Você está na página 1de 14

FADAS E BRUXAS ENTRE PERRAULT E ORTHOF

FAIRIES AND WITCHES BETWEEN PERRAULT AND ORTHOF

Elen Pereira de Lima1 (UERJ)

“Na verdade, as fadas e as bruxas


são a mesma personagem.”
(Sylvia Orthof)
RESUMO

A presente pesquisa, desenvolvida no âmbito do projeto de PIBIC “Literatura Infantojuvenil, narrativas de ontem
e de hoje”, sob a orientação da Profª. Drª. Regina Michelli, tem por objetivo analisar a importância do maravilhoso
na literatura potencialmente destinada às crianças. Os contos de fadas atravessam tempos e espaços, resistem a
inúmeras intempéries. Chamamos de contos de fadas àqueles que se definem pela presença do maravilhoso, em
que acontecimentos sobrenaturais emergem na narrativa, sem quaisquer estranhamentos perceptíveis em
personagens, narrador e, por conseguinte, leitor. O maravilhoso está na origem dos tempos e continua
permanecendo entre nós, em narrativas ficcionais em diferentes suportes. Neste trabalho, intenta-se comparar a
fada, presença articuladora do bem e do mal nos contos de Charles Perrault, às fadas e bruxas de Sylvia Orthof,
especialmente em Uxa, ora fada, ora bruxa, Fada Fofa e os Sete anjinhos e A bruxa Fofim. Do escritor francês, a
presença da fada ocorre em narrativas como “Cinderela”, “As Fadas”, “Riquet, o topetudo”, “A Bela Adormecida”,
textos que nos permitem relativizar o imaginário de fada madrinha, benévola, que atua exclusivamente distribuindo
dons a seus afilhados. Se na tradição, as fadas remetem às deusas do destino, Moiras e Parcas, na
contemporaneidade, o humor irreverente de Orthof amplia essa visão, permitindo uma fada-bruxa como Uxa. Por
fundamentação teórica a sustentar o trabalho, há os estudos de Tzevtan Todorov, Jacques Le Goff, Nelly Novaes
Coelho, Regina Michelli, José Carlos Leal.
Palavras-chave: Contos de fadas. Charles Perrault. Sylvia Orthof.

ABSTRACT
This research, developed within the PIBIC project “Children's Literature, narratives of yesterday and today”, under
the guidance of Professor Regina Michelli, aims to analyze the importance of the wonderful in literature potentially
intended for children. Fairy tales cross time and space, resist countless adversities. We call fairy tales those that
define themselves by the presence of the marvelous, where supernatural events emerge in the narrative, without
any noticeable strangeness in characters, narrator and, therefore, reader. The marvelous is at the origin of the times
and continues to persist among us, in fictional narratives in different formats. In this work, we try to compare the
fairy, the articulating presence of good and evil in the tales of Charles Perrault, to the fairies and witches of Sylvia
Orthof, especially in Uxa, sometimes fairy, sometimes witch, Fairy Cuddly and the Seven Little Angels and The
Witch Cuddly. From the French writer, the fairy's presence occurs in narratives such as “Cinderella”, “The Fairies”,
“Ricky of the Tuft”, “The Sleeping Beauty”, texts that allow us to relativize the fairy godmother's imaginary,
benevolent, who acts exclusively by distributing gifts to her godchildren. If in tradition, fairies refer to the
goddesses of fate, the Moirae and the Parcae, in contemporary times, Orthof's irreverent humor amplifies this
vision, allowing a witch fairy like Uxa. For the theoretical basis to support the work, there are the studies of
Tzevtan Todorov, Jacques Le Goff, Nelly Novaes Coelho, Regina Michelli, José Carlos Leal.
Keywords: Fairy tales. Charles Perrault. Sylvia Orthof.

