquanto estava sentada no
campus, esperando por Margot. Eu estava ansiosa, querendo que
Eros aparecesse ali com seu sorriso cafajeste, seu olhar peculiar e
meu nome na sua boca. Psiquê soava tão menos exótico nela, tão
mais sagrado.
Sorri comigo mesma por tê-lo beijado naquela festa.
— Olhe, ela está sorrindo — Margot disse quando chegou,
debochada. — Já até sei por quê.
Revirei os olhos ao levantar do banco para irmos até o Esquina
Bar. Quando entramos no carro, ela de motorista, falou:
— Ele deu um jeito nele, não deu? — Soou preocupada
enquanto mantinha o olhar fixo na rua à nossa frente.
— Em quem?
Margot enfim virou o rosto na minha direção.
— No maldito que tentou te assediar.
Minha respiração parou por um instante.
— Sim.
— Por que não me contou? — Semicerrou os olhos para mim
depois de dar o pisca. — Justin quem comentou comigo. Você
deveria ter me contado.
— Ele era só mais um babaca, Margot. — Desviei o olhar para a
frente, para a rua em movimento. Não queria falar sobre aquilo.
Talvez porque fosse verdade: era só mais um babaca universitário
bêbado.
Ouvi seu suspiro, forte e demorado.
— Eu não queria assustar você — comentei.
— Mas podia ter me contado. Sou sua melhor amiga.
Suspirei, tensa.
Passei a prestar atenção nas nuvens que fechavam nosso céu:
cinzas, parecendo prestes a explodir em lágrimas. Eu gostava da
chuva, e fazia tempo desde que chovera pela última vez. Me trazia
um sentimento bom, reconfortante. Como uma boa lembrança de
casa que eu não tinha. Eu e Margot passávamos o dia inteiro
embaixo das cobertas, na sala, assistindo a um filme.
Acompanhadas de vinho.
Naquele momento, estávamos nos aproximando dos meus
preciosos martínis.
Ela já tinha cumprido com seu acordo no mês anterior, em
setembro, mas, ainda assim, queria que a rodada de hoje fosse por
sua conta.
— Eu sei — disse, simplesmente, enfim passando a olhá-la. —
Eu sei.
— Aonde você… você e Eros foram? — Arqueou a sobrancelha,
prestando atenção na pista e mudando sua expressão preocupada
para uma pouco animada. Ainda estava abalada pela informação. —
Vocês sumiram.
Eu dei um sorrisinho contido, um que ela entenderia.
— Nós estávamos… é… nos pegando no corredor — completei
com um leve dar de ombros, como se não fosse a conquista do
século. Porque era.
Margot sem querer clicou na buzina por causa da empolgação,
o que nos fez cair na risada. Ela estava mesmo animada com a
fofoca. Então, estávamos nos olhando e rindo.
— Margot!
— Psiquê! É a conquista do milênio! — É, talvez ela estivesse
um pouco mais animada do que eu com aquilo. Então, encarei a rua
pela minha janela, os pequenos prédios dando espaço para maiores
gradativamente. — Como foi? Ele beija bem?
— Se ele beija bem? — Suspirei. — Ele beija bem pra cacete.
De soslaio, vi um sorrisinho se formar em seus lábios.
— Ele é um tapado, sabia? Por que demoraram tanto? Por que
não foram pra cama ainda? — Ela parecia realmente indignada.
Dei de ombros.
— Estamos… em um jogo. Um que estamos gostando de jogar.
Ela me ergueu a sobrancelha.
— Vocês dois foram feitos um para o outro. — Eu sabia o que
ela queria dizer com aquilo: entupidos.
Olhei-a de esguelha e então suspirei.
Nós estávamos jogando.
Era só isso, um jogo. Um em que ambas as partes eram boas,
nenhum melhor que o outro, embora eu tivesse quase certeza de
que Eros me causava mais arrepios do que eu nele. Eu o desejava
ardentemente. Meu corpo entrava em combustão com ele por perto.
Ele sorria toda vez em que eu era direta. Era por isso que
funcionávamos tão bem naquilo.
Mas era eu quem faria xeque-mate no final.
Porque eu não era uma boa perdedora. Era uma boa
vencedora.

Estava estudando, mergulhada em livros e cadernos recheados


de informações, quando de repente meu celular vibrou com uma
nova notificação. Desgrudei os olhos do caderno e os coloquei
sobre o celular, que brilhava. Era uma mensagem de Eros.

Eros:
Hoje vai ter jogo do Bulls contra o Knicks e você nem me convida?
Dizem que o basquete é o melhor de Chicago. Achei que estivesse
comprometida a me mostrar o melhor dessa cidade.

Eu tinha me lembrado do jogo do Bulls contra o Knicks que ia


rolar naquela noite no United Center, às 23h. Mas, como a grana
estava curta, não tinha chance nenhuma de eu ir. Por isso, havia
esquecido rápido dele. Além disso, tinha que estudar — o que
estava ficando bastante difícil depois de Eros ter aparecido naquele
bar com seus exóticos olhos dourados.
Digitei uma resposta com um sorriso contido no rosto.

Não sabia que curtia basquete.

Eros:
Gostaria de me acompanhar, princesa?

Olhei o horário. Beirava as 22h.

Não tem como conseguir um ingresso tão em cima


do horário. A menos que você tenha superpoderes.

A verdade era que eu queria muito acompanhá-lo, mas era


impossível conseguir ingressos uma hora antes. Todos os jogos do
Bulls eram lotados e esgotavam fácil, além de muito caros. Cada
ingresso beirava os cem dólares. O único dinheiro que tinha era
para pagar o apê, depois de um esforço trabalhando nas férias de
verão como atendente no teatro do píer Navy. O dinheiro que tinha
reunido no ensino médio trabalhando como atendente de cinema
cobria somente o curso — mesmo tendo uma bolsa de estudos de
cinquenta por cento.

Eros:
Não se preocupe com isso. Pego você daqui a vinte minutos.

Meu queixo caiu. Como ele conseguiria aqueles ingressos?


E… bem, entendi que não havia discussão quanto ao horário.
Depois de fechar todos os cadernos e livros, fui direto para
debaixo do chuveiro. Enrolada em uma toalha após do banho, abri
meu guarda-roupas, pensando no que vestir. Eu não estava nem um
pouco preparada para sair naquela noite. Decidi pôr um suéter preto
em decote V, minha jeans azul clara e minhas botas pretas. O frio já
assolava Chicago.
Completamente vestida, enfiei a cabeça para dentro do quarto
de Margot dizendo brevemente que sairia e logo fechei a porta,
antes que ela começasse a falar. Só tinha dado tempo de perceber
sua sobrancelha se erguendo. Do lado de dentro, ela gritou um
divirta-se antes que eu chegasse até a porta e descesse as escadas
até o térreo.
O Audi prata me esperava na rua escura quando saí do prédio.
Com os faróis ligados, não dava muito bem para distinguir o rosto de
Eros, até que ele baixou o vidro do carona e se inclinou até aparecer
na janela, junto de seu sorriso travesso, o mesmo que me causava
arrepios.
— Está bonita. — Sua voz melodiosa alcançou meus ouvidos e
me fez estremecer. Ao se inclinar para um pouco mais perto de mim,
já sentada no banco do carona, ele sorriu. — E cheirosa.
Estremeci pela segunda vez, me achando bastante parecida
com uma presa. Eu tinha que focar, mas era impossível resistir a
Eros. Meu corpo ficava tenso só de estar perto dele e logo era
tomado por um calor escaldante.
Sorri para ele, que vestia uma camiseta preta por baixo de sua
jaqueta de couro marrom, o que não era o bastante para reprimir
seus músculos esculpidos. Eros era como uma bela obra de arte
grega, esculpido à perfeição.
— Não tenho ideia de como conseguiu os ingressos — tentei
permanecer firme, encarando-o nos olhos, que pareciam ouro
adormecido —, mas admiro sua persuasão.
— Sou bastante persuasivo quando quero. — Sorriu antes de se
afastar e fazer o carro entrar na rua, me deixando atônita com a
sensação de tê-lo tão próximo. Estava sendo um martírio ficar longe
depois de saber como era beijá-lo. Eu precisava dos seus lábios o
quanto antes.
Pensei em silêncio no quanto aqueles ingressos deviam ter
custado uma fortuna assim de última hora, mas o que seriam
duzentos, trezentos dólares para ele? Eram como centavos para
mim. Nada. Eu tinha completa certeza.
A sorte estava novamente ao nosso lado quando chegamos ao
estacionamento da United Center ao nos depararmos com o que
parecia ser a última vaga. Me perguntei se ele não teria pagado por
ela. Do lado de fora do carro, a chuva caía a toda velocidade em
Chicago, fustigando o piso que nos levava até a entrada do
estabelecimento.
— Você costuma assistir a jogos de basquete? — perguntei,
curiosa, enquanto, dez minutos depois, nossos ingressos eram
entregues à mão de uma mulher baixa e loira, que não devia medir
mais do que 1,60 m.
— Na verdade, nunca assisti a um.
Ergui o supercílio, bastante surpresa.
— Você quer dizer pessoalmente.
Ele me lançou um sorriso.
— Quero dizer nunca.
Meu queixo caiu, surpresa demais por alguém nos Estados
Unidos da América nunca ter assistido a um jogo de basquete. Ele
devia ser um alienígena ou qualquer coisa parecida, porque com
certeza não era desse mundo. Franzindo a testa, perguntei:
— Então você não conhece o Bulls?
— Acredito que não. — Nós passamos por uma lanchonete. —
Com fome?
Balancei a cabeça em negativa, então continuamos até a
entrada da arena.
— Você com certeza não é estadunidense. — Ele deu um
sorriso contido, achando graça da minha confusão. — Quer dizer,
que tipo de estadunidense é você?
— Um ocupado demais.
— Me recuso a acreditar que você não lê notícias. Os Bulls
estão em todo o mundo!
Eu começava a parecer uma fanática do time, e seu sorriso só
aumentava. Eros estava definitivamente achando graça. Quando
nós entramos na arena, que já estava lotada e cheio de murmúrios,
ele disse:
— Bem, vou conhecê-lo hoje à noite. — Deu de ombros.
Não me conformei, mas fiquei calada enquanto nos
deslocávamos até nossos lugares, que surpreendentemente eram
logo à frente do linóleo claro onde os jogadores se posicionariam.
— Você é um cara de muita sorte. — Ou muito dinheiro.
Astuto, ele me esquadrinhou, ao passo que meu corpo
correspondeu com uma sensação gelada na coluna. Seus olhos
permaneceram nos meus por um bom tempo antes de responder:
— De fato.
O que eu sabia ter um duplo sentido, visto seus olhos nos meus
se recusando a pousarem em outro lugar. As pessoas da enorme
arena se levantaram como uma só, agitando-se e assoviando
freneticamente. A maioria delas vestia o uniforme vermelho do Bulls
ou estava com um chapéu com chifres. Desviando o olhar para o
linóleo, reparei que os Bulls estavam entrando, então também fiquei
de pé. Nunca tinha estado tão perto antes.
Zach LaVine, Coby White e Daniel Gafford entravam convictos
na linha de frente.
E, então, o time visitante entrou: o Knicks, de Nova York. Estava
tudo normal… Até que um arrepio me subiu à espinha quando vi
quem era o mais novo integrante: Kurt Monaghan, meu ex. Quis
correr imediatamente daquela arena.
Como ele havia chegado tão longe? Como eu não sabia
daquilo?
Era fato que Kurt era muito bom no que fazia, mas… os Knicks?
Podiam não ser melhores do que os Bulls, mas eram bons. Muito
bons. E muito famosos. Para se entrar num time daquele… tinha
que se ter talento. Percebi uma coisa: ele enfim havia conseguido o
que tanto almejava, entrar em um time de importância. O que ele
optara em vez de mim.
Me encolhi na cadeira da arquibancada.
Eros notou.
— Está tudo bem?
— Ahã — menti.
Ele lançou um olhar breve para Kurt.
— Podemos ir embora se quiser.
Não, eu não me permitiria aquilo. Kurt Monaghan não me
privaria de assistir a um maldito jogo de basquete.
— Não, está tudo bem.
Eros manteve o olhar sobre Kurt. Eu devia tê-lo encarado muito
para que Eros tivesse percebido tão depressa. Quase me fundi à
cadeira de tanto que me encolhia, evitando o contato visual ao
máximo com meu ex-namorado. Mas Eros parecia ter encontrado
uma nova atração.
Minha mente, acima de tudo, entrou em combustão por os dois
estarem no mesmo lugar. Eu não sabia para qual deles olhar,
embora não quisesse que Kurt reparasse em mim, que estava logo
na primeira fileira, muito menos que reparasse em Eros. Eu não
deveria ligar para isso.
O pessoal não aplaudiu os Knicks, porque todos ali eram da
casa. Para mim, com ou sem aplausos, o mundo havia parado por
alguns instantes. A última coisa que eu queria era que Kurt
Monaghan olhasse para nós. Se olhasse, prometi a mim mesma, eu
daria o fora o mais rápido possível dali, pois não aguentaria ter de
suportar aquele olhar depois de tanto tempo.
Eros o encarou durante o jogo inteiro. Não olhava para a bola
ou para o Bulls, mas para Kurt. Parecia ter um interesse pessoal
nele. Bem, eu tinha acabado de desmanchar na cadeira após tê-lo
visto; não tinha evidência mais forte que aquela para dizer que eu e
aquele jogador já havíamos tido algo. Algo que tinha acabado. E eu
ainda estava bastante disposta a deixar aquilo tudo enterrado.

Os malditos Knicks ganharam — Kurt ganhou. Eles fizeram a


festa, enquanto a arena mergulhava em uma profunda tristeza.
Tinha certeza de que as pessoas que haviam pintado seus rostos os
lavariam com esfregões, forte e arranhado, tentando se livrar
daquilo que as faziam se lembrar da pontuação final: Knicks, 105;
Bulls, 98. Tinha sido por pouco.
Eu estava talvez apressada demais para sair dali. Queria sair
impune do olhar do meu ex-namorado e não arriscaria mais nenhum
segundo. Levantei primeiro que Eros e praticamente corri até a
saída.
— Por que a pressa? — ele perguntou quando encontramos seu
carro, estacionado no que antes era a única vaga. Ele se aproximou
do Audi e clicou no botão acoplado à maçaneta, mas resolveu se
debruçar por cima do automóvel, me encarando em curiosidade, sua
grossa sobrancelha erguida. — Parece estar fugindo de alguém.
Parei com a mão na maçaneta do carona e o encarei.
Ele sabia muito bem que eu estava fugindo de Kurt, mas, pelo
visto, queria confirmar. Ou queria saber quem era Kurt, embora
certamente houvesse evidências — em minhas expressões e ações.
Tinha certeza de que Eros nunca se intimidaria por Kurt. Na
verdade, eu até mesmo o imaginava indo até Kurt dizer Caia fora do
meu caminho — quando, sem dúvida, Kurt não era um obstáculo.
— Margot não gosta de ficar sozinha em casa — menti mesmo
assim.
Não estava com cabeça para falar do meu ex-namorado com
meu atual… rolo. Parecia errado e confuso. Além do mais, queria
que Kurt evaporasse da minha mente, embora soubesse que seria
quase impossível — afinal, ele estava em Chicago, na mesma
cidade que eu, quando eu pensava que estivesse a milhares de
quilômetros de distância.
Apertei bem os olhos, desejando massagear as têmporas, antes
de perguntar:
— Podemos ir? — Era evidente minha necessidade de ir
embora.
Precisava tomar mais um banho, na esperança de que Kurt
fosse ralo abaixo com a água. Era o que eu mais desejava: que ele
caísse fora da minha mente e, por consequência, dos meus
pensamentos. Tinha de esquecê-lo. Esquecer de que estávamos no
mesmo território municipal. Esperava de verdade que ele pegasse o
primeiro voo para o buraco de onde tinha saído.
— Seu desejo é uma ordem. — Eros entrou junto a mim no
carro, logo pressionando o botão de ligar, perto do volante. O carro
se acendeu como uma luz, tomando vida.
Permaneci em silêncio por todo o caminho, pensando em como
ele tinha conseguido estragar até mesmo um passeio. Depois de
tanto tempo, Kurt ainda estava muito presente na minha cabeça, o
que era um problema dos grandes. Os prédios pareciam passar em
câmera lenta enquanto eu os observava, pensativa.
Nem mesmo percebi quando Eros estacionou em frente ao meu
prédio. Olhei confusa para ele, como que perguntando Por que
paramos? Mas aí olhei para o lado de fora e percebi o porquê.
Eros inclinou a cabeça para me observar, sua mão ainda no
volante, e então comecei a entrar lentamente em combustão,
queimando cada vez mais à medida que os segundos passavam e
seus olhos âmbar permaneciam pousados sobre mim, que parecia
ser um lugar agradável para ficarem.
Ele deu um de seus sorrisos assassinos, o que foi suficiente
para que Kurt não passasse de um pequenino ponto em minha
mente. Já havia sumido assim que desci os olhos para seus lábios,
estacionando-os ali. Um sorriso esbranquiçado e sedutor, que
certamente já tinha levado muitas garotas para sua cama.
— Você parece tensa, princesa. — Chegou um pouco mais
perto de mim, do meu pescoço. Senti seu hálito quente na fina
camada de pele logo abaixo do lóbulo de minha orelha. Não
conseguia prestar atenção em mais nada. Segurei a vontade de
engolir em seco. Não daria mais esse prazer a ele. Pernas, coração,
respiração, já estavam todos comprometidos.
Senti mais um sorriso se formar perto de meu pescoço. Então,
sua mão viajou até minha coxa, o que foi suficiente para confirmar
que não tinha mais controle sobre mim mesma. Eu estava
vulnerável a ele.
Como se não bastasse, depositou um beijo bem onde seu hálito
tocava segundos antes, me causando arrepios. Beijos no pescoço
certamente não eram meu ponto forte —pelo contrário, eram meu
ponto fraco. Ele sorria entre os beijos, que desciam da mandíbula à
clavícula. Se ele me mandasse ficar de pé, minhas pernas com
certeza não aguentariam o peso de meu corpo. Estavam fracas
demais.
— Vou aliviá-la de toda essa tensão — sussurrou em meu
ouvido e, então, moveu sua mão para o interior de minha coxa,
afastando ligeiramente uma perna da outra. Não pude mais prender
o fôlego, o que o fez mostrar sua satisfação através de um sorriso
preguiçoso.
Céus, como eu era vulnerável a ele.
Eu com certeza não estava mais tensa — bem, não mais do
jeito anterior, porque agora a tensão era inteiramente sexual. Eros
conseguia me excitar em questão de instantes. Em um momento,
meu ex não saía da minha cabeça. Em outro, eu só queria que Eros
me levasse para a cama.
Mas, pelo visto, ele estava bastante satisfeito com aquele jogo,
com minha vulnerabilidade. Estava prestes a implorá-lo que me
levasse para conhecer seu apartamento — ou o banco de trás, não
me importava —, quando ele pôs seus dedos um pouquinho só para
dentro da barra da minha jeans. Havia um certo prazer em brincar
daquele jeito, embora fosse quase um pecado.
Que Deus me protegesse.
Eros grunhiu ao ver o quão entregue eu já estava a ele. Tive de
respirar fundo duas ou três vezes, tentando manter o mínimo de
controle possível. Ele tirou os dedos de lá e apertou minha coxa,
logo levando seus lábios à minha orelha outra vez:
— Já está aliviada?
Assenti, logo percebendo o erro que tinha cometido. Deveria ter
dito não — aquela brincadeira estava boa demais para acabar assim
tão rápido.
— Não — disse, tola.
Senti seu sorriso crescer.
— Precisa se decidir, princesa. — Roçou caoticamente seus
lábios pouco abaixo da minha mandíbula. Olhando nos meus olhos,
ele virou meu rosto com delicadeza na sua direção. Céus, eu estava
completamente muda, o que não foi um problema para o que
aconteceu em seguida: Eros tomou meus lábios nos seus em um
beijo explosivo e sedutor.
Quando me dei conta, já estava montada nele, no banco do
motorista, enquanto uma buzina foi acionada na repentina troca de
lugar, o que nos fez interromper o beijo para sorrirmos em ironia.
Pude finalmente olhar dentro de seus olhos, que explodiam em
desejo como os meus.
Antes que sucumbisse ainda mais, eu disse:
— Tenho que ir. — O que, percebi, o surpreendeu.
Voltei ao banco do carona e abri a porta, deixando Eros de
sobrancelha erguida. Nos quarenta e cinco do segundo tempo, tinha
conseguido tomar o controle da situação, o que me fez sorrir e soltar
um Tenha uma boa noite antes de partir.
A ristóteles acreditava que a excelência era um hábito. Algo
que, se praticássemos bastante, todos atingiríamos. Eu
acreditava nele, e era por isso que estudava em todas as
minhas horas vagas, esperando, talvez, chegar a um posto que o
orgulharia.
Eu sempre tinha pensado muito nas coisas, de onde elas
vinham. Sempre as tinha questionado.
Queria entendê-las, desde muito cedo. Perguntava tantas
coisas para minha mãe que acreditava que aquilo era um dos
fatores para ter desistido de mim para ser mais uma filha exemplar.
Mas, bem, duas pareceram suficientes para ela naquele momento.
Sempre a enchera com De onde viemos? ou Já parou para
pensar que estamos em um universo?
“Já parou para pensar que…” parecia ser meu lema na infância.
Eu ficava um pouco triste quando não me escutavam ou quando não
tinham as respostas que eu queria. A verdade? Nem eu sabia quais
respostas eu queria.
Bem, tudo isso para dizer que: estava estudando Os desejos da
humanidade na grama verdinha no campus. Eu estava em uma das
linhas de Desejos materiais quando meu celular vibrou. Uma
mensagem.
Quando liguei a tela, seu nome brilhou. Nova mensagem de
Eros.
Cliquei na notificação e desbloqueei o aparelho, ansiosa.

Eros:
Sabe, eu posso te ajudar com isso.

Minha sobrancelha se ergueu, e eu demorei um pouco a


entender. Foi quando eu comecei a olhar em volta, mordendo o lábio
inferior, e o encontrei escorado no seu Audi prata, estacionado
desse lado da rua, pondo o celular no bolso traseiro da jeans. Logo
suas mãos estavam dentro da sua jaqueta e um sorriso predatório
se direcionava a mim.
Fechei o livro, esperando que ele viesse em minha direção.
Ele não veio, apenas ficou parado lá, me encarando. Me
chamando.
Quando ficamos frente a frente, ele se desencostou do carro e
disse:
— Podemos estudar sobre desejos à hora que quiser. Sou
especialista nos desejos carnais.
Ergui a sobrancelha, me perguntando se ele estava sendo
sarcástico ou se sabia mesmo sobre aquilo. Deduzindo a primeira
opção, falei:
— Você por acaso cursou Filosofia e não quer me contar? —
debochei com um meio sorriso.
Os dentes dele brilharam em um sorriso convencido, e algo nos
olhos dele me diziam que uma inteligência assustadora espreitava
ali. Em seguida, Eros abriu a porta do carona, dizendo:
— Quer dar uma volta?
Esquadrinhei-o. Ele parecia saber exatamente o que fazer,
como se tivesse planejado todo aquele dia. Eu não tinha nada
melhor para fazer — uma frase que teria decepcionado Aristóteles,
que teria dito: Prática, é disso que você precisa. Calei a voz dele em
minha mente e entrei no carro depois de um leve dar de ombros,
que correspondia a um é, pode ser.
De qualquer forma, estava com saudade daquele carro e da sua
potência.
Eros sorriu quando não disse que não.
Logo estava sentado ao meu lado, no banco do motorista.
— Aonde vamos? — perguntei.
Ele sorriu enquanto tirava o carro da vaga, confiante e sedento.
Parecia animado, como se fôssemos fazer algo de que ele com
certeza sabia que eu gostaria. Então eu comecei a ficar curiosa.
Ainda esperava pela sua resposta.
— Você já vai descobrir.
Revirei os olhos e dei um sorriso.
— Sério? Você aparece para me levar a algum lugar, que eu já
vou descobrir. Isso está me parecendo um sequestro — ironizei
enquanto olhava para seu rosto e sentia seu cheiro cítrico nas
minhas narinas, o qual parecia estar impregnado por todo o
automóvel, que curiosamente também tinha cheiro de novo.
Foi inevitável olhar para a quilometragem.
Cem quilômetros.
Fala sério.
— Quando comprou esse carro? — perguntei, curiosa e pronta
para tirar o coelho da cartola, ao desviar os olhos para ele e seu
sorriso cafajeste, que parecia dizer Isso pode muito bem ser um
sequestro.
Ele fez pouco caso:
— Em setembro.
Certo. Porque era quando ele tinha chegado à cidade.
Fazia sentido.
Mas ele podia ter apenas alugado um carro, a não ser que
quisesse ficar ali para sempre, o que eu achava improvável… ou
não. Porque era outubro, fazia pouco mais de um mês que ele
estava em Chicago. Fui tola ao me questionar se era por mim. E
ainda mais ao me questionar o que aconteceria comigo quando ele
partisse — era provável que eu voltasse a me concentrar nos
estudos. Porque eu andava meio avoada no último mês, raramente
tendo tempo para estudar desde que ele havia chegado.
— Você… não tem que voltar para Muito Longe? — questionei,
debochada.
Eros grunhiu, parecendo entediado com aquilo.
— Não estou querendo me preocupar com isso por enquanto.
Estou de férias.
Certo, férias. Ele havia mencionado isso antes.
— Não sinto saudades das férias. Acho elas… entediantes —
contei, tornando a olhar para os prédios em movimento.
— Mesmo? Meu trabalho costuma ter… partes chatas.
— O que você faz, afinal?
Ele ficou estático por um milésimo de segundo, quase que
imperceptivelmente. Seu corpo pareceu ficar tenso, como sempre
ficava quando falávamos sobre ele, o que me fez me perguntar se
havia algum tipo de ferida ali, na sua vida. Ou simplesmente algo
que ele não queria me contar.
— Cuido de uma empresa. — Deu de ombros, parecendo pôr
um ponto-final naquele assunto.
O que eu já imaginava.
Perto da praia, quando presumi que estávamos próximos, ele
entrou no estacionamento do clube náutico de Chicago. Eu o
encarei, confusa e de sobrancelha erguida. Ele não disse
absolutamente nada além de:
— Chegamos.
Quando saí do carro, olhei para a frente, para todos aqueles
barcos, lanchas e iates, enfileirados na água, em uma área fechada
que dava para o imenso lago Michigan. Embora imóveis sobre a
água, eles eram como imensos barcos de papel flutuando, todos
brancos. Eu encarei aquilo tudo, eram muitos barcos. Nunca havia
estado ali no ano após minha mudança para Chicago.
E, bem, eu não podia acreditar.
Não podia acreditar, porque, bem, Eros tinha me trazido até ali
— ou seja, era aquilo que ele queria me mostrar, era aquilo que
íamos fazer.
Olhei para ele, desacreditada, uma das sobrancelhas erguidas.
— Você tem a porra de um barco? — Não consegui segurar a
língua, sorrindo como gato, olhando nos seus olhos dourados como
ouro. Me perdi neles por um momento, os orbes que sempre me
impressionavam.
Com as mãos nos bolsos da jeans, ele deu de ombros.
— Tenho.
Eu dei um sorriso, no qual ele me acompanhou, achando minha
surpresa válida.
Nós andamos até o pequeno píer onde o seu estava. Não era
do tipo que tinha velas, era do tipo mais… esportivo. Luxuoso. Não
era só um barco, não era uma lancha, era a porra de um…
— Um iate, para ser mais preciso — ele completou meu
pensamento, esquadrinhando minha expressão desacreditada.
Não sabia por que estava tão impressionada com a riqueza e o
poder quando minha família também os tinha, embora talvez menos
— talvez fosse aí onde a ferida se abria: minha família, não eu.
Nunca me permitira mordomias, nunca fora daquelas garotas
endinheiradas mimadas pelos pais. Eu apenas… convivia com eles.
Não precisava de muito. Um celular, um computador. Poderia viver
por anos com os mesmos.
Mas Eros… Ele tinha muito poder — e dinheiro. Ele era dono de
si, da própria empresa. Podia fazer o que quisesse, conseguia o que
quisesse, bastava estalar os dedos.
Uma garota em sua cama? Bang.
Um iate? Bang.
Talvez fosse isso o que me intrigava.
— Pode subir, princesa. — Ele me ofereceu a mão para que eu
saltasse da madeira do pequeno píer para a madeira do iate, que
era enorme. Não tão imenso quanto aqueles de pessoas
multimilionárias, mas ainda assim enorme. Talvez ele fosse modesto
— logo quis rir com a suposição, porque ele era tudo, menos
modesto.
Eu aceitei a mão.
Foi rápido o contato entre nossas peles, mas o suficiente para
que queimasse, para que ameaçasse formigar. Lancei um olhar
demorado e degustador em sua direção, na altura de seus olhos.
Um breve deslize e — bang! — estava olhando para sua boca, que
estivera colada na minha dias antes. Eu ainda podia sentir seu
gosto. Um gosto que estava louca para sentir outra vez.
Olhei para a cabine de navegação e reparei estar vazia, sem
ninguém para comandar a embarcação.
— Quem vai… — Me virei para Eros, que, naquele breve
período de tempo, havia desenrolado o iate do píer e subido junto
comigo, e me interrompi. Minha sobrancelha se ergueu para ele.
— Comandar? — sugeriu. — Eu sou o capitão, princesa. —
Abriu um de seus sorrisos travessos e passou por mim para ir até o
lugar em que meu olhar estivera havia pouco. — Sinta-se à vontade.
Tinha uma pequena escada que levava até a cabine e à frente
do barco. Outra, para baixo, levava para o que pareciam ser
grandes cômodos, provavelmente quartos ou uma grande sala de
jogos. Ou ambos. Eu sorri, ainda não acreditando que Eros havia
me trazido para navegar nas águas do Michigan. Em pleno outubro,
outono. O que não deixava de ser divertido.
Em geral, as águas do Michigan no verão eram preenchidas por
lanchas carregadas de jovens ricos de sungas e biquínis, com
cervejas caras em mãos — se quisessem se mostrar ricos, que
comprassem bebidas mais sofisticadas, porque era claramente o
que queriam que todos soubessem. Seus corpos pareciam gritar Ei,
somos ricos!
Que bom pra vocês. Agora vão tomar naquele lugar.
Era o que eu tinha vontade de dizer, mas aquilo não chegaria
aos seus ouvidos ao menos que estivesse com eles nas lanchas
luxuosas. Mas, ora, o que eu estava querendo dizer se estava
naquele momento na porra de um iate? Com um cara gostoso, que
sabia comandar iates? Eis a questão.
Apareci ao lado de Eros na cabine de comando, a embarcação
já se deslocando ao Michigan em si; à sua imensa extensão, que
parecia não acabar mais. Aquele era um dos maiores lagos dos
Estados Unidos, um dos Grandes Lagos. Era de águas claras,
paradisíaco.
— Só andei de barco uma vez. De lancha — comentei, olhando
para ele, para seu rosto perfeito, reparando no seu jeito confiante de
ser o capitão. Ele era bom em ser cafajeste e mulherengo. Duas
características que, de fato, me atraíam. E muito.
— Mesmo? — Era ele agora quem estava desacreditado.
Assenti. Era verdade.
Minhas irmãs que haviam sido aventureiras e tudo o mais antes
de quererem desesperadamente se casar e ter filhos, o que eu
achava muito estranho, mas que tinha apagado um pouco da sua
chatice… por um lado; pelo outro, tinham aderido à chatice
matrimonial. Haviam se tornado aquelas donas de casa fofoqueiras
e ricas que prestavam atenção em todos ao seu redor, prontas para
soltar alguma fofoca, qualquer que fosse. Fulano está traindo fulana.
Fulano comprou um apartamento milionário.
Era entediante.
Eram aquelas perfeccionistas que gostavam de ter seus lares,
seus maridos e seus filhos devidamente em ordem. Do tipo que
arranjava coisas para se manterem ocupadas, porque trabalhar não
era uma opção para elas — que Deus as livrasse.
Antes, eram elas que andavam de lancha, iam a festas,
postavam fotos seminuas nas redes sociais, faziam garotas
chorarem por querer ser iguais a elas e garotos se contorcerem para
dormir com elas.
Mas então, lá pelos vinte anos, tinham se tornado aquelas
coisas chatas.
— Bom saber que serei sua segunda viagem de barco. — Eros
me lançou um sorriso malandro, do tipo que deveria sempre lançar
às garotas, a todas que ele em breve levaria para a cama. Sim,
esperava que sim.
O iate já estava propriamente dentro do Michigan.
E, para minha surpresa, hoje o dia estava lindo. Com direito a
céu azul sem nuvens, um verdadeiro milagre. Era um daqueles dias
para se aproveitar, antes que acabasse a qualquer momento, mas
eu sentia que o dia inteiro seria daquele jeito.
— Você parece precisar de um contador. — Lancei um sorriso a
ele.
Eros ergueu uma sobrancelha, controlando o timão. Daquele
jeito, seus músculos pareciam saltar ainda mais para fora.
— Você comprou um carro, um iate e provavelmente seu
apartamento também.
— Eu aluguei o apartamento. — Então, é, ele havia comprado
um carro e a porra de um iate.
Arqueei a sobrancelha, provocativa.
— Estou surpresa. — Coloquei a mão no peito.
Ele sorriu de canto, então falou, olhando rápido para as águas
do Michigan adiante:
— Vá lá para a frente. — E redirecionou os olhos âmbar outra
vez para mim.
Franzi a testa.
— Tudo bem. — Dei de ombros, não questionando.
Quando saí da cabine, meus cabelos foram jogados para trás,
uma brisa fria batendo em meu rosto e corpo. Graças a Deus, eu
estava com um fino casaco de tecido, preto como a maioria de
minhas roupas.
Observei a extensão do Michigan enquanto caminhava
lentamente até a ponta, abraçando-me, o barco ganhando
velocidade. E era Eros quem estava me levando ao Michigan, algo
que eu nunca tinha feito desde que havia chegado a Chicago. Tinha
passeios de barco ali, mas nunca me interessara.
O sol batia em meu rosto junto com o vento que balançava
meus cabelos, quente e delicioso, como se eu fosse uma bateria
deixada recarregando. Para falar a verdade, eu precisava daquilo,
de um descanso.
Então, o iate parou no meio do Michigan.
Um hálito quente sussurrou ao meu ouvido, por trás de mim.
— Fascinare te mihi.
Me virei para ele antes que o arrepio me subisse à espinha.
— O quê?
— Disse que você é linda — falou, um sorriso no rosto, o sol o
iluminando. Nunca tinha visto seus olhos tão dourados como
naquele momento. Pareciam ouro derretido. Preciosos, sem dúvida.
Eu sorri, me sentindo esquentar, mas dessa vez não por causa
do sol.
Estávamos frente a frente, a centímetros de distância um do
outro. Poderia facilmente depositar minhas mãos em seu peito.
Poderia facilmente beijá-lo. Em vez disso, fiquei encarando-o,
tentando cogitar o elogio. Disse que você é linda.
— Em latim — foi tudo o que eu consegui dizer, mais uma
constatação do que uma resposta àquilo.
— Em latim — ele confirmou, sua voz baixa como uma carícia.
Não desviei os olhos dos dele nem por um segundo sequer.
Estávamos sozinhos no meio do maldito Michigan. Ele certamente
tinha preparado aquela surpresa para mim para ter aparecido na
universidade e me levado consigo tão de repente.
Você vai descobrir em breve.
Eu tinha descoberto… e adorado.
— Quais outras línguas você fala?
Eros me ergueu a sobrancelha em um desafio.
Muito bem.
— Espanhol? — Aceno. — Hum… Italiano? — Aceno. —
Francês? — Aceno.
Enquanto eu perguntava, seu sorriso aumentava… e ele falava
o que parecia ser “sim” à maneira que as línguas eram citadas.
Estava desacreditada já na parte do italiano.
— Caramba! E você… você é fluente em todas essas línguas?
— Sou. — Deu de ombros, como se não fosse nada de mais.
Ele parecia estar aberto a mim naquele momento, mas, por
algum motivo, não quis fazer nenhuma outra pergunta. Estávamos
perto demais. Eu não conseguia me controlar àquela distância dele
— centímetros. Eros despertava uma curiosidade de gato em mim,
uma chama sendo acendida e aumentada a cada vez que nos
encontrávamos — embora já tivesse feito muitas perguntas a ele.
— Obrigada. — Recebi uma sobrancelha erguida de volta. —
Pelo elogio — expliquei, o que fez um sorriso crescer no seu rosto
bonito, que por sua vez fez meu corpo estremecer. Tão próximo, ele
podia ter reparado no efeito causado. Aquele efeito que exibia o
letreiro Realizado com sucesso! acima da minha cabeça para que
ele soubesse.
Mas, então, ele se afastou de mim e olhou para o horizonte
cheio d’água, pondo as mãos nos bolsos em seu jeito confiante e
intimidante. O jeito que me fascinava, que me faria admirá-lo por
horas e horas. E, ali, ele parecia uma obra de arte, sua beleza ainda
mais marcante à luz do sol.
— O importante não é viver, mas viver bem — comentou,
provavelmente se referindo à sua vida. Mas, calma, eu conhecia
aquela frase.
— Você acabou de recitar Platão?
Seus olhos se voltaram para mim, acompanhados de um
sorrisinho convencido.
— Não é sobre ele que estuda?
— Sim — respondi apenas, talvez em choque demais para
responder na hora. Eros definitivamente não cansava de me
surpreender. E, bem, eu estava gostando muito daquilo. — Você
pesquisou?
— Não precisei. — Ele ainda sorria.
Eros, um culto. Quis rir, porque nem em mil anos eu teria tido
aquela ideia dele — não quando, naquele dia de setembro, no bar,
ele parecia um metido em seu terno Armani. Era de se achar graça,
embora houvesse deparado com ele no Instituto de Arte.
— Você é cheio de surpresas.
— Não faz ideia do quanto, princesa.
Quis engolir em seco, querendo muito descobrir quais eram as
outras.
Então, ele se aproximou mais e mais de mim, do meu corpo já
tenso. Eros definitivamente pareceu estar em todos os lugares
naquele instante. Eros e eu éramos como mão e luva:
encaixávamos.
— Não vai lá ser o capitão? — Lancei um olhar e um aceno de
cabeça à cabine, provocativa e desafiadora. Eu sabia que Eros não
sairia de perto de mim tão cedo. Os caras normais não costumavam
fazer isso… até ele, que parecia ir contra todos os conceitos de
normal. Porque ele era tudo, menos isso.
E, convenhamos, eu não queria que ele fosse lá ser o capitão.
Eu o queria ali, comigo, embora Eros comandando aquele iate fosse
uma verdadeira perdição.
Ele finalmente apertou minha cintura, colando nossos corpos.
Um grunhido escapou por dentre meus lábios enquanto um olhar
sanguinário era lançado a mim. Estávamos sedentos.
— Você quer que eu seja o capitão onde, para ser mais
específica? — indagou em um sussurro direcionado ao meu lóbulo,
onde seu hálito quente tocou, fazendo-me morder os lábios.
Controlei minha mão para que ela não fosse até seu peito.
Então, me virei de costas para ele — sim, estragando o
momento — e pigarreei, observando os arranha-céus de Chicago ao
longe, não a ponto de parecer como pingos no horizonte. Estavam
mais para dedos.
— Posso navegar? — Tive a ideia de repente e desviei os olhos
para ele, que veio ao meu lado.
— Com toda a certeza, princesa. — Sorriu e então fui na frente,
reparando no seu olhar ferino, talvez estacionado na minha bunda.
Ele apressou o passo para me acompanhar e, então, já
estávamos lado a lado. Só que eu fui a primeira a chegar à cabine
de comando, o timão me encarando. Um timão de madeira polida,
chique como o resto do barco.
O comandante navegava de pé.
Tinha telas e botões aqui e ali, que eu definitivamente não sabia
para que serviam — estaria fodida se fosse a única pessoa possível
para navegar, os tripulantes fodidos junto comigo.
Fui até o objeto com Eros logo atrás, cuidando de todos os
meus movimentos.
Quando segurei nos pedaços de madeira saltados, os braços do
timão, Eros pôs suas mãos por cima a fim de me guiar. Ele
pressionou seu corpo contra o meu. Estávamos em um jogo de
quem cairia primeiro, e eu não desistiria. Faria o possível para que
minhas pernas não cedessem, embora fossem fracas como eu.
Ele inclinou sua cabeça para a frente, ao lado de meu pescoço,
vulnerável naquele momento. Seu hálito chegou à minha pele assim
que falou:
— Só segure com força. — Senti um sorriso se formando no
rosto do maldito. Meu olhar estava estático para além da janela de
vidro à minha frente, para o lago. Se movesse o mínimo que fosse a
cabeça, nossos lábios se encostariam… e então não teria mais
volta. E ele teria vencido aquela rodada.
Eros continuou preso a mim pelo que pareceu uma eternidade
— uma boa eternidade —, até que, finalmente, o iate começou a
navegar mais rápido, em linha reta. Ele me guiou para dobrar à
esquerda, dando uma curva acentuada. Sua boca estava próxima
demais à pele sensível do meu pescoço. Me segurei para não
suspirar.
— Muito bem — disse, baixinho, e me apertou um pouco mais.
Tive de morder meus lábios mais uma vez.
Não sabia se feliz ou infelizmente estávamos voltando à área
das embarcações, um grande estacionamento para barcos. O vento
a toda velocidade do lado de fora da cabine com certeza faria uma
bagunça e tanto nos nossos cabelos. O céu limpo já não era mais
limpo, estava ganhando nuvens — para minha não surpresa, cinzas
e carregadas.
Estava em época de neve, não de chuva, mas parecia que era a
única coisa que parecia agradar quem quer que estivesse lá em
cima.
O vento agora estava na cidade. Não mais uma brisa marinha,
mas sim um vendaval, daqueles que anunciavam tempestades. Eros
acelerou seu Audi prata enquanto seguia a rota até meu
apartamento, parecendo ansioso, mas no mau sentido. Ainda não
conseguia entender seus picos de emoção.
Quando enfim chegamos em frente ao meu prédio, interrompi
minha mão de ir até a maçaneta enquanto Chicago se revoltava aos
poucos ao nosso redor, o céu ficando definitivamente cinza.
Parecia que, sim, tivéramos de aproveitar o tempo enquanto
ainda estava bom — porque, agora, o pessoal voltava para dentro
de casa ou do prédio em que trabalhava às pressas, temeroso
quanto à tempestade que estava por vir.
— Você disse que não mora muito longe daqui. — Me virei para
ele, encarando-o direto nos olhos de gato.
Ele abriu um sorriso e ligou o pisca.
— E não moro.
Já dentro do elevador, ficamos um tempo em silêncio,
esperando por dar o plim no penúltimo andar, o nono. Estávamos
completamente estáticos dentro do elevador, encarando a porta,
mas bastou ele dar mais um passo para o lado, encostando sua
mão na minha perna infelizmente coberta, que não nos aguentamos.
Eros me empurrou contra a parede do grande elevador vazio,
me apertando pela cintura, uma de suas mãos em meu rosto. Meus
braços, envoltos em seu pescoço. Ele me apertava com força, me
beijando da mesma forma: com selvageria. Nossas línguas se
entrelaçavam com necessidade e, naquele momento, eu estava
pouco me fodendo para quem tinha ganhado aquele jogo de quem
cedia primeiro.
Nós chegamos aos tropeços e aos beijos quando o elevador se
abriu em seu andar, direto em seu apartamento.
Eu andava de costas enquanto ele me beijava cálida e
ansiosamente, até que meu corpo se chocou contra algo, que logo
depois percebi ser uma mesa de sinuca. Não deu tempo de olhar
em volta do apartamento, eu estava concentrada única e
exclusivamente naquele beijo astuto e caloroso.
Eros decidiu me sentar em cima da mesa. Minhas pernas se
envolveram no seu corpo torneado, ao passo que minhas mãos
percorreram suas costas. Eu estivera sedenta por aquele momento
desde que o encontrara me olhando encostado no seu Audi em seu
modo mais confiante.
Ansiava pelo seu toque — que, no momento, consistia na minha
cintura e na minha bunda. O fôlego me escapou quando Eros me
tirou dali, presa a ele como chiclete. Ele subiu a escadaria de seu
apartamento comigo pressionada contra si enquanto trocávamos
beijos e ele me segurava firmemente pelas coxas.
Foi então que colidimos contra uma cama, uma macia e
majestosa cama, e presumi ser seu quarto — mas não tinha tempo
para presunções no momento. Ele avançou contra mim, fazendo
minhas costas se chocarem contra ela. Então, por cima, me beijava
como nunca, como se quisesse ter feito aquilo havia muito tempo —
e eu sabia que sim.
Ele afastou os lábios dos meus para olhar para minha blusa —
meu casaquinho já estava jogado no chão da sala — e, então, para
mim de novo. Eu lhe lancei um sorriso, um que permitia qualquer
coisa que quisesse fazer comigo.
Me sentei novamente, fazendo-o recuar. E então tirei minha
blusa, revelando um sutiã de renda preta. Ele esquadrinhou meu
tronco para, só então, me encarar nos olhos mais uma vez, me
atacando com mais um beijo. Deitada sobre a cama, ele foi
descendo o beijo: da boca ao meu pescoço; do pescoço à clavícula;
da clavícula à barriga. Até parar, então, nos botões da minha jeans e
abri-los sem perguntar. Sem selvageria dessa vez, mas sim
necessidade.
Ele precisava daquilo.
Eu precisava daquilo.
Ele logo se livrou da camiseta, como se fosse um alívio retirá-la.
Eu parei um segundo para admirá-lo, e ele a mim. Sempre
imaginara como seria seu corpo sem roupas. Passei a mão pelo seu
peitoral de pele lustrosa, descendo vagarosamente. Que visão.
Trovões começaram a ressoar do lado de fora e, dessa vez, ele
não deu bola.
Porque estava completamente focado em mim e em meu corpo.
— Eros — saboreei as sílabas da palavra em minha boca,
sussurrando-a ao seu ouvido em um sopro. — Quem é você, Eros?
Ele pressionou seu corpo contra o meu em resposta, uma mão
em minha cintura e outra em meu rosto. O mundo se revoltava do
lado de fora enquanto nós nos movíamos no mesmo ritmo. Um raio
cortou o céu naquele momento, como se nossa união fosse
catastrófica. Podia vê-lo de relance pela janela ainda aberta, as
cortinas esvoaçando.
— Prinkípissa — sussurrou ao meu ouvido, em grego.
E foi o que senti naquele momento, ao som de trovoadas e da
água da chuva: uma completa catástrofe, pronta para nos atingir em
cheio.
O bservei enquanto Psiquê dormia como um bebê,
profundamente. Meus lábios se repuxaram quando pensei A
noite deve ter sido boa. Porque tinha sido. Não boa — essa
palavra parecia ser tão fútil para descrever aquilo —, mas
maravilhosa. E, quando tinha reparado, ela já havia pegado no
sono.
Agora, pela manhã, com os primeiros raios de sol invadindo o
quarto, Psiquê parecia uma jovem e promissora deusa. Ela era
linda. Não só mais linda que todas as mortais, como também a mais
linda das criaturas existentes entre Mundos — mortais ou não.
Embora fosse a mais pura verdade, o que lhe havia dito ao pé
da orelha não tinha sido que ela era linda. Eu lhe havia dito que
estava encantado por ela. Porque Psiquê era tão diferente, tão
fascinante, tão incrível. Ela falava com confiança, me desafiava com
determinação, deixava claro que ela quem daria todos os primeiros
passos.
E eu deixaria.
Assim como deixaria de lado minha antiga vida no Mundo
Mortal: garotas, garotas e mais garotas, minha cama sempre
quente. Naquela festa, a primeira em que fora desde então, a loira
estava jogando sua graça para cima de mim — e com graça, queria
dizer generosos seios —, parecendo determinada a qualquer coisa
para que eu a beijasse. Então, eu a beijara por pena.
Mas algo dentro de mim queria que Psiquê visse, e eu
começava a me perguntar por quê. Por que eu me importava tanto
com a opinião de Psiquê Di Laurentis, apenas uma linda mortal?
Ela ainda era um enigma a ser desvendado.
E minha esperança.
Embora Afrodite nunca desistisse de uma ideia, porque não
seria diferente dessa vez. Quando minha mãe colocava algo na
cabeça, não havia nada que a tirasse dali. Ela concluiria a missão
ela mesmo se precisasse, o que eu certamente não desejava para
Psiquê — seria o caos. Mas, assim que havia posto os olhos nela,
naquela mortal dançante e desafiadora, soubera que não
conseguiria fazer aquilo. Em algum lugar da minha cabeça, um lugar
enterrado, uma voz insistia em me gritar que escapasse daquilo o
mais rápido possível. Que lançasse um encanto sobre Psiquê e
voltasse ao Olimpo, dizendo que, sim, a missão estava concluída.
Que, sim, eu estivera tirando umas férias.
Mas, para ser sincero, àquela altura eu estava pouco me
fodendo para minha missão — algo que surpreendia meu eu filhinho
de mamãe — e para o que aquilo significaria para Afrodite — algo
ruim, muito ruim.
Porque eu só tinha olhos para uma coisa, e ela estava
dormindo, linda, à minha frente, o enigma a ser desvendado muito
em breve. Então, às 9h e antes que ela acordasse, me levantei e fui
preparar o café da manhã, animado.
Eu estivera admirando-a por uma hora, examinando cada
mínimo e delicado detalhe de seu rosto.
A bri os olhos com a breve sensação de que alguém estivera
me observando. Olhando ao redor, em um breve instante me
perguntei onde estava — e então as memórias da noite
anterior me atingiram com força. Meu sorriso se desfez assim que
percebi que Eros não estava mais ao meu lado. Não porque eu não
gostara daquilo, mas por pura surpresa.
Eu tinha dormido ali.
Tirei as cobertas de cima de mim e fui direto ao meu celular,
lembrando-me de que não tinha avisado Margot no dia anterior
sobre nada.

Margot:
Onde vc tá????

Cheguei em casa no meio da tempestade e vc não tava. Pf, que


minha amiga esteja segura, amém. Me avisa qnd estiver disponível.

Já tô indo aí. Foi mal não ter avisado.


Nisso, olhei ao redor, esperando de verdade que Eros
continuasse onde estava. Tirei a camisa branca que ele tinha me
emprestado na noite anterior e pus as minhas roupas o mais rápido
que consegui, pegando minha bolsa e jogando o celular dentro dela.
Olhei os dois lados do corredor antes de descer as escadas de
mansinho, tendo cuidado com o barulho.
O apartamento tinha pé-direito alto, revestido por paredes
brancas e móveis neutros — menos seu banheiro, que era
ornamentado por mármore preto. A sala ficava logo à frente do
elevador. A escada, ao seu lado direito.
Ouvi um barulho vindo da cozinha e desviei os olhos até lá.
Através do arco preto da cozinha, vislumbrei Eros diante do fogão.
Consegui também sentir cheiro de comida. Ele estava preparando o
maldito café da manhã. Ele sabia cozinhar.
O que tornou mais fácil minha saída dali.
Quando passei pela mesa de sinuca, não consegui resistir a um
sorriso, lembrando-me da noite anterior.
O elevador não demorou muito a abrir suas portas.

— É, eu já imaginava. — Destampando o vinho na nossa


minúscula ilha da cozinha, Margot deu de ombros quando contei
onde tinha passado a noite, eu sentada à sua frente, observando-a.
Ela continha uma expressão convicta e ao mesmo tempo
preocupada no rosto. — Mas você deveria ter me avisado que ia
foder. Maaaas… finalmente desencalhou! E com um bonitão
daquele. — Pensou por um instante e suspirou. — Pensando bem, o
termo correto seria gostoso — disse, convicta de suas palavras, o
que me fez achar graça. Logo estava servindo duas taças gordas de
vidro.
— Vá se foder. — Dei um riso nasalar. — E o Justin Bieber? —
Minha sobrancelha se ergueu.
Minha amiga suspirou, um suspiro do tipo animado discreto. Ali
eu percebi que ela estava gostando mesmo dele. Bem, ele não era
um cara ruim. Era bonito e engraçado, ponto. Não reclamava de
suas coisas de Amiga do Meio-Ambiente. Na verdade, até ajudava,
sem reclamar.
Devia ser isso que tinha encantado Margot.
Nenhum universitário ligava para o meio-ambiente.
— Hum, nós estamos… indo. Ele é legal.
Ergui uma sobrancelha, exigindo mais dela.
— Tá legal, eu gosto dele. Satisfeita? — Suspirou, bebendo do
seu vinho vermelho-sangue.
— Então somos duas desencalhadas — disse com um sorriso
besta no rosto, lembrando-me da noite anterior. Eu gostava de Eros.
Ele me intrigava de um jeito muito bom.
Ela parou de beber e estacionou seus olhos sobre mim, mas a
taça continuou na sua boca por dois segundos a mais. Então, seus
lábios subiram em um sorriso malicioso, que deveria me fazer ficar
vermelha — se fosse uma das garotas da universidade da festa
mascarada.
— Eu estava certa, não estava?
Ergui uma sobrancelha e dei um gole demorado no meu vinho.
Com certeza. Eros tinha sido o melhor sexo que eu já tivera.
— Eu estava! — Sorriu, satisfeita. — Então você teve uma ótima
noite.
Dei de ombros.
— Tive.
— Só cuida para não se apaixonar.
Achei graça.
— Até parece.

Nós duas decidimos ir ao píer Navy depois de nossas últimas


aulas do dia, ela como motorista dessa vez, já que eu aleguei ter
sido várias vezes consecutivas. Margot não gostava de dirigir, mas
não insistiu.
Queríamos dar uma volta no pequeno parque de diversões e
comprar algumas das cervejas especiais que eram vendidas ali. A
primeira coisa que fizemos quando chegamos foi entrar na loja de
cervejas. Margot e eu nunca tínhamos provado, portanto estávamos
curiosas quanto ao seu sabor e fama. Nenhum turista saía de lá
sem levar garrafas para casa.
Margot olhou o cardápio de cervejas com agilidade. Olhei por
cima de seus ombros. Tinha sabores ali de cuja existência eu não
fazia nem ideia. Sempre bom conhecer coisas novas.
— Vou levar uma cerveja de frutas vermelhas e… hum… —
Passou seus olhos mais uma vez pelo cardápio, fazendo seu dedo
tocar um de seus últimos itens. — Cerveja preta.
O atendente foi atrás das tais cervejas e voltou com uma sacola
em papelão, para a qual Margot olhou com certa raiva. Ela negou
com a cabeça, o que fez o homem de no máximo trinta anos erguer
uma sobrancelha.
— Prefiro colocar aqui. — Margot puxou sua bolsa de pano para
perto de seu peito com um sorriso protetor.
Ao contrário de outros clientes, saímos sem a sacola da loja em
mãos, mas sim com duas garrafas de cerveja enfiadas na bolsa de
pano de Margot. Em seguida, ela apontou para a roda-gigante.
— Acho que tudo o que precisamos fazer é beber cerveja lá em
cima. — Olhei para a enorme e muito alta roda-gigante, que ficava à
frente de um milagroso e limpo céu azul. Não discordei.
Já a postos no brinquedo, apenas esperando a grande máquina
funcionar, disse a ela:
— Justin é um cara legal. — Minha amiga ergueu a
sobrancelha, com as duas garrafas nas mãos. Entregou a cerveja
preta para mim. — Ele com certeza vai pedir você em namoro.
Margot pareceu tensa.
— Não sei se sou do tipo para namorar.
— Você recusaria? — insinuei, duvidosa, minha sobrancelha
erguida.
Demos um gole em nossas cervejas. Fizemos uma careta e
encaramos uma à outra, logo dando de ombros e falando Não é
ruim quando, na verdade, também não era bom.
— Não sei — ela respondeu, dando mais um gole. — Acho que
não. Ele é engraçado e bom de cama, mas ainda é muito cedo.
Lancei um olhar duvidoso a ela.
— Vocês se encontram praticamente todos os dias.
— Você e Eros também — retrucou.
Ficamos um tempo em silêncio, nos encarando, até que ela
perguntou:
— Você recusaria?
Pensei por um instante. Nós funcionávamos, jogávamos em
perfeita sintonia… mas era só isso: um jogo. Ambos queríamos
vencer. Falávamos e fazíamos o que queríamos sem nos
importarmos. Éramos como dois pássaros libertos de suas gaiolas:
estávamos aproveitando aquela nova sensação ao máximo, sem
deixar a oportunidade passar, mas que sabiam que em breve
voltariam a viver atrás das finas grades de ferro.
E, bem, não nos conhecíamos como prisioneiros, mas sim
livres.
Encarei Margot por um bom tempo, por fim respondendo:
— Estamos nos divertindo. Só isso.

Pela noite, Margot se mandou para seu quarto, alegando ter que
se arrumar pro Justin Bieber. Eles iriam para o Esquina naquela
noite, programa de casal, embora ainda não tivessem oficializado.
Quando ela saiu, desejei que se divertisse e então recebi uma
notificação.
Já comecei a sentir os efeitos de Eros Homem de Negócios —
esse seria seu sobrenome enquanto não descobrisse o verdadeiro
— somente com aquele simples vibrar de celular. Peguei ansiosa o
aparelho na mão, esperando mais uma de suas cantadas bem-
feitas.
Quando olhei para a tela, vi que estava completamente errada.
Minhas costas ficaram eretas.
Kurt Monaghan tinha curtido uma de minhas fotos, uma de
milhares de anos antes, em que eu olhava para o céu no meio da
neve de Chicago, no Millenium Park — havia tirado aquela foto logo
depois de ter terminado com ele.
Uma sensação gelada percorreu minha coluna. Teria ele me
visto no dia em que eu e Eros saíramos para assistir ao seu jogo?
Pensei tolamente que não tinha contado a Margot sobre isso.
Não gostei nem um pouco daquilo. Afinal, Kurt Monaghan não
curtia minhas fotos havia a droga de um ano.
P or que raios ele havia curtido uma de minhas fotos? Para ter
curtido logo a de um ano antes, ele devia estar pensando em
mim, passeando pelo meu Instagram. Senti arrepios ao
pensar nisso no meio da aula. Eu não conseguia prestar atenção em
absolutamente nada.
Sabia que era um pouco idiota da minha parte ficar pensando
naquilo, mas era Kurt. Meu maldito ex-namorado do ensino médio.
Curtindo minha foto depois de um ano do nosso término. Ele nem
curtia minhas fotos, nenhuma — estava nem aí para isso, era só
mais um fato. Eu nem prestava mais atenção nele e na sua vida
corrida de atleta. Queria mais que ele fosse pro inferno, estava
realmente pouco me fodendo para ele.
Ele tinha me abandonado pelo basquete.
Bem, era o basquete ou eu. Quem teria escolhido uma pessoa
ao invés de uma coisa, não era mesmo? Marx chamava isso de
reificação e nunca estivera mais certo. Nunca concordara tanto com
ele. Merda.
Quem em santa consciência pensava no ex?
Foi então que a coisa ficou bizarra: eu ouvi o nome de Eros
justo no momento em que estava pensando no meu ex. Eu
sintonizei, a atenção focando naquilo. Por que meu professor estava
falando de Eros?
— A mitologia greco-romana continua muito presente, mesmo
após quase três mil anos de existência, e nos traz muitos
significados. Eros, por exemplo, é uma interpretação do desejo
sexual feita pelos indivíduos de setecentos anos antes de Cristo e
em diante. Ele tinha sete irmãos: Adrestia, Harmonia, Anteros,
Himeros, Pothos, Fobos e Deimos. Afrodite gostava igualmente de
seus filhos, mas Ares tinha seus favoritos, aqueles que podiam
assustar seus inimigos
Há, engraçado.
Acabei de perceber que Eros também tinha sete irmãos, duas
mulheres e cinco homens. E o pai de Eros também tinha seus
preferidos — embora já tivesse lido sobre isso naquele livro sobre
mitologia greco-romana que tinha alugado da biblioteca da
universidade.
Fiquei — muito — curiosa e surpresa pela semelhança.
Talvez eu devesse ler mais livros sobre a mitologia greco-
romana, afinal.

Estava cansada quando cheguei ao apartamento vazio e frio


que dividia com Margot.
Minha amiga estava curtindo muito no de Justin Graham, que
era mais engraçado de chamar de Justin Bieber. Ele até tinha um
cabelo compridinho. Ri com a lembrança, descalçando meus pés e
tocando na madeira fria, que me causou arrepios e me fez abraçar-
me com força por cima do sobretudo cinza que vestia.
Meus pés, orelhas e mãos estavam gelados. Imploravam por
calor, por alguma lareira quentinha ou algo quentinho em que
segurar.
O tempo lá fora estava impassível. Frio, mas — ainda — não
congelante. Ventoso e nublado, como quase sempre no outono. Não
ficaria surpresa com uma tempestade de neve logo em novembro —
isso já tinha acontecido antes.
Pendurei meu sobretudo no cabideiro próximo à porta e fui
esquentar água para um café quentinho. Era tudo pelo que meu
corpo implorava. Eu precisava me aquecer. Pus a chaleira sobre o
fogão e esperei enquanto pegava o pó de café e uma xícara de
companhia.
Olhei para a janela, que dava para um prédio. Eu queria que
nevasse. A neve de Chicago era linda e brilhante — como todas as
outras, na verdade —, mas ela trazia ainda mais beleza àquela
cidade inquieta. O Millenium sempre se alegrava, oferecendo pista
de patinação, que enchia toda vez. A cidade ficava mais
aconchegante. Me dava a sensação de casa.
Não propriamente a minha casa — bem, era a casa dos meus
pais. Não a considerava como lar, porque nunca me sentira muito
bem lá. Me sentia uma intrusa, alguém que tinha sido convidada a
desfrutar daquilo tudo por pena.
Suspirei enquanto a chaleira chiava, um grito estridente e
agudo.
Minhas mãos me agradeceram quando peguei a xícara de café
puro, já passado e pronto. Eu bebericava enquanto pensava em
uma pessoa: Eros. Nós não nos víamos desde o dia anterior, desde
que tivéramos nosso momento de diversão no incrível apartamento
dele, quando o céu se agitava como uma canção que seguia nosso
ritmo único.
Três batidas lentas soaram à porta, e minha cabeça se virou até
lá, minha sobrancelha se erguendo. Coloquei a xícara na pia e
destranquei a porta, dando de cara com aquele que estava sempre
em minha cabeça.
Eros sorriu, escorado no batente. Um sorriso torto e
estonteante. O sorriso que me fazia ter certeza de que não
precisaria mais estudar desejos carnais, porque a resposta estava
bem ali; não só no sorriso, mas nele todo.
Meus lábios se repuxaram como os dele.
— Em que posso ajudá-lo? — perguntei pela porta entreaberta,
uma que ele parecia querer arrancar fora naquele mesmo momento,
seus olhos queimando em chamas divertidas e vertiginosas.
— Não imaginei que fosse o tipo que sai de fininho — contou,
seus olhos presos nos meus. Algo bem ali, naquela imensidão
dourada, me dizia que ele já imaginava, sim. A blusa cinza-escura
de algodão e de manga comprida ressaltava os músculos que
espreitavam sob ela. Seus braços estavam cruzados, folgado.
Lambi meu lábio superior, talvez um pouco ansiosa.
— Também sou cheia de surpresas — disse, lembrando-me das
palavras de dias antes, e sorri, provocante.
Seus braços se descruzaram e ele avançou, me obrigando a
abrir toda a porta para que ele pudesse passar.
Ele parou bem à minha frente.
— Eu ia levar o café da manhã para você, princesa.
Engoli em seco, me lembrando bem disso.
Decidi manter a boca calada, ao passo que ele foi diminuindo a
distância entre nós, nossas respirações se entrosando mais e mais
a cada passo. Ele não podia jogar aquele jogo como se eu fosse a
maldita presa. Eu não deixaria.
Por isso, fui eu quem dei o último passo, aquele que nos fez
ficar com os corpos quase colados. Uma maldita tentação. Nossas
respirações estavam perigosamente entrelaçadas. Tive de reunir
toda a força que tinha para encará-lo bem nos olhos, mas quem
falou primeiro foi ele:
— Só tenta não ficar pensando muito naquela noite. Pode
atrapalhar seus estudos. — Ele deu um sorriso sarcástico de quem
sabia que tinha minha total atenção e devoção… porque eu estava
devota a Eros, e não havia força no mundo que desconstruísse
aquilo, fosse o que fosse.
Minha respiração falhou por um instante.
Era bem claro que eu rebobinava e rebobinava aquela noite em
seu belo apartamento. Suas mãos passeando pelo meu corpo, seu
hálito quente tocando meu lóbulo, seu sorriso selvagem e
predatório. Eu nunca conseguiria tirar todos aqueles detalhes da
minha mente, e ele sabia muito bem disso.
Eros me secou com o olhar por um instante, apoiado de forma
casual ao batente da porta, seus braços mais uma vez cruzados de
modo a ressaltar seus belos e emoldurados músculos. Ele era
grande, muito grande. Engoli em seco diante de sua beleza
intimidadora.
— Até mais, princesa — disse, simplesmente, desencostando-
se da madeira gasta pelo tempo e me deixando ali, sozinha, de
queixo caído. Foi embora como se não fosse nada de mais, o que
não passava de um gesto provocante da sua parte, atiçando minha
curiosidade em relação a ele.
Ele estava gostando muito, nos últimos tempos, de fazer saídas
dramáticas e de me deixar plantada como uma árvore em sua deixa.
Maldição.

— Parece que alguém se divertiu hoje — Margot disse ao


chegar no apê e me ver sentada no sofá, sorrindo, o olhar perdido
em meio a um programa de TV de que eu não fazia a menor ideia
enquanto segurava minha taça de vinho próxima à boca.
Desviei minha atenção para ela, um pouco desnorteada, e tirei o
maldito sorrisinho d.
Estava tão na cara assim?
— Foi só uma visita.
Margot se sentou e me encarou, o que me fez também olhar
com afinco para ela.
— Você… tá gostando dele? — perguntou, o que me fez franzir
a testa, um pouco atordoada pela insinuação. Ela tirou a bolsa do
ombro e a deixou do seu lado no sofá. — Ele não parece ser do tipo
para namorar, você sabe.
Suspirei.
— Claro que não estou, Margot. Sabe muito bem que é só
diversão. — Encarei-a e quis engolir em seco, porque me perguntei
se era isso o que estávamos fazendo: apenas nos divertindo.
Seus olhos preocupados pelo que tinha acontecido na festa
mascarada me veio à mente. Eu nunca faria aquilo com você, ele
dissera, melancólico. Olhos que, momentos antes, queimavam de
raiva, querendo matar aquele idiota universitário. Ele tinha me
protegido antes que algo pior tivesse acontecido. E eu o beijara por
aquela razão, realmente agradecida. Não guiada por algum tipo de
desejo carnal, só… grata.
Balancei a cabeça e me obriguei a pensar que, sim, era só uma
diversão.
— Tudo bem. Só disse. — Ela se levantou do sofá, deixando o
lugar ao meu lado vazio. — Eu vou trocar de roupa. — Apontou para
o corredor, logo caminhando até lá e me deixando sozinha com
meus pensamentos.
Meu olhar se perdeu no buraco por onde tinha desaparecido.
Por que ela queria saber se eu estava gostando de Eros? Eu
não podia me apaixonar por ele, porque não éramos do tipo que nos
apaixonávamos — eu, não mais. Eros com certeza tinha muitas
garotas aquecendo sua cama quando eu não estava por perto,
embora ele parecesse especialmente interessado em mim. Eu devia
estar na mesma, mas estava focada demais em Eros e no que ele
representava — meu primeiro experimento como predadora.
Um que estava dando certo — ou que eu pelo menos achava
que estava.
E stava mergulhada na leitura explicativa de Ontologia no
balcão da cozinha, a caneta na boca, quase escutando um
tique-taque mental pelas tantas horas em cima daquele
conteúdo. Ontologia parecia ser minha atual inimiga no curso de
Filosofia. Olhei para meu relógio de pulso. Passava das 21h.
E, de repente, Margot saiu enrolada em sua toalha do banho,
com o celular em mãos, pronta para impedir meus estudos —
daquela vez, ficaria grata se estivesse. Ela rolou a tela com o dedo e
me apontou o celular.
Era uma foto de Justin sorrindo enquanto segurava uma garrafa
de cerveja, e o fundo se constituía em um mundaréu de gente. Ele
estava em uma festa e parecia estar se divertindo.
— Justin está em uma festa.
Ergui a sobrancelha, enfim tirando a caneta da boca. Ela não
parecia brava, apenas surpresa — muito surpresa. A princípio, a
ideia de ela estar furiosa por ele ter ido sem ela passou pela minha
cabeça, embora ela não fosse do tipo possessiva. Mas isso
rapidamente se esvaiu pela expressão serena que estampava seu
rosto, tom de voz e olhar.
— E daí?
Margot apertou um pouco mais a toalha verde contra si. Água
pingava de seus cabelos encharcados, não envoltos por nenhuma
toalha. Ela que limpasse o chão depois.
— E daí que o anfitrião não é ninguém mais, ninguém menos do
que seu passatempo favorito. — Ergueu a sobrancelha, esperando
que eu ligasse os pontos rapidamente.
E eu liguei.
— Eros? — questionei, confusa.
Ela balançou a cabeça, confirmando.
— E parece que todo o corpo estudantil da UC está lá. Não paro
de receber snaps. É irritante. — Bufou.
— Por que ele não me disse nada?
— E vou lá saber? A relação de vocês é complicada demais até
para mim.
Ela queria dizer Sou eu a pegadora de nós duas com aquilo.
— Nós vamos — declarei, convicta, o que provocou um
sorrisinho no rosto da minha amiga.
— Só deixa eu pôr uma roupa. Infelizmente, não posso ir
pelada. — Não sabia se pela sensação de liberdade ou pela
hipotética economia de recursos naturais. Talvez os dois.
Soltei uma breve risada, achando graça, ao passo que ela
aumentou o sorriso e sumiu para seu quarto. Segui Margot, indo até
o meu a fim de me trocar e me embelezar para Eros. Gostava de
estar bonita para ele, fazia-me me sentir ainda mais viva.
Embora houvesse uma questão importante para resolver.

O apartamento, que já conhecia muito bem, estava cuspindo


gente. Todas elas da UC, sabia, porque Margot parava para
cumprimentar uma ou outra enquanto tentávamos encontrar Justin.
A música parecia prestes a explodir os tímpanos de todo mundo, e
tinha quase certeza de que uma dor de cabeça logo apareceria para
me incomodar se continuasse ali por muito tempo.
A questão era que o lugar era muito grande. Era quase
impossível achar Justin Graham no meio de toda aquela gente, que,
dizia ele, estava acompanhado de um amigo muito interessante. Já
podia imaginar aonde aquilo levaria. Caras geralmente
apresentavam outros caras para as amigas das ficantes deles — o
que era, muitas das vezes, irritante.
Mas, bem, eu estava solta na pista, não estava?
Podia me envolver com ele naquela noite se gostasse do cara.
Tinha total liberdade para isso. Nada me impedia. E por que mesmo
eu estava repetindo tais palavras na minha cabeça? Suspirei,
olhando por cima de todas aquelas cabeças, na ponta dos pés.
— Ele está ali! — Margot viu primeiro, perto do bar particular de
Eros. Não me lembrava de tê-lo visto na primeira vez em que
estivera ali — bem, eu estava bastante ocupada beijando os lábios
do anfitrião daquela festa.
O bar, por sua vez, ficava próximo à entrada da cozinha, onde
as pessoas também se enfiavam. Céus, nunca tinha visto uma festa
tão lotada. Todos pareciam estar curtindo a música, o ambiente, a
bebida, as pessoas. Era um sucesso.
— Margot! — Justin cumprimentou minha amiga com um selinho
e agarrou sua cintura com um sorriso. Em seguida, lançou um olhar
para mim. — Eros sabe como dar uma boa festa. Ah! — Olhou para
o homem ao seu lado. — Espero que vocês dois não estejam
namorando, porque esse cara aqui está bem interessado em você.
Seu amigo focou o olhar em mim, me abrindo um sorriso.
Ele até que era bem bonitinho. Era pouco mais baixo que Justin,
possuía pele morena e dreads pretos no alto de sua cabeça, seu
cabelo raspado nas laterais. Seu sorriso reluzia com dentes
brancos. Sorri de volta para ele.
— Sou Trent — me cumprimentou com um beijo na bochecha.
— Psiquê.
— Eu sei. — Seu sorriso pareceu aumentar.
Ao nosso lado, Justin sorria. Não largou Margot ao dar tapinhas
nas costas de Trent e alternar o olhar entre nós dois. Eu meio que
olhava para Margot, me perguntando o que eu deveria fazer. Ela
deu de ombros.
Meu corpo estava formigando ao saber que Eros estava ali, em
algum lugar, e já começava a olhar para todos os cantos,
procurando-o. Precisava vê-lo. Não liguei muito para Trent, o que
pareceu deixá-lo pouco à vontade quando Margot e Justin
engataram em algum assunto empolgante.
Algo me chamou atenção no alto das escadas elegantes do
apartamento. Ou melhor, alguém. Como sempre, Eros me
encontrara primeiro. A expressão em seus olhos âmbar me indicava
que estava matutando alguma questão. Segui seu olhar até Trent,
que cumprimentava uma garota de cabelos rosa.
Ergui uma sobrancelha até ele quando percebi que estava com
ciúmes. Eros desviou o olhar, intensificando-o sobre mim. Uma onda
de adrenalina percorreu meu corpo em resposta ao ciúme dele.
Olhei para Trent, que trocava palavras rápidas com a garota.
Então, quando ela se foi e ele me olhou de volta, fui tomada por um
desejo súbito de envolver seu pescoço com meus braços e beijá-lo.
E foi exatamente o que eu fiz. Sua língua explorou a minha boca
com vontade, e senti quando ele apertou minha cintura.
Inexplicavelmente, seu beijo não me fazia sentir como Eros fazia
quando me beijava.
Interrompi o contato entre nossas bocas. Os olhos pretos de
Trent pareciam anestesiados pelo beijo, mas também cheios de
desejo.
— Eu… vou ao banheiro. — A mentira escapou pela minha
boca feito água, enquanto Trent assentiu, atordoado, se
conformando com ela.
Deixei-o para trás com um sorriso, indo ao encontro de Margot e
gritando — devido à música alta — a mesma mentira em seu
ouvido. Ela também não pareceu acreditar e, no fim, disse:
— Obrigada por não deixar o pobre coitado na mão.
Quando olhei mais uma vez para a escada, Eros havia sumido.
E, bem, eu não fazia nem ideia de onde um anfitrião poderia
estar — muito menos se ele havia subido ou descido os degraus.
Comecei pela sala, depois fui para a cozinha e para alguns
cômodos ainda não desbravados. Um deles, uma imensa sala de
jogos. Depois de ter revirado todo o primeiro andar, parti para o
segundo. Eu realmente queria saber por que ele tinha mantido a
festa em segredo, não contando a mim nem a Margot, embora eles
trocassem meia dúzia de palavras. Às vezes, Margot parecia tão
perplexa quanto eu quando estava próxima a Eros. Dissera uma vez
que Justin queria dormir com ela toda vez que ele se aproximava, o
que achei estranho e que respondi com Confirme a sexualidade
desse cara. Até onde sabíamos, era hétero.
Suspirei.
Sabia muito bem que eu e Eros não estávamos juntos nem
nada do tipo, mas engoli em seco ao que o segundo andar talvez
propusesse. Até onde sabia, Eros podia muito bem estar na cama
com alguma garota em resposta ao meu beijo súbito, ou apenas
porque queria. Isso não seria nenhuma surpresa, a levar em conta
seu jeito galanteador e vertiginoso. Poucas garotas sobreviveriam a
ele… ou simplesmente nenhuma.
Foi quando abri uma das portas do segundo andar, que revelava
um deslumbrante e ostensivo banheiro à base de mármore preto,
que ouvi a mesma voz melódica que não saía de meus
pensamentos:
— Procurando por alguém? — Podia sentir seu sorriso perverso.
Me virei para Eros, que, como deduzira, sorria para mim. Eu
estava um passo para dentro do banheiro, mas, quando o vi,
adentrei mais um. Talvez porque ele ocupasse espaço demais
devido a sua altura e seu corpo. E que corpo. Seus músculos se
sobressaíam no suéter preto, que por acaso lhe caía bem demais.
Parecia relaxado e despreocupado ao se apoiar no batente da porta.
Seus olhos gritavam luxúria, como quase sempre. A verdade era
que Eros não parecia ser do tipo que aguentava ficar com o
brinquedinho preso entre as pernas.
— Na verdade, só o banheiro — menti.
— Não consegue se lembrar onde ficam os cômodos da casa,
prinkípissa?
Ótimo, pensei, ele está usando grego para me levar para a
cama.
Confessava estar funcionando.
De repente, Eros pulou para dentro do banheiro e nos trancou
ali. Pisquei algumas vezes, perplexa. Minhas pernas, por sua vez,
ficaram fracas. Como em todas as malditas vezes em que nos
encontrávamos.
Minha respiração tremulou, assim como as chamas
pecaminosas no olhar de Eros, as quais entraram em foco ao tê-lo
virado para mim novamente. Nós estávamos trancados dentro de
um banheiro. Do seu banheiro.
Perdi o fôlego por um segundo.
— Era para eu assistir àquele beijo, linda?
Não consegui responder.
Suas íris âmbar estavam completa e maliciosamente sobre mim.
Sentia como se me desnudassem e, bem, aquilo não soava nada
mal naquele momento. Tentei me concentrar ao dizer:
— Você não me contou que estava prestes a dar uma festa. —
Encarei-o, pretendendo dissecá-lo.
Ele me sorriu.
— E você está aqui, não está? — Aproximou-se dois passos de
mim, de modo a me fazer pressionar-me contra a luxuosa pia,
também trabalhada em preto. Tinha certeza de que Eros podia ver
seu reflexo no espelho atrás de mim de tão perto.
— Por que não me contou? — tentei ser firme, realmente
curiosa.
Ele inclinou a cabeça como se, assim, pudesse me analisar
melhor. Seu olhar queimava sobre meu corpo, fazendo-o derreter
por inteiro. Estava quente. O banheiro parecia pegar fogo com nós
dois ali dentro. Agora, também parecia confinador. Era difícil respirar
com ele a poucos passos de mim.
— Não costumo mandar convites exclusivos para minhas
ficantes. — A resposta pareceu me apunhalar, com uma lâmina
muito bem afiada. Confessava não ter esperado por ela.
Era óbvio que Eros tinha outros rolos.
Como pudera pensar que era especial? E, principalmente, como
pude ficar tão surpresa com aquilo naquele instante? Eros podia ser
novo em Chicago, mas ele certamente arranjava um jeito de manter
sua cama aquecida, e eu só tinha sido mais uma.
Nosso jogo era aquilo: um jogo.
E eu concordava com as regras — eu as criara; eu as
controlava. Portanto, estava ali, encarando-o, perplexa, piscando
algumas muitas vezes. Confessava estar impressionada. Eros era
ótimo em fazer uma garota se sentir especial. Me perguntei quantas
vezes ele já não o fizera; quantas Psiquês ele já conquistara.
Merda. Eu tinha dito a Margot dias antes que Eros não
significava nada além de diversão para mim. Percebi, ali, que estava
muito enganada — e que não queria de jeito nenhum estar. Porque
certamente nossa transa tinha sido só uma transa para ele, mas
parecera real para mim. Como pudera me iludir tanto?
Tratei de tomar o controle da situação, puxando-o para mim,
pelo tecido do seu suéter. Nossos corpos colidiram, ao passo que
dei meu sorriso mais felino. Ele não podia vencer aquele jogo —
porque, sim, ele venceria se por acaso eu estivesse começando a
gostar dele.
— Tudo é mais divertido comigo — sussurrei contra seu ouvido,
ao passo que minhas mãos envolveram seu rosto macio e perfeito.
Tentei parecer firme e me sobrepujar com meu lado predadora, o
que continuava sendo o plano.
— Estou certo de que sim. — Agarrou minha cintura e me
encarou nos olhos, não só me apertando contra a pia, como
também me pondo em cima dela, de modo a me fazer entrelaçar as
pernas em sua cintura.
Antes que ele pudesse falar mais alguma coisa, eu o beijei —
não um beijo carinhoso, mas agressivo. Precisava passar a imagem
de que aquela frase não tinha me abalado nem um pouco; de que
era eu quem estava no comando desde o início.
P or que eu não tinha contado para ela?
Porque eu sentira suas emoções e não queria que ela
criasse esperanças; isso a teria destruído. E, se a tivesse
destruído, teria destruído a mim também. Eu não aguentaria o olhar
decepcionado de Psiquê. Não aguentaria ter de apagar suas
lembranças sobre mim, ainda mais se um dia ela descobrisse a
verdade, porque eu sabia que Psiquê Di Laurentis era esperta — e
que, por isso, ela já estava começando a desconfiar, mesmo que
fosse bobagem para ela acreditar no que seriam apenas mitos para
ela e para todos os mortais.
Mas uma pequena parte de mim começava a se arrepender.
Eu sentira seu ódio se espalhar por todo o seu corpo no
momento em que aquelas palavras saíram da minha boca, tanto que
ela quisera demonstrar o contrário. Psiquê ficara furiosa a ponto de
chamas faiscarem em seu olhar. Eu não me sentira péssimo porque
aquilo era para o seu próprio bem. Ela não podia se apaixonar por
mim. Eu não podia.
Porque, quando me apaixonasse, eu não conseguiria mais
largar Psiquê Di Laurentis e todas as suas características
marcantes. Não me importaria de largar o Olimpo. Não me
importaria com a droga da missão. Não me importaria com Afrodite,
ou com Hermes, ou com qualquer um que soubesse daquela
missão. Eu largaria tudo para tê-la no momento em que meu
coração pertencesse a ela — e eu sabia muito bem que Psiquê
podia conquistá-lo.
O casal da Nova York da década de 1990 me veio à cabeça, e
eu ri comigo mesmo: o deus do amor que nunca o tinha
experimentado. A verdade era que eu era hipócrita demais.
Hipocrisia pura. Era como se um professor não soubesse dar aulas.
Ares, meu pai, era um guerreiro.
Afrodite, minha mãe, era dona de uma beleza extraordinária.
Dionísio era a porra de um alcoólatra.
E o maldito Eros deveria ter encontrado o amor romântico.
Eu era o único hipócrita da coisa toda. Por que, afinal, eu
adotara o amor? Talvez por causa dos meus pais, que tinham sido a
cura um do outro. Talvez porque eu sabia que existiam mortais
como aquele casal, que amavam até mesmo os defeitos um do
outro. Ou talvez só porque eu queria me divertir unindo mortais com
as minhas flechas de ouro. Porque eu era inconsequente, todos no
Olimpo sabiam disso. Todos enojavam Eros, a porra de um pirralho
mimado.
Eu estava ficando muito cansado de tudo isso. Era esse o
motivo pelo qual eu tirava férias no Mundo Mortal. Queria me ver
livre deles por uma semana que fosse. E já me sentia um pouco
aliviado nesses dois meses que passava fora — embora eu tivesse
completa certeza de que Afrodite sentiria minha falta e viria pedir
para que eu voltasse.
Mas eu esquecia tudo quando estava com Psiquê.
Porque, quando me afastava dela, todas as possibilidades
começavam a me assombrar. Eu me obrigava a repetir que ela valia
a pena, porque era verdade — bastava eu me lembrar de toda a
determinação que ela concentrava no nosso jogo de sedução. Um
jogo que ela merecia ganhar.
E que, sem muito esforço, ela o faria.
M erda.
O armário da nossa minúscula cozinha estava vazio.
Não havia mais nenhum vinho ali ou rastros dos que já
tivéramos. Bufei, irritadiça. Eu estava com péssimo humor nos
últimos dois dias; desde que eu tinha percebido que tinha sido
iludida quando eu não deveria estar acreditando em tais ilusões. Eu
estava muito puta comigo mesma.
Desde quando eu me importava com o que ele pensava sobre
mim? Se eu era só mais uma ou se eu era especial? Eu soubera
desde o início que tipo de cara Eros era e, mesmo assim, tinha
acreditado ser especial. Tinha sido só uma maldita transa, e eu
havia saído completamente dos trilhos daquele jogo. Era óbvio que
queria continuar jogando, queria vencê-lo. Não sabia se para provar
algo a mim mesma.
Peguei as chaves do carro de Margot — ela estava tendo aula
de Cálculo ou algo parecido na UC — e desci as escadas do nosso
prédio. O mercado mais próximo ficava longe, quase no centro, mas
não era necessário pegar a freeway. Fui pelas ruas mais afastadas,
hum, da civilização. Nosso bairro já era afastado, mas segui pelo
mesmo estilo.
Não acreditava estar tão desesperada assim por um vinho.
Pensei em todas as coisas doces e nas preocupações de Eros.
Em todas malditas ilusões que constituíam sua persona
mulherenga. Não conseguia parar de pensar que eu era só mais um
troféu em sua prateleira dourada e reluzente. Repassei com cuidado
as palavras dele: Não costumo mandar convites exclusivos para
minhas ficantes. Meus dedos tamborilavam na direção, inquietos.
Como se o destino estivesse a meu favor, Eros não tinha
aparecido em meu caminho naqueles últimos dias. Nenhuma
surpresa, nenhuma perseguição, nenhuma mensagem. Não tinha
certeza de que aquilo era estar a meu favor, porque, por mais que
negasse, já não sabia mais viver sem sua lábia suja e seu sorriso
malandro. Ou seu toque. Ou seus olhos dourados. Era fato que
existiam pessoas com olhos âmbar, mas… mas simplesmente
nenhuma de todas as variações se comparava aos olhos dele,
brilhantes e intimidantes. Ele podia ser o único com aquela cor de
íris.
Estava vidrada nele demais para o meu gosto. Já era um vício.
Eros era como uma das drogas mais pesadas: te trazia à tona, te
fazia se sentir viva como nunca, para depois ser lançada a uma
escuridão assustadora. Você não sabia para onde ir ou o que fazer
e, então, voltava à realidade. E ela era uma merda.
De repente, me dei conta de que, já que estava dirigindo, podia
muito bem ir direto ao Esquina e encher a cara com martínis. Ou
com uísque puro. Precisava desesperadamente ficar bêbada.
Porque já estava começando a pensar que Eros não era só um
maldito jogo.
Estacionei o sedan prata e saí rumo à minha bebedeira, vestida
com um suéter marrom-escuro e as jeans de sempre. Chicago já
começava a ameaçar com o frio naquele final de tarde, e precisava
me manter confortável. Os raios alaranjados e fortes batiam contra
os tijolos do estabelecimento, apesar das muitas nuvens que se
acumulavam ao seu redor. Logo só restaria a noite… e a chuva.
Peguei o celular na mão e digitei uma mensagem para Margot
antes de entrar pela porta dupla de ferro.