1
Aluna bolsista de PIBIC-CNPq, desenvolvendo pesquisa sobre o maravilhoso em contos da tradição e
narrativas contemporâneas; membro do GP-CNPq EnLIJ – Encontros com a Literatura Infantil/ Juvenil: ficção,
teorias e práticas. Endereço eletrônico: elenp.lima@gmail.com
1. INTRODUÇÃO

O mundo maravilhoso é inerente aos contos da tradição oral, que datam de tempos imemoriais.
Como afirma Nelly Novaes Coelho, “No início dos tempos, o maravilhoso foi a fonte misteriosa
e privilegiada de onde nasceu a literatura” (2000, p. 172). Narrar faz parte da vivência humana
– desde que existe humanidade, contam-se histórias, e, desde que se pode mapear, os elementos
maravilhosos estão presentes nessas narrativas. A pesquisa em andamento objetiva, portanto,
demonstrar a importância do maravilhoso na literatura potencialmente destinada a crianças e
jovens, gênero imprescindível de ser trabalhado em sala de aula.
Nesse sentido, buscamos, no presente trabalho, analisar a figura da bruxa e da fada em
algumas narrativas da tradição e contemporâneas, intentando verificar se tais personagens são,
de fato, antagônicas. Para isso, partiremos de pesquisadores como Jacques Le Goff, Tvetzan
Todorov, Nelly Novaes Coelho, Regina Michelli, entre outros, buscando construir uma base
teórica que demonstre a pertinência dos aspectos analisados no artigo.
O corpus ficcional selecionado para essa etapa da pesquisa foi: os contos “As Fadas”,
“Riquet, o topetudo” e “Bela Adormecida”, de Charles Perrault, e as obras Uxa, ora fada, ora
bruxa (1985), Fada Fofa e os Sete anjinhos (1997) e A bruxa Fofim (2002), de Sylvia Orthof,
obras de literatura infantojuvenil, produção literária de grande valor e qualidade estética, na
qual a presença do maravilhoso é fundamental.

2. O MARAVILHOSO

É inegável a essencialidade do mundo maravilhoso em qualquer narrativa na qual ele se


apresenta, seja antiga ou moderna. Autores como os irmãos Grimm, Charles Perrault, Hans
Christian Andersen, entre outros, buscaram histórias da tradição oral e as revestiram de teor
literário – em tais histórias, quem vêm de épocas às quais não se é possível remontar, são claros
os acontecimentos e elementos maravilhosos. O historiador Jacques Le Goff aponta que “na
literatura encontra-se quase sempre um maravilhoso cujas raízes são pré-cristãs” (2010, p. 17),
corroborando o que se busca afirmar aqui: o gênero maravilhoso, antes mesmo que se
conceituasse o que é um gênero literário, já era parte essencial de muitas histórias. Clarissa
Pinkola Estés ratifica que os contos de fadas, ou maravilhosos, “sobreviveram à agressão e à
opressão políticas, à ascensão e à queda de civilizações, aos massacres de gerações e a vastas
migrações por terra e mar. Sobreviveram a argumentos, ampliações e fragmentações. Essas
joias multifacetadas têm realmente a dureza de um diamante” (2005, p. 11-12), tamanha sua
força no contexto narrativo.
Vale salientar que por maravilhoso, aqui, nós entendemos a narrativa em que os
elementos sobrenaturais não causam, como diz Todorov, qualquer reação particular, seja
surpresa, questionamentos, nas personagens ou no leitor (2004). São narrativas nas quais há o
pacto ficcional, em que o leitor e as personagens creem absolutamente naquilo que acontece,
seja uma fada que aparece, um ser que se metamorfoseia etc. O pesquisador afirma que o gênero
maravilhoso se relaciona ao conto de fadas, que é uma das variedades dele, e explica: “os
acontecimentos sobrenaturais aí não provocam qualquer surpresa: nem o sono de cem anos,
nem o lobo que fala, nem os dons mágicos das fadas (para citar apenas alguns elementos dos
contos de Perrault)” (2004, p. 60).
De que modo, porém, tais elementos seriam relevantes na literatura infantojuvenil? A
pesquisadora Flávia Cortês assevera:

A fantasia é o recurso natural que fornece e molda a matéria-prima de nossa


personalidade, sendo um dos caminhos, talvez o principal, aquele em que o homem
buscar o autoconhecimento e aprende a enfrentar o real. É descortinando o mundo da
fantasia e estimulando a imaginação que se criam os meios para que o pequeno leitor
aprenda a lidar melhor com o mundo ao seu redor ou mesmo com os seus monstros
interiores. Ao sermos privados dessa fonte natural, a vida fica limitada; sem a fantasia
para nos dar esperança, não temos forças para enfrentar as adversidades da vida. E a
infância é justamente a época em que essas fantasias precisam ser nutridas. (2020, p.
48)
Ou seja, a compreensão de mundo que a fantasia possibilita é imprescindível em qualquer fase
da vida, e ainda mais nas fases inicias. Por meio da fabulação, a criança ou o adolescente
organiza o seu entendimento do real, do bem, do mal, enxergando a si próprio em construções
ficcionais que, muito longe de se limitarem a um tempo ou espaço, representam a vida.
Nesse sentido, apresentaremos agora uma breve análise de duas figuras muito
características dos contos maravilhosos, que não perderam seu espaço nas produções literárias
contemporâneas: a fada e a bruxa. Para tal, partiremos dos contos de Perrault em que a figura
da fada surge, além de três obras de Sylvia Ortfoh: Uxa, ora fada, ora bruxa (1985), Fada Fofa
e os Sete anjinhos (1997) e A bruxa Fofim (2002), nas quais aparecem a fada e/ou a bruxa. Em
um primeiro olhar dicotômico, teríamos as legítimas representantes, respectivamente, do bem
e do mal, mas, quando se observa mais atentamente narrativas da tradição e contemporâneas,
nota-se que essa visão maniqueísta não se confirma verdadeira.
3. FADA E BRUXA, CONFIGURAÇÕES

Toda criança, adolescente ou adulto, por mais distante que esteja de uma vida leitora, já
teve algum contato com as personagens fada e/ou bruxa. Em filmes, desenhos, livros didáticos,
músicas, diversos contextos apresentam tais figuras tão emblemáticas da tradição oral. No
entanto, essas representações, no senso comum, sempre se dão de forma bastante similar e
imutável: a fada aparece representando o bem, a benção, a boa sorte, enquanto à bruxa é legada
a má fama, a maldade, o obscuro. Tal construção torna possível questionar: será que sempre foi
assim?
Pode-se encontrar uma origem da figura da fada na tradição celta (MICHELLI, 2013).
O pesquisador José Carlos Leal apresenta algumas características da personagem, que remete
às deusas do destino, chamadas Moiras ou Parcas:

Assim, as fadas são aquelas que fadam, isto é, dão um destino. Neste sentido existe
uma perfeita equivalência entre a palavra fada e a palavra moira. A Moira ou Moiras,
às vezes personificadas pelas irmãs fiandeiras Lakesis, Atropos e Clotos, na crença
popular dos antigos gregos, presidiam os acontecimentos básicos da vida humana: o
nascimento, o casamento e a morte. Um levantamento, mesmo que não exaustivo, dos
contos infantis, mostra facilmente as fadas comparecendo a uma dessas três situações,
principalmente aos nascimentos, quando atribuem à criança recém--nascida um
determinado destino. (1985, p. 75)
Inicialmente, a figura da fada estava bem distante da comumente conhecida hoje: “A
fada medieval aproxima-se do conceito grego de feiticeira, do tipo de Circe ou de Medéia. [...]
Foi provavelmente no período medieval que a fada ganhou o estereótipo com o qual ficou
conhecida na literatura infantil.” (1985, p. 76), uma visão muito consagrada em filmes da
Disney, por exemplo: a fada madrinha, bela, com asas, capaz apenas de boas ações. Vale
salientar também um atributo inseparável desta personagem: a vara de condão, cujo nome
“deriva certamente do verbo latino condonare que tem o sentido de dar de presente [...] Esta é
a função exata da varinha de condão: dar algo a alguém, ajudar uma pessoa a resolver uma
questão difícil, uma tarefa impossível etc.” (1985, p. 79). Além disso, Michelli lembra o
simbolismo que cerca esse objeto:
O significado da varinha de condão das fadas pode ser explicado se considerarmos,
em primeiro lugar, o simbolismo mágico que adere à vara, representando, conforme
Chevalier e Gheerbrant, poder e clarividência advindos de Deus, das forças celestes
ou mesmo do demônio; [...] Na palavra condão ecoa o “dom” recebido e concedido.
(2013, p. 65)
Em contrapartida, pode-se refletir sobre a personagem bruxa, ou feiticeira, ser
caracterizada pelo conhecimento da natureza, com suas ervas, poções, feitiços, além da prática
de adivinhações, geralmente acompanhada de animais considerados venenosos ou associados à
magia negra ou à escuridão da noite, como sapos, cobras, gatos pretos, corvos e gralhas, corujas.
Sobre o espaço que habitam,

Os lugares tradicionalmente ligados à feitiçaria, como assinala Nicole Chaquim, são