Saí pra beber. Volto qnd já tiver


bebido o suficiente, o que deve demorar.

Bloqueei a tela e pus o celular no bolso traseiro da jeans


enquanto empurrava a porta e me deparava com o interior. Até que
tinha bastante gente para um dia de semana às 18h. Bem, o bar
fazia por merecer. Fazia os melhores martínis da cidade, mas hoje
ia pedir algo definitivamente mais forte.
Quando me sentei ao balcão, o barman perguntou, o fundo
cheio de prateleiras minadas de bebidas dos mais diversos tipos:
— O que vai ser para hoje? — Deu um sorriso torto, que
aparecia no rosto da maioria dos caras que se dirigiam a mim.
Certo, eu era bonita, mas não precisava ficar me encarando tanto.
— O que tiver de mais forte, por favor.
Ele sorriu, dizendo:
— Como quiser.
Sorri de volta, não querendo deixá-lo no vácuo.
Observava as bebidas coloridas nas prateleiras quando uma
voz entrou dançando por meus ouvidos, causando arrepios tão
intensos quanto os da primeira vez.
— Afogando as mágoas, linda?
Suspirei, nem um pouco surpresa, por fim direcionando o olhar
àquele que eu preferia evitar até toda a raiva do meu corpo se
dissipar. Metade de mim ainda era raiva. Por eu ter sido tão
estúpida. Por ele ter aparecido na minha vida naquele mesmo bar
quase dois meses antes.
Pretendia estar zerada de todo aquele ódio depois de beber
todo o possível. Queria cair de bêbada — o que soava deprimente,
não só para os meus pobres rins.
Eros estava vestido em uma camiseta azul-escuro de mangas
longas justa ao corpo, o que valorizava todos os seus músculos, e
calças jeans surradas. Suas mãos estavam nos bolsos destas, em
uma postura relaxada. O infeliz era lindo pra caramba.
Olhei bem para aqueles lindos olhos antes de responder:
— Só aproveitando minha vida de solteira. — Levantei meu
copo quando o garçom o trouxe. Parecia rum. Era rum, tive certeza
ao dar um gole. Não era muito meu estilo, mas era forte. Tudo o que
eu mais precisava naquele momento.
Ele se sentou ao meu lado, acenando ao barman e dizendo:
— Uísque. Puro. — O barman alternou o olhar entre nós dois,
como se eu fosse uma causa perdida, então assentiu. Eros voltou-
se para mim, os olhos brilhando em diversão. Era tudo o que eu
parecia ser, diversão, o que não me parecia ruim no começo e
tampouco era para parecer agora. — Nunca vi você sozinha aqui.
— Você só me viu uma vez aqui. Frequento esse bar há mais
tempo que você. — Dei um sorriso, bebericando do rum. Confesso
que tinha um gosto engraçado.
Um frio repentinamente percorreu minha barriga, me lembrando
que Eros não era de Chicago e que um dia teria que voltar para
sabia-se lá onde. Não conseguira arrancar essa informação dele. Na
verdade, era difícil arrancar qualquer informação dele.
Eu não queria que ele voltasse para Sabia-se Lá Onde.
Queria que ficasse.
— Tem razão. — Deu de ombros e então recebeu seu uísque.
Ele agradeceu e deu um gole. Olhou de soslaio para a bebida em
meu copo. — Rum? — Pareceu achar graça.
Dei de ombros, indiferente, mas não respondi.
Em vez disso, desviei o olhar até seus olhos e o observei por
um tempo antes de perguntar, tentando parecer desinteressada:
— Quando você volta?
Eros ergueu uma sobrancelha, confuso, enquanto dava mais um
gole.
— Para Muito Longe — debochei, embora estivesse brava.
— Ah. — Pareceu tenso. Seu olhar estava agora sobre o líquido
âmbar que cintilava em seu copo curto. — Não tenho nenhuma
prévia. Gosto de Chicago — acrescentou, me encarando, como se
eu fosse o que aquela cidade tinha de melhor. Praguejei
mentalmente para que não acreditasse naqueles olhares que
pareciam tão reais.
Por um instante, desviei o olhar até o barman, que servia outros
clientes.
— Me desculpa.
Me virei para ele, inclinando levemente a cabeça, em dúvida.
— Pelo quê?
Seu olhar adentrou o meu como lâminas, intenso como nunca,
parecendo brilhar nas sombras em que estávamos insertos.
— Não tenho outras ficantes. Você é a única, Psiquê. Em muito
tempo.
Pisquei uma, duas, três vezes, perplexa.
Não sabia onde ele queria chegar com aquilo, tampouco não
conseguia acreditar que eu era a única — e o que ele queria dizer
com Em muito tempo? Sabia apenas ao que ele estava se referindo:
à frase que eu repassava involuntariamente na minha cabeça.
— Sabe, não saio por aí chamando as mulheres de princesa. —
Sorriu, catastrófico, balançando o líquido de seu copo.
Minhas pernas estavam fracas, e o ar me escapava dos
pulmões.
— O que você quer dizer? — Tentei parecer firme ao dar mais
um gole no rum, mesmo sabendo que estava o contrário disso.
Eros pareceu notar.
— Você não é só mais uma. Não sei por que disse… aquilo.
Meu rum já havia acabado.
Minha garganta já estava seca.
Sentia minha cabeça girar — não sabia se pela bebida ou pela
confissão.
— Certo. — Não sabia o que dizer ou como lidar com aquilo. —
Tenho de… ir. — E me levantei do balcão. Estava sendo covarde.
Reparei na sua expressão confusa. Ele logo me seguiu porta
afora, deixando notas generosas de dólares na bancada — eu havia
até mesmo me esquecido de pagar. Eros pegou meu pulso
enquanto eu tentava desesperadamente chegar ao meu carro, e
trovões rangeram no céu.
Olhei bem nos olhos dele, melancólicos.
— Você não me parece em condições de dirigir, princesa. Vem,
lhe dou uma carona. — Já havia me acostumado à sua formalidade,
mas aquilo me pareceu esquisito com todo aquele álcool circulando
pelo meu sangue, o que me fez ficar elétrica. De repente, me vi
assentindo.
Então, não.
Estava negando.
Ele deu um sorriso… triste?
— Tão indecisa.
Desci o olhar até seus lábios e me atentei a eles. Logo me
deparei com a intensidade de seus olhos dourados outra vez. Não
perdi tempo: eu o beijei. Um beijo necessitado e caótico. Precisava
sentir o gosto de seus lábios de novo. Precisava senti-los para
sempre. Naquele momento, me permiti cair por Eros.
Ele apertou minha cintura e pressionou seus lábios contra os
meus com força. Meus braços se enroscaram em seu pescoço, ao
passo que meus dedos adentraram seus cabelos castanho-claros.
Ele era irresistível. Essa era a verdade.
Senti meu corpo se chocar contra uma lataria estacionada bem
em frente ao bar.
Era o Audi prata de Eros, eu soube.
Suas mãos percorreram meu corpo com avidez. Ele estava em
todos os lugares. Minha pele queimava mesmo que — infelizmente
— não houvesse pele com pele. Desgrudei minha boca da dele
apenas para lançá-lo um olhar que esperava que ele
compreendesse. E, era óbvio, ele destrancou as portas do Audi e
nos apressamos a entrar ali.
Minhas sobrancelhas se juntaram ao me recordar de um
pequeno detalhe.
— Meu…
— Pedi a um dos seguranças para que levasse até seu prédio.
Minha expressão era de pura confusão.
Nem mesmo um segurança seria tão bonzinho.
— É muito fácil comprar mortais. — Sua expressão foi de puro
choque quando terminou a frase, como se tivesse falado algo
proibido, o que achei engraçado.
— Mortais? — Eu ri.
Ele também riu, ainda parecendo tenso. Não compreendia
esses ataques de tensão, por mais que me esforçasse.
— Agora, por favor, vamos sair daqui.
Eros pareceu mais aliviado ao escutar o pedido implícito,
respondendo com um sorriso assassino no que trovões se fizeram
ouvir. Faltava pouco para que o céu caísse sobre nós.
Ele pôs a mão no volante e ligou o carro, me direcionando um
olhar sedento.
— Seu desejo é uma ordem.
E ntrei na biblioteca da Universidade de Chicago, a qual Psiquê
chamava simplesmente de UC. Não tinha avisado que a
encontraria naquele dia, como em todas as outras vezes. Eu
gostava da surpresa, da tensão à qual seu corpo sucumbia. Gostava
de tirar seu fôlego com uma vista e tanto: eu.
Enfiei as mãos nos bolsos da jaqueta marrom de couro que
agora costumava vestir enquanto pensava nas nossas duas
maravilhosas vezes, porque uma delas tinha sido um tanto
agressiva, movida a raiva — não que eu não curtisse uma pegada
mais bruta. Fazia alguns dias desde o motel, onde tínhamos nos
divertido a noite toda. No dia anterior, não tinha conseguido parar
quieto no meu apartamento, andava de um lado ao outro, pensando
nela, na sua pele macia, no seu cheiro. Estava enlouquecendo sem
ela, como se agora precisasse dela a todo momento. Como se, sem
ela, eu não pudesse mais respirar.
Às vezes me perguntava por que estava me permitindo isso, por
que estava fazendo isso com ela… mas Psiquê era a resposta,
simples assim. Eu a queria mais que tudo, precisava dela. Estava
fascinado. Não conseguia pensar em outra coisa.
Psiquê, Psiquê, Psiquê. Ela não saía da minha cabeça, não
importava o quão caótico era aquilo. Eu e Psiquê éramos como uma
bomba programada, uma bomba que estava prestes a explodir.
E mesmo assim eu a seguia até a biblioteca.
Ofereci um sorriso à bibliotecária quando passei por ela para
chegar aonde quer que Psiquê estivesse indo. Ela piscou algumas
vezes, desorientada, talvez se perguntando se eu era uma miragem.
Não, eu não era. Um deus caminhava pelo Mundo Mortal,
acreditava quem quisesse.
Um deus que só tinha olhos para uma única coisa.
Encontrei-a vasculhando a seção de livros didáticos, talvez
procurando por algum que interessasse ao seu curso de Filosofia.
Ela não percebeu que eu estava chegando e, por isso, me permiti
admirá-la por um segundo.
Psiquê parecia concentrada, determinada a encontrar qual fosse
o livro que procurava. Seu supercílio estava erguido, frustrado. Ela
mordeu os lábios, o mesmo que fazia quando estávamos muito
próximos. Parei para encará-la na seção à frente da sua, escorado
em uma das compridas estantes que iam até o teto baixo.
Meus olhos a acompanharam se abaixar para pegar o livro.
Uma visão e tanto.
E foi quando ela ficou de pé novamente que percebeu minha
forte presença, seus olhos brilhando em reconhecimento. Seu corpo
já se submetia aos meus efeitos, os quais muitos mortais já
conheciam. Não me permiti pensar naquilo agora, só queria pensar
nela, em como nos ritmávamos em uma linda canção na cama. Eu
ofereci um sorriso a ela, que não veio até mim, erguendo uma
sobrancelha desafiadora.
Por que não?
Descruzei meus braços e me desencostei da estante para ir até
a seção em que estava. Parei logo à sua frente, nem próximo, nem
longe. A uma distância segura dela, uma que me garantia mais
controle sobre mim mesmo — mesmo que mínimo. Qualquer
controle estava ótimo quando se tratava dela, porque eu
ultrapassaria todos os meus limites se reparasse demais no seu
corpo curvilíneo como violão ou no seu sorriso lindo como ela.
— Pensei que tivesse parado com a perseguição — ela soltou,
seus olhos predatórios como nunca.
Eu dei meu melhor sorriso.
— Nunca, prinkípissa.
Ela era como um maldito ímã. Não tinha como não estar no
mesmo lugar que ela, não depois de ter decidido ficar por ela. Faria
dois meses que estava em terras mortais, o que seria minhas férias
para minha mãe, que tinha minha missão como concluída conforme
eu tinha mentido a Hermes, o deus dos viajantes e o mensageiro
dos deuses. Ele me aprisionaria no Tártaro se soubesse que eu o
havia feito transmitir uma mensagem falsa a Afrodite, a deusa mais
persuasiva de todos os Doze.
Cheguei mais perto da orelha dela.
— Por que não aparece no meu apartamento mais tarde? Sabe,
para conversarmos.
— Conversar? — Seus lábios se repuxaram em um sorriso
malicioso quando me afastei, seus cabelos ondulados balançando
quando inclinou levemente a cabeça. Me concentrei em seus lindos
olhos verdes, que brilhavam em diversão.
— Tenho uma surpresa para você.
Ela pareceu interessada.
— Que horas? — Seus lábios subiram em um sorriso enquanto
olhava para os meus. Lutei para não engolir em seco quando ela
subiu os olhos outra vez para os meus, me encarando de forma
persuasiva.

Recém havia terminado de pôr a mesa quando ouvi as portas


do elevador se abrirem — até um mortal podia escutar, não eram
meus ouvidos aguçados de deus. Caminhei até a sala, onde Psiquê
me esperava, a cabeça inclinada de quem já havia sentido o cheiro.
— Não me diga que, além de homem de negócios, é mestre-
cuca. — Abriu um sorriso avassalador, encantador. O sorriso mais
lindo entre Mundos. Seus olhos brilhavam em admiração, e me senti
orgulhoso por um momento. Por tê-la impressionado.
Agora que o frio enfim havia atingido Chicago, Psiquê vestia
roupas diferentes hoje: blusa preta, um sobretudo cinza-escuro por
cima, calças jeans claras e botas de cano alto pretas. Estava linda
como sempre. E talvez eu estivesse encarando demais, pois sua
cabeça se inclinou e um sorriso travesso tomou conta da sua linda
boca, rosada como suas bochechas pelo frio.
Me aproximei da bela mortal para tirar seu casaco
delicadamente.
Ela deu um sorrisinho hesitante, talvez tensa pela aproximação.
Eu adorava quando seu corpo sucumbia a mim e aos meus dons.
Não era segredo que eu era irresistível. Ainda assim, ela lutava para
permanecer firme.
— Vamos? — Abri o braço na direção da cozinha.
Psiquê assentiu e foi na minha frente, ao passo que eu a
observava de trás. Uma visão mais que adorável. E eu sabia que ela
estava ciente da minha observação nada discreta enquanto um
sorrisinho contido se abria no meu rosto.
Permaneci ali por uns instantes antes de segui-la.
Era noite em Chicago. Havia marcado às 20h com ela, mas
tinha começado a preparar nosso jantar pouco antes das 19h,
esperando-a ansiosamente. Eu era um homem completo:
trabalhava, cozinhava, era lindo.
Já na ampla cozinha, ornamentada em mármore preto, eu puxei
a cadeira para ela e logo me sentei à sua frente na mesa para oito
pessoas. Estávamos a uma distância considerável. Cloches de prata
nos aguardavam e velas adornavam o centro da mesa junto a
pequenos ramos de oliveira. As luzes do ambiente estavam
reduzidas.
Ela me encarou e ergueu a sobrancelha, como que se
perguntando o que a esperava. Nada menos que um jantar dos
deuses — os mortais adoravam utilizar essa expressão, o que,
claro, alimentava generosamente nossos egos.
Acenei com a cabeça com um sorriso em meu rosto, ansioso
para ver sua reação. Ela retirou o cloche de cima do seu prato junto
comigo. E, então, deu um sorriso encantado. Uma reação de
surpresa.
— Lagosta ao thermidor com vinho branco e mostarda —
apresentei o prato, ao passo que Psiquê levava uma expressão
divertida em seu rosto. — Com ostra e camarão de
acompanhamento.
Encarei-a por fim.
— Parece delicioso — disse como se houvesse um duplo
sentido escondido em sua frase. Eu sorri enquanto pegávamos
nossos talheres em mãos depois de termos colocado nossos
guardanapos sobre as coxas. — Ainda não acredito que foi você
quem preparou isso. Você é um verdadeiro mestre-cuca —
constatou enquanto admirava o prato muito bem preparado.
Servi duas taças de vinho tinto para nós.
— Você ainda não provou.
Psiquê franziu a testa e me encarou por um momento para,
então, colocar um pouco da lagosta em seu garfo e experimentá-la.
Ela pôs a mão em frente à sua boca, seguida de um revirar de
olhos.
— Caramba… Isso está gostoso.
Eu sorri diante de suas palavras, o que ela percebeu.
— Eros — repreendeu, um sorriso contido estampado em sua
face.
Ergui a sobrancelha, como quem não sabia de nada.
— Psiquê. — Encarei-a, o que quase a fez morder os lábios.
Seus cabelos selvagens emolduravam seu rosto sagrado, com
lábios vermelhos e olhos brilhantes. A luz das velas lhe atribuía um
ar misterioso. Ela era uma obra de arte completa.
— Até quando vão suas férias? — perguntou do sofá da sala,
despreocupada, distraindo-me de sua exótica beleza de onde
estava, na poltrona adjacente. Meus dedos apoiavam minha
têmpora direita enquanto olhava para ela, ambos de barriga cheia.
Dei de ombros.
— Até quando eu decidir que devem parar.
Quando, quando, quando? Minha mente quis saber,
desesperada.
Eu já deveria ter decidido aquilo. Deveria ter voltado para casa.
— Sua mãe não precisa de você nos negócios? — perguntou
ela mais uma vez, inclinando a cabeça de leve, suas mechas de
cabelo caindo com a gravidade. Parecia uma criança muito curiosa.
Parecia-se comigo.
— Ela consegue se virar. — Encostei-me no estofamento macio
da poltrona, desgrudando meus dedos do rosto. Meu braço se
apoiou no braço do móvel de cor bege. Ela me encarava, sedenta
para saber mais.
— Ah — respondeu, dando um gole na sua taça de vinho. —
Pensei que fosse o filhinho da mamãe — disse com um sorriso
assassino. Um que me fez pensar besteira. Na verdade, qual sorriso
dela que não me fazia pensar besteira?
— Ela precisa aceitar que não sou mais seu bebê. — Dei um
sorriso.
— Bem, ela tem seus irmãos mais novos para mimar.
Encarei-a.
Como dizer que eles tinham mais de mil anos de idade?
— Com certeza — respondi, simplesmente. — E as suas irmãs?
Ela se ajeitou no sofá, parecendo incomodada com a pergunta.
— O que tem elas?
— Moram onde?
— Em Peoria, minha cidade natal. Com seus maridos —
respondeu, desanimada, fazendo pouco caso daquilo. Eu
certamente havia tocado num assunto delicado e desconfortável.
— Presumo que não sejam adoráveis como você.
Psiquê deu uma gargalhada deliciosa de se ouvir, apoiando sua
taça na mesa de centro da sala.
— Longe disso. São venenosas como minha mãe. — Deu um
sorrisinho forçado enquanto olhava a taça vazia, melancólica.
— Meus irmãos são um tanto difíceis também. Dois deles em
especial. Só atendem ao meu pai e nada mais.
Seus olhos brilharam, parecendo se lembrar de algo.
— Você e o Eros mitológico têm muitas semelhanças.
Meu corpo se enrijeceu, tensionou.
Eu havia dito demais a ela sobre minha vida. Onde… onde eu
estava com a maldita cabeça? Eu certamente deveria apagar suas
lembranças sobre aquilo ali, naquele momento, com a Névoa.
Talvez sobre tudo, começando pelo dia em que tinha me conhecido.
— O que foi? — Franziu a testa para mim, suas sobrancelhas
juntas. Seus lábios estavam levemente entreabertos e, caramba, ela
era linda. Também era interessante e um milhão de outras coisas.
Não podia fazer aquilo com ela, não era certo. Não parecia certo.
Me obriguei a sorrir.
— Nada. Não foi nada, princesa.
Ela se levantou e veio até mim, sentando-se no meu colo e
envolvendo suas mãos em meu rosto. Eu a encarei, linda como uma
deusa. Psiquê não podia ser mortal e, se fosse, era a mais linda de
todo aquele Mundo. Apertei sua cintura e observei seus olhos
tomarem um brilho diferente do habitual, não um brilho bêbado —
embora ela certamente estivesse devota à bebida. Dionísio teria
proposto um brinde.
Eu conhecia muito bem aquele brilho.
Não. Pelos deuses, não.
— Eu pesquisei o que você disse — sussurrou no meu ouvido,
seus dedos enfiados no meu cabelo. — Também estou encantada
por você, Eros — sussurrou mais uma vez no outro e, então, se
afastou.
Psiquê Di Laurentis estava se apaixonando. Podia ver em seus
olhos, podia sentir aquilo em todo o seu corpo, crescendo no seu
peito.
E eu nunca tinha me sentido mais culpado do que naquele
momento, quando tomei seus lábios em um beijo ávido e
necessitado. Nossas línguas se tocavam em um ritmo agitado. Ela
não deveria ter chegado tão perto.
— Fica aqui — sussurrei, meus olhos nos seus, enquanto ela
assentiu devagar, não se desgrudando de mim nem por um
milímetro sequer.
Ela não deveria ter deixado de ser só uma missão.
E u sorria enquanto o beijava. Não um beijo agitado como os
outros, mas lento, como se tivéssemos diminuído o ritmo da
música que dançávamos desde aquele dia chuvoso de
setembro. O que eu tinha falado era verdade: eu tinha ficado curiosa
em relação ao que ele tinha sussurrado ao meu ouvido na tarde em
que ele tinha me mostrado seu iate e, então, tinha pesquisado.
Eu não soubera como reagir quando a tradução do latim para o
inglês tinha aparecido como Você me fascina na tela do meu celular.
E, sim, eu havia pesquisado o que ele tinha dito — fascinare te mihi.
Aquilo tinha ficado martelando na minha cabeça, um beliscão chato
no cérebro.
Eros também sorriu no meio do beijo.
Fica aqui.
Ele me levou até o outro sofá e ficou por cima de mim, ainda me
beijando. Seu cabelo estava completamente bagunçado agora.
Fica aqui.
Seus olhos dourados brilhavam como lâminas, assim como os
meus. Senti um puxão — Você não deveria estar fazendo isso —,
mas o ignorei. Em vez disso, minhas mãos passearam pela sua
nuca, pelo seu cabelo, como se ainda não estivesse bagunçado o
suficiente.
Fica aqui.
O apartamento estava envolto em um grogue silêncio. Nós
éramos a única canção.
Fica aqui.
E eu fiquei.

Estava sóbria o suficiente naquele momento para saber que não


tínhamos feito nada além de termos nos beijado e subido para o
quarto. Me lembrava de tê-lo encarado por um bom momento antes
de cair no sono. Ele tinha pedido e eu havia ficado, mas meu lado
bêbado reclamava enquanto caminhava pelo campus com
milagrosos raios de sol batendo no meu rosto. O momento que mais
se destacava na minha mente era ele, por cima de mim, me
beijando, suas roupas já amarrotadas.
Não sabia por que tinha ficado ou por que seus olhos e seu
corpo me chamavam tanto.
Distraída pelas lembranças da noite anterior, eu me choquei
contra alguém na ida até meu prédio. Comecei a me desculpar no
mesmo instante, afinal, eu deveria prestar mais atenção em por
onde andava.
— Sinto mui… — Bastou eu olhar para cima para que
interrompesse a frase e quisesse fugir, mas continuei encarando
aqueles olhos cor de caramelo que me encaravam de volta como
duas adagas, me cortando lentamente. Me fazendo em pedacinhos.
Olhos os quais não via havia muito tempo.
— Psiquê. — Eu estava estática, fria como se estivesse sendo
assombrada por um fantasma. — Senti sua falta. — Ele me
encarava somente nos olhos, enquanto eu não tinha forças para
assimilar aquilo. Piscava os olhos um milhão de vezes, me
perguntando se aquilo não era um pesadelo.
Kurt Monaghan estava em Chicago, logo à minha frente,
vestindo jaqueta jeans e calça de moletom cinza e agindo como se
tivéssemos nos visto na noite anterior; como se nada tivesse
acontecido.
Estava sendo assombrada pelo fantasma do meu passado.

— O que você está fazendo aqui, Kurt? — perguntei quando


consegui finalmente respirar. Havia uma batalha sendo travada na
minha cabeça, a qual eu não conseguia interromper, como se não
existisse uma bandeira branca.
— Psiquê… — Tentou começar algo, mas então virou o olhar e
soltou: — Eu te vi naquele dia.
Meu corpo fraquejou.
Eu sabia desde que o tinha visto que havia uma possibilidade
de isso acontecer, na pior delas. E tinha acontecido, o que não me
surpreendia. No fundo, porque sabia que um dia nos
reencontraríamos.
Kurt inclinou a cabeça raspada, parecendo um pouco triste. Ele
não havia mudado nada desde a última vez em que nos víramos.
Desde que eu terminara com ele e não escutara insistência alguma
em relação a isso por parte dele, porque ele não estava nem aí.
— O que ainda está fazendo em Chicago? — repeti, dessa vez
mais alto.
— Eu te vi naquele dia — repetiu, no que seus olhos mostravam
arrependimento. — E você não sai da minha cabeça, Psiquê. Eu tive
que ficar em Chicago. — Suspirou, tirando as mãos dos bolsos da
jaqueta jeans. — Você nunca saiu, na verdade. Em todos os jogos…
não pense que não estava comigo. — Ele estava sério, nenhum
traço de emoção passava por seu rosto.
Franzi a testa, respirando fundo.
As pessoas que passavam por nós não passavam de borrões.
Eu estava começando a ficar tonta de verdade.
— E você vem me procurar um ano depois, Kurt? — indaguei,
incrédula. Minhas mãos tremiam. — Você deveria ter me procurado
no dia seguinte. — Soltei as mãos ao lado do corpo e, então,
olhando para ele, inclinei a cabeça. — Me diz: teria vindo aqui se
não fosse por aquele dia? — Ele se acanhou. — Me diz, Kurt.
Ele não respondeu. Porque sabia que a resposta era
decepcionante igual a ele.
Em vez disso, perguntou, com certo receio:
— Quem era… aquele?
Não pude acreditar. Dei uma risada, a qual provocou rugas de
confusão em sua testa, e desviei o olhar rapidamente do dele. Ele
com certeza tinha vindo ali só para me deixar com raiva.
— Você tá mesmo falando sério? Você vem aqui pra se
desculpar e perguntar quem era aquele? — Juntei coragem e
encarei-o. — Se quer mesmo saber, ele é muito mais do que você já
foi. Ele me prioriza. Ele me põe em um pedestal, porra! — Quando
me dei por mim, já estava quase gritando. A expressão dele era de
puro choque, e as pessoas começavam a prestar atenção. Que se
fodessem! — Não quero falar com você. Não quero falar com quem
escolheu uma coisa em vez de uma pessoa. Pensei ter sido
bastante clara naquele dia — concluí, a mágoa e a raiva se
misturando para formar um só. Não queria ter deixado o ódio me
consumir, mas que outro sentimento nutrir por ele, o ex-namorado
mais desumano do milênio?
Encarei-o por um instante antes de virar a cara e continuar a
caminhar até meu prédio, o que fora interrompido infortunadamente.
Meu rosto estava quente, não sabia se estava prestes a chorar ou a
gritar. Talvez os dois.
Eu não suportaria aquilo.
— Psiquê, você sabe o quanto o basquete importa pra mim. —
Ele veio atrás. Sua fala me fez virar de volta para ele, quase me
chocando contra si mais uma vez. Meu rosto quente como o inferno.
Se fosse para chorar, que não fosse agora.
— E eu não importava? — Bufei. Estávamos frente a frente,
cara a cara.
— Não foi só por mim. — Ele parecia um pouco alterado
também. — Meus pais… eles não teriam suportado ver o filho
colocando o dinheiro deles fora. Eu precisava competir pelo estado.
Pelo amor de Deus, Psiquê!
Sorri, debochada, e desviei o olhar por um instante. Estávamos
discutindo no meio do campus.
— Parabéns, você está certo. Era para ouvir isso que veio? Não
quero ter a mesma discussão que tivemos um ano atrás. Agora, eu
tenho aula. — Me virei novamente, disposta a não parar por nada
daquela vez. Eu precisava chegar dentro do prédio o mais rápido
possível. Precisava entrar naquela maldita sala de aula.
Kurt reapareceu na minha frente.
— Psiquê, eu vim me desculpar. Minha mente tá pesada. Eu
não suporto mais carregar esse arrependimento.
Pisquei algumas vezes.
— Não. Você veio dizer que fez a escolha certa. Por favor, me
deixe em paz. — Encarei-o em seus olhos caramelo. Os olhos que
costumava adorar. — Não quero nunca mais ver você.
Ele tentou me abraçar, ao passo que me debati. Mais um pouco
e eu explodiria — em lágrimas, em raiva, em decepção. Não
suportava vê-lo. Toda a dor tinha voltado de um jeito que nunca
tinha imaginado ser possível, porque aquilo estava no passado. Não
estava?
— Me larga, Kurt. — Meu rosto começou a arder. Ele continuava
a tentar me abraçar, como se isso fosse apartar tudo, mas, então,
ele parou para pôr as mãos em meu rosto e me beijar. Lágrimas
começaram a rolar. Eu tentei me afastar. — Eu te odeio —disse, sua
boca ainda na minha, nossas bochechas então molhadas.
Eu estava machucada.
E aquela, percebi, era uma ferida que nunca se curaria.
— Acho que ela deixou bem claro o que queria. — Alguém
apareceu e o empurrou para longe de mim. Minhas lágrimas
rolavam e embaçavam minha visão. Só quando mais delas caíram
que percebi que era Eros, aparecendo como se fosse um anjo.
Abracei meu corpo, mas não pelo frio.
Não podia chorar na frente de Kurt.
Não podia chorar na frente de Eros. Não queria que ele visse
aquela ferida.
Kurt tinha ido três ou quatro passos para trás com a força
colocada sobre ele por Eros, que o encarava com uma fúria
assassina. Meu ex-namorado parecia se perguntar quem era aquele
homem alto à sua frente, com tanta raiva no peito. Então ele o
reconheceu.
Eros lançou um olhar para mim, me checando. Por fim, parou os
olhos nos meus, que continuavam a se encher de lágrimas. Eu
queria ir embora, queria fugir, mas algo me prendia ali.
Ciúme também brilhava nos olhos de Eros, mesmo que a
preocupação e a raiva o sobrepusessem. Kurt, por outro lado, me
olhava com dúvida, com arrependimento puro, talvez por ter
escutado as três palavras que nunca havia dito em voz alta para ele.
Talvez pelas lágrimas que rolavam sobre minha face.
— Psiquê… — Kurt tentou falar, mas nada saiu. Eros posicionou
os olhos sobre ele mais uma vez, cheio de fúria.
Não podia mais suportar.
Saí com pressa. Não em direção ao prédio da UC, mas sim ao
prédio em que Margot e eu morávamos. Meus calçados batiam
frenéticos sobre a grama, logo pela calçada e depois pela rua.
Limpei as lágrimas com o dorso da mão e continuei firme até estar
em frente ao prédio, onde fui abordada pela milésima vez no dia.
Daquela vez, não era Kurt com sua melancolia.
Mas Eros e seus olhos preocupados, os quais pareciam me
perguntar repetidas vezes: “Está tudo bem? Está tudo bem? Está
tudo bem?”. Abracei-o justamente porque nada estava bem, tudo
parecia uma confusão, e ele estava bem ali, o único que me fazia
me sentir viva de verdade. O único que não bagunçava minha
cabeça. A única coisa que parecia correta naquele momento.
— Ele já foi, princesa. — Eros afagou meus cabelos, me
apertando com a mesma força com que eu o fazia. Pressionei bem
os meus olhos, querendo que as lágrimas parassem imediatamente.
Enquanto isso, assentia a cabeça para ele. — Vai ficar tudo bem.
— Por favor, fica comigo — disse em um fio de voz.
Senti-o estremecer enquanto olhava para frente, o olhar
estático. Ele não parou de me acariciar. Depositou um beijo em cima
da minha cabeça.
— Pareço a droga de uma garotinha. — Afastei-me de seu peito
reconfortante para olhá-lo nos olhos, sombrios como nunca, o que
me fez estremecer. Atrás dele, o céu não combinava com o que
estava acontecendo: estava em um azul marcante, com poucas
nuvens. Talvez Deus estivesse tentando me trazer um pouco de
conforto.
— Tudo bem chorar, princesa. Vai ficar tudo bem — repetiu, a
cabeça levemente inclinada para baixo para me olhar, preocupado e
hesitante. — Confia em mim.
Podia ser paranoia minha, mas seus olhos pareciam dizer outra
coisa.
Resolvi ignorar e voltei a apertá-lo com força, escolhendo
acreditar nas suas palavras. Nada me abalava mais naquele
momento. Era um sentimento destrutivo que eu rogava para que
nunca mais me tomasse.
E stava procurando por ela quando os vi. Psiquê encarava e
gritava com um moreno alto — só não mais do que eu —
parecendo ferver por dentro. Seu rosto possuía uma
coloração vermelha com o que eu presumia ser raiva. A princípio,
não entendi o que acontecia ali, entre os dois.
Mas uma coisa era certa: meu sangue fervia, deixando-me
ardente. Meus punhos se fecharam ao redor do corpo quando o vi
puxar seu braço, o que certamente foi a gota d’água para mim.
Avancei contra o mortal sem nem mesmo olhar para o belo rosto
de Psiquê. Só parei quando percebi o que espreitava além da raiva:
o ciúme. Eu estava com uma pontada irritante de ciúme, o que de
certa forma me surpreendeu, mas não tanto quanto minha raiva. Eu
parecia uma chama viva, estava quente.
Minha única gota de sanidade me lembrou o quão errado era
querer machucá-lo. Era uma proibição deuses machucarem mortais,
direta ou indiretamente, porque tínhamos milhares de vezes a força
deles. Eu podia quebrar todos seus ossos com facilidade. Podia
matá-lo com facilidade.
Por isso, agradeci mentalmente por aquela gota.
O que não significava que não queria mais machucá-lo por ter
agarrado Psiquê daquela forma. Eu era uma bomba nuclear que
liberaria o caos se ativada. Somente Psiquê tinha controle sobre
aquilo, porque eu sabia que não deveria sair quebrando todos os
caras que tentavam alguma coisa com ela, por mais que eu
soubesse profundamente que aquela era a coisa certa. Malditos
deuses e suas regras de merda!
Ninguém podia encostar nela daquela forma. Eu nunca
permitiria.
Sabia daquilo — da quebra de ossos não autorizada — pelo
jeito como ela me olhou depois daquilo, como que se perguntando o
que eu estava fazendo. O mesmo olhar que me lançara quando eu
tinha socado aquele filho da mãe em alguma festa universitária. Um
olhar assustado.
Porque eu estava fora de mim nas duas vezes.
E agora sabia exatamente o porquê.
Eu também gostava dela. E, inusitadamente, não tinha nada a
ver com sexo.

Tinha vindo para o apartamento logo que a deixara na porta do


seu, desolada, voando para os braços da amiga, Margot, que
assentira para mim em agradecimento. Ela estava segura ali. Não
precisava de mais destruição do que já havia sido causada; eu era
só mais um sinônimo para aquilo, algo com que Psiquê parecera já
ter sofrido o suficiente e que não merecia.
Me sentia culpado.
Tinha dito que tudo ficaria bem, mas… e se ela descobrisse?
Psiquê era uma mortal inteligente. Eu sabia que descobriria a
qualquer momento — ela já estava me assimilando ao Eros
mitológico, uma história de faz de conta para ela e todos os outros.
Apesar de suas escapadas para o Mundo Mortal, os Doze sempre
se haviam se dedicado a manter o segredo que velava aquele
Mundo. E se eu o destruísse?
Quando joguei a jaqueta de couro na mesa de sinuca, minhas
têmporas latejando por não saber o que fazer, algo se mexeu na
sala e, de lá, uma voz áspera surgiu das sombras:
— Seja lá o que estiver aprontando, ela vai descobrir. — E,
então, Hermes apareceu à minha frente, vestindo terno pela
primeira vez em sua imortalidade. Sua expressão era severa.
— O quê? — Me fiz de desentendido, obrigando minha
expressão a se suavizar. Meu rosto debochado rapidamente voltou,
o rosto que todos eles conheciam. O único rosto que conheciam.
Porque eu não tinha alma, eles tinham dito. Só conhecia a farra e a
luxúria. Dionísio e minha mãe, Afrodite, eram os únicos que
pareciam realmente gostar de mim. Não que eu me importasse.
Relaxei o corpo tenso, ao passo que Hermes não hesitava em
me encarar.
— Sei que sua missão não foi concluída, Eros. Você está
enchendo a mim e à sua mãe de mentiras.
O sangue fugiu de meu rosto.
Hermes sabia. Um dos Doze sabia.
Ali, eu soube que tinha posto o futuro de Psiquê completamente
em perigo.
— Do que está falando? — tentei desconversar com um sorriso
petulante, passeando pela sala. — Confundiu as mensagens,
Hermes?
Seus olhos eram afiados.
Ele não estava ali para brincadeiras.
— Psiquê Di Laurentis. Vinte e um anos. Mortal. — Seu nome
em sua boca me fez cerrar os punhos com força. Eu não podia
ousar perder o controle na frente dele. — Sua missão.
Eu sabia muito bem daquilo.
— O que aconteceu com ela, Eros? — Fez um círculo em torno
de mim, um corpo estático no meio da sala. — Onde ela está agora?
— Agora casada, provavelmente — debochei, enfim me
deslocando até o uísque. Precisava encher a cara com urgência.
Com um gesto de mão feito por Hermes, toda a bebida em
minha cristaleira próxima à TV sumiu, inclusive os copos baixos de
vidro. Esperava que Dionísio descobrisse e que viesse tirar
satisfação com Hermes. Nunca se deixa um deus sem bebida,
Dionísio dizia. Merda. Não podia pensar naquilo, não naquele
momento.
— Por que está mentindo? — Sua voz veio de trás de mim, que
estava virado de costas para ele, ainda encarando o armário vazio.
Decidi me virar de volta.
Sabia que meus olhos estavam flamejando, mas isso eu já não
podia mais evitar.
— O que você quer, Hermes? — Encarei-o, que estava parado,
as mãos cruzadas atrás do corpo. O terno não lhe caía bem.
— Que você conte a verdade para sua mãe — respondeu,
direto. Sabia que ele podia sentir o medo correr por minhas veias. —
Antes que ela mesma venha até aqui. — Aproximou-se alguns
passos de mim e, então, me encarou. — E você sabe que, com sua
mãe no Mundo Mortal, nada poderá detê-la. — Sombras
perpassaram seus olhos. — Até breve, no Olimpo, espero.
Em instantes, Hermes deu ao vazio o seu lugar.
Uma brisa arranhou meu rosto, sussurrando-me que o tempo
estava sendo contado.
E que logo acabaria.
N aquele mesmo dia, Kurt me ligou quatro vezes e deixou dois
recados. Sentada no sofá da pequena sala, ignorei todos.
Margot estava me abraçando enquanto o celular vibrava. Eu
o encarava, as lágrimas já secas no rosto. Eu o odiava. Mais do que
nunca.
Por ter me abandonado, por ter aparecido.
Eu não sabia que teria ficado tão chateada como estava. Margot
me disse que nós tínhamos ficado muito tempo juntos e que, por
isso, ele ter desistido de mim pelo basquete tinha deixado uma
marca feia, que demoraria a cicatrizar. Eu apenas assentia com a
cabeça, me perguntando se aquilo era mesmo real.
Mas não me deixei abalar por muito tempo. Eu me ergui e disse
a Margot que já estava melhor. Ela hesitou em me deixar sozinha,
mas sabia que eu precisava daquilo mais que tudo naquele
momento. Então, fui até meu quarto, esperando que tudo voltasse
ao normal tão rapidamente quanto chegara àquele caos. Disse a
mim mesma que estava bem. Que eu sonharia com Aristóteles
naquela noite.
Então, passei o resto do meu dia no apê, enquanto Margot teve
de ir à UC para uma aula de Ecologia. Sentada mais tarde no sofá,
assistindo a um filme qualquer, eu pensei nele. Naquele que tinha
me ajudado quando eu havia precisado.
Eros.
Logo meus olhos estavam sobre meu celular, que peguei às
pressas do braço do sofá. Mandei uma mensagem para ele.

Obrigada por hoje.

Ele não demorou a responder.

Eros:
Por nada. Você está bem?

Um pouco melhor. Obrigada de verdade.

Eros:
Que bom. Conte comigo, princesa. Sempre.

Minhas aulas do dia haviam acabado e não tive nenhuma


notícia de Eros. Tinha passado o dia pensando nele, me
perguntando se quando saísse da UC ele apareceria para me levar
para navegar no Michigan em seu iate ou correr de Audi feito doidos
pelo centro. Entretanto, ele não apareceu.
Ele tinha parado de fazer aquilo. De sumir, queria dizer.
Era claro que não nos víamos todos os dias, mas eu senti falta
dele em especial naquele momento. O dia ficava um tédio sem seus
flertes indiscretos e seus sorrisos convencidos. Eros sabia que era
lindo e não poupava esforços em simplesmente ignorar aquilo, e eu
concordava que um homem daqueles não devia se esconder.
Tudo nele me impressionava.
Seus olhos âmbar. Seu físico estruturado. Seu sorriso travesso.
Começava a perceber que estava mais fascinada por ele do que
deveria. E onde estavam meus esforços nos últimos dias para ser a
predadora do jogo divertido que jogávamos? Eu só conseguia
pensar nele, admirá-lo. Porque o filho da mãe era lindo pra caralho.
Minhas memórias da outra noite em seu apartamento — de
quando ele tinha preparado um jantar muito delicioso e me
surpreendido com isso — eram infelizmente embaçadas, confusas.
Como uma cama de gato muito bem esquematizada.
Lembrava dos beijos, dos toques — talvez as melhores partes.
Mas nada mais. Eu podia ter dito ou feito coisas que não queria
e de que não me lembrava.
Maldito vinho! Porque eu queria me lembrar de tudo o que
tínhamos feito naquele apartamento, embora talvez soubesse que
não tínhamos dormido juntos, o que ele fizera bem, porque eu
estava bêbada. Nem mesmo se eu pedisse teria gostado daquilo —
eu pedira?
De qualquer forma — e continuando o pensamento —, estava
encantada.
Nunca me cansaria dele.
Eu faria de tudo para tê-lo na palma da minha mão, o que de
certo modo ele estava, porque aquilo tudo não passava de um jogo
que terminaria em ruínas para ele. Porque eu faria o que quisesse.
Estava gostando do novo posto. Eu já não era mais uma presa, e
que pena para ele.
Para minha infelicidade, a voz de Margot invadiu minha mente.
A pergunta em que o foco era sobre estar gostando dele. Era
mesmo verdade que aquilo só se passava por diversão? Eu gostava
dele, mas… daquela forma?
E, de repente…
Touché.
Eu não deveria estar me perguntando sobre isso. Eu já deveria
ter a resposta na ponta da língua, o que só podia significar uma
coisa: ou eu estava gostando dele ou eu não estava mais me
divertindo com aquilo.
E, se perguntassem ao mundo, diria que eu com certeza estava
me divertindo com ele, o que me dava a resposta para aquela
maldita dúvida.
Eu estava gostando de Eros.
Mesmo que eu não soubesse seu sobrenome, sua cidade natal
e os nomes da sua família de dez pessoas, mas eu conhecia sua
essência. Sabia que ele não me faria mal, que ele me defenderia
como já tinha feito. Que ele comandava uma empresa, sabia
cozinhar, sabia falar muitas línguas e navegar a porra de um iate.
Que ele era um bom homem. Que ele era o melhor sexo que já
tivera na vida, por mais que tivesse dormido com no máximo cinco
caras — eu não era uma pessoa que dava bola para números.
E, naquele momento, eu não conseguia mais aguentar. Não
conseguiria esperar pela sua voz na ligação ou pela sua resposta
por mensagem.
Precisava vê-lo naquele instante.
E eu chutava um lugar que não o seu apartamento.

Quando cheguei ao clube náutico de Chicago, um vento frio


arranhou meu rosto e corpo, o que me fez me abraçar com firmeza.
Estava caminhando pelo extenso píer labiríntico quando o avistei,
olhando para a água do Michigan e sentado na cerca metálica que
circundava a grande embarcação, branca como papel. Tinha em
mãos um copo baixo de uísque.
Ele parecia pensativo, como que avaliando uma questão
importante.
Ainda abraçada a mim mesma, subi no barco pelos degraus na
traseira e, então, até a parte de cima, a frontal, onde ele ponderava
sereno. Foi quando eu disse um fraco olá que ele se virou, um
pouco assustado.
— Te assustei? — perguntei com um sorriso, observando seus
fios bagunçados de cabelo. Dessa vez, não por mim.
Me aproximei mais dele, sentindo meu rosto enrubescer pelo
frio. Meu nariz e minhas mãos, que agarravam meu sobretudo
marrom, estavam congelados. Talvez até mesmo meus pés,
envoltos pelas botinas pretas, estivessem.
O vento era mais gelado ao redor do Michigan.
Ele me observou por um instante antes de responder:
— Não. Não, não me assustou, Psiquê. — Meu nome em seus
lábios fez meus pelos eriçarem de um modo que o frio não os fizera.
Gostava da sensação que me tomava quando estava com ele.
Eros ficou de pé diante de mim e me fitou nos olhos, o que me
possibilitava admirar os seus igualmente, dourados como pequenas
moedas. Eles me hipnotizavam toda santa vez. Nunca antes vira
olhos como aqueles.
— Aconteceu alguma coisa? — Ergui a sobrancelha devagar
enquanto encarangava de frio ali fora, a brisa me açoitando sem
pudor. Estava louca para me ver livre daquele vento congelante.
Ele desviou o olhar para sua mão e balançou o líquido
acobreado em seu copo, logo o colocando sobre mim outra vez.
Não conseguia decifrar o enigma presente ali naquele olhar. Havia
algo sombrio, melancólico. Com certeza havia acontecido alguma
coisa.
— Não. Está tudo bem — me dirigiu as palavras enquanto
mantinha seu olhar sobre mim e nada mais.
E ele não queria me contar.
Assenti de leve, mostrando que tudo bem ele não me contar.
Sabia que devia ser algo particular.
— Você também pode contar comigo. — Ofereci um sorriso
contido a ele, lembrando-me das palavras enviadas para mim por
mensagem. Queria que ele soubesse que também podia contar
comigo para tudo. Era uma coisa reconfortante.
Então, comecei a diminuir, aos poucos, a distância entre nós.
Até que ela não passasse de mais de vinte centímetros. Uma
distância perigosa, tentadora, que certamente me faria esquecer
como se respirava.
Porque agora eu sabia que sentia alguma coisa por ele. Podia
ser minúscula, mas a sentia intensamente, de uma forma que
poderia me avassalar e me destruir de dentro para fora se
continuasse, mas não sabia ao certo se queria aquilo.
Fazia tanto tempo que não me envolvia de verdade com
alguém, e talvez eu ainda não estivesse preparada.
— Psiquê — Eros grunhiu quando toquei seu peito, me
encarando com seus encantadores olhos dourados. — Não estamos
ultrapassando os limites desse jogo?
Coloquei o dedo indicador sobre a boca, emitindo um som para
que ficasse em silêncio, e, então, subi a mão um pouco mais, para
que envolvesse sua nuca. Eu adorava passear a mão pelo seu
corpo, turistá-lo.
— Nós não deveríamos — ele tentou, falando baixo, como se
ninguém pudesse ouvir tais palavras.
Esquadrinhei seu rosto, parando por último em seus olhos, que
tomavam um brilho que nunca tinha visto antes. Um brilho cegante,
animado. Não sabia dizer se meus olhos estavam da mesma forma,
mas com certeza chegavam perto.
— Por favor, me leve para a cama — sussurrei no seu ouvido,
na ponta dos pés, tentando ficar na mesma altura que a dele, o que
era impossível. Eros devia ser uns vinte centímetros mais alto que
eu.
Ele soltou um grunhido baixo que me fez estremecer e, então,
me pôs em seu ombro agilmente, como se eu fosse uma maldita
pena. Minhas pernas estavam à frente de seu corpo, enquanto meu
tronco estava às suas costas. Não me debati. Em vez disso, deixei
uma risada escapar.
Eu era como um maldito saco de ração em seu ombro.
Comigo ali, Eros desceu degraus e mais degraus, me levando
para dentro do iate enquanto eu ria, me divertindo com a situação.
Nós entramos em um cômodo — percebi que lá dentro era muito
maior do que havia imaginado — e logo ele me jogou em uma cama
macia, retirando os calçados e a camiseta antes de vir para cima de
mim. Tivera tempo de tirar os meus também.
Mas meu sobretudo e a blusa por debaixo dele era ele quem
teria o prazer de retirar — o que ele o fez com delicadeza, seus
dedos ocasionalmente tocando minha pele bronzeada. A pele dele
era lustrosa, magnífica. Me perdi no seu abdômen, o que,
percebendo, o fez sorrir com malícia.
Porra, como alguém podia ser tão bonito? Como um maldito
deus?
Eu estava rapidamente sem as peças superiores. Faltavam as
inferiores.
Eros traçou um caminho de beijos suaves do meu pescoço à
barriga, suas mãos apertando minha cintura com firmeza. Quando
chegou na última parte, me lançou um olhar repleto por desejo, que
me fez perder o fôlego.
Faríamos um estrago naquela cama hoje.
Ele abriu o botão e logo o zíper, sorrindo travesso para eles.
— Adeus, calça jeans — disse em ironia enquanto deslizava a
calça pernas abaixo, o que me fez abrir um sorriso imenso ao
desviar o olhar para o teto branco.
Eros se deu um tempo para me observar de lingerie branca, de
renda como as outras. Seus olhos brilharam, o que me fez suspirar.
Pare de brincar assim comigo, porra. Estava prestes a dizer isso em
voz alta quando ele finalmente a retirou, os minúsculos pedaços de
renda deslizando com facilidade por meu corpo, agora totalmente
nu. Ele ainda estava com sua calça quando começou.
E foi completamente diferente das outras vezes — calmo,
sincero.
Quando terminamos, ele sussurrou ao meu ouvido:
— Prépei na apomakrynthoúme. — O que não ousou traduzir.
O fereci um sorriso singelo à sra. Donovan quando passei por
ela para ir até a seção de História da biblioteca, que ficava
no térreo. Ela me lançou um sorriso meigo de volta, um que
me fez pensar em como ela podia não estar cansada de ver minha
cara quase todos os dias. Ela era uma senhora na casa dos setenta
que trabalhava ali desde muito antes de eu chegar em Chicago e
que sempre tinha sido doce comigo.
Eu estava ali para alugar mais uma vez o livro de mitos gregos.
E, quando eu o encontrei na estante polida, fui direto com ele
até as poltronas macias e altas logo atrás dela. Era o local de leitura
da biblioteca, nos fundos. Um local aconchegante, com direito a
lareira e tudo.
Abri o livro na parte de Ares e Afrodite, não indo direto até Eros,
o deus do amor, que, pelo visto, era o mais famoso dos irmãos.
Decidi por começar desde a primeira linha daquele capítulo.
Curiosamente, prestava muita atenção em cada palavra, como se
aquilo tudo pudesse ser real; como se pudesse ser parte do Eros
que conhecia. Não dei bola para a voz querendo rir daquilo. Eu me
concentrei, me doei completamente à leitura.
Era final de tarde quando tinha chegado à biblioteca.
E fiquei lendo até a noite, ávida, como se apenas segundos
tivessem se passado. Tinha noção de que as pessoas, pouco a
pouco, estavam indo embora dali, enquanto eu permanecia,
mergulhada no mito criado quase três mil anos antes. Eu ficava
perplexa, ao absorver as linhas, com como aquilo ainda podia estar
vivo entre nós. Ouvíamos sobre o calcanhar de Aquiles, sobre a
caixa de Pandora… mesmo todo aquele tempo depois.
Ria comigo mesma enquanto relembrava as semelhanças: ele
tinha sete irmãos, ele era o mais velho deles, ele trabalhava com a
mãe, ele falava grego, ele sabia sobre mitologia. De repente, não
estava mais rindo. Estava perplexa. Não era possível que os dois
fossem tão parecidos. Aquilo soava bizarro, sombrio.
Qual a chance entre milhares de tantas características baterem?
Qual a chance entre milhares de eu insinuar que ele falava
grego e ele falar?
Engoli em seco.
Não era possível. Eu estava ficando paranoica, louca de estar
cogitando alguma coisa assim, porque era algo óbvio: a mitologia
não era real. Assim como a magia, como as fadas, como o Papai
Noel. Eram todos mitos para divertir e manter entretida a sociedade.
Estava tão imersa em pensamentos que levei um susto quando
meu celular tocou, o que foi suficiente para que eu arranjasse
minhas coisas para ir embora. Margot já devia estar sentindo a
minha falta. Aliás, devia ser ela ao telefone.
— Alô.
— Boa noite, irmãzinha.
Ah, Deus, não.
— Cassidy. O que houve?
— Como assim o que houve? Só quis ligar para minha
irmãzinha e saber como as coisas estão.
Era óbvio que tinha alguma coisa por trás.
Cassidy nunca me ligava.
Enfiava o livro em minha bolsa enquanto segurava o celular
contra a orelha. A sra. Donovan e eu éramos as únicas que haviam
restado na ampla biblioteca.
— Está tudo a mesma coisa. E o bebê?
— Então, na verdade, era sobre isso que queria conversar com
você. — Sabia. — Vai estar aqui para o nascimento?
— Cassidy… Eu tenho que estudar, mas sabe que gostaria
muito de estar aí.
Era verdade. Os trabalhos começariam a ser entregues naquela
semana, terminando só Deus sabia quando. Não podia abandonar
as coisas ali e ir correndo para lá quando alguém ligasse para dizer
que era a hora. Além do mais, demoraria duas horas de Chicago até
Peoria.
Era claro que gostaria de acompanhar o nascimento.
Mas, em parte, Cassidy só estava ligando pela atenção, algo
sem a qual ela não conseguia viver.
— Prometo visitar vocês dois — disse, triste pelo inconveniente.
Ouvi um suspiro através da linha.
— Traga presentes.
Segurei a vontade de revirar os olhos.
— O pequeno Philip está bem?
— Sim, ele está. Minha barriga está gigante. O médico diz que
deve nascer na semana que vem, por isso já estava ligando para
todos da lista.
Uma lista.
E eu era a última, presumia. Já era noite. Cassidy não
costumava começar suas tarefas pela noite.
— Que bom que está tudo bem por aí. Tenho que desligar. Até
mais, irmãzinha.
— Até. — E desligou.
Eu nem mesmo havia dito que estava tudo bem por aqui.
Cassidy costumava ligar para pedir coisas, por isso não
esperava nada mais dela. Suspirei enquanto caminhava pelo
campus escuro, com poucas pessoas circulando.
Me abracei diante da noite fria.
E uma coisa estranha aconteceu: senti alguém me observar. Por
isso, virei a cabeça para todos os lados, procurando pelo par de
olhos, o qual não encontrei. Todos que estavam ali andavam firmes
até onde quer que fossem, sem tempo para outras coisas.
Engoli em seco.
Eu devia estar cansada.
Mesmo assim, apertei o passo e não olhei para outra direção
que não à minha frente.

Encontrei Margot arrumada quando cheguei ao apartamento,


com perfume e tudo — inclusive, sua camiseta de Amiga do meio-
ambiente, o que só podia significar uma coisa.
— O que aconteceu? — Minha amiga se preocupou e chegou
mais perto de mim, me analisando da cabeça aos pés. — Você
está… pálida.
— Nada. Só acreditava estar sendo perseguida — debochei,
querendo uma boa bebida naquele momento. Ela ergueu a
sobrancelha enquanto eu a encarava. — Nós vamos sair? —
questionei ao observar suas roupas antes que ela falasse alguma
coisa.
Margot deu uma breve olhadinha em si mesma, meio que
aprovando o seu visual em seguida. Então, tornou a olhar para mim
mais uma vez, os olhos um pouco surpresos por eu ter me incluído.
— Eu, sim, com o Justin. Vamos pro Esquina. Quer ir também?
— ela convidou erguendo uma de suas finas sobrancelhas, seu
cabelo castanho-claro escorrido sobre o ombro. Ela até mesmo
tinha alisado os cabelos. Seus olhos azul-acinzentados ainda me
encaravam.
Encarei-a de volta, me perguntando se a resposta não estava
estampada bem na minha cara.
— Quero. — Peguei minha bolsa de volta e coloquei-a no
ombro, passando pela porta do apê. — Tô precisando beber. —
Suspirei por sobre os ombros, o que a fez sorrir.
A verdade era que vinho não me satisfaria estando imersa
naquele mar de confusão, e Margot sabia muito bem disso.
Era verdade, eu ainda estava arrasada pelo que tinha
acontecido com Kurt cinco dias antes. A cena ainda estava fresca
na minha memória: ele à minha frente, eu completamente estática,
Eros logo o ameaçando com o olhar. Tudo em questão de segundos
na minha cabeça, que ainda tentava processar o que estava
acontecendo.
Margot acompanhava minha recuperação, que basicamente
consistia em beber e trocar mensagens com Eros, que entendia
minha necessidade de ficar sozinha naquele momento. A verdade
era que minha necessidade já era outra: tê-lo ao meu lado. Ali e
agora.
Ele estava sendo tudo de que precisava: cantadas sujas e boa
lábia — o que, na verdade, era quase uma redundância, porque só
sujeira saía daqueles lindos e caros lábios.
O sexo, por mais que ótimo, não ajudaria naquele momento. Na
verdade, eu nem tinha tempo para pensar naquilo. Eu só
conseguia… beber. Não deprimida — jamais deixaria que Kurt
Monaghan me deprimisse —, só… querendo esquecer aquele
episódio sinuoso e cansativo.
Eu tinha ficado em casa apenas no primeiro dia, porque Kurt
Monaghan não me deixaria para baixo, não depois de um ano. Não
depois de me trocar pelo esporte. Suspirei e entornei o vinho que
havia comprado no supermercado antes de vir pro apê, talvez
pensativa demais.
Ao me dar conta de que a garrafa escura já estava pela metade,
liguei para Eros no mesmo instante, quase que em desespero. Me
encontre no campus foi a única coisa que lhe disse depois de ouvir
um Alô melódico.
Eu precisava dar uma volta.
Eu precisava sair daquele apartamento, que de repente pareceu
abafado demais.
Peguei as chaves e tranquei o apê me sentindo um pouco tonta
pelo álcool, embora seu teor no vinho fosse baixo. Mas você bebeu
a porra da metade da garrafa, uma voz invadiu minha mente,
parecendo mais sã do que eu mesma estava. Desci as escadas sem
pressa, com um medo sutil de tropeçar. Eu senti meu corpo
queimando quando cheguei à rua. Não pela bebida — embora
estivesse aquecida por isso —, mas por outra coisa. A mesma coisa
que tinha sentido ao vir para o apartamento na noite anterior.
Observação.
Alguém estava me observando.
Embora eu certamente não estivesse sóbria naquele momento
para tirar conclusões sãs, sabia que não estava maluca; não quando
quis me abraçar e olhei para todos os lados ao atravessar a rua
quase deserta. Os universitários estavam calmos hoje. A sensação
era incômoda e desconfortável.
Por mais que seguisse meus instintos na maioria das vezes,
tentei dizer a mim mesma que, sim, eu estava maluca. E bêbada.
Apressei o passo até encontrar um par de olhos âmbar me
encarando no campus e, então, um tipo diferente de queimação me
percorreu, um arrepio me subindo à espinha. Como se todos
pudessem sentir a tensão sexual ali.
Mas não ignorei o que tinha sentido antes.
Pelo menos, não até ficar cara a cara com Eros, que recebeu de
mim um sorriso certamente bêbado. Ele chegou mais próximo, como
se o cheiro do vinho estivesse impregnado em mim. Então desceu
os olhos para meu corpo, esquadrinhando-o com ferocidade.
Eu pigarreei.
— Ah, desculpe. Estava apreciando seu belo corpo. — Deu um
sorriso torto que fez minhas pernas quererem ceder,
infortunadamente lembrando-me de nossos momentos na cama.
Então, ele deu de ombros, enfiando as mãos nos bolsos de sua
jaqueta de couro marrom; uma que ele parecia apreciar de um jeito
especial. Do tipo que você experimentava com certo receio, mas
que logo se encantava tanto que não conseguia mais tirar. — É
inevitável, princesa — ele concluiu.
Quando não respondi de imediato, devido ao meu temporário
metabolismo lento, ele franziu a testa.
— Aconteceu alguma coisa?
Sorri, apreciando a preocupação.
— Você está preocupado.
Eros ergueu uma sobrancelha, achando alguma coisa estranha.
— Por que me chamou aqui? — Então, ao olhar para meus
lábios, que subiam em um sorriso talvez tosco, ele grunhiu. — Você
está bêbada, não está? Posso te levar de volta até em casa.
— Eu te chamei porque… não queria ficar naquele…
apartamento. — É, eu estava muito lerda. — E, então, fui
perseguida. — Eu ri da situação, o que ele, ao contrário de mim, não
achou engraçado.
Seus lindos e exóticos olhos não carregavam seu brilho
habitual. Na verdade, estavam sombrios, como em raras vezes já os
vira. Seu maxilar travou e o resto de seu corpo se tensionou. Eros
parecia prestes a ter um troço pela simples menção de estar sendo
perseguida, o que não me assustava tanto naquele estado.
— Você é grande. Muito grande.
Era verdade. Alto como um poste. Eu era como uma criança
perto de Eros, que também se parecia com uma tora, uma obra
renascentista, um trabalho dos deuses. Sua beleza era tanta que
assustava.
Como alguns costumavam dizer sobre mim.
— Como assim, perseguida? — Estava obviamente
preocupado. Muito preocupado.
— Ah, não é nada de mais.
Ele suspirou e olhou para o lado, onde algumas garotas o
olhavam com admiração, com calcinhas certamente encharcadas.
Deram risadinhas e cochicharam entre si quando Eros reparou. Eu
fiquei puta da cara, assim, de repente. Eros não ofereceu nenhum
sorriso a elas. Na verdade, era como se ele tivesse olhado para o
nada.
Uma atitude completamente diferente das de antes, as quais ele
respondia com um sorriso malicioso e predatório. Bem, eu não
precisava me preocupar. Recebia minha dose diária desses
sorrisos, o que apagou minha chama de fúria para dar lugar a um
sorrisinho convencido.
Eu tinha Eros na palma da minha mão.
— Não vai dar a elas o que querem?
Ele parecia ter a cabeça nas nuvens, mas abriu um sorriso
devastador para mim, do tipo que me fazia estremecer na maioria
das vezes.
— Não quando eu já tenho o que quero. — Seu olhar,
direcionado a mim, estava prestes a abrir um buraco no meu peito.
Queimava como o inferno, um que eu estava disposta a cruzar.
— É mesmo, deus do amor? — debochei e, enquanto me
aproximei um passo, ele se afastou dois.
— Como? — indagou, confuso e tenso.
Atrás dele, árvores se remexiam com o vento frio e cortante de
Chicago, o céu noturno formando uma bela paisagem atrás destas.
Meu metabolismo acelerou.
— É engraçado como vocês dois são tão parecidos. Assustador,
até. — Inclinei a cabeça para ele, dando de cara com novos ângulos
daquele rosto bonito. — Sete irmãos. Trabalham com a mãe. Você
curiosamente fala grego.
Engoliu em seco.
— Psiquê…
— Por que grego? — Quis saber, realmente curiosa.
— Tenho contato com… empresas da Grécia. — Seus olhos
agitados finalmente pararam em mim, como que pedindo aprovação
pela resposta.
— Disse que vem de muito longe. De onde, para ser mais
exato?
Eros enfim assumiu uma postura ereta… e sombria. Seus olhos
agora explodiam em chamas escuras.
— Certas coisas devem ser mantidas em silêncio, Psiquê. —
Não desviou o olhar de mim, duro como pedra. Um tom áspero e
curiosamente antigo, que nunca tinha ouvido sair de sua boca.
Rasgante. Uma expressão totalmente diferente da anterior: confusa,
preocupada, tensa.
Pisquei uma, duas, três vezes, perplexa.
— Vou te acompanhar até o… apartamento — concluiu, o que
me fez assentir, como se eu servisse a ele. Um lapso de sua
expressão anterior passou por seus olhos dourados como ouro.
Algo me fazia querer derretê-lo, aquele ouro, e forjar uma coroa
com ele.
Ajoelhe-se diante de seu deus, uma voz acompanhou o
pensamento — a propósito, uma voz que não a minha. Eu estava
tão sóbria naquele momento que podia sentir meu sangue correr por
minhas veias. Arrepios adentraram meus ossos.
Não do tipo bom.
Com certeza, não.

Eros havia me dito que deveríamos nos afastar.


Era a tradução exata do que ele havia me dito na noite em que
tinha conhecido o interior de seu iate.
Deveríamos nos afastar, princesa.
Afastar, afastar, afastar.

Eu corria, rápida e freneticamente.


Corria de alguma coisa. Ela me perseguia, uma voz antiga e
áspera me dizendo coisas em uma língua tão antiga quanto. Eu não
entendia absolutamente nada, mas sabia muito bem que era cruel.
Não sabia onde estava.
Era apenas um corredor escuro e frio que parecia infinito; que
parecia me levar ao completo vazio. O barulho da coisa ficava cada
vez mais próximo, ao passo que as batidas de meu coração
aceleravam, tão altas em meus ouvidos que meu coração parecia
querer sair pela garganta.
Minhas pernas começavam a ficar fracas. E a coisa riu, uma
gargalhada grave e assustadora, de modo a reverberar pelas
paredes confinadoras que pareciam se afunilar ao meu redor.
Foi quando cheguei ao fim do corredor que entendi as últimas
palavras proferidas a mim:
— Você não vai escapar, coisinha mortal e insignificante.
Então caí em um buraco profundo, meus braços e pernas ao
alto, o vazio me abraçando enquanto observava um monstro feito
das sombras sorrir do buraco em que havia caído, um sorriso que
confirmava suas palavras mergulhadas em crueldade.
— Espero que seu pedido para que eu viesse até aqui realmente
mereça minha atenção. — Hermes surgiu ao lado da parede
envidraçada do meu apartamento, ao passo que eu balançava o
líquido âmbar do uísque em meu copo. Minhas feições não eram
convidativas, muito menos acolhedoras. Elas eram cruéis.
Meus olhos permaneciam na bebida.
Não me dei ao trabalho de responder ou mesmo de ir até ele.
Em vez disso, dei um demorado gole, saboreando a bebida mortal
de gosto forte, que nem se eu bebesse cem garrafas ficaria bêbado.
O deus ergueu a sobrancelha, um ato sutil de me perguntar o
porquê do pedido.
— Soube que andou… perseguindo Psiquê. — Levantei os
olhos para ele, por fim.
Um lampejo percorreu o âmbar de seus olhos.
— Ah, sim, a mortal. Sua missão. — Fez questão de me
recordar. — Inconclusa.
Hermes me encarava. Não hesitei, porque eu estava muito
inconformado com aquilo. Ele assistia à Psiquê pelas minhas
costas.
— Ela é minha preocupação, Hermes. — Só faltava fumaça sair
das minhas narinas. — Se preocupe em entregar suas mensagens.
Ele não se abalou. Em vez disso, se dirigiu lentamente até mim.
Atrás dele, Chicago reluzia na noite, acolhedora e festiva. Sempre
uma ótima anfitriã.
— Mensagens corrompidas por terceiros — disse, nada além de
reprimenda na sua expressão severa, que tinha o intuito de me fazer
ceder. Seria impossível, porque Psiquê estava muito acima de tudo
aquilo: do Olimpo, da minha mãe, da minha missão. — Precisava
me certificar de que a mortal estava em Chicago.
— E onde mais estaria? — Apoiei meu copo na baixa mesa de
centro e inclinei a cabeça, incomodado. Sentado no sofá caro da
minha sala, cruzei os braços sobre os joelhos a fim de encará-lo.
— Não teria duvidado que tivesse ficado com pena dela e a
encaminhado para outro lugar para protegê-la de seu destino já
escrito.
— Destino esse dado pela minha mãe. — Suspirei alto. — Um
que ela não merece. Ela é apenas uma mortal. Não tem culpa de
ser… linda.
Hermes me avaliou rápido.
— Sabe que é muito mais do que isso, Eros. É o Destino. — Ao
terminar de falar, pareceu se dar conta de uma coisa. — Você
parece mesmo ter construído laços com essa… mortal. E você
também sabe como não vale a pena. Afrodite seria a primeira a se
opor. A verdade pela qual teria de passar… seria o caos. Você
simplesmente não pode liberar esse caos, Eros. Desequilibraria
nossos Mundos. Sua querida mortal não aguentaria. — Seus olhos
obtiveram um brilho fosco e… assustado. — Você não pode estar
considerando algo construído com ela.
Não ousei piscar.
Eu sabia de tudo aquilo e mais um pouco.
— Isso poderia quebrá-la para sempre.
Me levantei do sofá com convicção.
— Não. Você não vai me fazer mudar de ideia. — Suspirei. —
Apenas pare de persegui-la, Hermes. — Usei um tom de voz rude
que sabia que não deveria ser usado com nenhum dos Doze.
— Como quiser, mas repense se sua decisão vale tudo isso. —
Ele se virou, mas fez uma breve pausa. — E nunca mais use esse
tom comigo de novo.
Então evaporou.
E, enquanto enchia meu copo de uísque mais uma vez, eu
repensei, porque sabia que Hermes estava certo — isso poderia
quebrá-la para sempre. Mas, principalmente, porque éramos dois
que estávamos envolvidos, e eu não deveria pensar só em mim.
Psiquê merecia o melhor para ela, e eu deveria me conformar
com o fato de que talvez eu não fosse isso.
C onfessava ter me esquecido de como era estar em uma
festa, já que a última tinha sido havia quase um mês.
Infelizmente, era a mesma coisa de todas as vezes: bebidas,
universitários bêbados e vomitando, pessoas se beijando, um hip-
hop no volume máximo. Era impressionante o quanto as pessoas
gostavam de festas, chegava a ser bizarro.
Óbvio, tinha sido Margot Linderman quem me arrastara.
Não me deixe sozinha. Esqueça Aristóteles. Era sempre o
mesmo discurso — um discurso engraçado, que me arrancava
muitas risadas. Acho que era por isso que eu era convencida;
deixava Margot me manipular com suas palhaçadas.
Estávamos na fraternidade de Megan Richards, as mesmas
festa e anfitriã do dia em que quase tinha sido forçada a fazer algo
que não queria por um universitário bêbado e provavelmente
também chapado. Os homens eram todos iguais: babacas. Mas um
em especial pareceu brilhar em exceção e em neon na minha
mente. Um sorrisinho invadiu minha face por um instante.
— Caidinha pelo Eros ou pelo Ari dessa vez? — Margot
arqueou uma de suas sobrancelhas bem cuidadas, dando um
apelido carinhoso a Aristóteles.
— Nenhum — menti, querendo passar logo pela multidão.
Sempre tão cheias.
De relance, consegui reparar que Margot complementava seu
rosto com uma expressão incrédula e divertida. Uma que parecia
me dizer Ahã, sei.
Ignorei-a, porque não queria discutir minha vida amorosa
naquele momento. Fui abrindo espaço até a sala de estar, onde
podíamos nos sentar para conversar, embora soubesse muito bem
que Margot queria dançar. Mas então alguém me impediu de chegar
até o sofá quando minha amiga já se dirigia à pista. A princípio, a
aparição me causou arrepios — devia ser pelo sonho estranho que
tinha me aterrorizado na noite anterior e que ainda não escapara da
minha mente.
— Megan — cumprimentei a loira alta com um copo de bebida à
minha frente, a anfitriã da festa que com certeza me odiava.
A universitária me lançava olhares raivosos pelo campus
quando eu tinha o desprazer de flagrá-la e não se dava ao trabalho
de esconder. Ela me encarava de volta, firme como nunca. Margot
dizia que era obcecada por mim, porque, segundo ela, eu era mais
bonita. E, por isso, tinha inveja. Muita inveja. Nunca tinha trocado
sequer uma palavra comigo.
Até aquele dia.
— Psiquê! — Enganchou seu braço no meu com um sorriso
falso, me conduzindo aos poucos até a cozinha. — Percebi que
você prendeu a atenção daquele gato. Alto, olhos âmbar. Qual o
nome dele mesmo? — interrogou com uma pontada de desgosto, a
falsidade escorrendo pela sua boca carnuda. Seus olhos azuis eram
agressivos.
— Eros — respondi, fazendo pouco caso. — O que tem ele?
— Ah, só queria dizer que você é muito sortuda — respondeu,
saindo da minha cola e se pondo a encher um copo para mim. —
Somos todas caidinhas por ele, sabe? Desde que vimos ele na UC.
Com você — concluiu, venenosa, e me ofereceu o copo cheio da
bebida mesquinha de fraternidade. Aceitei, fingindo adorar ponche
misturado a vodca.
— Hum, não é nada sério. Pode… ficar com ele — disse,
hesitante demais para o meu gosto. Os olhos dela brilharam em
melancolia, parecendo rir de mim. Não me lembrava de ter contado
uma piada, mas, a princípio, era aquilo que tinha parecido para ela.
— Ah, eu já fiquei — respondeu, orgulhosa, com um bater de
cabelos. — Mas, quem sabe, rola uma segunda vez.
Pisquei uma, duas vezes.
Então uma cena em específico da primeira festa em que Eros e
eu tínhamos ido se acendeu na minha mente. Tinha sido Eros
colocando a língua dentro da garganta de uma loira gostosa. Não
somente isso, mas ela: Megan Richards.
— Ah. — Foi a minha reação, o que a fez abrir um sorriso
malicioso.
— Mas, sabe… Não acho que você mereça ele. É muita areia
pro seu caminhãozinho — enfatizou a última palavra, me olhando de
cima a baixo. Uma víbora dando seu bote. Meu sangue pareceu
ferver.
Me forcei a sorrir enquanto a festa pulsava ao nosso redor. Seus
cabelos caíam como uma cachoeira, lisos em cima e com cachos se
abrindo em baixo. Megan Richards com certeza era a garota mais
cobiçada de toda a UC e sabia muito bem disso.
— Fizemos muito além do que nos beijar — contei, parando só
depois para pensar no que havia dito, tarde demais. Por que eu
estava tão incomodada com aquilo, com a alegação dela?
A loira fechou a cara, parecendo derrotada.
— Você foi só mais uma de muitas. Não se destrua pensando
que é algo mais do que uma simples transa. — Sorriu de forma
ameaçadora para mim e, então: — Aproveite a festa.
Saiu rebolando, me deixando perplexa.
Eu com certeza sabia que Eros já tinha conquistado todas as
garotas da UC — e suas vaginas. Mas o que ela tinha falado… Era
verdade que Eros era do tipo que transava e caía fora. Pelo menos
era o que ele aparentava com sua postura confiante e suas piadas
sujas.
Mas tinha certeza de que ele estava especialmente determinado
a me conquistar. Eu era sua única distração, percebia. Ele me
olhava com desejo, como se eu fosse a única garota do mundo, o
que fazia meu lado predadora pulsar de orgulho. Além do mais, ele
havia me dito que eu era a única em muito tempo, mas aquilo não
estava em pauta naquela noite.
Olhei para o ponche repugnante no meu copo. De plástico,
observei tolamente.
Nada de plástico, a voz da minha amiga e colega de quarto
ressoou na minha cabeça cheia de nós. Fiquei encarando o copo
até decidir jogar todo o líquido na pia para depois colocá-lo no lixo
reciclável.
Fui até Margot, a mente ainda longe daquela noite agitada e
dançante. O som alto e explosivo causava morte celular no meu
cérebro — mais uma das muitas expressões de Margot —, me
fazendo franzir a testa enquanto me espremia entre as pessoas
para chegar até a sala de estar.
Encontrei-a dançando contra um calouro alto e magricelo, que
se divertia ao encarar a bunda da minha amiga.
— Vou embora — gritei por causa da música alta.
Margot assentiu, dizendo:
— Tá legal!
Sem cerimônias, dei o fora da festa, determinada a provar a
Megan Richards que, sim, eu merecia Eros — mais do que
ninguém. Minhas pisadas eram duras e convictas enquanto ia a pé
ao seu apartamento, não me importando com a maldita tempestade
de neve que assolara Chicago naquela noite.