“lugares exteriores à muralha social: florestas, montanhas, vizinhanças de lagos [...]”
[...] A feiticeira nora numa gruta, ou em algum refúgio da floresta, ou então numa casa
pobre, escura e suja, onde ninguém penetra. Dessa maneira, sua intimidade e seus
segredos ficam protegidos. (GABORIT; GUESDON; CAPORAL, 2000, p. 351)
Uma personagem que não representaria mal algum, visto que agiria como uma
curandeira, auxiliadora do ser humano, gerou, no entanto, grande desconfiança e rejeição,
conforme afirma Tuane Silva:

No final da Idade Média, tal conhecimento [ligado à natureza] já não era bem visto e
muito menos aceito e, assim, milhares de mulheres foram rotuladas e marcadas como
“diabólicas”, acusadas de fazerem pacto com o Diabo, obrigadas a assumirem o
estigma de praticarem bruxaria ou feitiçaria, atividades que amedrontavam, de forma
assustadora, o imaginário histérico e coletivo. (2020, p. 370)
Assim, a bruxa passa a ter uma representação totalmente negativa, arraigada no imaginário
popular, que é comumente encontrada também em muitas produções artísticas. A partir de uma
breve análise de algumas narrativas, em um recorte, torna-se possível observar em que medida
tais construções se confirmam na tradição e na contemporaneidade.

4. A FADA EM CHARLES PERRAULT

Partindo da tradição, pode-se começar por um dos maiores nomes daquele contexto:
Charles Perrault (1628-1703), que foi um escritor francês, “homem da corte, considerado um
genuíno burguês parisiense, intelectual ativo e poeta da Academia Francesa” (MICHELLI;
LIMA, 2019, p. 97). O autor foi um dos pioneiros no registro dos contos de fadas, advindos da
tradição oral: “ao registro, por escrito, das histórias ouvidas, provavelmente desde a infância,
seguiu-se a artesania literária do escritor” (2019, p. 97), ou seja, tendo recolhido essas narrativas
entre o povo e seus representantes, Perrault as tratou esteticamente, reunindo seus contos em
sua obra Histoires ou Contes du Temps Passé, avec les Moralités: Contes de Ma Mère l'Oye e
criando a obra mundialmente conhecida hoje.
Dos nove contos de Perrault, em cinco aparece a figura da fada, em nenhum é
mencionada a personagem bruxa. Em “Cinderela” e “Pele de Asno”, tem-se a fada madrinha,
que concede, respectivamente, à Cinderela, a transformação das roupas e da carruagem, para
que ela possa participar do baile, e à princesa de “Pele de Asno” o auxílio para fugir do rei, seu
pai, ajudando-a durante a viagem.
Neste trabalho, porém, objetiva-se atentar para os contos em que a fada foge um pouco
a esse padrão estritamente benévolo. Em “Bela Adormecida”, são apresentadas sete fadas
bondosas, que vão conferir dons a uma princesa recém-nascida, e uma fada velha, que, em
vingança ao que considera um menosprezo – não ter sido convidada para o banquete –, lança a
maldição sobre a Bela Adormecida. Nesse conto, a figura da fada é responsável tanto pelo
benefício quanto pelo malefício. Já em “As Fadas”, observa-se uma fada que concede dons às
duas irmãs protagonistas de acordo com a postura delas: à moça bondosa e pura, que a ajudou,
um dom positivo, de cuspir flores e diamantes ao falar; à irmã má e mesquinha, que a
menosprezou, e buscava tão somente ganhar uma recompensa, o dom negativo, de cuspir sapos
e cobras ao falar. A atitude da fada expressa justiça; ela é a “responsável pela distribuição do
prêmio e do castigo, do bem e do mal, consoante o mérito das personagens, sem que haja,
porém, o menor investimento para que a moça arrogante modifique seu comportamento,
acentuando a visão maniqueísta da narrativa” (MICHELLI, 2013, p. 67).
Em “Riquet, o topetudo”, um dos contos menos conhecidos, uma rainha tem um filho
extremamente feio, tão feio que “por muito tempo duvidaram que ele tivesse forma humana”
(PERRAULT, 1989). Uma fada que assiste ao nascimento, numa atitude de compensação,
concede-lhe o dom da inteligência, de tal forma que ele poderia dar tanta inteligência como a
que tinha à pessoa que mais amasse. Esse menino, que nasce com um pequeno tufo de cabelo
na cabeça, é chamado de Riquet, o topetudo. Alguns anos depois, uma rainha de um reino
vizinho dá à luz duas filhas: uma extremamente bela, à qual a mesma fada decreta falta de
inteligência, para que a mãe não ficasse alegre de maneira exacerbada, e outra muito feia, a
quem a fada dá o dom da inteligência. Para consolar a mãe, ela garante que a filha bela poderá
tornar belo àquele a quem mais amar.
Ao longo da narrativa, Riquet e a bela princesa se conhecem, num bosque, e ele se
apaixona, concedendo a ela a inteligência que lhe faltava, desde que eles se casem. Ela aceita,
recebe o dom da inteligência e eles marcam o casamento para dali a um ano. Ao longo desse
ano, ela se esquece do acordo que havia feito com Riquet quando ainda era tola, até que um dia,
para pensar em propostas de casamento que recebera, decide passear pelo mesmo bosque onde
havia conhecido Riquet anteriormente. Ali, ela vê muitas pessoas preparando um banquete, e
indaga para o quê seria aquilo, ao que respondem: “Para o príncipe Riquet, o Topetudo,
senhorita, cujo casamento vai ser celebrado amanhã” (PERRAULT, 1989). Ela se lembra,
então, da promessa, ficando triste. Quando Riquet a encontra e vê que ela ainda não tinha se
decidido a casar com ele, mostra que ela poderia desejá-lo e, por isso, torná-lo bonito, com o
dom que recebera. Assim, tudo se resolve e eles se casam.
A partir destes contos, pode-se perceber que as fadas de Perrault ocupam uma posição
ambivalente: concedem bênçãos e maldições, fazem justiça e compensam faltas e excessos,
cumprindo também o papel que, tradicionalmente e consagrado pelo senso comum, seria
destinado à bruxa. Segundo Regina Michelli,