Quando o elevador se abriu, dei meu melhor sorriso assim que


meus olhos se depararam com as costas de Eros, que estava virado
para a cidade, acompanhado de um copo de uísque, observando-a
calidamente. O dono daquelas costas musculosas se virou assim
que o barulho agudo do elevador ressoou pelo ambiente.
Ele ergueu a sobrancelha enquanto eu andava convicta até ele,
o sorriso petulante e conquistador ainda em meus lábios. No
processo, ele deu um jeito de se livrar do copo, pondo-o na mesa
mais próxima, acompanhando-me no olhar assassino.
— Não esperava sua chegada — disse antes que eu o
alcançasse, seu cabelo castanho-claro caindo por sobre os olhos.
Seus músculos se destacavam por debaixo da camiseta preta que
vestia. Lindo pra cacete. Lindo como um maldito deus.
Calei sua linda boca com um beijo ávido e inesperado.
— Sei que disse que deveríamos nos afastar, mas essa é uma
tarefa realmente impossível, Eros. — Observei seus lábios
vermelhos quando afastei os meus dos dele. Então, meu olhar foi
mais uma vez aos seus olhos extraordinários, que brilhavam em um
desejo selvagem.
Ele pareceu tremer sob meu toque quando pronunciei seu
nome.
— Eros — repeti, o que o fez sorrir —, ainda não sei seu
sobrenome.
Minhas mãos estavam ao redor de seu rosto.
Passei a olhar para seu pomo de adão, me hipnotizando com o
subir e descer frequentes. O contato com seu peito me fazia
queimar. Estava ali uma coisa que eu adorava: Eros me fazia ficar
quente em poucos instantes.
— Não importa agora. — Tomou meus lábios dessa vez, me
pegando pelas pernas, as quais se entrelaçaram rapidamente atrás
de suas costas. Eu sorri quando caímos no tapete espesso da sala.
— Não quero perder tempo indo lá para cima — sussurrou ao meu
ouvido e, então, mordiscou meu lóbulo, o que me fez apertar os
lábios.
A lareira crepitava ao nosso lado. Ele, por cima de mim, minhas
mãos presas ao seu rosto bonito enquanto eu sorria.
— Tem neve enroscada em você — contou, sorrindo, conforme
eu observava o reflexo das chamas dançantes da lareira em seus
belos olhos. — Você passou por uma tempestade de neve vindo até
aqui. — Aproximou sua boca da minha orelha, o que fez um suspiro
escapar pela minha. — O que está tentando provar a si mesma,
princesa?
Olhei bem fundo nos olhos dele, certa de minhas palavras.
— Que você é meu.
S orri para as palavras que deveriam me deixar tenso, mas que
só me deixaram mais sorridente. Psiquê tinha olhos
flamejantes enquanto me encarava ao dizer tais palavras —
e não pelo reflexo da lareira, que só aumentava nosso calor. Desejo
escorria por ali… e Psiquê acabou de entrar em meus domínios.
Olhei para seus lábios rosados e um pouco inchados; então,
para seu corpo; por fim, para seus olhos, que me lembravam uma
floresta inteira, verdes como nunca. Ela já não estava mais sorrindo.
Eu já não estava mais sorrindo. Estávamos concentrados demais
um no outro, ao passo que a lareira era nossa única fonte de
iluminação, laranja como o sol do final da tarde.
Então, touché.
Psiquê era um enigma descoberto.
Seus olhos selvagens confirmavam o quão sortudo eu era e me
deram a convicção de que Psiquê sequer continuava sendo uma
missão. Ela era minha esperança, uma conquistada: eu finalmente
encontrara o que procurava havia décadas, desde Nova York.
Continuei olhando em seus olhos, que me olhavam de volta.
Então, soltei, antes que me arrependesse:
— Não podemos mais jogar esse jogo, princesa. — Fui firme. A
bela mortal me ergueu uma sobrancelha. — Eu estou apaixonado
por você.
Os olhos amendoados ficaram estáticos sobre mim, como se ela
tentasse processar o que eu havia dito do fundo do meu coração
imortal, o qual ela conquistara, sabia, desde que tínhamos topado
naquela boate. Eu, encantado. Jamais — jamais — uma mortal tinha
me atraído tanto.
E estava disposto a largar tudo para ficar naquele Mundo com
ela — o Olimpo, a minha família, os meus deveres. Simplesmente
havia parado de ligar tanto para as vidas sexual e amorosa de
todos, porque só a minha importava naquele momento; porque tinha
conseguido o que sempre quisera: um amor. Psiquê, que se
entrelaçara como hera em minha mente, e eu nunca pretendera
expulsá-la dali. Nunca estivera tão feliz em milênios. Aquela mortal
tinha passado a ser tudo para mim.
Ela assentiu.
— Também estou apaixonada por você, Eros. — E me beijou.
T entei não pensar muito na troca de palavras da noite anterior
entre mim e Eros, porque eu estava sorrindo como uma doida.
Como uma maldita adolescente apaixonada. Eu estava até
mesmo sorrindo para quem simplesmente passava por mim. Os
músculos do meu rosto doíam em protesto.
Sabia ter falhado como predadora, mas tinha sido impossível
não me apaixonar por Eros. Todo o seu mistério, as suas cantadas
sujas, a sua preocupação — nunca me esqueceria das duas vezes
em que ele tinha me salvado —, as suas surpresas — o iate, o tour
—, o seu sorrisinho travesso. Eu tinha passado a gostar de todas as
suas partes — não podia dizer até as imperfeitas, porque
simplesmente não tinha. Ele era perfeito; de físico, de
personalidade. Era impossível não cair em seus encantos.
E eu tinha provado que, sim, ele era meu.
Assim como eu era dele.
Eros tinha me pegado desprevenida quando dissera aquelas
palavras mágicas, capazes de transformar tudo, que também me
fizeram parar de negar o mesmo sentimento, que só crescia no meu
peito.
Meu celular interrompeu meus pensamentos quando saí do
prédio de Metafísica, pronta para adentrar o grande campus. Atendi
de imediato, sem ler o nome na tela, e proferi um Alô.
— Psiquê? É Karen. — Ah, ótimo. — Acabamos de chegar no
hospital com Cassidy e, hum, ela me pediu para eu ligar para você e
algumas outras pessoas. Você vem?
Cassidy precisava tanto de atenção assim? Ela geralmente não
se importava se eu estava ou não com elas, já que eu tinha
escolhido me afastar de todos para vir a Chicago.
— Sim. Vou visitar Peoria assim que os trabalhos acabarem.
Disse isso a Cassidy.
— Ah. — Ouvi um gemido angustiado ao fundo. — Vou avisar
ela depois que parar toda a gritaria. Espero que esteja tudo bem aí.
Pensei por um instante, então sorri.
Tinha uma coisa que gostaria que soubessem — só para ver as
expressões surpresas da minha adorável família.
— Estão. Até mesmo encontrei alguém.
Karen ficou em silêncio do outro lado da linha, parecendo não
acreditar.
— Finalmente! — Ouvi a voz escandalosa de mamãe ao fundo.
— Vamos fazer uma festa!
Ela tinha de estar escutando.
Mas me senti satisfeita daquela vez.
— Shhh! — Karen ralhou. — Como… como ele é?
— Alto, bonito. — Imaginei o rosto de Eros, como se ele
estivesse ali comigo.
Então, gritos ao fundo.
— É, parece que é agora. Fico feliz por você. Beijinhos.
E desligou.
Sorri, sabendo que ela tinha ficado com uma pontada de
ciúmes, pois nem de longe seu marido era alto e bonito. Havia
sentido seu queixo cair no chão pela surpresa. Minha mãe com
certeza tinha ficado feliz com a notícia, e em breve todo o seu
círculo de amigos saberia. Havia me esquecido daquela parte. Mas,
bem, eu tinha algo de que se orgulhassem. Eu tinha conseguido.
Acima de tudo, suspirei. Estava cansada de minhas irmãs
orgulhosas e de nariz empinado, que só queriam saber de atenção e
de dinheiro. Estava farta até mesmo a duas horas de distância de
Peoria e delas. As duas sempre tinham sido melhores amigas.
Mamãe adorava isso. Consequentemente, esquecia-se da filha mais
nova, que recebia atenção só do pai, mesmo que quase nunca.
Cassidy e Karen eram como irmãs gêmeas nascidas em épocas
diferentes — sabe, toda aquela conexão de gêmeo de que todos
sempre falavam, embora muito certamente não fosse verdade.
Quando meninas, se vestiam iguais. Já adolescentes, iam às
mesmas festas. Chegava a ser irritante.
E, bem, era por isso que não éramos próximas.
Apostava que se visitavam todo final de semana, com saudades
uma da outra.
Eu já tinha me acostumado a isso, mas sabia que, de certa
forma, me sentia chateada e sozinha. Minhas irmãs não eram irmãs.
Eram só quando eu aparentava concordar com elas ou falava de
namorados, de compras no shopping e de todas as demais coisas
de seu universo mesquinho e irritante. Outra característica das
minhas irmãs sempre tinha sido a inveja. Sempre falavam da
minha… beleza, em porções pequenas. Se eu fosse bonita como
você era a frase preferida delas. Aquilo me deixava envergonhada e
até mesmo mal.
Com mais um suspiro, caminhei até meu prédio, logo
percebendo que Eros me aguardava bem ali, as mãos nos bolsos da
jeans e o sorriso confiante no rosto junto a uma felicidade genuína.
H avíamos parado no chão de seu quarto depois de termos
subido as escadas aos beijos e tropeços e de termos nosso
momento ali. Estávamos fazendo muito disso nos últimos
dias, o que curiosamente só aumentava nosso desejo para a
próxima vez. Eu admirava a bela mortal enquanto ela abraçava meu
peito e olhava para a porta de seu quarto, que estava trancada para
evitar possíveis vexames — por parte dela, claro, porque não me
importava nem um pouco com que vissem meu troféu.
Eu fazia pequenos círculos com o dedão em sua pele macia e
jovem.
A minha também era macia, mas só parecia jovem, porque
aquele belo e bem estruturado corpo estava vagando entre Mundos
havia milênios, o que seria tempo demais para mortais sequer
processarem. Mas eu me divertia muito com o tempo que me fora
dado — a eternidade.
Então, parei para pensar em uma coisa: Psiquê tinha vinte e um
anos.
Vinte. E. Um. Anos.
Me segurei para não engolir em seco. Eu havia me apaixonado
por uma jovem mortal, com milênios como diferença de idade. De
repente, me senti culpado, minha cabeça dando um nó. Aquilo não
era certo. Era tudo menos certo. Eu, um deus olimpiano, querendo
viver para sempre com Psiquê Di Laurentis, uma mortal. Ela
envelheceria, como uma mortal comum, enquanto eu permaneceria
jovem e belo ao passar dos anos.
Não estava certo.
Eu sabia disso.
Mas… eu havia me apaixonado por aquela linda e interessante
mortal; por aqueles olhos verdes que me traziam paz e por aqueles
cabelos ondulados e selvagens, sempre fora do lugar; pelo seu jeito
curioso e determinado a me conquistar. Eu me agarrara àquela
fagulha de esperança, na expectativa de que ela fosse o amor da
minha vida, mas aquilo estava errado. Só o que eu poderia oferecer
a ela era o caos, um sombrio e doloroso caos, que acabaria com
sua sanidade, mudando-a para sempre. Não estava eu tão errado
quanto minha mãe? Não era eu um hipócrita ao salvá-la de minha
mãe para depois destrui-la de uma forma muito mais corrosiva?
Deduzi, ali, que eu não era tão diferente assim de Afrodite. Eu
era tão cruel quanto se continuasse com aquilo, mas, mais que isso,
era o Destino. Ele com certeza havia preparado coisas para nós
dois — e esperava de verdade que o de Psiquê fosse feliz, porque
ela merecia tudo o que havia de bom no mundo.
Estava certo de que, se eu a deixasse, ela não me deixaria.
Ficaria para sempre guardada em minhas melhores memórias… e
eu nunca deixaria de amá-la. Porque eu, Eros, amava Psiquê com
todo o meu coração. Ela era minha esperança, mas também era
minha perdição.

— Sempre fui curiosa em relação a um assunto — Psiquê disse,


ainda colada a mim, o que me acordou do transe. Grudei meus
olhos nos dela. Como poderia abandonar aquela linda mortal?
Como poderia viver sem aqueles extraordinários olhos, tão
diferentes dos meus?
Assenti, incentivando-a a continuar.
— Por que às vezes você sumia por uma semana inteira? —
Ergueu sua sobrancelha para mim e me encarou com aquele olhar
assassino. — Ocupado divertindo belas garotas? — ironizou,
embora houvesse um pouco de relutância ali.
Não disse que era porque ficava pensando se aquilo valia ou
não a pena, mas um sorriso cresceu em meu rosto.
— Ciúmes, princesa? — Ergui a sobrancelha, certamente me
divertindo com aquilo, mas ela não se deixou vencer. Dei de ombros
e respondi: — Precisava… resolver algumas coisas da empresa —
disse, disfarçando minha hesitação a todo custo.
— Ah. — Ela não pareceu acreditar. — E seu sobrenome?
— O que tem ele?
Psiquê sorriu torto, de repente parecendo concentrada demais
no meu peitoral.
— Você ainda não me disse qual é. — Traçou delicadamente
círculos na minha pele exposta.
Pensei por um instante, me lembrando de um filme mortal da
década de 1990 que tivera o prazer de conhecer em minha última
estadia no Mundo Mortal. Titanic. Me lembrava do nome da rica
mulher: Rose DeWitt. Mas… parecia feminino demais. Então, me
veio Jack Dawson à cabeça.
— Dawson. Eros Dawson. — Não soou tão harmonioso quanto
gostaria, mas era o que tinha. Disse com tanta indiferença que eu
parecia estar brincando — e estava, de certa forma.
Ela estreitou os olhos, mas engoliu a mentira. Então, um
sorrisinho tomou seus belos e saborosos lábios.
— Por que mentiu naquele dia no iate? — continuou seu
interrogatório.
Ergui a sobrancelha, confuso.
— Quando você disse que a tradução era você é linda, quando
na verdade era estou encantado por você. — Seus olhos brilhavam
em curiosidade. O quarto estava tomado pelos últimos raios do dia,
laranjas como fogo.
— Porque talvez eu já estivesse apaixonado por você — falei,
olhando aquela exótica floresta que habitava as íris de Psiquê, que
logo brilharam. — Só não queria admitir.
— Por quê? — atacou com mais uma pergunta, dessa vez
sussurrando.
Eu sorri com a sua curiosidade, um pouco melancólico.
A verdade era que eu responderia a todas as perguntas que ela
quisesse me fazer.
— Porque ninguém me encantou tanto na vida quanto você,
Psiquê. — Ela nunca saberia o quanto aquilo era importante. —
Estou completamente apaixonado por você.
Com um sorriso, ela subiu até minha boca e me beijou, me
mostrando que também sentia o mesmo, mas arrepios percorreram
meu corpo quando ela disse um nome que não era meu:
— Você é cheio de surpresas, Eros Dawson.
Como se ele nunca devesse existir.
De fato, ele nunca deveria existir. Era claro como água.
M argot e eu observávamos a pista de patinação instalada no
Millenium por volta das 18h, depois de tê-la buscado em
seu turno finalizado no Aquário Shedd. Como na maioria
das vezes, observara os peixes enquanto ela trocava seu uniforme
azul e branco por sua roupa normal no vestiário. Agora, meus olhos
notavam pessoas indo a toda velocidade pela pista, enquanto
outras, muitas delas crianças, tinham medo de dar um passo — ou
seria uma deslizada? A maioria já estava acostumada, mas, ainda
assim, os turistas se arriscavam pela primeira vez.
Chicago no inverno era realmente mágica. Neve, luzes em
abundância — em breve, natalinas, junto a pinheiros gigantes — e o
frio. Apesar de extremo, eu o apreciava. Sempre preferira o frio ao
calor.
Ar condensado saía de minhas narinas enquanto respirava,
assim como de todas as outras pessoas. A neve fustigava o parque,
deixando-o ainda mais adorável e aconchegante. Crianças se
divertiam com ela, criando bonecos ou anjos na neve e começando
guerras de bolas de neve, de modo a rirem ou gritarem.
O frio fora chegando de mansinho assim mesmo. E, então,
Chicago era um ponto branco no mapa.
— Me diz: você gosta mesmo dele, não é? — Margot perguntou,
desviando o olhar do espetáculo de quedas e rodopios à nossa
frente, na pista. Seus olhos acinzentados me fitavam, e ar
condensado saía pela sua boca.
Não tirei os olhos da pista de patinação.
Pelo menos, não até responder:
— Gosto. — Assenti, com um sorriso. Inclinei a cabeça para ela,
que, assim como eu, se apertava contra o frio. Não havia casaco
suficiente para tanto frio. — Você?
— Gosto. — Suspirou, causando consequência no ar denso. —
Acho que estamos ferradas, Psiquê. Sabe, a gente deveria ter
aproveitado por mais tempo nossa solteirice. Estamos recém
começando a faculdade! — gemeu, pesarosa.
Dei de ombros.
Nós duas voltamos a prestar atenção nas crianças e adultos
que arranhavam o gelo com seus patins.
— Ele me disse que estava apaixonado — declarei.
Minha amiga se virou bruscamente para mim, o que provocou
um sorrisinho em mim e mais fumaça branca ao ar. Apertei bem o
casaco grosso de lã contra meu corpo antes que ela dissesse:
— Mentira! — Era seu jeito de dizer que estava em choque.
Meu sorriso não se conteve. Ele estava apaixonado por mim, e eu
por ele. — Fico tão feliz por vocês dois! — Me deu um abraço, que
aceitei de bom grado. — Eros é realmente um cara legal, e posso
ver o quanto gosta de você. E o contrário, claro. — Sorriu, maliciosa.
Empurrei-a de leve com o ombro.
— Sei que não deveria estar pensando nele, mas… finalmente
estou livre de Kurt. Livre de verdade. Passei tempo demais presa
àquele canalha — soltei, sentindo mesmo minhas costas aliviadas
sem todo aquele peso.
Margot deu um sorriso contido.
— Ele não merecia você, nem um pouco. Agora, Eros… Esse,
sim, merece você. — Abriu o sorriso, orgulhosa. Dava para perceber
que estava feliz por mim. Estava tudo se encaminhando
perfeitamente na minha vida agora, mesmo que aos poucos.
Sorri por dentro, grata por tê-la como amiga.
Eros me fazia me sentir bem, o melhor de mim mesma. Era
sempre a mesma boa sensação, algo que seu grande charme e
caráter me provocavam. Ele era uma boa pessoa, a melhor pessoa
com quem poderia desejar estar, mesmo não tendo oficializado
nada, o que não me incomodava — porque eu o tinha, e ele me
tinha. Isso já era suficiente.
Por outro lado, ele… Eu sentia uma certa tensão de sua parte.
Sabia que ele não se sentia cem por cento à vontade ao meu lado;
algo que não deveria ser um problema, porque eu pretendia resolvê-
lo o mais rápido possível.
— OLIMPO, TRÊS MESES ANTES —

O lhava na mesma direção que a flecha à minha frente; eu via


pelos mesmos olhos que ela — se os tivesse. O ouro polido
e feito por ciclopes nas forjas submarinas como ponta da
flecha era impecável e altamente cortante. Tinha sido feito para
acertar imortais; ou seja, se alguns de meus irmãos resolvessem me
interferir, não sairiam ilesos.
Eu estava praticando pontaria no quintal da mansão de pedra
branca de Afrodite, que insistira que treinasse em sua casa quando
eu claramente possuía a minha, tão grande quanto a dela, a casa
que costumava ser meu lar.
— Praticando para suas aventuras com mortais, irmão? —
Fobos, o medo personificado, apareceu bem à frente de minha
flecha. Não tirei o olho dali, a corda do arco ainda esticada, pronto
para disparar e ferir. O alvo estava logo atrás dele. A flecha não
pararia até encontrá-lo, então Fobos não me impediria de acertar o
centro em vermelho-sangue.
— Saia da frente, Fobos.
Quando presumi que ele não sairia de qualquer jeito, tirei o nariz
do arco, irritado. A única coisa que tinha herdado de meu pai havia
sido a irritação, a raiva. Eu as odiava, mesmo que só fossem
ativadas quando meus irmãos petulantes me incomodavam.
Atrás de Fobo, o alvo era como um ímã ignorado. Além,
estavam as outras mansões do Olimpo: as de Atena, Poseidon,
Hermes… Todas levantadas com pedra branca, o grande símbolo
de nossas construções “gregas”, que também levavam colunas
dóricas, jônicas e coríntias e pé direito alto. Nós éramos que
inventávamos as construções, mas os gregos que ficavam com todo
o mérito. Ótimo.
— O que você quer? — perguntei, por fim.
— Mamãe quer falar com você. Parece quem tem uma missão
para te dar.
Suspirei, embora adorasse ajudar minha mãe como pudesse.
— Obrigado por prejudicar meu treino.
— De nada, irmão. — Percebi seu sorriso enquanto ele
caminhava ao meu lado até o interior da mansão da deusa mais
antiga do Olimpo; uma das mais respeitadas, pois ninguém estava
ali por tanto tempo quanto ela.
Quando adentramos a opulenta construção, deixei meu arco e
flecha em cima da primeira mesa talhada de ouro que achei pelo
caminho. Fobos permaneceu no andar debaixo enquanto eu segui
até o andar de cima, até o escritório pessoal de Afrodite, que
parecia brava enquanto lia alguns papéis.
— Estou aqui — anunciei minha chegada, mas não ganhei nem
um simples olhar.
— Hermes me diz que uma mortal está encantando a todos com
sua beleza extrema. Extrema! Está escrito aqui! — Subitamente de
pé, minha mãe olhou para mim, afinal, e me apontou o papel,
irritadiça.
Ergui a sobrancelha, um pouco cansado.
— Você sabe que ninguém te superaria, né?
Afrodite suspirou.
— Claro que não. Sou a deusa e a criatura mais linda deste
universo.
O canto de meu lábio se repuxou em um pequeno sorriso.
— Então, o que quer que eu faça? — Cruzei os braços à sua
frente.
— Estive pensando em uma boa punição, filho — ela contornou
a mesa, séria, e se recostou nela —, e cheguei rapidamente à
conclusão de que se apaixonar pela criatura mais feia de seu Mundo
está à altura. — Sorriu consigo mesma, satisfeita. — Use suas
cálidas flechas.
Era só para isso que eu as utilizava ultimamente. Tinha parado
de usá-las havia séculos e ela sabia, mas gostava de reforçar.
— Parta hoje mesmo. Quero me ver livre daquela… criaturinha
o quanto antes.
Minha mãe estava se parecendo com meu pai e seu marido,
Ares: a raiva lhe cobria o rosto de uma forma assustadora. Entendi
que era importante para ela, mais do que nunca. Afrodite gostava de
se certificar de que tinha todos os mortais a seus pés, embora todos
pensassem em nós como mera mitologia. Depois de tudo o que
tínhamos feito e ainda fazíamos a eles. Bem, eu parecia Zeus
agora, porque os mortais pelo menos me traziam diversão nos
breves períodos em que me hospedava em seu Mundo. Lindas
mortais e muita luxúria no combo.
— Certo. — Suspirei, descruzando os braços. — Volto em
alguns dias.
Ela sorriu e me passou as informações: Psiquê Di Laurentis era
o nome de minha missão, uma mortal que irritara completamente
uma das deusas do Olimpo. E ela estava em Chicago, nos Estados
Unidos da América.

Voei até onde minha mãe havia dito que minha missão estaria.
Era uma noite escura e tempestuosa, e um local em especial
brilhava no meio da rua, o nome Esquina Bar brilhando em letras
neon um tanto brega para a diversão que expelia. Olhando para a
frente, avistei duas mortais rindo em direção à entrada da boate.
Uma delas, minha missão, virou rapidamente para trás,
procurando por algo — ou alguém. Minha flecha estava mirada em
seu coração, e ela certamente sentia que eu a observava, a atenção
que a sobrepujava naquele momento. Não conseguia ver seu rosto
direito, por mais que luzes coloridas irradiassem do estabelecimento
de esquina. Quando pareceu entrar em consentimento consigo
mesma de que nada estava fora do lugar, acompanhou a amiga
para dentro.
Por algum motivo, não consegui disparar a flecha dourada.
Esperei ali fora por mais um tempo, perplexo, piscando duas,
três vezes.
E, então, entrei, atordoado. Tinha esperado por tempo suficiente
para que as duas já estivessem na pista. Ali, eu consegui olhar de
verdade para seu rosto, e a verdade era chocante: era a mortal mais
bela que já tinha visto.
Fascinado, me esqueci do meu propósito ali — e não parei de
encarar seus encantadores rosto e corpo enquanto ela balançava ao
ritmo da música.
Um pressentimento ruim subiu gelado à minha coluna, mas,
inconsciente do que me esperava, ignorei-o por completo. Psiquê Di
Laurentis era encantadora, e eu simplesmente não conseguia
desviar os olhos dela.
C onfessava não estar deixando as noites fáceis para Psiquê.
Ou os dias.
Mas, naquele momento, ela estava tendo alguma aula
do seu curso de Filosofia, para minha infelicidade. Meu corpo
praticamente clamava pelo dela, e eu olhava de forma patética pela
janela do meu apartamento por não ter mais nada a fazer senão
esperar. Meus pés batiam no mármore negro enquanto eu tentava,
desesperado, pensar em algum outro passatempo que não o sexo.
Suspirei.
Era estranho e reconfortante tê-la apaixonada por mim.
Ou ter me apaixonado por ela.
Eu finalmente tinha tudo o que sempre quisera: amor. Psiquê
não havia me dito aquelas palavras, mas eu sentia aquilo pulsando
não só nela, como também em mim. Eu ainda não as havia dito
porque elas tornariam tudo mais real, inclusive as possibilidades.
Não queria que aquilo saísse do controle. Queria tê-la para mim.
Queria ser dela. Queria construir uma família com ela.
Afastei a negatividade para longe ao me virar em direção à
cristaleira repleta de garrafas de uísque. Meu copo já estava vazio
e, por mais que aquele álcool não fosse capaz de me embebedar,
fui pegar a segunda garrafa. O gosto era bom em minha boca.
Foi quando fechei a porta do armário, com a garrafa em mãos,
que senti uma presença, mais forte e poderosa que qualquer outra
coisa. Meus pelos eriçaram institivamente, porque, mesmo antes de
me virar, eu sabia quem estava na minha sala naquele momento.
Respirei fundo, tentando permanecer calmo, e enfim me deparei
com um par de olhos dourados, que me encaravam com curiosidade
e certo humor do divã preto da sala e eram emoldurados por longos
fios dourados de cabelo que se abriam em cachos, como se fosse
uma cachoeira. Poder exalava dela.
Congelei, porque Psiquê me veio à cabeça no mesmo instante.
— Olá, querido. — A figura inclinou a cabeça, confortável, como
se já estivesse familiarizada com o ambiente, as pernas cruzadas de
forma casual. Seus saltos agulha vermelhos ameaçavam perfurar
qualquer um que ousasse chegar perto dela. — Sentiu saudades da
mamãe? — E deu um sorriso divertido, mas que, ao mesmo tempo,
era cruel.
Na minha frente, Afrodite sorria de forma perturbadora e me
olhava como se quisesse levar minha alma consigo, o que equivalia
aos olhares de sempre.
— Mãe. — Tentei sorrir, mas, se o fiz, foi um sorriso frouxo e
doentio, como se eu tivesse acabado de sofrer um derrame; o que
era impossível para um deus.
Ela deu batidinhas animadas no lugar ao seu lado.
Engoli em seco antes de recusar com a cabeça e, antes que ela
falasse alguma coisa sobre eu “ter que ser mimado”, dei o primeiro
passo:
— O que faz aqui?
A neve caía do lado de fora.
— No seu apartamento? — Deu um sorriso quase tímido.
Fazia meses que não nos víamos e sabia que, em algum
momento, ela apareceria para dar um oi. Só que eu estava rezando
para que não — e a questão era: rezando para quem? Não
importava. Minha mãe estava ali. E seria o caos se ela descobrisse
que Psiquê ainda estava perambulando livre por Chicago.
— No Mundo Mortal. — Ela sabia muito bem disso.
— E por que importa? Estou aqui. Não nos vemos há meses! —
Seus cabelos ondularam quando ela levantou seus braços para
cima, dramática. — Sou uma mãe preocupada e com saudades do
filho.
Ela se esquecia de que eu também era um deus e de que podia
muito bem lidar com mortais, mas… aquele não era o real motivo
para ela estar ali. Afrodite queria saber pelos meus lábios se a
missão estava concluída. Era por isso que tinha vindo.
— Aliás, não acha esse apartamento pequeno demais? —
Ergueu a sobrancelha e, então, fez-se um momento de silêncio. —
Já é hora de voltar ao Olimpo. Não é bom para o funcionamento dos
Mundos um deus ficar por tanto tempo fora do seu lugar. Não sente
falta?
Ela não se preocupava com aquilo de fato, só me queria de
volta para que ela pudesse me mimar quando bem entendesse. E,
claro, para pedir mais favores.
— Gosto deste Mundo. — Encarei seus olhos, que brilhavam
sombrios, e fui até a mesa de centro encher meu copo.
Afrodite trocou as pernas e respirou fundo, desviando o olhar
para seus saltos por um momento. Antes que eu pudesse, de fato,
abrir a garrafa, ela estalou seus dedos com unhas pintadas de
vermelho-vivo e uísque verteu em meu copo. Girei os calcanhares e,
dando um gole, olhei para ela, tentando entender qual era sua
expressão naquele instante.
— Como anda aquela mortal? Casada com um monstro? — ela
debochou, sorrindo maleficamente, e deu um gole em seu scotch,
que tinha aparecido em sua mão do mesmo modo como meu uísque
tinha aparecido em meu copo: magia.
Eu também podia fazer verter uísque em meu copo se quisesse,
mas eu gostava do manuseio. Me fazia mais… mortal. Como
Psiquê.
Eu não podia pensar nela naquele momento, afinal, Afrodite
também era deusa do amor. E eu estava louca e perdidamente
apaixonado por Psiquê.
— Como o solicitado. — Dei mais um gole e sentei-me no sofá
ao seu lado.
Afrodite deu um sorriso cruel ao olhar para seu copo de vidro,
como quem parecia se divertir com a situação. Então, como
lâminas, seu olhar se direcionou ao meu e me cortou ao meio. O
olhar mais impiedoso que já tinha visto.
E foi inevitável engolir em seco.
Pensar em mil coisas.
Porque, ali, eu soube.
Afrodite sabia muito bem que Psiquê Di Laurentis não estava
casada com a mais feia das criaturas — mortais ou não-mortais. Ela
sabia que eu estivera mentindo todo aquele tempo. E, muito
provável, também sabia que eu estava apaixonado por ela.
Ela riu amargamente.
— Não minta para mim, Eros. Aquela mortal… — Me encarou
com dificuldade. — Ela conseguiu fisgar até mesmo você, não foi?
— Inveja e raiva brilhavam em suas íris. — Aquela coisinha
insignificante chamou a atenção até mesmo de você — grunhiu,
desviando o olhar.
Afrodite suspirou.
O scotch sumiu de suas mãos.
Logo seus olhos estavam em mim mais uma vez.
— Você vai largá-la e voltar ao Olimpo — ordenou, remorso
escorrendo pelos seus olhos. — E eu mesma cuidarei dela.
Minha mãe sempre me dava ordens, como se eu fosse só mais
um capacho; como se eu fosse insignificante para ela, a deusa mais
antiga do Olimpo. A primeira filha deusa de Gaia e Urano. Ela, que
vivera no auge dos Titãs.
Por isso, todos deviam obediência a ela.
Mas eu não faria isso, não mais. Tinha convivido com isso a
minha vida toda. Todos os meus três mil anos. Estava na hora de eu
mesmo tomar minhas decisões. Estava na hora de eu poder amar.
O jeito como ela tinha dito “eu mesma cuidarei dela”…
Não. Eu jamais deixaria qualquer mal acontecer com Psiquê.
Minhas asas foram as primeiras a se manifestarem. Com
envergadura de mais de cinco metros, asas brancas preencheram a
sala, o que a surpreendeu. Elas também costumavam aparecer
quando eu estava furioso — e era fúria que preenchia minhas veias
naquele momento.
— Não. — Afrodite ergueu a sobrancelha e, por fim, se levantou
do divã. — Você vai ficar longe dela, mãe. Psiquê não merece e
nunca mereceu o destino que você impôs a ela. Ela merece muito
mais.
— Como o quê? Você? — Ela também parecia enfurecida,
ainda mais quando seus olhos pousaram sobre as portas do
elevador.
Me virei para trás… e lá estava ela, me encarando com seus
olhos verdes, em completo choque, vidrada nas minhas asas e na
mulher ao meu lado. A fúria deu espaço à preocupação, ao passo
que minhas asas se fecharam no mesmo instante.
E Psiquê, desesperada, apertou continuamente o botão de
fechar as portas, sem conseguir mais me olhar nos olhos, porque
agora medo e lágrimas brilhavam junto à imensidão verde de suas
íris.
Quando ameacei ir atrás, Afrodite disse:
— Deixe-a ir. Ela está assustada, não vai querer ver você.
Com isso, virei com tudo para minha mãe, a fúria mais uma vez
fervendo em meu sangue.
Ela estava certa, eu não podia segui-la quando tudo o que
Psiquê sentia por mim naquele momento era medo. Seus olhos
estavam cheios desse sentimento.
— Há quanto tempo ela estava ali? — perguntei em um sopro,
abalado.
Psiquê tinha acabado de ver minha real identidade.
E ela estava com medo de mim.
— Há quanto tempo ela estava ali? — gritei dessa vez.
— Pouco antes de você abrir suas asas. — Afrodite suspirou, se
aproximando de mim com sutis passos, seu vestido vermelho
esvoaçando. — Agora, não me diga que você está chateado. Ela
era só mais uma mortal medíocre. Nós somos deuses. Muito mais
do que eles sonham em ser. Você vai esquecê-la rápido, vai ver.
— Não! — gritei. — Não vou esquecê-la, mãe, porque aquela
mulher — apontei para o elevador — é a mulher da minha vida.
Minha futura esposa. A futura mãe dos meus filhos. Eu quero
construir uma vida com ela. Estou completamente apaixonado por
ela. Eu a amo — disse tudo em um só fôlego, irado, e só então
percebi que tinha admitido.
Tinha admitido que amava Psiquê Di Laurentis.
E que eu queria construir uma vida ao seu lado.
Afrodite piscou algumas vezes, perplexa, como se não pudesse
acreditar.
— Você não pode ficar com ela. Ela é mortal, vai envelhecer
como os outros. E a sua família? E os seus amigos? Além disso, ela
não vai aceitar sua identidade.
Dei risada, e ela não entendeu.
— Para uma deusa do amor, você até que está bem dedicada a
fazer dar errado — expliquei. — Nós vamos dar um jeito. Eu e
Psiquê vamos ficar bem. — Uma hesitação que eu não queria que
aparecesse fez minha voz vacilar naquele instante. — Porque eu a
amo.
Afrodite pareceu chocada por um momento e levou mais alguns
para processar o que eu havia acabado de falar; os olhos estáticos
sequer piscavam.
— Você pode poupar seu sofrimento e o dela e usar a Névoa a
este favor — sugeriu minha mãe, convicta de que era a coisa certa a
se fazer, simplesmente porque era, e eu odiava ter que admitir isso.
Seria vantajoso para ela e, portanto, para mim. Eu não suportaria
vê-la sofrer. Por outro lado, eu também não suportaria ter que
apagar de sua memória todos os nossos momentos juntos e, por
consequência, seu amor por mim.
— Não posso — disse, simplesmente, em um sopro.
Minha mãe não desviou os olhos dos meus ao dizer:
— Faça como quiser, mas me ouça: você vai liberar caos sobre
este Mundo se deixar aquela mortal ciente do nosso, Eros. Deuses
ficam no Olimpo, mortais ficam aqui. Mais cedo ou mais tarde, você
terá de voltar. — Afrodite me encarou no fundo dos olhos. — E eu
voltarei para cá enquanto isso não acontecer.
Sombras a envolveram, me deixando somente com a noite
estrelada.
Olhei para onde Psiquê se fora.
Pensei nos seus olhos assustados e no seu desespero para
fechar as portas metálicas.
Mas… Pisquei algumas vezes ao pensar no nome dela: Psiquê.
Quando havíamos nos conhecido, eu tinha lhe dito que seu nome
significava alma em grego antigo, para mortais como ela. Quando
liguei os pontos, tive vontade de rir — com certeza de desespero —,
porque não podia ser coincidência tê-la encontrado, quando meu
nome significava amor.
Então olhei para o céu, que trovejou no mesmo instante.
Malditas Moiras.
Esse destino já estava escrito havia muito tempo. Psiquê era
meu destino antes mesmo de eu ter nascido, três mil anos antes. As
Moiras se divertiam nos assistindo lá de cima, juntas ao trono de
Zeus. Eram elas quem provocavam o mau tempo no céu quando
estávamos juntos, porque enfim tinha acontecido o que elas haviam
escrito. Não sabia se queria estrangulá-las ou beijar seus pés.
Tão rápido, cheguei a uma conclusão.
A alma não vivia sem o amor, muito menos o contrário.
Eles caminhavam lado a lado.
E aquilo era tudo a que podia me agarrar no momento: acreditar
que Psiquê, minha alma, voltaria para mim, porque eu não sabia
mais como viver sem ela.
M inha cabeça definitivamente não estava na aula. Na
verdade, ela ia até Eros com bastante frequência, de modo
que as palavras saídas da boca da professora entravam
por um ouvido e saíam pelo outro.
Suspirei, cogitando se eu sairia ou não dali.
Era Ontologia, a matéria que eu mais precisava estudar por
causa de sua complexidade. Eu travava uma guerra interna comigo
mesma, tentando decidir se valia ou não a pena juntar minhas
coisas, descer os degraus, sair pela porta e abandonar, assim, a
discussão sobre a existência.
Bastou pensar nas mãos e nos olhos ferozes de Eros para
concluir que valia mais a pena estar com ele. Fui apressada ao
recolher minhas coisas e dar o fora dali, rumo ao meu apartamento
e de Margot. Precisava estar à altura para aquela noite, para a qual
eu contava os minutos e os segundos, porque com ele era assim:
meu corpo clamava pelo seu.
— Toc-toc. — Margot bateu na porta de carvalho do meu quarto,
que estava aberta, e pôs só metade do corpo para dentro, de modo
que suas mechas cor de caramelo pendiam no ar. Seus olhos azul-
acinzentados encaravam os meus.
Desliguei o secador de cabelo, que estava conectado a uma
tomada ao lado da cama onde eu estava sentada, com uma toalha
vermelha no colo.
— Que foi? — Arqueei a sobrancelha.
Então, ela entrou por completo no quarto e se sentou à beirada
da cama.
— Sua mala de viagem já está pronta?
— Ainda não, por quê? — Franzi a testa, estranhando a oferta
indireta de ajuda. Não que ela não me oferecesse quando
precisava, mas, naquele dia, estranhei. Ela parecia agitada,
incomodada com alguma coisa.
Ela deitou seu corpo para trás, passando a olhar para o teto.
— Não tenho nada marcado com Justin hoje, e em breve você
vai viajar para ver sua irmã. Justin está com a família… — ela
apertou os olhos com força e deu um sorriso radiante — para contar
que estamos namorando.
Meu queixo foi ao chão.
— Margot!
Ela se levantou para me encarar e se sentou mais uma vez.
— Amiga, fico tão feliz por vocês dois! — Dei um sorriso singelo.
Em seguida, lembrei: — Pensei que você não fosse do tipo para
namorar.
Margot me deu um soquinho no ombro, sem deixar de sorrir.
— Quando ele te pediu? Aliás, por que você não foi junto,
Margot?
— Ontem. Ele me levou para ver um filme de ação, o que não
combinou muito, mas… — Deu de ombros, deixando eu concluir o
pensamento. — Não fui porque eu sempre estrago tudo nessa coisa
de conhecer os pais.
— Larga de ser boba, Margot. Você ia se sair bem, não tem
mais dezesseis anos. — Lembrei-me do antigo namoro de ensino
médio dela, e ela assentiu. Na ocasião, ela sem querer tinha
derramado vinho tinto na blusa preferida da mãe do rapaz, o que a
havia feito ter um saldo negativo com a sogra.
— Talvez, mas preferi não arriscar. — Ela de repente inclinou a
cabeça, me analisando com um sorrisinho travesso. — E Eros?
Vocês estão namorando ou o quê? Juro que não entendo vocês. —
Deu uma risadinha.
Peguei a toalha para dar mais uma enxugada no cabelo,
pensativa.
— Ele não me pediu em namoro ainda, mas… sinto que esse
momento está próximo. — Sorri ao pensar nisso.
Margot sorriu comigo.
— Então… oficialmente desencalhadas?
— Oficialmente desencalhadas! — Assenti.

Depois de secar meu cabelo e de me arrumar, desci as escadas


e fui com certa pressa até ao apartamento de Eros, sabendo o que
provavelmente me aguardava naquela noite. Mas, mais que isso,
precisava falar que ia ficar uma semana longe, com a minha família
— se eu conseguisse aguentar —, por causa de Cassidy e do
pequeno Philip.
Eu tinha decidido isso na tarde anterior, porque tinha me dado
conta de que não teria nenhum trabalho ou prova naquela semana,
por algum milagre. Se tivesse sido para pensar naquilo pela noite,
eu nunca teria conseguido chegar a essa conclusão, já que eu
estava… ocupada demais.
Infelizmente, não tinha dinheiro para pagar um lugar para ficar
— o que seria o certo para que meu corpo e mente ficassem sãos
—, então tinha ligado para minha mãe e dado a notícia, o que
parecera agradá-la, provavelmente por causa do bebê. Shalley Di
Laurentis tinha parado de se importar havia um tempo.
As ligações mensais? Achava que finalmente estivessem
extintas, já que a última tinha sido em setembro e já estávamos
prestes a entrar em janeiro. Eu passaria o Natal e o Ano-Novo com
os Di Laurentis, esperando que, assim, Cassidy não reclamasse que
eu não teria visto o rosto espetacular de seu filho por tempo o
suficiente. Não que o pequeno Philip não fosse uma graça, Cassidy
havia me mandado uma foto dele. O bebê certamente tinha ficado
com a maior parte da aparência do nosso lado da família, já que,
bem, Ruben era agradável. Philip poderia se considerar um bebê de
sorte.
Esperava de verdade que, assim como Ruben, minha estadia
fosse ao menos agradável em Peoria, o lugar de onde viera — e no
qual não colocava os pés havia muito tempo.
Respirei fundo com os pensamentos ao apertar o botão do nono
andar, já dentro do elevador. Enxotei-os e passei a ficar ansiosa
para rever Eros, afinal não nos víamos havia quase cinco horas, o
que já era muito para minha mente processar.
Quando um plim soou pelo elevador, um sorriso já estava
prestes a se abrir em meu rosto se não fosse pelo que eu
presenciei. Imensas asas saíram diretamente das costas de Eros.
Não sabia se olhava para elas ou para a mulher ao seu lado, com
uma beleza imensurável, sem dúvidas a mulher mais linda de que já
tinha visto.
Psiquê não merece e nunca mereceu o destino pela qual você a
impôs. Ela merece muito mais.
Como o quê? Você?
Meus olhos estacionaram nas asas enquanto as engrenagens
da minha mente pareceram enfim ligar os pontos, mas com certo
choque.
Eros tinha sete irmãos; trabalhava com a mãe; falava grego e
muitas outras línguas. De repente, tudo se encaixou: o modo como
ele se fechava para mim em relação à sua vida, o porquê de ele
nunca comentar seu sobrenome — que com certeza não era
Dawson —, os sonhos, os calafrios que eu sentia quando
caminhava só pelas ruas. Certas coisas devem ser mantidas em
silêncio, sua voz grave ribombou pela minha mente, alta e clara.
Eu estava diante de um deus.
Minhas pernas fraquejaram e minha respiração desregulou.
Olhei mais uma vez para a loira encantadora. Seus olhos eram
exatamente como os de Eros: dourados como ouro. Tive vontade de
correr ao enfim perceber o que aquilo significava: eu estava diante
de dois deuses. Ela era Afrodite, a deusa da beleza. Sua mãe.
Porque, céus, era tudo verdade! Toda a mitologia greco-romana;
tudo o que eu estudara naqueles livros.
Não podia ser.
Lágrimas amedrontadas surgiram em meus olhos ao olhar mais
uma vez para Eros e suas imensas asas brancas, como as de um
anjo. E foi aí que ele me olhou de volta, suas asas desaparecendo,
o que fez meu corpo reagir: apertei com urgência o botão de fechar,
não conseguindo encará-lo nos olhos; desejando nunca tê-lo
conhecido.

Lágrimas embaçavam minha visão quando entrei no


apartamento que dividia com Margot, curiosamente vazio. Corri até
meu quarto e arrastei minha mala com dificuldade até a porta de
entrada. Eu tinha medo de abri-la de novo e encontrá-lo ali. Por
outro lado, não podia ficar nem mais um segundo em Chicago, tão
próxima dele.
Minha visita à Peoria seria antecipada em alguns dias, porque
era o único lugar longe o suficiente em que conseguia pensar
naquele momento diante do ninho de confusões e perguntas em
minha mente.
Não deixei aviso algum para minha amiga, simplesmente
porque eu queria sair correndo dali, daquela cidade, dele. Chamei
um táxi, mas, quanto mais os segundos passavam, mais eu ficava
assustada. Era tudo verdade. Correr até a rodoviária mais próxima
passou pela minha mente, porque não aguentava ficar ali, de onde
eu podia ver seu prédio ao longe. Eu precisava escapar.
Nisso, um táxi amarelo parou na rua à minha frente com uma
buzinada. Abri a porta traseira como se minha vida dependesse
daquilo, de entrar naquele automóvel — o que agora era só mais um
item na longa lista de possibilidades.
N ão pensei muito quando decidi ir até o apartamento de
Psiquê a pé. Estava tão determinado que não pensava em
mais nada a não ser em explicar tudo a ela, mas, quando
cheguei lá, quem me atendeu foi Margot, a amiga com quem ela
dividia o lugar. Ela me olhou confusa por um instante.
— Eros? — O supercílio estava erguido, transparecendo
confusão assim como a testa franzida.
— Psiquê. — Varri o interior do apartamento com os olhos, com
certa urgência. Quando não senti sua presença, os desviei para os
olhos azul-acinzentados de Margot, futura bióloga, eu lembrava. —
Ela está estudando?
Eu estava agitado.
— Hã… não. Ela foi visitar a família em Peoria. Faz algumas
horas que ela saiu. — Inclinou a cabeça. — Não te contou?
Minha respiração desregulou.
Ela tinha saído da cidade… por minha causa?
— Deve ter esquecido. — Tentei sorrir.
A bióloga me olhou dos pés à cabeça, estranhando.
— Vocês brigaram?
Dei um suspiro tenso.
— Mais ou menos isso.
— Então deve ter sido culpa sua. — Margot me fuzilou com o
olhar, na defensiva, ainda segurando a porta de carvalho-escuro.
— Como?! — Minhas sobrancelhas se juntaram, criando um
vinco profundo.
Era quase como se ela fosse me matar. Tive vontade de que ela
o fizesse, porque eu tinha acabado com tudo. Tinha destruído aquilo
que representava: o nosso amor. Àquela altura, Psiquê com certeza
já não nutria mais nenhum sentimento por mim além de medo,
depois de ter visto minhas asas… e minha mãe. Os olhos verdes
tinham ficado por algum tempo estacionados na deusa de longos
cabelos loiros.
— Não quero saber o seu lado. Vou conversar com a minha
amiga primeiro.
Pisquei algumas vezes.
— Tudo bem.
E saí sem me queixar.
A mortal tinha razão. Era minha a culpa.

Mais tarde, eu tinha voado até Nova York em um impulso. Mais


de mil quilômetros. Duas horas. Felizmente, minhas asas eram
grandes e velozes, de modo a fazer o mesmo tempo que aviões.
Tinha parado em cima do Empire State, que estava vazio às
duas da manhã. Fazia duas décadas desde que estivera ali pela
última vez, o que, bem, não era muito para mim e minha vida
imortal. Eu ainda conseguia senti-los, porque nunca me esquecera
deles; porque o amor entre os dois só intensificava.
Voei até um prédio menor, mais distante do Empire State e da
Times Square.
Parei na varanda do terceiro, de vinte andares. A porta de correr
estava trancada, mas era de vidro, e as cortinas floreadas estavam
abertas. Não havia ninguém na sala, que era para onde dava a
porta. No que parecia ser o quarto, no entanto, a luz branca estava
ligada. Uma sombra passou.
Meus sentidos estavam todos aguçados. Sentia um puxão
intenso em meu peito. Era tão forte a sensação que não sabia se
era, de fato, o amor entre os dois ou algo da minha cabeça. Talvez
eu apenas nunca… tivesse presenciado o amor mortal tão de perto.
Já presenciara o amor entre meus pais, entre outros deuses, mas
nunca um mortal.
Fiquei tanto tempo imerso em pensamentos que me assustei
quando um mortal idoso foi até a sala à minha frente. Me escondi no
canto direito da varanda, que era coberta por uma pequena parte da
cortina. Os traços mais marcantes do passado foram o que me
permitiram reconhecê-lo. Era, de fato, o mesmo homem da festa de
vinte anos antes. E, logo atrás, uma senhora veio com dificuldade
do cômodo em que estava. Ao vê-la, o marido foi ajudá-la, que não
parecia de mesma forma que o homem. Parecia… doente.
Foi então que meu coração ganhou uma nova rachadura.
Eu simplesmente sabia que ele estava dando tudo de si para
ajudá-la. Preocupação tomava todo o seu corpo, ao passo que
carinho percorria o da senhora, que olhava de forma amorosa para
o marido. Mais de vinte anos depois e o olhar continuava o mesmo
— até mais intenso.
Desviei os olhos para o céu estrelado ao pensar em Psiquê.
Eu tivera a esperança de encontrar um amor como o deles, e
Psiquê era essa esperança. Por algum tempo, eu o tivera. Nós o
tivéramos. Eu tinha Psiquê desde que a vira; desde que tinha
percebido quão decidida ela era. Agora eu tinha completa certeza.
Ela era tão diferente de tudo o que conhecia! Tão extraordinária!
E agora ela tinha ido embora.
Provavelmente nunca mais a veria.
Era totalmente minha a culpa. Eu tinha sido egoísta ao deixar
meu amor por ela se sobressair diante da possibilidade de quebrar
seu coração e liberar o completo caos sobre ela. Se eu e o titã
Cronos, o Senhor do Tempo, fôssemos chegados, eu lhe pediria que
me fizesse voltar ao passado, no momento em que hesitara em
flechar aquela mortal tão bela. Eu teria voltado ao Olimpo no mesmo
instante.
Saí da varanda do casal e sobrevoei Nova York.
Me perguntei para onde eu deveria voltar: a Chicago ou ao
Olimpo. Afinal, o motivo que me prendia naquela cidade nublada
tinha desaparecido, e talvez para sempre. Eu não tinha mais por
que ficar lá. O Olimpo seria a escolha certa, onde um deus deveria
permanecer. Afrodite havia me dito: Deuses ficam no Olimpo,
mortais ficam aqui. Mais cedo ou mais tarde, você terá de voltar.
O velho casal de mortais me veio à mente mais uma vez. Eu
largaria tudo para envelhecer junto à Psiquê, não pensaria duas
vezes. Daria tudo para ficar junto a ela, fosse o que fosse preciso.
Eu só precisava dela. Não sabia mais como viver sem Psiquê. Não
existia o amor sem a alma.
Então, me dei conta de que minhas asas já haviam estabelecido
um destino.
O caminho certo.
M e lembrava de todas as minhas viagens até Peoria
naqueles dois anos em Chicago. Dava para contar nos
dedos, já que eu evitava ao máximo estar com a birra que
os Di Laurentis representavam. Eu ia praticamente só nos
aniversários e nos feriados como a Ação de Graças e o Natal. Ou
seja, ia umas cinco vezes ao ano, o que já era mais do que o
suficiente. Rezava a lenda que quem ficasse com os Di Laurentis
enlouqueceria.
E, bem, lá estava eu, fugindo.
De Eros, pelo qual me apaixonara cegamente… e quem era
agora o motivo da minha perdição eterna. Como eu pudera ignorar
todos os sinais? Mas, bem, quem em sã consciência teria levado
aquilo a sério? Quem teria acreditado que todos os mitos e deuses
greco-romanos eram reais? Pensara no mito de Afrodite e Ares, o
qual eu tinha levado como uma simples história para dormir. Mas…
por que eu? Por que Eros, a porra de um deus, tinha ficado em
Chicago por mim?
Não conseguia me desvencilhar desses pensamentos. Eu tinha
certeza do que vira: Eros, com imensas asas brancas, parecendo
um anjo.
Um anjo caído.
Eu estava perdida por causa dele. Ele trouxera ruína à minha
vida; eu era um castelo completamente destruído, pedra por pedra.
E estava condenada a fugir dele até o meu último suspiro, porque
não sabia do que ele era capaz ou até mesmo o que queria comigo.
Mortais, ele dissera uma vez.
Eu era apenas uma mortal. O que ele queria comigo? Talvez
apenas tinha servido brincadeira, já que eu devia ser só uma
criaturinha insignificante para ele — os deuses não eram sempre
retratados assim nos mitos? Ou deveria falar fatos a partir de agora?
Estremeci ao pensar no sonho de não muitos dias antes. Ele me
aterrorizara e vinha me aterrorizando desde então. Agora, em dobro.
Eu já estava aterrorizada, preenchida por medo. Suspeitava que
nunca seria capaz de me acalmar.
As imagens voltavam e voltavam à minha mente. À medida que
elas apareciam, minhas lágrimas se intensificavam mais enquanto
eu tentava prestar atenção em alguma coisa pela janela do ônibus.
Tentei respirar fundo e olhar para dentro dele. Então, algo me
chamou à atenção. Não algo, mas alguém. Três senhoras
tricotavam nos assentos ao meu lado com o olhar fixo em sua obra,
que pareciam compartilhar através de um fio. Usavam túnicas azul-
escuro largas e antiquadas, que pareciam de uma cultura que não a
estadunidense. Por algum motivo, uma sensação fria percorreu
minha coluna. Não sabia se devia ignorar, dadas as circunstâncias,
mas, mesmo assim, ignorei. Afinal, o que três velhas senhoras
tricotando fariam de mal?

Respirei fundo quando o táxi parou na frente da mansão Di


Laurentis — não sabia se pela ansiedade de enfim ter onde me
esconder ou se pelo meu histórico com a minha família. Eu tinha
parado no banheiro da rodoviária de Peoria para lavar o rosto
inchado, porque não queria que ninguém percebesse que estivera
chorando e, consequentemente, me perguntasse o porquê. Não que
eles se importassem muito.
Arrastei com certo nervosismo minha mala de rodinhas até a
grande porta, que me aguardava como se uma prisão me desse
boas-vindas. Não sabia por quanto tempo ficaria naquela casa. Em
Peoria, muito menos — embora eu nunca pudesse voltar a Chicago
outra vez. Me lembrei da minha melhor amiga, Margot, a qual eu
simplesmente deixara, sem qualquer aviso. Só quando peguei o
celular para enviar uma mensagem a ela que percebi quão trêmula
eu estava. Me assustei, mas, com certa dificuldade, consegui digitar:
Tive de viajar mais cedo. Amo você.
O que me entristeceu foi não saber quando a veria outra vez.
Levantei a cabeça, por fim, e apertei a campainha, minhas mãos
ainda trêmulas.
A governanta da casa abriu a porta com um sorriso convidativo,
que infelizmente não consegui retribuir.
— Psiquê! A que devo a honra? — Shalley Di Laurentis, em
toda a sua formosura, abriu os braços amorosamente quando entrei
na sala. Ela parecia contente. Se era por me ver, já não sabia.

Depois de trinta minutos conversando com meus pais sobre eles


— e não sobre mim, nunca sobre mim, não que naquele momento
eu conseguisse me importar —, falei que subiria para tomar um
banho em meu antigo quarto, que estava arrumado como todos os
cantos da mansão. Assim que entrei na água fria da banheira, senti,
por um momento, que os pensamentos se afastariam… mas eles só
intensificaram.
Preocupados e atônitos, os olhos dourados de Eros, agora mais
que as asas, me assombravam. Eles, que eu tanto costumava
admirar, agora não passavam de um lembrete de quem ele era.
Um deus.
Minha mente não deixava de repassar aquele fato.
Arquejando, abracei meus joelhos e fechei os olhos. Água se
movimentou. Prestei atenção no som dela. Eu já estava fria quando
entrei, mas não devido ao frio de janeiro. Estava fria pelo medo; por
todas as inúmeras possibilidades que poderiam me assombrar dali
em diante.
Não conseguia mais agir como eu mesma. Meus olhos ficavam
vidrados na maior parte do tempo, não conseguindo focar. Meus
ouvidos não processavam mais as vozes daqueles ao meu redor.
Minha mente não conseguia pensar em outro assunto. Era só
aquele terrível momento, repetidos várias e várias vezes, como um
loop infinito.
Agora, tinha medo de sair para a rua.
Uma hora depois, voltei ao primeiro andar para pegar comida na
cozinha, mas duas outras pessoas foram adicionadas à lista de
convidados: minhas irmãs mais velhas, que voltaram seus olhos
quase que de imediato para mim, avaliativos.
— Oi, irmãzinha — cumprimentou Cassidy, se levantando para
me dar um abraço. Segurou meu rosto por um instante, parecendo
se perder nos detalhes ali; na beleza que sempre invejara. — Você
parece pálida — comentou, simplesmente, ao se afastar. Ela estava
certa. Eu também tinha percebido isso no espelho.
— Ah, está assim desde que chegou — comentou Shalley,
nossa mãe.
Karen veio logo atrás.
— E como está o pretendente? — Inclinou a cabeça como em
solidariedade quando eu bem sabia que era por estar curiosa.
Desviei o olhar do dela e engoli em seco.
— Ah! Como pude me esquecer disso? — Logo minha mãe e
minhas duas irmãs estavam em volta de mim como abutres,
enquanto meu pai estava sentado à sua poltrona, lendo algum
jornal. Ele geralmente não se intrometia naquelas coisas de mulher.
— Pela sua excitação ao telefone, ele deve ser bonito.
— É, sim — consegui dizer.
Não tinha como negar aquilo. Eros era o homem — deus —
mais bonito que já tinha visto. Agora sabia o porquê.
Minhas irmãs trocaram um olhar ofendido, provavelmente
pensando em seus maridos, Ruben e Carlos. Um brilho animado
tomou os olhos de nossa mãe, que não perdia por esperar, sempre
pronta para uma festa grandiosa.
— Mas ele não era quem eu esperava — disse, um tom
hesitante pontuando minha voz. — Decidi nunca mais vê-lo.
— Ah, minha filha! Deve ser por isso que está tão pálida. —
Minha mãe parecia mais triste por eu ter acabado com a
“oportunidade” do que de fato por mim. Não importava, porque eu
desejava que ficássemos longe para sempre; que ele voltasse para
o… o Olimpo… ou de onde quer que tivesse saído.
Pisquei algumas vezes.
— Ele deve ser muito bonito mesmo — assentiu Karen, junto à
Cassidy.
— Se ele foi tão ruim para você, desistir foi mesmo a coisa certa
a se fazer — Cassidy disse, por sua vez.
Desistir? Aquela palavra não pareceu… se encaixar.
Eros tinha significado tantas coisas em tantos momentos que
parecia difícil a decisão de desistir dele. Mas… mas ele era um
deus. Ele tinha me enganado. E agora não sabia suas reais
intenções quando pensava que ele era só mais um cara mulherengo
que finalmente tinha encontrado a pessoa certa.
— É, larga ele — concordava Karen. — Não sabe o que perdeu.
— Brincou com uma mecha de meu cabelo, que pôs entre os dedos,
e a encarou por um momento, largando-a logo em seguida.
Suspirei ao começar a sentir a exaustão percorrer meu corpo.
— Só quero ficar… longe. — Um tremor deu uma leve sacudida
em meu corpo ao relembrar tudo aquilo. Mesmo agora, era difícil
aceitar. — Eu… estou cansada da viagem. Já vou dormir — concluí,
embora fosse apenas 20h. — Boa noite.
Elas não insistiram. Comi um iogurte na cozinha e subi a
escadaria de mármore branco, dobrando o corredor para ir ao meu
antigo quarto, onde uma camisola preta de flanela me aguardava
em cima do colchão. Vesti-a e me deitei na cama grande e macia.
Quando fiz menção de fechar os olhos, a tela de meu celular se
acendeu. Uma sensação gelada tomou conta de meu corpo ao
pensar que talvez pudesse ser ele. Nem mesmo conseguia pensar
no nome dele, porque esse o representava, dizia exatamente quem
era. Meu primeiro pensamento foi desligar o celular, mas, ao pegá-
lo, percebi que era minha melhor amiga. Margot.

Margot:
Já estava prestes a dar um chilique, mas vi que vc tinha
levado a mala. Quanto tempo pensa em ficar aí? Ah, e
boa sorte com sua família. Vai precisar.

Eu realmente não sei.

A resposta devia ter criado rugas de dúvida em sua testa, pois,


no que se referia à minha família, eu sempre ressaltava que ficaria o
mínimo possível ou até aguentar, mas não naquele dia.
Pensei também no quanto eu tinha sido péssima ao deixar
Margot com fosse lá o que era Eros. Não sabia até onde seu poder
se estendia. Tinha lido muito sobre deuses greco-romanos, mas era
como se eu não soubesse exatamente nada sobre eles. E, no
entanto, tinha deixado Margot em Chicago, onde eu sabia que dois
deles estavam. Quão péssima amiga eu era?
Lágrimas desceram dos meus olhos, molhando o travesseiro
branco. Fiquei na dúvida entre se ligava ou não para ela naquele
momento, pedindo que largasse Chicago no mesmo instante. Por
outro lado… ela pensaria que eu estava louca.
Mais de um ano de amizade, e eu a abandonara com aqueles…
Nem mesmo conseguia pensar de novo no que eles eram. Eu não
aceitava, mesmo que aquelas asas brancas de anjo voltassem à
minha mente com frequência, a lembrança viva como se eu
estivesse presenciando mais uma vez a cena.
Simplesmente não podia acreditar que havia estado diante do
próprio Eros durante todos aqueles meses. Como… como ele
pudera? Como eu não tinha… percebido? Não sabia se era ridículo
pensar que talvez ele me tinha me enganado em relação a tudo. Até
mesmo em relação a seus sentimentos. Era para estar óbvio? Era
para eu largar aquilo de uma vez por todas?
No escuro de meu quarto de infância e adolescência, eu
soluçava como nunca. Estava totalmente debaixo das cobertas
grossas pelo frio de Illinois. Porém, naquele momento, eu não tremia
por causa dele. Tremia por todo o medo que estava sentindo; por
mim, por minha amiga.
Antes, eu havia tido a esperança de que, ao me deitar, os
pensamentos desacelerariam até parar, mas eu tinha o incrível
talento de estar errada na maioria das vezes.
P eoria era mais uma cidade grande. Prédios, arranha-céus,
um centro movimentado típico. Ainda assim, era diferente de
Chicago. Não por ter um território e um centro menores,
mas… Peoria era menos viva. Já tinha ouvido que as coisas à
nossa volta podiam refletir no nosso estado de espírito, mas temia
que fosse o contrário. Nada do que via me parecia feliz. Nada do
que via me parecia certo.
Aquela era a cidade em que eu tinha crescido; em que eu tinha
passado dezenove dos meus vinte e um anos. Já me parecera
melhor, embora eu odiasse estar ali — o que me preocupava, já que
nunca tinha acreditado que pudesse ser pior. Eu a odiava por causa
da minha família, que era dona de metade dela. Mas, agora, Peoria
estava tão mais… triste, sem esperança. Não havia nenhuma luz.
Embora eu me preocupasse, ignorava o sentimento. Eu não
conseguia organizar as ideias.
A mansão Di Laurentis não ficava fora do cenário de mudanças.
Pé direito alto, arquitetura externa baseada na nobreza, um
interior que resplandecia em charme e elegância, um sistema
impecável de funcionários e um jardim francês imenso e convidativo
enfeitando a grama verde brilhante em frente a ela.
Antigamente, ela era com mais facilidade o palco dos meus
piores pesadelos: minha própria família e sua personalidade
imutável. Não gostava da companhia de meus pais ou de minhas
irmãs, e apenas não suportava ficar ali. A característica mais
marcante de meus pais sempre tinha sido a ganância. Por outro
lado, minhas irmãs eram marcadas pela inveja. Nunca tinha
entendido como uma irmã podia sentir tanta inveja da outra. Elas
eram como corvos barulhentos em torno de mim, o fruto mais doce
de um pequeno arbusto. Não paravam de circundar e grasnar. Era o
que mais me sufocava.
Contudo, o que era uma prisão tinha virado um refúgio.
Durante uma semana, eu fiquei trancada dentro de meu antigo
quarto. Empregados vinham para deixar a refeição do dia em minha
mesa particular, que ficava na extensa varanda. Eu raramente saía
para o mundo lá fora.
Mas, então, eu decidi reunir toda a minha coragem e fui visitar
minha irmã e meu sobrinho a apenas algumas casas de distância.
Não sabia se era importante o fato de minhas irmãs terem comprado
hectares de terra com suas próprias mansões perto dos seus
queridos pais. Elas podiam ter saído de casa, mas com certeza não
conseguiam se desvencilhar dos favores de nossos pais.
Mais tarde, quando o motorista de Cass parou em frente à
elegante mansão Di Laurentis e eu adentrei às pressas a sala,
minha testa franziu e meu queixo caiu, não acreditando no que
estava vendo. Kurt Monaghan estava sentado no sofá adjacente ao
que minha mãe se sentava, animada, levando uma xícara de chá à
boca. Kurt me viu no mesmo instante em que eu o vira.
Eu estava chocada demais para dizer qualquer coisa, portanto,
minha mãe foi mais rápida:
— Ah, querida! Soube que Kurt estava em Illinois e o chamei
para um chá. — Ela esperou por qualquer expressão minha que não
fosse choque e confusão. Shalley depositou o pires e a xícara na
cômoda baixa ao seu lado com calma e delicadeza. — Sabe, você
está muito estranha ultimamente. Como não conheço mais seus
gostos, pensei que ele pudesse ser de grande ajuda. Não considerei
aquela sua amiga, Marie…
— Margot — corrigi com certa hesitação.
Kurt me observava atentamente, também esperando por uma
reação mais concisa.
— Certo. Não a considerei, pois não concordo muito com seu…
estilo. E acho que o sentimento é mútuo — disse com certa
amargura.
E com estilo, ela queria dizer tanto sem grana quanto ativista.
Ela não gostava de pessoas que manifestavam suas opiniões, e
Margot estava constantemente pedindo para que as pessoas
ajudassem a salvar o meio-ambiente em projetos sociais e
acadêmicos, dizendo o quanto todos deveriam se mobilizar.
Mas… Kurt estava ali. Bem na minha frente. Na sala dos meus
pais.
Mamãe alternou o olhar entre nós dois e, com um sorriso,
anunciou sua retirada:
— Bem, vou deixá-los conversar. — Ela pôs a mão no ombro de
Kurt. — Descubra o que há de errado com ela. Presumo que ela não
vai querer me contar.
E então se retirou, indo em direção à cozinha, que dava para o
quintal, onde meu pai estava ao sol por mais que fosse pleno
janeiro, o auge do inverno.
Virei o olhar para Kurt mais uma vez.
— Eu não preciso de ajuda.
O moreno se levantou do conforto do sofá caro.
— Pensei que tivesse deixado Illinois. — Deixei escapar.
— Podemos conversar em outro lugar? Sua mãe está
preocupada. — Inclinou a cabeça. — E eu também.
Apesar de tudo, tive vontade de sorrir em ironia. Nenhum dos
dois se preocupava de verdade comigo. Pelo menos não mostravam
qualquer preocupação real. Eu nem mesmo sabia que minha mãe
tinha notado que eu estava… diferente.
— Não consigo conversar com você. — Estava cansada,
assustada demais para discutir. Além do mais, eu o superara.
Estava livre dele, eu tinha dito isso a Margot no parque de diversões
do píer Navy.
— Psiquê, eu fui um idiota, tá legal? — Kurt foi direto. — Não
mereço seu perdão. Soube disso no dia em que você chorou por
minha causa. Eu só quero consertar as coisas. — Então, alternou o
peso entre as pernas e enfiou a mão nos bolsos, franzindo a testa.
— Minha mãe praticamente me obrigou a entrar para o time. Eu
estava sob muita pressão quando te abandonei. Sinto mesmo a sua
falta, Psiquê. E, se permitir, quero entender o que tem de errado e te
ajudar. Vim correndo para Peoria quando sua mãe ligou. Não
consegui abandonar Chicago… nem você.
Pisquei uma, duas, três vezes.
Não podia cair naquela conversa furada sob nenhuma
circunstância e, sinceramente, estava cansada demais para aquilo.
Eu só queria o conforto da minha temporária cama.
— Kurt… Já faz um ano. Eu não penso mais em você. Sim,
você deixou uma ferida que vai demorar muito ainda a cicatrizar,
mas eu segui em frente. Acho que você deveria fazer o mesmo.
Surpresa percorreu seus olhos em um baque.
Por fim, ele baixou a cabeça.
— Não consigo. Eu… eu ainda te amo.
Fiquei estática.
— Você o quê?
Ele me fitou, triste.
— Eu posso largar o basquete, fazer um acordo ou sei lá, mas
te quero de volta. Só terminei porque estavam me obrigando a fazer
uma escolha, e rápido. Você sabe que não havia duas escolhas.
Sempre foi o basquete, de qualquer jeito. Acha mesmo que não
pensei em você em todos os jogos? Eu te amo, Psiquê, e sempre
vou amar.
A declaração me atingiu com força.
Eu sabia o quanto sua mãe podia ser rígida e conseguir o que
quisesse.
— Não precisa me perdoar. Só… me dê mais uma chance, a
chance de te provar que me importo com você. — Seus olhos
caramelo me fitaram com intensidade. Ele vestia o de sempre: um
moletom cinza do Knicks e uma jeans larga preta. Seu cabelo ainda
era mantido aparado. — O único perdão que peço é por ter te
beijado naquele dia. Eu só estava com… saudade.
Prestei atenção, dessa vez, nos seus olhos. Eles traziam
tristeza e arrependimento.
Me perguntei o quanto deveria acreditar em Kurt.
— Você não tinha o direito de aparecer aqui e dizer tudo… isso.
— Encarei seus olhos, e então saí, deixando-o sozinho. Minha mãe
tinha as formas mais erradas de fazer as coisas.

No meu sonho, eu me encontrava em um apartamento luxuoso


que conhecia muito bem: o apartamento de Eros. Meus pés
descalços tocavam o mármore preto frio. Eu vestia a mesma
camisola branca de cetim com que tinha ido dormir. Meu olhar
demorou a focar no que estava à minha frente.
Imensas asas brancas, com envergadura de no mínimo cinco
metros, cobriam um homem que mantinha uma expressão desolada
e doída. Ele parecia sofrer muito, caído naquele piso frio. Quando
seus olhos dourados encontraram os meus, percebi, tarde demais,
de que se tratava de Eros.
No mesmo momento, um traço de preocupação refletiu na
imensidão dourada feito ouro derretido. Também foi quando uma
voz sussurrou impiedosa na minha mente, áspera como pedra: Você
é a culpada. Você fez isso com ele.
Queria argumentar que não, que eu nunca teria feito algo assim
a ele, mas de repente fogo tomou todo o mármore à nossa volta. Ele
não tirou os olhos dos meus. Portanto, os meus foram desviados
para as chamas, que chamavam curiosamente minha atenção. Não
eram chamas normais. Eram tão negras que tornavam quase
impossível encará-las. E, quanto mais elas chegavam perto de mim,
mais frio eu sentia. Foi quando as chamas tomaram dois metros de
altura que Eros abriu suas asas e tentou se levantar, mas mais do
estranho fogo negro irrompeu entre nós, separando-nos.
Estranhamente, quis gritá-lo em pedido de socorro.
Meu filho caiu por você. A voz antiga sussurrou mais uma vez
em minha mente, como uma garra, arranhando-a devagar. Algo nela
me fazia lembrar alguém. Eu parecia conhecer quem proferia
aquelas palavras cruéis para mim. Era diferente do primeiro
pesadelo que tivera — a crueldade e o poder ainda maiores —,
tinha certeza.
Eros lutava para apagar as chamas ao bater suas asas, mas o
fogo parecia ficar cada vez mais alto. Nós não podíamos fazer
qualquer coisa para apagá-lo, e meu corpo começava a tremer pelo
frio.
E agora você terá o que merece, mortal.
Uma fissura se abriu aos meus pés, no piso de mármore,
aumentando até que eu estivesse diante de um imenso fosso. A
última coisa que fiz antes que ele aumentasse na minha direção foi
encarar aqueles olhos dourados que eu jurava que me amavam.
Então, alguém me empurrou.

Acordei ofegando. Meu rosto e corpo estavam encharcados de


suor, assim como os lençóis da cama abaixo de mim. Quando me
levantei para trocá-los, percebi que minha camisola não tinha se
livrado: estava empapada.
Minhas mãos tremiam quando foram de encontro com o lençol
branco impecável que envolvia o colchão da cama de dossel.
Quando as olhei, estavam chamuscadas de negro. Dei um grito que
com certeza acordou a casa inteira. Com um sobressalto, corri até o
banheiro.
Agora todo o meu corpo tremia.
Abri a torneira da pia com urgência, esfregando e esfregando as
mãos com sabão. Esfregava com toda a força que tinha, tanta que
eu tinha certeza de que as estava machucando. Tempo demais
depois, eu parei, aflita, a respiração entrecortada. De repente, me
faltou ar quando encarei meu reflexo no espelho. Não eram só as
mãos.
Meu rosto também estava marcado pela estranha fuligem.
Eu não conseguia mais respirar.
Alguém bateu à porta, que não tinha percebido ter trancado.
Não tive coragem de abri-la até ouvir a voz melodiosa de Shalley Di
Laurentis:
— Psiquê, abra esta porta! O que está acontecendo?
Havia preocupação no tom da sua voz.
Fui tomada por uma estranha sensação de conforto quando me
deparei com o rosto de minha mãe ao abrir a porta do luxuoso
banheiro. Lágrimas escorriam torrencialmente pelo meu rosto.
Nunca estivera tão assustada em toda a minha vida.
Os olhos verdes dela, idênticos aos meus, passaram do meu
rosto às minhas mãos, as quais pegou com certo assombro.
— O que fez às suas mãos?
Meus olhos também as fitaram. As palmas das minhas mãos
estavam tingidas de um vermelho intenso.
— Elas… meu rosto…
Reparei que meu pai estava no batente da porta, me
observando com preocupação. Mas não somente ele. Kurt
Monaghan o acompanhava, seus olhos sombrios. Desviei o olhar do
dele, porque seu rosto me dizia que eu não estava nada bem.
— O que tem seu rosto? — Shalley pareceu confusa.
— Sujo… cheio de…
— Querida, seu rosto está limpo. O que está acontecendo? —
Então, ela percebeu as duas figuras que nos encaravam da porta
completamente aberta. — Vocês dois, deixem-nos a sós. — Mamãe
me olhou novamente. — Vou preparar um banho para você.
Meu pai e Kurt deixaram o quarto com pesar.
Kurt foi o último a sair.
— Quente… um banho quente… — Foram as únicas palavras
que consegui dizer ao encará-la.
Quando passei mais uma vez pelo espelho para ir à banheira,
meu rosto estava limpo.
Ali, eu decidi que nunca mais sairia da mansão Di Laurentis.
M inha visão era turva e minha cabeça girava quando acordei
às 8h. O sol conseguia entrar pelos cantos das cortinas,
tocando o piso. Quando peguei meu celular para ver se
Margot havia me respondido, me deparei com uma mensagem sua.

Margot:
Tá td bem aqui, mas tô preocupada com vc. Vc nunca
fica tanto tempo em Peoria. Aconteceu alguma coisa?

Td certo aqui tb. Só entretida com Philip.

Suspirei com pesar, mandando em seguida uma foto de Philip


que Cassidy tinha me enviado certo dia, o bebê usando os tênis que
eu tinha dado a ele. Eu odiava ter que mentir para minha melhor
amiga, mas odiava ainda mais preocupá-la. Ela teria vindo correndo
para Peoria se soubesse do meu atual estado.
Eu não estava bem. Era fato.
Mas não precisava preocupar ninguém mais.
Minha respiração desregulou por um instante assim que olhei
para minha nova camisola e lembrei-me do pesadelo. Imagens dele
vieram à minha mente como um furacão: as chamas negras e frias,
o olhar doído de Eros. Tudo parecia tão real. Eu tinha visto minhas
mãos e meu rosto cheios de fuligem. Era real.

Minhas irmãs e seus maridos vieram para o almoço. Kurt estava


desconfortavelmente me observando, como se isso lhe causasse
dor e raiva e ele fizesse alguma ideia do que pudera ter me causado
todo aquele sofrimento.
O almoço seguiu em silêncio pela primeira vez na história dos Di
Laurentis, que sempre discutiam novas vendas na imobiliária ou
produtos de beleza.
Todos pareciam me observar, o que me deixou desconfortável
na cadeira de estofado macio. De repente, eu passei a me contentar
com a visão de meu prato, preenchido por algum tipo chique de
massa. Não tinha muita fome nos últimos dias. Também tinha
reparado no quanto tinha emagrecido.
— Afrodite está perseguindo você, filha? — Minha mãe lançou
um olhar confuso a mim, ao passo que estremeci diante da menção.
Mas, então… a mulher ao lado de Eros naquela noite me veio à
cabeça. Seus olhos dourados como os dele e seus cabelos longos e
loiros. Afrodite. Era ela quem estava me perseguindo. Um arrepio
me subiu à coluna. — Certamente devo informar ao dr. Morris que
você anda tendo pesadelos.
Karen e Cassidy trocaram olhares, ambas confusas.
Henry ergueu a sobrancelha para sua esposa e Kurt franziu a
testa para mim.
De repente, Karen aproximou o rosto de seu marido, Carlos, e
fez uma pergunta audaciosa:
— Ela está louca? Tipo, de verdade? — Todos escutaram.
Meu pai lançou um olhar repreensivo a ela.
Em resposta, meu sangue pareceu ferver em raiva e desgosto.
Karen me olhou de volta, e eu devia estar como um pimentão pela
forma como ela desviou o olhar rapidamente. Eu tinha raiva dela.
Raiva deles. De todos.
Me levantei com tanta força que a cadeira quase caiu para trás
quando me apoiei na mesa e encarei Karen, que agora não
conseguia mais desviar os olhos dos meus. Seus olhos pareciam
aflitos.
Agora eu encarava todos, até mesmo Carlos, Ruben e Kurt.
— Por que vocês sempre têm que me tratar como se eu fosse
de outro planeta? Vocês estão tão imersos nessa vida perfeita de
vocês que não estão nem aí para os outros que não se encaixam no
seu padrão. Estou tão farta disso! Minha saúde mental é em parte
influenciada por vocês. — Me concentrei em Karen novamente, que
mantinha o queixo caído. — Eu posso estar louca, Karen, mas não
mais que vocês todos, se pensam que a vida é um mar de rosas
para todo mundo.
Todos me observavam embasbacados, como se lhe faltassem
palavras.
Karen agora parecia ferver, mas me retirei antes que ela me
desse alguma resposta afiada. Subi às pressas para o meu quarto,
pensando que talvez ter ido para Peoria não tivesse sido
exatamente a melhor ideia. Os Di Laurentis estavam, de fato, me
deixando louca.

Abri as grandes janelas que iam até o chão e davam para a


varanda. Eu precisava, mais uma vez, respirar ar puro. A vista dava
para a piscina, assim como a varanda do quintal. Assim que as abri,
foi inevitável me debruçar sobre a amurada e olhar para a lua, mas,
daquela vez, eu não me lembrei da deusa da lua, Ártemis.
Eu me lembrei dele.
Não tinha me permitido pensar sobre Eros naquelas duas
últimas semanas porque eu simplesmente não conseguia aceitar o
fato de que ele era um deus — e ainda não conseguia. Lembranças
desde setembro, de quando tínhamos nos conhecido naquele bar,
começaram a invadir minha mente. O bar, o iate, o jogo de
basquete, o tour por Chicago, a biblioteca, as nossas noites juntos.
Todas essas coisas tinham sido o que me havia feito mais feliz nos
últimos meses. Margot não dizia, mas eu percebia que ela me
olhava com mais brilho nos olhos, como se eu não tivesse recebido
diversão havia tempos.
Aquelas provocações, que me faziam sorrir mais.
Aquelas festas, onde, em uma delas, ele tinha me defendido
com preocupação nos olhos. E, de novo, naquele dia em que Kurt
tinha aparecido em Chicago. A preocupação era genuína. Seus
olhos, suas expressões, suas falas me diziam isso, mas, como
deus… ele era capaz de muitas coisas, como me manipular.
Tudo aquilo… parecia distante.
Janeiro, lembrei a mim mesma. Estávamos no mês de janeiro.
Ainda assim, aquela fatídica noite de setembro parecia ter um
ano, e não quatro meses.
Até mesmo a UC e os meus estudos pareciam distantes. Tudo
tinha mudado tão drasticamente desde… aquilo. Tivera que me
mudar para a última cidade que teria gostado de me mudar. Tivera
que me hospedar em um lar onde as pessoas eram gananciosas e
manipuladoras, um ambiente tóxico. Tivera que abandonar minha
melhor amiga e meu curso de Filosofia, meu sonho desde garota.
Eu parecia estar confinada naquela casa havia meses.
Por que ele tinha que ser quem era? Por que ele tinha me
enganado? Eu o amava com tudo o que era. Teria dado minha vida
pela dele. Teria feito de tudo pela sua felicidade. E essas coisas
todas tinham sido ofuscadas, como se uma espessa névoa recaísse
sobre elas. Eu era uma mulher andando às cegas, completamente
desnorteada.
Sabendo que meu norte era Eros.
Eros… Por um momento, tive vontade de rir, porque o
sobrenome dele com certeza não era Dawson. E porque eu ainda
não o sabia.
Provavelmente, nunca saberia.
Porque eu nunca mais o veria novamente. Nunca mais sentiria
seu toque, admiraria seus olhos exóticos, o chamaria de meu. E a
última coisa que eu esperava era que meu coração se partisse
naquele momento. Eu não o amava mais. Por que ele estaria se
partindo, estilhaçando como vidro?
Tive medo de que a alma não pudesse viver sem o amor.
Fitei as estrelas, praguejando para quem quisesse ouvir que o
Destino era cruel. Eu não merecia aquilo, tinha certeza de que não.
Em resposta, elas brilharam mais fortes, como nunca antes.
Estremeci ao me lembrar do meu sonho, no qual eu tentava voltar
para Eros mais uma vez, o que eu não me via fazendo.
— Por quê? — sussurrei a palavra que mais se repetia na
minha cabeça.
Daquela vez, o brilho das estrelas permaneceu o mesmo. Um
vento percorreu o campo, ao passo que um trovão ribombou nos
céus, exatamente como fazia quando eu e Eros estávamos juntos.
Não tive medo, porque, naquela hora, eu praguejava àqueles
responsáveis pelo que acontecia na minha vida. A coragem só
percorria meu sangue porque estava acompanhada da raiva, e me
ocorreu que as duas podiam se tornar ótimas companheiras.
Quando a voz saiu da minha garganta, fraca, percebi que
estava embargada e que estava soluçando. Só então senti as
lágrimas escorrerem pelo meu rosto, lágrimas que eu sabia serem
de tristeza.
— DOIS MESES DEPOIS —

A destruição costumava ser rápida, estrondosa. Ruía pedra por


pedra com velocidade, só deixando perceber o que estava
para acontecer quando de fato acontecia. Com Eros, não
fora diferente. Eu nunca esperara por aquela verdade, uma que
ainda me doía, mas não tanto quanto antes.
Margot tinha descoberto sobre ele — só uma parte da verdade
— quando a minha estadia em Peoria completou três semanas,
assim que veio me visitar. Ela disse que nunca tinha me visto tão
mal, e eu acreditei nela, porque a cada vez que eu me olhava no
espelho parecia pior. Mais pálida. Mais doente.
Não era pelo segredo esmagador de Eros, tinha percebido, mas
porque não podíamos viver um sem o outro.
Eu vinha pensando nele desde que Kurt partira, deixando
aquelas palavras comigo, sobre eu ter encontrado a pessoa certa e
merecer ser feliz de verdade. Elas tinham começado a fazer sentido
aos poucos. Fora quando eu descobrira que de fato nunca o deixara
de amar.
Meu coração não pertencia a mais ninguém e pesava sem ele.
Curiosamente, não pensei muito quando peguei o ônibus de
volta à Chicago. Apenas tinha levado minha mala intacta e a bolsa
rosa de mamãe. Ninguém tinha parecido me ver até que eu havia
posto a mão na maçaneta da porta de entrada. Meus pais tinham
aparecido juntos, os braços entrelaçados. Minha mãe tinha tomado
a iniciativa ao perguntar, com a testa franzida e a sobrancelha
erguida, aonde eu ia. Apenas tinha sorrido para os dois, esperando
que servisse de resposta. Tinha ouvido meu pai dizer a sua esposa
que eu parecia bastante decidida antes de desaparecer.
Não me permiti pensar por três horas, até chegar à rodoviária
de Chicago e pegar o táxi até o apartamento — não o meu. Quando
passamos pela UC e pelo prédio que costumava dividir com Margot,
meus pelos se eriçaram em resposta. Então, rápido assim, estava
diante do prédio de dez andares que costumava ser meu
passatempo favorito até pouco tempo antes.
Respirei fundo e só quando entreguei os dez dólares ao taxista
percebi o quão trêmula estava, o que não combinava nem um pouco
com a minha convicção.
Desci do táxi em um pulo, inspirando o ar poluído de Chicago,
assim como Margot teria dito. Fiquei aliviada por pensar em algo
simples como a aspiração da minha amiga, e não na realidade que
tinha passado a me assombrar.
Não podia pensar. Só estragaria tudo.
Olhei à minha volta. A rua era coberta por prédios altos como
aquele que logo adentraria. Ao longe, a UC brilhava em todo seu
esplendor, e os carros passavam apressados pela rua. Somente ao
olhar para as nuvens cerradas sobre o céu que eu percebi o quanto
estava com saudades de Chicago.
E do seu ar poluído, lembrei.
Bem, talvez nem tanto, ri comigo mesma.
Perceber que o amava era mais libertador do que achava
possível. Pássaros cortaram o céu, agitados, e também livres. Como
eu. Porque eu estava livre dos meus medos mais sombrios. Tinha
largado todos para trás por ele.
E agora precisava subir ao nono andar do prédio à minha frente.

O fôlego me escapou quando as portas do elevador tilintaram e


se abriram, mas principalmente por encontrá-lo depois de tanto
tempo, e talvez também por suas imensas asas estarem abertas
sobre ele, cobrindo-o. Era a segunda vez que as via, mas, agora,
consegui reparar no quão majestosas eram.
Uma ponta de medo ainda estava junto ao meu peito, mas eu
escolhi ignorá-la.
Ele não descobriu as asas de si, não antes que eu reparasse
que havia algo de semelhante naquela posição. Perdendo o fôlego
pela segunda vez na mesma hora, percebi o porquê: era a mesma
posição em que ele se encontrava em meu pesadelo, sentado sobre
o mármore escuro, coberto pelas asas.
Me perguntei quando seria que as tenebrosas chamas negras
irromperiam do chão.
Mas o terror se esvaiu assim que seus olhos dourados
encontraram os meus. Suas asas se abriram quase que
instantaneamente, o que me fez pisar um passo para trás. Dúvida e
descrença dançavam pelos seus orbes enquanto me encarava.
— Psiquê? — Sua voz saiu em um sussurro falhado,
desamparada, e suas asas se recolheram até sumirem nas suas
costas.
Corri até ele quase que no mesmo instante, como se seu tom de
voz me ativasse. Sentei sob as minhas pernas junto a ele no piso
frio. Minhas mãos foram até seu rosto esculpido, e Eros sorriu,
pondo suas mãos sobre elas, apertando-as. Ele me olhava como se
não acreditasse que eu estava ali.
— Você não se foi — sussurrei.
Uma parte de mim estava duvidosa quanto a se ele ainda
estaria em Chicago quando ele poderia muito bem ter voltado ao
seu lar, o Olimpo. Mas eu tinha resolvido ter esperanças.
— Não consegui. — Ele me analisou como se estivesse
tentando memorizar meus traços. — E você está aqui.
Só então percebi que seus olhos estavam inchados e
vermelhos.
— Você… você estava chorando? — Inclinei a cabeça, ao
passo que uma súbita tristeza invadiu meu corpo.
— E bebendo. — Ele olhou para o lado, me levando a fazer o
mesmo e a me deparar com garrafas e garrafas de uísque. Olhei
para a cristaleira em que costumava guardá-las. Estava
completamente vazia, exceto por três ou quatro garrafas vazias
distribuídas entre as quatro prateleiras do móvel.
Meu olhar voltou-se ao dele, desacreditado.
— Presumo que deuses não ficam bêbados tão rápido. — Sorri,
melancólica.
Depois de três meses pensando naquilo, eu já havia me
acostumado o bastante para dizer o que ele era em voz alta.
Seu sorriso vacilou, triste e arrependido, e fez menção de me
puxar para si. Em um impulso totalmente indesejado, eu recuei, o
que o fez baixar os olhos. Ele não vai me machucar, tive de repetir
mentalmente. É o mesmo Eros de antes. O mesmo que me fez me
sentir livre pela primeira vez em muito tempo.
Observei a roupa que ele vestia, totalmente amarrotada. Meus
olhos subiram até seus cabelos, emaranhados como se tivessem
sido remexidos muitas vezes. Assim como eu, ele não estivera nada
bem nos últimos três meses. Desde o dia em que eu tinha aparecido
naquele mesmo lugar e me deparado com a verdade
ensurdecedora.
Não era só eu que não dormia mais direito ou que me desfazia
em lágrimas sempre que me lembrava do que a gente tinha
significado um para o outro — ou melhor: do que ainda
significávamos um para o outro.
Então, eu toquei seu rosto, que subiu lentamente até nossos
olhos se encontrarem mais uma vez. Só que não fui eu a primeira a
falar.
— Sinto muito pelo que viu, mas sinto ainda mais por ter te
colocado nessa situação. Eu deveria ter recuado naquele dia,
Psiquê. Eu teria poupado todo esse caos por que está passando. É
tudo culpa minha. — Eros pareceu se lembrar de alguma coisa. —
Mas… você está aqui. Por quê? — A pergunta saiu em um fio de
voz, tão desagradável que tive de desviar o olhar por um instante.
Ela me machucava fundo no peito.
E talvez por isso — por ela ter soado tão dolorida — que senti
lágrimas passarem quentes pelo meu rosto até se chocarem contra
o piso negro e frio.
— Por muito tempo — me virei para ele mais uma vez, que me
observava com atenção —, eu tive medo. Não conseguia dormir
porque os pensamentos ficavam mais agressivos quando eu me
deitava, e também por causa dos pesadelos. Minha mente nunca se
calava, e eu acabava ficando alerta a noite toda. — As lágrimas
desciam com mais força, e eu percebia os olhos dele marejando. —
Mas, então, alguém apareceu para falar exatamente aquilo que eu
deveria saber desde o início. — Baixei os olhos por um momento
antes de dizer as palavras. — Que eu amo você, Eros, e que é
impossível deixar de te amar. Meus pensamentos me machucavam,
mas o que mais doía era ficar longe de você.
E, àquela altura, ambos estávamos chorando.
— Foi você o primeiro a me enxergar de verdade. Você me vê
por quem eu sou, não pelo que eu tenho. É de mim que você gosta,
não da minha beleza ou do meu dinheiro — continuei. — E eu sou
eternamente grata por isso.
Eros sorriu como nunca havia sorrido antes, talvez por achar
que não me merecia. Seus olhos dourados brilhavam com tanta
intensidade que, por um momento, tive a certeza de que eram feitos
de ouro.
Ele me trouxe para mais perto de si como se não quisesse se
separar de mim nunca mais. Eu compartilhava do mesmo
sentimento. Seus braços me apertaram de leve, como se eu fosse
feita de porcelana — e talvez meu corpo realmente equivalesse a
isso para ele. Sua mão acariciou meus cabelos, e então eu me
desfiz. Soluços agora escapavam da minha boca, porque tive
certeza de que o que eu mais havia temido em todo aquele tempo
tinha sido não poder voltar àqueles mesmos braços que agora me
envolviam.
— Eu te amo, Psiquê, como jamais amei alguém — Eros
sussurrou enquanto me acariciava, e aquilo preencheu meu
coração. — E estou disposto a deixar tudo para ficar com você.
Fechei bem os olhos, aproveitando aquela sensação de alívio
que agora percorria meu corpo.
— É Olympia. Meu sobrenome é Olympia — ele disse depois de
um tempo, a voz falha pelas lágrimas derramadas.
Eu abri um sorriso, ainda sem encará-lo.
Olympia. Soava adequado para um deus.
N ão consegui conter minha felicidade em tê-la de volta,
dizendo que me amava — não que tivesse de ser contida.
Naquele dia, eu finalmente tive as duas coisas que mais
desejara em todos aqueles anos: o amor e ela.
Durante aqueles meses, eu tinha sofrido muito sem ela. Só saía
para visitar os mesmos lugares que tínhamos visitado ou para pedir
mais uísque naquele bar de esquina. Minha mãe não tivera coragem
de me visitar, talvez porque eu a tinha decepcionado — e, mesmo
depois de tudo, eu não a julgava. Eu sabia pelo que ela tinha
passado, só estava tentando me proteger. Não que eu fosse me
esquecer de tudo.
Respirei fundo para afastar os pensamentos, porque, naquele
momento, estava levando Psiquê Di Laurentis, a mulher da minha
vida, até o terraço do prédio que tinha se tornado meu lar em todos
aqueles meses no Mundo Mortal.
Ela observou tudo à sua volta quando abri a porta metálica para
que pudesse passar. As estrelas estavam especialmente bonitas
naquela noite, assim como ela. Psiquê brilhava com a luz da lua, e
seus cabelos revoltavam-se com a brisa noturna. O ser mais lindo
que já tinha visto.
Puxei-a delicadamente pela cintura, sorrindo de orelha a orelha.
— Você é tão linda.
Suas bochechas possuíam uma coloração rosada, o que só me
fez sorrir mais.
— E nem preciso dizer a você o mesmo.
— É, eu já sei que sou lindo — brinquei.
Ainda ali, eu tinha medo de estragar tudo.
Mesmo que, como deus do amor, eu pudesse sentir exatamente
o mesmo laço que unia aqueles mortais desde a década de 1990
até aquele dia. Só que ainda mais forte. A sensação me inebriava
de uma forma revigorante. Era tão intenso que chegava a ser
palpável.
Porque alma e amor estavam finalmente unidos.
— Você… é um anjo? — Psiquê inclinou a cabeça, um pouco
receosa pela pergunta.
— Um Erote, mais especificamente. Anjos foram inspirados em
nós.
— Nós? — Seus lindos olhos verdes brilhavam na busca de
saber mais.
— Eu e meus irmãos. Os Erotes de Afrodite. — Ela assentiu,
tentando cogitar a informação. — Vou responder tudo o que deseja
saber, princesa. É só perguntar.
Seus lábios se abriram em um sorriso singelo que, por mais que
pequeno, era extraordinário. Como ela.
— Pode me explicar como veio parar… aqui? Em Chicago?
Desviei os olhos dela por um instante, engolindo em seco.
— Psiquê… Os sonhos que você vem tendo… se relacionam a
isso.
Terror passou pelos seus orbes por um milésimo de segundo.
— Eu só… quero entender.
Eu me afastei dela, um pouco atordoado por ter que revelar
aquilo, e me apoiei na amurada do terraço, que mantinha a
segurança dos mortais. Psiquê veio atrás depois de alguns minutos.
Olhei para ela, que estava apoiada como eu, mas olhando para
a cidade.
— Eu li livros sobre você. — Psiquê admitiu, ainda sem me
encarar. — Em um deles, as façanhas do deus do amor terminam
com uma missão em que você fracassa. Qual missão? — Ela
finalmente estacionou os olhos sobre mim.
Pisquei os olhos um par de vezes, realmente confuso.
Nunca tinha fracassado em uma missão… até aquela.
Quando liguei os pontos, tive vontade de rir, porque a única
missão em que eu fracassara tinha sido a de Psiquê. E meu destino
estava logo nesse Mundo, escrito em livros de mitologia greco-
romana. As três Moiras sempre tinham adorado debochar da cara
dos deuses ao longo dos séculos. Era óbvio que estaria bem
debaixo do meu nariz, em todo aquele tempo.
— Sim — respondi, um pouco atrasado. — Eu fracassei em
apenas uma missão. Você, princesa.
Ela se afastou atordoada da amurada.
— Como? — sussurrou, confusa.
Respirei fundo.
— Minha mãe, Afrodite, que você conheceu naquele dia,
descobriu sobre uma mortal que estava chamando atenção por
causa da sua beleza. Ela ficou com ciúmes, porque ninguém pode
ameaçar a sua beleza. Então, ela me mandou para Chicago. Para
você.
— O que… o que era pra você ter feito comigo?
Meus olhos se encheram de tristeza.
— Você deve conhecer a história do Cupido, meu outro nome
aqui nesse Mundo. Por três milênios, eu fiz mortais e imortais se
apaixonarem. — Ela se assustou diante da ideia de eu ter vivido por
tanto tempo. Eu não tinha como esconder aquilo dela, nem queria.
Todo o caos causado tinha sido porque havia guardado um segredo,
aquele segredo. — Mas parei séculos atrás.
Psiquê desviou os olhos por um momento.
— Minha mãe ainda acha útil — continuei, com cuidado, sem
tentar nenhuma aproximação —, então às vezes ela me manda em
missões para resolver assuntos dela. Ela não me diz os porquês,
mas descobri o seu assim que te conheci naquele bar. Não minto
quando digo que você é a mais bela entre todos os Mundos.
Ela ficou calada por um instante, digerindo a informação.
Lá embaixo, a cidade fervia.
— Era por isso que ela tinha vindo até aqui — constatou em um
murmúrio.
Assenti.
Ela me fitou, ao passo que tensão dominou meu corpo. Ainda
não sabia como ela reagiria quando lhe contasse o objetivo daquela
missão, mas disse:
— O objetivo era flechar você com um monstro.
Os olhos dela se arregalaram, aflita.
— Como…? Você ia… fazer isso? — Perdeu o fôlego.
— Eu ia — confirmei. — Até pôr os olhos em você. Algo me fez
ter certeza de que não merecia isso. — Ela não pareceu menos
assustada, mas destravou o maxilar. — Eu disse a mim mesmo que
ficaria para te proteger, mas não era só isso. Eu me encantei
instantaneamente por você, princesa. Não tinha como fazer algo tão
cruel contra você.
Ela apertou os olhos.
— Afrodite está com raiva de mim? Porque sou bonita? Mas não
faz sentido. Ela é… Sua mãe… — Assenti, entendendo o que ela
quis dizer. — É por isso que ando tendo pesadelos — constatou ela.
Franzi a testa.
— Que tipo de pesadelos? — Me permiti andar até ela,
preocupado.
— Ela me disse que… que eu vou ter o que mereço, porque
você caiu por mim. — Me encarou, na esperança de que eu tivesse
respostas, pelas quais agora eu também buscava. — Não é a
mesma voz do primeiro sonho. São duas vozes diferentes.
Suspirei, sabendo muito bem de quem era a primeira voz, mas
principalmente por não fazer a mínima ideia do que minha mãe
queria dizer com aquilo. O que ela faria contra Psiquê?
Franzi a testa pela segunda vez na noite.
— Quando você teve esse segundo pesadelo?
— Logo que voltei para Peoria. — Sua voz transbordava medo.
Merda.
Significava que tinha sido depois de minha mãe ter estado em
Chicago, não antes.
Ela ainda estaria planejando algo contra Psiquê.
Peguei as suas mãos trêmulas na tentativa de confortá-la.
— Foi Hermes quem você escutou no primeiro sonho. Ele ficou
bravo depois de eu ter mentido ao dizer que já tinha concluído a
missão. — Tentei passar segurança quando a encarei fundo nos
olhos. — Mas eles não vão machucar você, princesa. Não vou
permitir.
Hesitante, ela assentiu. Então, me abraçou apertado, afoita.
Psiquê Di Laurentis era minha esperança e meu mundo. Não
deixaria que nada acontecesse àquela que eu amava.

Eu lhe contei sobre tudo, explicando principalmente o que os


mortais entendiam por mitologia: que ela havia surgido a partir do
momento em que os deuses tinham decidido que queriam ser
exaltados em uma pequena cidade na Grécia. Logo os deuses já
dominavam todo o país, com templos erguidos para todos os doze
olimpianos.
Em algum momento, Afrodite tinha contado ao Mundo Mortal
sobre seus oito filhos. E tinha sido assim que eu havia entrado em
cena e conquistado os mortais com minhas aventuras — que
envolviam meu lado “Cupido”, as flechas encantadas de ouro.
A devoção tinha se espalhado para outros lugares com a
invasão romana à Grécia no que eles entendiam por Batalha do
Corinto, na qual Ares, meu pai, sendo o deus da guerra, tinha
intercedido a favor do melhor lado.
Assim, os romanos tinham levado os deuses à Itália.
A história havia se espalhado por todo o mundo, em diferentes
épocas e versões, fosse nórdica ou católica — o que feria
arduamente o orgulho dos deuses.
Psiquê parecia travar uma guerra interna ao escutar tudo o que
eu tinha para falar, mas, no final, ela direcionou as íris verdes para
mim, surpreendentemente maravilhada. Eram informações
inacreditáveis para ela e inegáveis para mim, mas então me lembrei
do que ela cursava na Universidade de Chicago, inclusa na vista do
terraço.
Psiquê Di Laurentis era uma filósofa e, por conta disso,
estudava sobre nós.
— É tudo verdade — sussurrou para as estrelas. — E você tem
três mil anos.
Juntei-me a ela na amurada e assenti, sentindo alívio pelo terror
ter cedido lugar à contemplação.
Seus olhos, que possuíam um brilho lunar, se voltaram para
mim mais uma vez.
Eu senti meu coração dar um pulo quando ela proferiu:
— Posso… — Inclinou a cabeça, curiosa. — Posso vê-las? As
suas asas?
Pisquei uma ou duas vezes antes de abri-las para ela.
As asas eram meu único passe livre para a liberdade, mas, de
certa forma, nunca me sentira tão livre ao ver Psiquê contemplando-
as. Havia um brilho maravilhado em seus olhos enquanto ela
analisava cada detalhe de cada pena.
Ela se aproximou, estendendo a delicada mão para tocá-la.
— Posso? — perguntou, olhando nos meus olhos.
Assenti, imóvel, feliz pela sua reação; por ela gostar delas tanto
quanto eu.
Senti quando ela tocou em minha asa esquerda. Um arrepio
subiu pela minha coluna.
— Elas são lindas. — Olhou novamente nos meus olhos, e pude
jurar que eram estrelas que haviam tomado o lugar dos seus.
Eu sorri de felicidade.
— Obrigado, princesa.
— Você voou até aqui? Até Chicago?
Confirmei com um breve aceno de cabeça.
— Você… me levaria para voar com você? — Psiquê sorria,
sem mais nenhum traço de assombro no seu rosto. Na verdade,
nunca a tinha visto tão aliviada. Era como se um peso enorme
tivesse sido tirado das suas costas.
Meu sorriso sumiu por um segundo quando preocupação tomou
meu corpo.
— Tem certeza?
Ela assentiu, convicta de si, agora só conseguindo olhar para
mim, como que esperando ansiosamente a resposta.
— Então, é claro que te levaria. Para onde você quiser,
princesa.
— Agora?
— Agora — confirmei, emocionado por ela estar me aceitando
tão bem naquele momento.
Agarrei sua cintura e estendi bem as minhas asas, levando a
boca ao seu ouvido:
— Segure firme — sussurrei, o que me levou à lembrança de
nós dois navegando no Michigan. Pelo visto, ela também, que
estremeceu por um breve momento.
E pensei que talvez finalmente pudéssemos recomeçar.
Então, nós despencamos do terraço, na altura de dez andares.
Psiquê gritou até que eu batesse as asas e estabelecesse um ritmo,
planando por Chicago à meia-noite. Então, em vez disso, abriu os
olhos, antes fechados pelo pânico de despencar de mais de trinta
metros, e maravilhou-se com a vista.
— É assim que você se sente. — Ela falou depois de um tempo,
sua voz se sobressaindo ao som do ar sendo cortado.
Estabeleci um ritmo mais lento, apreciando a sua companhia.
— Como? — perguntei, curioso, ao olhar para a imensidão
verde que eram suas íris, enquanto compartilhava aquela vista de
Chicago com ela.
— Livre. — Psiquê sorriu, feliz como eu nunca a tinha visto
antes.
E me perguntei se era eu a causa disso.
Porque ela com certeza era a minha.
S empre tinha sido muito pensativa, mas uma das coisas que
eu nunca havia parado para pensar era em como seria voar
— o que, às vezes, aparecia nos pensamentos de muitas
pessoas. Talvez eu ainda não ligasse isso à liberdade, porque tudo
o que eu sempre quisera tinha sido me sentir livre.
E, ali no céu noturno de Chicago, com ele, eu me senti assim.
Livre.

Entrei discretamente no Aquário Shedd, passando pela lojinha


de conveniências com estampas da atração turística para chegar
até os vestiários dos funcionários. Meu coração palpitava por estar
mais uma vez naquele lugar, que trazia uma parte de mim de volta,
e por estar tão próxima da minha amiga, a melhor bióloga de todas.
Os peixes nadavam em calmaria nas paredes de vidro enquanto
eu me aproximava cada vez mais.
Dei um suspiro empolgado antes de abrir a porta do vestiário
feminino.
E lá estava Margot Linderman, de costas para mim, em seu
uniforme azul ridículo.
— Margot? — murmurei, sendo preenchida por uma alegria
instantânea.
A morena se livrou do seu coque e se virou com tudo para mim,
seus olhos azul-acinzentados brilhando. Ela fez uma careta de
alegria e, jogando os braços para cima, veio correndo até mim.
— Psiquê! — proferiu meu nome quando me abraçou apertado.
Então, se afastou para me encarar. — Você voltou. Está mesmo em
Chicago! Em carne e osso!
Dei um riso nasalar e a abracei mais uma vez.
— Pelo visto, o Shedd ainda obriga as pessoas a vestirem isso
— ironizei ao passar os olhos pela sua roupa, emocionada demais
para ter falado qualquer outra coisa.
Minha amiga abriu um sorriso contagiante. Seus fios claros de
cabelo estavam selvagens, voltados para todos os lados e em todos
os ângulos possíveis.
— Nem me fale! Semana passada, me obrigaram a me vestir de
tubarão-martelo — descontraiu comigo.
Tive que dar risada.
— Tubarão-martelo? — indaguei, risonha.
— Não enche! — Deu com o boné no meu braço, que até então
não tinha percebido que estava segurando. Nós nos encaramos por
alguns instantes, tentando cogitar a ideia de estarmos final e
novamente juntas, cara a cara. — Vamos pro bar? Temos muito o
que conversar!
Assenti e então a esperei trocar as roupas.
— Quando você voltou? — perguntou ela, colocando um suéter
vermelho-vinho.
Hesitei por um momento.
— Ontem à noite.
— E não pensou em aparecer lá no apê? — Ergueu uma
sobrancelha para mim, e eu ergui outra de volta. Sua expressão
mudou rapidamente. — Ah, sim. Certo.
Quando já estava sem o terrível uniforme do Shedd, Margot
suspirou de alívio e disse:
— Livre daquelas peças horrorosas. Vamos?
Abri um sorriso em resposta, mal acreditando que estava de
volta.

Margot me contou coisas básicas da sua vida nos últimos


meses, como seu curso de Biologia, sua nova campanha a favor do
meio-ambiente e seu expediente no Shedd. Ela achou importante
ressaltar que a campanha estava ajudando muitas vidas selvagens,
já que, só na UC, tinham reduzido em 10% os descartes de papel e
aumentado em outros 10% o comprometimento de descartar o lixo
da forma correta. Ela se gabou de ser já popular no curso, que todos
a conheciam e falavam da sua campanha.
Fiquei feliz de verdade por ela estar conquistando o seu sonho.
E, bem, mais cedo, eu realmente não sabia como as coisas
estavam para mim na UC. Tinha programado a manhã para
conversar com o coordenador de curso sobre minhas muitas faltas
— três meses delas. Acontecia que as coisas não estavam nada
fáceis.
Quando encontramos um banco para nos sentarmos, em frente
à bancada do bar, nós pedimos uma porção de fritas e dois martínis
— e Margot se prontificou a pagar tudo, como um presente de boas-
vindas. Já fazia um bom tempo desde que tinha provado o gosto
doce da minha bebida favorita.
Lá fora, a neve caía copiosamente, cobrindo todas as ruas e
calçadas da cidade, tornando-a um quadradinho branco no mapa.
Já dentro do estabelecimento chamado Esquina Bar — um nome
um tanto irônico e totalmente não-criativo —, havia uma algazarra.
Pessoas balançavam seus corpos ao som do DJ, enquanto outras
tentavam lembrar onde estavam. Luzes neon mudavam de foco e de
lugar durante a música, uma mistura de cores rodopiando pelo lugar,
que era revestido em preto e cinza e que possuía pé-direito alto.
Tão lotado quanto na noite em que tinha conhecido Eros
Olympia.
— Vocês se resolveram? — Margot questionou depois de uma
mordida na sua batata frita. Nós duas tiráramos os dedos das luvas
para comê-las e estávamos agasalhadas até a alma.
Só consegui confirmar com um breve aceno de cabeça
enquanto bebia do meu martíni. Tão saboroso quanto me lembrava.
— Como estão as coisas com o Justin?
— Tudo certo. A família dele acabou gostando muito de mim.
Seu suspiro tenso interrompeu qualquer tentativa de resposta
minha.
— Fiquei assustada por você ter sumido tão de repente —
contou ela, deixando a comida um pouco de lado. Seus olhos
denunciavam sua preocupação. — E preocupada por você demorar
tanto a voltar. Você sabe, sua família não é a melhor companhia. —
Conseguiu dar um sorriso. — Sei que ele te magoou, e muito, mas
não sei se ele de fato quebrou seu coração, porque não é o que me
parece. Está mais para consertou, porque você não tinha outro
objetivo na vida além de pensar em Aristóteles e Platão. — Mesmo
sendo irônico, não consegui rir ou até mesmo sorrir. Estava
concentrada, imersa demais em suas palavras sinceras. — Quando
ele chegou, você decidiu que o queria e que faria de tudo para tê-lo.
Foi aí que você começou a cicatrizar. E eu fiquei tão feliz por você.
Meus olhos ardiam, querendo urgentemente lacrimejar.
Eu me identificava com tudo aquilo e estava ainda mais feliz por
ter uma amiga como Margot.
Segurando minha taça de martíni, eu a abracei, mas não me
permiti chorar.
Porque queria me concentrar em sorrir.
— Eu te amo, Margot.
Ela me apertou ainda mais.
— E eu também te amo, Psiquê.
Eu tinha dormido no apartamento dele na noite anterior, em um
quarto de hóspedes, que não deixava de ser luxuoso como o
principal. Ainda não me sentia bem para dividir uma cama com ele,
e Eros não questionara. Ele tinha me deixado fazer minhas próprias
escolhas, me deixado livre para isso.
Naquela noite, logo após escutar o plim do elevador, eu o
encontrei observando a cidade pela parede envidraçada. Ele se
virou assim que dei o primeiro passo adentro no seu apartamento.
As luzes estavam todas ligadas, diferentemente da noite anterior,
em que o apartamento se encontrava sem cor e sem vida, na
completa escuridão.
— Oi — ele cumprimentou em um sussurro assim que me
aproximei, como se não quisesse me assustar, e colocou uma
mecha ondulada de meu cabelo atrás da orelha. Então, me
esquadrinhou de cima a baixo com melancolia. — Estava com medo
de que não voltasse — confessou junto a uma lufada de ar.
Coloquei sua mão na minha e guiei-a até meu rosto, o que fez
um brilho contagiante tomar seus olhos âmbar.
— Não vou mais fugir. — Envolvi seu rosto com as mãos. —
Você é a minha liberdade, Eros. Não vou te deixar escapar.
Ele sorriu esbranquiçado e aproximou seu rosto do meu, mas
interrompeu rápido o movimento. Havia receio espreitando no seu
olhar quando o encarei diretamente ali, naquele mar dourado. Na
sua expressão facial, preocupação e medo faziam um conjunto.
Mesmo ali, com aquelas palavras, ele ainda estava com medo de
me perder. Dava a entender que eu era tudo o que ele tinha.
Por isso, um sorriso singelo e sincero espreitou no meu rosto.
Como pudera pensar que Eros me teria feito mal quando ele tinha
cuidado de mim por todo aquele tempo — e continuava cuidando;
quando ele tinha se preocupado de maneira exposta diversas vezes
— nas festas, com Kurt? Em todas elas, as pessoas queriam me
machucar, e ele tinha me protegido.
Eu disse para mim mesmo que ficaria para te proteger.
Sua voz grave e rouca parecia real quando pensou nela dizendo
tais palavras na noite anterior.
Era real.
Meus braços se envolveram no seu pescoço, o que deu
permissão para que ele segurasse minha cintura com firmeza.
Fiquei na ponta dos pés, vista a nossa diferença de 20 cm de altura,
e me aproximei o suficiente para que nossas respirações se
misturassem.
E para que nossas bocas colassem em urgência — uma
urgência de três meses distantes um do outro.
Nossas línguas entraram em colapso.
Eros apertou minha cintura e me pegou no colo, antes me
fazendo uma pergunta indireta pelo olhar. Eu assenti. Então, ele me
carregou escada acima e me dispôs sobre sua majestosa cama
quando chegamos ao seu quarto.
Como se lesse minha mente, o que eu sinceramente não sabia
se estava na lista de domínios dos deuses, ele aproximou sua boca
do meu lóbulo e sussurrou:
— Hoje nós o faremos nosso quarto.
Vi que ele estava sorrindo quando se afastou para me encarar
nos olhos.
Naquela noite, não havia selvageria ou um desejo sobrepujante.
Havia a necessidade de que nossos corpos fossem um só. Uma
felicidade genuína faiscava em seus olhos… e certamente também
nos meus.
Eros subiu com delicadeza as mãos da minha cintura acima,
passando por debaixo do suéter de lã que vestia e entrando em
contato direto com a minha pele, o que nos fez sorrir. Ele subiu a
peça aos poucos pelo meu tronco, deslizando-a contra minha pele
quente. Seus olhos todo o tempo nos meus. Até que eu estivesse só
de sutiã.
Logo ele aproximou seus lábios perfeitos do meu umbigo e
sussurrou eu te amo a cada beijo depositado até chegar à minha
clavícula. A verdade era que meus olhos já rolavam de prazer.
Eu mesma removi meu sutiã.
Eros logo se apressou com a sua roupa, com a minha calça e
com o que estava debaixo dela. Ele me encarou, e então o senti me
atiçando lá embaixo. Minha mão foi até seu rosto, apertando-o com
o prazer. Ele parecia não sentir, mesmo quando raspei as unhas
com a outra mão no seu ombro direito.
Na verdade, Eros me deu um sorriso satisfeito.
O movimento frenético então foi interrompido, para dar lugar a
algo mais firme.
E, dessa vez, não tive piedade: cravei as unhas na sua pele.
O ritmo foi aumentando de forma gradativa, até que nossa união
fosse estabelecida e ele murmurasse, olhando nos meus olhos:
— Casa comigo.
Meus olhos ficaram estáticos, analisando seu rosto
perfeitamente esculpido e repercutindo o pedido em minha cabeça.
Um sorriso se abriu ali, dizendo de forma indireta que me amava.
Agora eu percebia com perfeição o quanto o adjetivo deus grego se
adequava à beleza. Com aquele sorriso, Eros se tornava um
verdadeiro deus grego.
— Sim.
— Sim? — Ele disse em um tom mais alto, empolgado.
Transbordei felicidade ao abrir um sorriso.
— Sim, eu me caso com você, Eros Olympia.
Seu rosto pareceu se iluminar.
Deitado ao meu lado, ele sorriu contagiante e me beijou.
— Você é o meu Mundo, Psiquê Di Laurentis. Sempre foi. —
Seus olhos eram intensos e penetrantes.
Com aquela declaração, segurei seu rosto e assenti, esperando
que ele compreendesse que ele também era o meu. Ele inclinou a
cabeça em direção ao toque, pondo sua mão sobre a minha.
— Eu te amo — murmurei. — Eros Olympia. — O verdadeiro
sobrenome tinha um gosto muito melhor na minha boca do que o
anterior.
Olhando fundo em seus olhos, concluí que amar Eros Olympia
tinha sido a minha ruína.
Mas amá-lo apesar de seu segredo gritante era a minha
salvação.
Não tinha dúvidas quanto a isso.
E stava feliz por poder subir aquelas escadas, ver aquelas
paredes sem graça e me lembrar do casal que fumava o dia
inteiro no apartamento da frente. Mas, ao girar a chave na
fechadura e então abri-la, me deparei com o que poderia ser
considerado o oposto de felicidade: medo. Frio gelou minha coluna,
do pescoço à sua base. Os pelos do meu corpo se eriçaram em
resposta a quem agora se virava lentamente para mim, seus cachos
loiros balançando com o movimento sutil.
Os olhos dourados da deusa eram tanto majestosos quanto
poderosos, e seu sorriso era tudo menos amigável.
Afrodite, a deusa da beleza, estava bem à minha frente, no meu
apartamento. Em Chicago. E preferia não imaginar o que ela estava
fazendo ali.
— Psiquê Di Laurentis. É este o seu nome, certo? —
questionou, levantando uma sobrancelha e fazendo pouco caso
daquilo. Meu nome soava como uma maldição em sua boca, uma
com a qual eu não queria lidar, mas que sabia que, cedo ou tarde,
precisaria.
E tudo indicava que seria cedo.
— Sim — respondi num fio de voz, completamente estática no
arco da porta.
— Sabe, mortal… — Afrodite andou até mim, me rondando. —
Não há uma coisa neste Mundo que eu não saiba. — Seus olhos
eram cortantes como adagas. Poder irradiava dela, como se uma
aura dourada flutuasse ao seu redor. Tinha completa certeza de que
aquilo intimidava não só nós, como também outros deuses. — Eu
soube do pedido que Eros lhe fez. Tenho de reconhecer que ele
nunca tinha se apaixonado antes, até você aparecer. Me sinto até
mesmo culpada por isso, afinal, fui eu quem pediu para que ele
viesse até aqui.
Ela fez uma pequena pausa, esperando pela minha reação.
Puro terror invadiu minhas veias, mas também confusão. Meus
olhos piscaram duas, três vezes, atordoada.
Apertei bem meus olhos quando ela colocou uma mecha de
meu cabelo entre seus dedos, enrolando-a. Então, ao perceber
minha aflição, se afastou e se pôs à minha frente, encarando-me
como se aquilo fosse um desafio, com falsa melancolia em seus
olhos.
— Ah, Eros certamente lhe contou. — Engoli em seco. — Que
veio a este Mundo para prejudicá-la… flechá-la ao monstro mais
horrendo que vaga pelos Mundos. A meu mando. — Afrodite sorriu,
vitoriosa. — No entanto, ele também se atraiu por você… se
apaixonou por você. Agora — pegou rápido a mão que carregava o
anel de noivado, afligindo-me — vejo que você significa muito para
meu filho.
A deusa soltou minha mão bruscamente e me encarou,
deixando meu coração a galope, querendo sair pela boca. Podia
senti-lo acelerando no meu peito.
— E por isso, lhe dou uma chance, mortal. Uma única chance.
— As adagas perfuravam meu corpo inteiro. Eu não tinha mais
fôlego. Tampouco sabia o que ela queria dizer com aquilo. — Se
você o ama de verdade, vai descer ao Mundo daquele que vive nas
sombras. O Reino dos Mortos. O Submundo. — Já não sabia mais
se meu coração pulsava. Meu corpo ficou gelado. Reações que
fizeram Afrodite sorrir impiedosamente. — Sua rainha sempre foi
bonita demais para governar nas sombras. Deve me trazer a beleza
de Perséfone em uma caixa, mortal. E, se conseguir voltar viva,
considerarei você nesta família.
Àquela altura, meu corpo não respondia mais aos meus
comandos.
Eu estava completamente estática, cogitando o que a deusa
mais antiga do Olimpo tinha me instruído a fazer. Sabia que aquela
era uma ordem, não um pedido. Porque nada era um pedido para os
deuses, muito menos para Afrodite.
— Se não for capaz de ir até lá, deve deixar meu filho para
sempre e esquecê-lo. Além do mais, eu cuidarei pessoalmente para
que a missão original seja concluída. — Sorriu para mim de forma
perversa, seus olhos dourados reluzindo de tanto prazer.
As condições me fizeram acordar. Deixá-lo. Esquecê-lo. Apenas
essas reverberaram na minha mente — e não o que ela faria
comigo. Porque eu tinha ficado por tempo demais longe dele. Nós
tínhamos nos atrasado no relógio.
Analisando-me com atenção, Afrodite acreditava que estava me
dando uma escolha óbvia, por motivos diferentes dos meus. A
deusa pensava que eu escolheria aceitar porque estava com medo
demais das condições caso recusasse.
Mas o real motivo era que eu não o perderia. Nem agora, nem
nunca, porque Eros agora fazia parte de mim e eu não tinha mais
medo dele ou de todos os outros. Não naquele momento, com
aquelas imposições.
Eu aceitaria a tarefa porque meu coração pertencia a ele e
sempre pertenceria.
Porque eu amava Eros Olympia.
— Eu aceito — disse, tentando soar firme.
Surpresa brilhou nos olhos dourados de Afrodite.
— Isso será interessante. — Entrelaçou seu braço ao meu em
um movimento ágil e quase incalculável, um sorriso perverso
espreitando na sua face. Retesei não só pelo toque repleto de
poder, mas pelo que me aguardava nas terras abaixo.
F azia uma hora que Psiquê tinha saído para pegar suas
coisas. Eu estava sem dúvida ficando preocupado, andando
de um lado para o outro freneticamente. Ainda estava claro,
então era provável que ela estivesse colocando em dia a conversa
com a amiga bióloga, Margot, mas uma ideia persistia na minha
mente. Uma ideia estúpida, porque Psiquê era agora minha noiva.
Ela não me abandonaria, não fugiria.
Olhando para as nuvens no céu azul de Chicago, pensei no
Olimpo. Eu tinha familiares que representavam uma ameaça grande
e perigosa a ela. Essa poderia ser a razão da demora. E… e eu
sentia que alguma coisa estava errada. Muito errada.
Por isso, não perdi tempo e fui até o antigo apartamento dela.
Rezava para que tudo estivesse bem, que só fosse uma ideia
ridícula. Mesmo que meus familiares não pudessem ser descartados
tão facilmente quando se tratava dela. Sentindo o coração latejar,
subi as escadas às pressas, com certo receio e nervosismo.
Bati à porta. Quando não obtive resposta, bati uma segunda
vez, conferindo a gola de meu suéter azul-marinho.
E então meu coração pareceu parar. Alguém não mortal estava
lá dentro, eu podia sentir seu poder. Isso me fez forçar a maçaneta
até que a porta estivesse escancarada — e que Afrodite estivesse à
minha frente.
Minha coluna enrijeceu e minha expressão se tornou pedra.
— Onde ela está? — Quando não respondeu, continuei, a fúria
tomando meu maldito sangue dourado. Meu punho se fechou ao
lado do corpo. — O que você fez, mãe? O que você fez com ela?
Os olhos da mesma coloração que o resto do Olimpo se
tornaram opacos, inexpressivos. Era o mesmo olhar que direcionava
a mim e a meus irmãos quando queria dizer que precisava ter sido
daquele jeito.
— Eu a mandei em uma missão — começou.
Seus orbes não sustentaram os meus por muito mais tempo,
logo os desviou para a bancada da pequena cozinha, onde duas
cadeiras altas estavam apoiadas.
— Precisava saber se ela merecia você. Então, a levei ao reino
de Hades.
Parei de respirar por um segundo, e minhas mãos se abriram.
Por um momento, apenas encarei Afrodite. Por um momento, tentei
imaginar o que minha mãe estava pensando. Por um momento,
imaginei Psiquê perdida lá embaixo, no Reino dos Mortos. Por um
momento, pensei em como seria perdê-la e no quanto aquilo me
destruiria.
— Deixei-a no Estige.
— Como… como você pôde?! — Não conseguia pensar direito.
Minha cabeça girava e nós se formavam na minha garganta ao
imaginar o pior: que Psiquê seria só mais uma alma se ficasse por
tempo demais no Submundo. — Ela pode morrer. Hades pode…
pode não ter piedade depois do que fizemos a ele, e você sabe. —
Era difícil de admitir que minha mãe seria cruel àquele ponto.
— Estou pensando no seu melhor. — Tentou tocar meu braço
de forma materna, mas eu desviei, abrindo caminho à frente,
completamente perdido. — E a mortal já ganhou meu respeito ao
aceitar a missão.
— O que você disse que faria a ela? Morte, tortura? Agora sei
que você pode ser paranoica a esse ponto — disse, resfolegante.
— A mortal foi por vontade própria. Foi por você, não pelas
condições… de que ela teria de abandoná-lo.
Pisquei, perplexo.
Psiquê tinha se sacrificado por mim? Lembrei-me de que ela
não fazia ideia de que poderia morrer se permanecesse por muito
tempo lá. As Fúrias… elas… Obriguei-me a interromper o
pensamento.
Psiquê não queria me perder e, então, tinha descido ao
Submundo. E eu agora precisava agir imediatamente.
— Vou resgatá-la. Vou até lá.
Minha mãe cruzou as mãos em frente ao corpo e me olhou com
intensidade.
— Hades não ficaria feliz com isso, como você mesmo
comentou. Além disso, a mortal já deve estar no fim de sua missão.
— Afrodite deixou uma informação implícita. Eu sabia que ela
estava pensando se ela estiver viva. — Você não pode fazer nada
em relação a isso. É tarde demais.
Comecei a balançar a cabeça, repetindo a palavra “não”
freneticamente, assustado com a ideia de perdê-la… mas também
furioso por ter sido traído pela minha própria mãe, mesmo que,
como ninguém, eu conhecesse seu passado.
Negava mesmo que eu soubesse que Afrodite tinha razão.
— Você tem alguma noção do que isso significa para mim? Para
ela? Pensei que, de todos, seria você quem entenderia. — Encarei-
a nos olhos, onde transparecia um traço sombrio.
Minha mãe baixou a guarda por um instante, parecendo pensar
de verdade no que havia feito, mas em uma coisa ela estava certa:
era tarde demais.
— Eros. Você sabe que não desejo a nenhum de vocês o
mesmo que eu tive. Fui casada com um homem antes de seu pai
que mudou completamente depois termos nos casado. Foi seu pai
quem abriu meus olhos. — Sua voz era firme, e seus olhos também
estavam colados aos meus. — Se essa mortal, Psiquê, não for
capaz de completar o que lhe pedi, ela não é digna de você.
Minha testa se franziu, e preocupação pulsou nas minhas veias.
— O que você lhe pediu?
— Que me trouxesse um pouco da beleza de Perséfone em
uma caixa. Você sabe que a rainha de Hades tem um coração bom.
Se confiar na mortal, saberei que ela não é como… Hefesto —
pronunciou o nome como uma maldição.
— E a colocou em risco.
Afrodite engoliu em seco, logo tomando fôlego.
— Filho…
— Você pensou em mim, mas se esqueceu de que, se qualquer
coisa acontecer a Psiquê, isso vai me destruir. — Meu lábio tremia
pelo medo que aquilo despertava. — Eu não sou nada sem ela.
Minha mãe ficou estática e calada, pela primeira vez em toda a
minha vida.
E soube que havia se arrependido.
Naquele momento, não tinha como lidar com aquilo, porque
Psiquê estava no Submundo havia quase uma hora. Mesmo que,
por alguma razão, eu soubesse que ainda estava viva, não sabia
como Hades teria reagido à sua presença ao saber quem e o que
ela significava para mim — o meu Mundo.
E u agora estava sozinha em um lugar escuro, como uma
caverna. Ouvi um ruído baixo conforme minha visão tentava
se acostumar com o escuro. Quando minha visão deixou de
ser turva e dolorida, soube de onde o ruído vinha: um estranho rio
fluía em um líquido preto arrepiante.
A caverna era úmida e fria, tanto que podia ver o ar se
condensando à minha frente. Meus agasalhos não eram suficientes
para aquele estranho e assustador lugar.
Afrodite simplesmente tinha desaparecido quando havíamos
chegado ali, e me perguntei se aquilo era algo ruim. Concluí rápido
que, se ela estivesse comigo, eu teria me sentido ainda mais
assustada. Preferia terminar aquela tarefa sozinha… e já estava ali,
sem nenhuma saída aparente.
Somente da caverna.
O chão e as paredes eram de uma rocha negra, parecendo
vulcânica. Meus passos ecoavam conforme tentava me aproximar
da abertura a alguns metros de onde eu tinha sido deixada: uma
abertura ampla e alta, que me permitia uma visão que me deixou
ainda mais tensa.
O lugar inteiro parecia escavado naquela rocha escura, embora
não parecesse ter um fim, mesmo que eu o estivesse encarando do
alto. Também parecia dividido em setores, onde outros rios os
delimitavam: um deles, à minha direita, era um majestoso e imenso
palácio negro, que se destacava diante de tudo. Os outros pareciam
campos de concentração, onde pessoas pareciam tremular ao
rondar por eles… e percebi que não eram pessoas.
Eram espectros, almas dos que já tinham deixado nosso mundo
— indo contra tudo o que acreditávamos. Perdi o fôlego diante
daquela verdade. Todos os campos pareciam torturantes… menos
um, à esquerda na paisagem, que resplandecia em luz e cor, onde
os espectros pareciam felizes, diferentemente dos outros. Concluí
que ali era o paraíso para qual todos tínhamos esperanças de ir. Os
Campos Elísios, me lembrei dos livros sobre a mitologia greco-
romana.
Um vento gelado passou por mim, eriçando todos os pelos do
meu corpo à sensação tensa e áspera. Virei-me para o rio negro,
que desabava como uma cachoeira até lá embaixo. Aquele era o
Estige, rio da invulnerabilidade. Uma trilha espremida me guiava da
caverna àquele reino, que passava uma sensação antiga e
amedrontadora.
Minha única opção era segui-la até que estivesse em frente ao
palácio, que, mesmo de longe, emitia um poder esmagador.

No caminho, passei próxima ao que eu cogitava ser os Campos


Asfódelos, onde vagavam todas as almas consideradas irrelevantes
— nem boas, nem más. Pelo que eu me lembrava, não recebiam
castigos ou gratificações, eram apenas fadadas à tristeza eterna.
Murmúrios e lamentações chegavam aos meus ouvidos como
um hino sombrio e deprimente, algo que, se escutasse por muito
tempo, me levaria à loucura. Almas se lamentavam pelos sonhos
não realizados, pelo que tinham deixado de fazer… Era doloroso de
se ouvir.
Ao longe, os Campos Elísios brilhavam em cantorias alegres e
distantes que somente aquelas almas e eu parecíamos ouvir. As
almas do Asfódelo não pareciam nunca se contentar, apenas ficar
mais tristes.
Em toda a longa caminhada — que só me deixava mais tensa
—, contornei um lago onde todos os cinco rios se juntavam. Fiz um
esforço para lembrar do nome de todos eles: Estige, Cócito,
Aqueronte, Lete e Flagetonte. Eu percebia figuras tremulantes em
todos eles, embora nem todos estivessem próximos a mim. Uma,
em especial, parecia ter cabelos longos e brancos e unhas
compridas. Um arrepio me subiu à espinha. Apertei os olhos,
tentando afastar a desagradável imagem da minha mente.
Então, um tempo depois — o qual não sabia reconhecer ali
embaixo, visto que não havia nenhuma abertura para o céu —, eu
estava em frente ao palácio, que parecia ainda mais imenso e
intimidador do que antes. Percebi que a opulenta construção estava
de frente para os Campos Elísios, e mais perto dele do que da
tristeza dos Campos Asfódelos.
Não conseguia mais escutar os lamentos, apenas a constante e
mais nítida cantoria do paraíso.
Eu engoli em seco ao olhar para cima para ver onde os imensos
portões que guardavam o palácio terminavam. Enrijeci a coluna
assim que três sombras cruzaram minha vista — não desejava
saber o que eram.
Então, eles se abriram como se esperassem a minha chegada.
Me perguntei se Afrodite dera algum aviso prévio ao seu dono.
Hades, aquele que governava o Submundo… O seu rei.
Meu suspiro saiu desregulado e estrangulado quando decidi dar
o primeiro passo adentro na propriedade. Em passos rápidos, segui
até a porta pouco menor do que os portões. O palácio, percebi, era
todo revestido por um tipo de pedra negra, parecida com mármore.
Quando meu braço tocou sem querer nela, foi tomada por um frio
súbito. Como se, caso eu não tivesse tirado a tempo, tivesse sido
congelado.
A sensação remeteu minha mente a um pesadelo em
específico.
Aquele em que chamas negras e frias como… como aquele
lugar… delimitavam a distância entre mim e Eros. Então, me dei
conta de que elas pertenciam ao Submundo. O fôlego me escapou
no mesmo instante.
Aquele era o plano de Afrodite desde o início.
Terror tomou minhas veias, me atrasando a adentrar o palácio.
Minhas mãos tremiam, assim como todo o meu corpo. Ao contrário
do que pensava, meus pés não se fincaram no chão, mas
continuaram no automático. Desejei não tocar nunca mais naquela
pedra.
Com a coluna ereta pelo temor, eu adentrei o palácio, me
deparando com um pé-direito alto, lustres, móveis opulentos,
candelabros, tapeçarias, quadros… mas principalmente vasos de
plantas e flores. Achei estranho por um momento, já que não havia
luz no Submundo. Então, me lembrei da pessoa a quem deveria
pedir um favor.
Perséfone não era somente Rainha dos Mortos, como também
deusa da natureza.
Era ela quem as fazia crescer.
— Gosta das flores? — Uma voz doce, mas imperativa, ressoou
atrás de mim, fazendo-me pular de susto e me virar até ela.
Uma mulher de cabelos ruivos ondulados me encarava, com
seus olhos… verdes. Não dourados como os dos outros deuses. Ela
carregava uma coroa pontiaguda no topo da cabeça, que também
parecia feita da exótica pedra do Submundo.
Perséfone.
A deusa era dona de uma beleza inigualável. Seu rosto era
arredondado como o de uma boneca, com os olhos pequenos e
amendoados. Um longo vestido roxo se colava ao tronco e se
soltava nos quadris. Talvez por isso Afrodite tivesse pedido
justamente a beleza.
— Sim — sussurrei, sem saber se lhe devia uma reverência. —
São lindas.
Perséfone inclinou a cabeça em astúcia ao me analisar.
— O que faz no Submundo, mortal?
Me assustei com sua rápida conclusão, mas engoli em seco.
Tinha que continuar.
— Eu… vim por causa de Eros. — A deusa e rainha, para minha
confusão, se retesou à menção do nome. — Afrodite me mandou
aqui… e me pediu um pouco da sua… beleza. — Agora Perséfone
piscava os olhos, desacreditada, mas não deixou de prestar atenção
em cada palavra que saía da minha boca. — Como prova de que
mereço ficar com ele.
Por algum motivo, ela não me assustava como os outros.
Carregava uma gentileza e uma simplicidade genuínas nos olhos,
como se fosse como eu. Mortal. Eu poderia tê-la visto em meu
Mundo e facilmente tê-la aceitado. Não teria estranhado. Teria
pensado que ela era apenas mais uma garota.
— Você o ama? — questionou ela.
— Amo — respondi sem pressa.
A rainha me encarava diretamente nos olhos.
— Como é o seu nome?
— Psiquê.
Ela abriu um sorriso.
— Alma.
Meu coração deu um salto ao ouvir o mesmo significado que
Eros havia me dado quando nos tínhamos nos conhecido.
Perséfone pareceu se dar conta de uma coisa.
— Há quanto tempo está aqui, cara Psiquê?
Havia certo receio em seus olhos.
— Não sei ao certo. Eu… caminhei do Estige até aqui.
— Quarenta minutos. É muito.
— Como?
A deusa manteve a coluna ereta, mas suas íris verdes se
tornaram nebulosas. Então, ela fez uma pequena caixa dourada
aparecer em suas mãos, também brilhando. Aquilo… a deixou com
feições cansadas. Percebi que já havia feito sua parte.
— Gostaria muito de conhecê-la, Psiquê, mas você deve ir. —
Entregou-me a caixa e me lançou um olhar intenso. — Aqui está o
que lhe foi pedido. Vejo boas intenções em você, mas, se não partir
agora, ficará aqui para sempre.
Pisquei um par de vezes, confusa e perdida.
— Deve voltar ao Estige e fazer uma prece a Afrodite. — Agora,
seu tom de voz transbordava aviso. Como se minha vida
dependesse daquilo. E dependia. — Não abra essa caixa, mesmo
que ela clame por isso. Não vai te trazer boas consequências. É
muito poder para uma mortal como você.
Não entendia por que a deusa estava sendo tão gentil comigo,
mas não questionei — porque seu olhar me impelia à confiança.
A pressa estava em sair daquele Mundo e permanecer viva.
— Obrigada. — Era o máximo que eu conseguia dizer, mas a
deusa se satisfez com o murmúrio quase inaudível.
— Quem é ela? — Uma figura no alto da escada nos
interrompeu. Virando em sua direção, pude ver com clareza de
quem se tratava. Minhas pernas fraquejaram pelo poder que o deus
emanava, um maior do que o da deusa à minha frente.
Ele desceu lentamente até nós, com uma expressão dura e
quase incompreensível, e pôs-se ao lado de sua esposa.
Era ele. Hades. O dono daquele palácio. O rei daquele Mundo.
Estava certa de que deveria me curvar diante dele.
Uma lembrança trespassou o pensamento: Curve-se diante de
seu deus. Algo que tinha ignorado por completo meses antes,
quando ainda não sabia a verdade. Mesmo que a voz não tivesse
sido a minha. Mesmo que parecesse muito real, como se alguém
sussurrasse o comando ao meu ouvido.
Estremeci.
E fiquei estática por completo, sem conseguir sorrir ou curvar-
me diante de Hades, que passou o braço pela cintura de sua esposa
e rainha. Perséfone estava visivelmente aflita por mim; no entanto, o
deus não demonstrava qualquer expressão além de um breve traço
de confusão, já que eu não pertencia àquele reino.
— Você é… mortal. — Não precisou me analisar para saber. —
O que faz aqui?
— Ela precisa partir. Já passou tempo demais aqui — alertou
Perséfone.
Meu coração se tornou pedra quando me lembrei do que ela
queria dizer.
Eu de fato precisava ir.
— Estou aqui para provar que mereço alguém. — Engoli em
seco quando o deus de olhos severos e pele pálida me encarou.
Seus olhos… eles também não eram dourados como os do resto do
Olimpo, como Eros e Afrodite. Suas íris eram completamente
negras. E sombras escuras pareciam transbordar delas. Eram a
completa escuridão.
O deus inclinou a cabeça para a sua esquerda e ergueu a
grossa sobrancelha, como se me perguntasse quem, mas
Perséfone pigarreou. Os dois se encararam por um tempo, como se
trocassem palavras mentalmente, o que era possível depois de tudo
o que me tinha sido mostrado.
Podia sentir uma paixão incandescente entre os dois. Pelo jeito
como se tocavam, como agiam, como se encaravam com os olhos
fixos. E tinha alguém me esperando que me amava com aquela
mesma intensidade.
— Eros? — Seu queixo pareceu cair. Hades estacionou seu
olhar em mim. Havia muita dor ali, uma dor antiga que parecia
carregar ao longo dos anos.
Não tive tempo de ter medo pela intensidade do olhar, porque,
de repente, senti um aperto no peito. Literalmente. Como se meu
coração estivesse sendo esmagado, pulverizado; como se a vida
estivesse sendo drenada de mim. Cambaleei, mas não caí.
Perséfone veio segurar minhas mãos, olhando em seguida para
Hades.
— Vou levá-la ao Estige.
O deus consentiu com certa relutância.
Minha testa se franziu, mesmo que o cansaço parecesse estar
tomando conta de mim. Por que ele tinha remorso de Eros? Não tive
tempo de observar as expressões severas dele, porque logo a luz
me consumiu.
Pensei que tivesse morrido, até me deparar com o Estige à
minha frente. Eu estava de novo na caverna úmida e escura.
Daquela vez, acompanhada.
— Não posso ajudá-la muito mais nessa missão. Os deuses não
podem interferir no assunto dos outros. — Seus olhos verde-claros
me olhavam com atenção. — Deve partir agora mesmo. Lembre-se
do que eu disse.
— Devo fazer uma… prece. — Ofeguei, sentindo meus olhos
pesarem.
Não tinha certeza de que teria forças o bastante para aquilo.
— E não abrir a caixa sob nenhuma circunstância.
Assenti, fraca como jamais tinha me sentido.
A deusa me encarou uma última vez antes de desaparecer em
um clarão de luz. Tive que desviar os olhos e pôr a mão diante
deles. Mas… mas outra coisa começou a me chamar a atenção.
Você parece cansada.
Desviei a atenção para a caixa em minhas mãos, da qual, por
alguns minutos, tinha me esquecido por completo. No palácio, a
caixa ornamentada parecia… só mais uma caixa, completamente
inofensiva.
Deixe-me ajudá-la, sussurrou.
Uma luz saía pelas frestas da tampa. Ela… me atraía. Era
bonita, convidativa. Não parecia causar mal nenhum.
É só abrir.
Você vai recuperar a beleza perdida.
Não é o que quer? Parecer triunfante quando voltar?
Pisquei, passando a mão sobre a tampa. A caixa não tinha mais
que dez centímetros de largura e cinco de altura. Era pequena…
inofensiva. Aquela estranha voz tinha razão. Precisava triunfar
diante da tarefa de Afrodite. Ela nem mesmo notaria.
Afrodite não vai se importar.
Meus olhos estavam estáticos sobre a caixa. Meu coração
pesava mais que nunca. Sentia minha vida se esvaindo aos poucos.
Passei a mão pelos relevos da linda caixa, pousando-a bem no
espacinho entre a tampa e a caixa em si.
Um milhão de vozes invadiram minha mente.
Abra.
Abra.
Aquilo me ajudaria.
Abra, Psiquê.
Abri.
S oube que algo estava errado quando meu corpo inteiro
tensionou e minha coluna ficou ereta. Senti pânico e terror
passar de uma extremidade de meu corpo à outra. O fôlego
me escapou.
Psiquê estava em perigo.
Precisava de mim. Eu sentia.
Naquele momento, ignorei minha mãe e todo o resto e me
teletransportei no mesmo instante para o Submundo. Eu sabia que
não era totalmente bem-vindo, mas aquilo não importava naquele
momento. Minha mulher estava em perigo.
Apareci em frente ao rio Estige, atrás da abertura da caverna
que já conhecia.
Meu sangue esvaiu do corpo quando avistei Psiquê desmaiada
no chão duro e frio a aproximadamente dez metros de mim. Corri
até ela, pegando-a nos braços. Meu coração pesou — já não o
sentia mais bater. Seus olhos estavam fechados; sua respiração,
curta e entrecortada.
Reparei em uma caixa caída ao seu lado, aberta. E, então, em
como seu corpo parecia brilhar na escuridão da caverna. Ela a
abrira, e o que saíra de lá tinha sido demais para seu corpo mortal
suportar. Era poder demais.
Eu sentia a vida se esvair dela pouco a pouco. Sua pele estava
pálida e fria. Sua respiração e seus batimentos cardíacos eram
mínimos. Psiquê estava morrendo.
Não perdi mais tempo.
Peguei a caixa dourada e a depositei sobre seu peito, que subia
e descia devagar demais. Então, fechei os olhos e ordenei para que
todo aquele poder voltasse de onde tinha saído. Podia ser poder
demais para ela, mas não era nada para mim — e podia fazer com
que se aprisionasse à caixa mais uma vez.
O corpo frágil de Psiquê arfou ao ter aquele poder saindo de si.
O fôlego lhe escapou. Esperei dois, três minutos. Seu corpo
continuava completamente imóvel. A diferença era que Psiquê já
não respirava mais. Nem mesmo seu coração batia.
Não.
Não, não, não.
— Psiquê. Não. Não me abandone. — Lágrimas agora
escorriam pelo meu rosto, molhando-o com suas trilhas. Eu
embalava o corpo sem vida daquela que era minha esperança e
meu destino. Que… que sentido fazia as Moiras terem nos juntado
se, no final, fôssemos separados para sempre?
Gritei para cima, embora não desse para enxergar o céu dali,
daquela caverna.
Onde o corpo dela jazia.
— Eu te amo. Psiquê. Por favor. — Abaixei meu rosto até o
dela, molhando-o com minhas lágrimas.
Verifiquei mais uma vez o seu corpo e… e senti uma pontada de
poder ainda nele. Um poder que seu corpo não conseguira retirar.
Era por isso. Ainda havia esperanças, mesmo que o corpo dela não
reagisse. Somente uma coisa poderia fazer Psiquê voltar. Uma
coisa que nunca quisera e desejara para ela. Um fardo que teria de
carregar para voltar para mim, para sua amiga, para sua família.
Para todos os Mundos, que se tornavam irrelevantes conforme
observava seu rosto pálido.
Minhas asas foram as primeiras a se manifestar, estendendo-se
até o fim. Nos teletransportei para o ar de seu Mundo, batendo as
asas para chegar até o Olimpo, que se revelava a qualquer um de
sangue dourado.
E lá estava ele quando subi além das nuvens. Os imensos
portões dourados se abriram automaticamente quando me
aproximei a toda velocidade. Olhei mais uma vez para seu rosto e
obriguei minhas lágrimas a cessarem — porque me agarrava àquela
esperança.
Fui até a mansão de Zeus. Somente ele poderia ajudar, com
sua permissão.
Ele não estava lá. Todas as outras mansões estavam vazias, o
que significava que os deuses olimpianos estavam em reunião.
Adentrei o Panteão, onde doze cadeiras formavam um semicírculo,
ocupadas por todos os Doze — até mesmo pela minha mãe.
— Estávamos te esperando — Afrodite disse, mas se
interrompeu ao ver Psiquê em meus braços, mortalmente pálida. —
O que aconteceu?
Antes de respondê-la, convoquei uma cama em seu centro,
perto à fogueira, e deite-a delicada e cuidadosamente no colchão
macio.
— Você sabe o que aconteceu. — Minha voz saiu embargada
enquanto eu encarava o corpo sem vida de Psiquê. — Você foi a
responsável por isso. E ela… só não queria me perder. — Direcionei
o olhar a Zeus, que se encontrava no centro do semicírculo. Ele nos
observava com atenção e curiosidade. — Por favor, traga-a de volta.
As sobrancelhas do rei dos deuses se levantaram, sugestivas.
— Como?
Atentei-me aos detalhes desvanecidos do rosto de Psiquê Di
Laurentis, aquela que tinha me conquistado com seu jeito desafiador
e enigmático. Seus lábios agora eram brancos e suas olheiras,
profundas.
— Torne-a imortal. — Suspirei, destruído. — É muito poder para
seu corpo mortal suportar. Deixe-me dar a ela a ambrosia. É o único
jeito de salvá-la.
Do outro lado, minha mãe me encarava com olhos
arrependidos.
Zeus olhou para ela, atraindo sua atenção.
— A missão é sua, Afrodite.
Os olhos de minha mãe brilharam, enquanto os de meu pai
demonstravam confusão. Ares pareceu entender só agora o que
estava acontecendo, e uma pontada de decepção passou por seus
olhos enquanto encarava sua esposa, que não retribuiu o olhar por
vergonha.
— Eu dou permissão. — Engoliu em seco. Suas bochechas
estavam coradas.
Zeus trocou olhares com os demais.
— Muito bem, Eros. — Zeus gesticulou com a mão, e então uma
bandeja flutuante surgiu ao meu lado. — Você tem a nossa
permissão.
O néctar sagrado dos deuses reluzia na bandeja de ouro, que
desapareceu assim que o peguei. Em seguida, derreti-a na boca
entreaberta de Psiquê e esperei, os segundos parecendo horas.
Era nossa única esperança.
Meus olhos e meu peito ardiam… e meu olhar estava fixo nela
quando seu peito estufou e sua pele se tornou lustrosa e límpida.
Poder agora irradiava de seu corpo, quando segundos antes
nenhum traço de vida reinava nele.
E, pela primeira vez no dia, me permiti respirar fundo, tomando
de volta todo o ar que me tinha escapado — mas meu coração
descompassou assim que suas pálpebras se moveram, revelando
olhos da mesma cor dos de todos naquela sala: âmbar. Tão
poderosos quanto os do restante de nós.
Vida e poder transbordavam dela como nunca antes.
Naquele exato momento, quando Psiquê pousou o olhar
reluzente sobre mim, ela se tornou uma de nós.
A deusa da alma.
S entia como se estivesse acordando de um pesadelo. A última
coisa de que me lembrava era uma sensação estranha e
esmagadora tomando conta do meu peito. Nele, eu havia tido
várias visões: imensos portões negros, três senhoras tricotando,
asas brancas em movimento, olhos âmbar e, por último, uma
graciosa construção nas nuvens.
Então, elas se interromperam.
Senti minha respiração se regular, meu coração bater com mais
força e vontade, sangue percorrer minhas veias. Força e poder
transbordaram do meu corpo. Então, abri os olhos e me deparei
com um teto branco que se afundava no meio, triangular. Direcionei-
os a Eros, ao meu lado, que me encarava com olhos vermelhos. O
dourado de suas íris não reluziam como comumente faziam.
Eu estava deitada em um colchão macio. Só então reparei que
estávamos acompanhados… e onde estávamos. No Olimpo. Doze
deuses nos encaravam, atentos. Os doze olimpianos: Zeus, Hera,
Ártemis, Apolo, Afrodite, Ares, Hefesto, Atenas, Deméter, Dionísio,
Hermes e Poseidon. De algum jeito, sabia quem era cada um deles
e, curiosamente, não me assustei.
— Psiquê — Eros sussurrou, demonstrando alívio em seu olhar.
— Pensei que tivesse perdido você para sempre.
— O que…? — Pisquei os olhos, atordoada. — O que
aconteceu?
Todos continuavam nos observando, em silêncio.
— Você ficou tempo demais no Submundo — relatou ele,
melancólico. Seus olhos se tornaram nebulosos por um instante. —
E… por algum tempo, eu perdi você. Havia um único jeito de salvá-
la.
Levantei meu tronco e sentei-me na beirada da cama. Ele
apertou minhas mãos.
A sensação de renascer tornou-se ainda mais forte. Nunca me
sentira tão viva. Era como se uma onda de adrenalina tivesse
surgido para ficar para sempre. Aquilo tinha alguma coisa a ver com
o que havia acontecido ali? Eu não tinha a menor noção de como
viera parar no Olimpo.
Minha atenção foi desviada por um momento para um trio de
mulheres de pé à base do trono de Zeus. Os doze tronos ficavam
um nível acima do piso em que me encontrava. Eu as conhecia… E
lembrei rapidamente de onde: do ônibus que pegara com destino a
Peoria. As três idosas de túnicas puídas que tricotavam. Lembrava-
me de como as tinha achado esquisitas.
Agora, elas me encaravam com um aviso implícito no olhar. Não
sabia qual.
Redirecionei o olhar para Eros, que continuou:
— Trouxe você voando do Submundo até aqui. E todos eles —
direcionou um olhar completamente inexpressivo a todos os deuses
sentados de forma autoritária em seus tronos — concordaram em
ajudar. Eu lhe dei ambrosia dos deuses, Psiquê.
Pisquei, tentando assimilar aquilo ao meu atual estado de
espírito — corajoso e poderoso.
— Você agora é imortal.
O fôlego me escapou e tive de piscar os olhos um par de vezes
para não ficar tonta.
Imortal.
Não conseguia falar.
— E deusa da alma. — Seu olhar se intensificou e seus lábios
levemente tremularam. — Seu destino desde o início.
Senti o olhar das três senhoras sobre mim como se fosse fogo.
Tentei acompanhar sua lógica enquanto observava como ele
parecia destruído por dentro. Era isso o que aquelas três
significavam: o Destino. Era por isso que tinham me acompanhado
no ônibus. Era por isso que minha mãe me dera aquele nome —
Psiquê — e não sabia explicá-lo. Era por isso que nossos nomes se
completavam — amor e alma.
Fazia todo o sentido.
Eu agora era uma deusa — como todos aqueles que estavam
presentes no grande salão, os quais também estavam
estranhamente calados. A deusa da alma.
Não sabia o que aquilo significava ou como impactaria a minha
vida, embora soubesse a sua intensidade. E então senti o peso do
olhar de todos, esperando uma reação minha, porque meu rosto era
duro como pedra.
— Meus amigos… minha família…
Eros assentiu com pesar, sabendo exatamente do que eu
falava.
Observei-o, mais atenta. Seu maxilar estava travado pela
tensão. Seu cabelo, totalmente desgrenhado. Seu rosto, um pouco
inchado. Entretanto, seus olhos brilhavam de alívio e de felicidade
por eu estar de volta.
— Agora… agora vamos ficar juntos para sempre. — Consegui
dizer, o que causou murmúrios surpresos pelo salão. Os olhos de
Eros agora pareciam estrelas, de tão reluzentes. Tão lindo e feliz
que parecia uma obra de arte.
— Nós vamos — respondeu com um sussurro, levantando de
seus joelhos e aproximando seu rosto do meu, enquanto eu também
me levantava da cama. — Minha noiva.
Eros depositou um beijo na minha testa, segurando meu rosto
com cuidado.
— Vou sentir falta do verde dos seus olhos — ele sussurrou, só
para mim, embora eu tivesse certeza de que os deuses
escutavam… porque eu os escutava. Deméter sussurrava com
Ártemis. Hefesto dizia algo curioso no ouvido de Poseidon, que me
encarava como muitos dos outros. Afrodite… De repente, o piso
tinha parecido interessante a ela. Seus olhos sequer piscavam.
Levei um tempo para entender o que Eros tinha dito… e não
fiquei surpresa. Era um detalhe com o qual podia conviver e me
acostumar, contanto que amor e alma estivessem juntos.
Voltei, então, o olhar para as três irmãs aos pés do trono de
Zeus. As Moiras, como de repente me lembrara de ter lido no livro
de mitos. Aquelas que tinham reservado um destino para mim — e
para cada ser entre o que eles chamavam de Mundos. Um sorriso
se abriu em sincronia no rosto antigo de cada uma delas. Soube, ali,
que aquilo era só o começo do resto da minha então eternidade.
Gostaria, primeiro, de esclarecer que escrevi Eros: um amor
proibido quando tinha quinze anos e para o público do Wattpad. Não
fiz nenhuma alteração importante desde então; tive que colocar um
ponto-final nesse universo para que eu pudesse me concentrar em
outro. Portanto, gostaria de que levassem isso em conta depois de
lerem o livro. Além disso, a segunda edição encontra-se menor
porque decidi excluir algumas cenas que não agregavam a história.
Agora, vamos lá: foram muitas as pessoas que me
possibilitaram estar aqui.
Agradeço imensamente a todos que adquiriram esse livro na
pré-venda da primeira/segunda edição ou de outras formas; a todos
que me acompanham nas redes sociais — seja desde o início da
minha carreira ou desde um dia atrás; e a todos que publicam lindas
resenhas e fotos em suas redes. Esse apoio é tão importante, e de
tantas maneiras, então: obrigada, obrigada, obrigada! Vocês fazem
tudo valer a pena.
Agradeço à Lei Aldir Blanc por realizar o meu sonho de ter uma
editoração linda e cuidadosa para o meu livro, e a todo o pessoal da
prefeitura de Gravataí, Rio Grande do Sul, que me auxiliou nesse
projeto. Somente por meio desse prêmio que consegui trazer essa
segunda edição tão incrível para vocês. Serei eternamente grata!
Agradeço a cada um dos profissionais que trabalharam nesse
livro e contribuíram para que essa edição ficasse perfeita.
Agradeço aos meus pais e irmãos, que são sinceros e sempre
sugerem títulos esquisitos e cenas um tanto quanto questionáveis
para as minhas histórias. Sei que, se um dia eu realizar o sonho de
ser publicada tradicionalmente por uma editora, vocês estarão bem
ali do meu lado, como sempre. São meus maiores fãs, e eu sou a de
vocês.
Por fim, agradeço aos meus amigos e professores por me
acompanharem nessa trajetória de escritora e por me apoiarem tão
lindamente. Adoro todos vocês.
Que Deus retribua todo o bem que vocês me fazem.

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