Ao analisarmos a presença da fada nos contos de Perrault [...], desconstrói-se a


imagem da bela e doce fada com sua varinha de condão, abrindo-se em espectro seu
desenho. Ela pode ser a fada madrinha, abençoando e aconselhando seus eleitos [...].
A boa fada remete ao arquétipo das grandes deusas mães, protetoras, acalentadoras
[...]. A fada que distribui malefícios, punindo qual Átropos com a morte ou abusando
do poder que detém para autobenefício, executa, porém, a ação da fada madrasta.
Atua ainda nos contos com a função de julgar as personagens humanas e distribuir
dons segundo as circunstâncias em que se vê envolvida ou de acordo com o
merecimento de a quem se destina o prêmio ou o castigo: fadas juízas ou justiceiras.
Pensar a fada, portanto, é abrir um leque de possibilidades, tal qual a mulher. (2013,
p. 69)

5. A FADA E A BRUXA EM SYLVIA ORTHOF

Para estabelecer um paralelo com a produção literária contemporânea, partiremos de


algumas obras de Sylvia Orthof (1932-1997). Grande escritora de literatura infantil brasileira,
carioca, filha única de um casal de imigrantes, Sylvia veio de uma família composta por
diversos artistas. Começando pelo teatro, inicia sua vida de escritora com um convite de Ruth
Rocha: escrever histórias infantis para a revista Recreio, o que lhe rendeu oportunidades no
mundo da Literatura Infantil. A partir daí, foram mais de 100 histórias publicadas ao longo de
sua carreira. De sua vasta produção, foram selecionadas três narrativas em que há a presença
da fada e/ou da bruxa, a fim de proceder à análise proposta neste trabalho.
Em A bruxa Fofim, temos Fofim, uma bruxa gorducha, estabanada, distraída, que não
apresenta qualquer sinal de maldade ou perversão, e que passa por apuros depois de confundir
“abracadabra” com “abracadim”. A partir daí, a bruxa começar a perder suas peças de roupa:
“A saia da bruxa / subiu pra cabeça./ – Ai, saia danada,/ desça, obedeça! (2002, s.p.). Depois
de perder saia, blusa e as peças íntimas, a fada ficou nua:

Não posso ficar sem roupa,


já estou ficando gripada,
com meu traseiro ao vento,
minha voz está meio rouca!
Qual é a palavra encantada? (2002, s.p.)
Qualquer traço que poderia ser considerado sedutor advém, na realidade, do fato de
Fofim ser extremamente atrapalhada, distanciando-a do estereótipo da bruxa tentadora ou
maligna. A nudez simbolicamente poderia representar o despir essas convenções negativas que
cercam a figura da bruxa, desconstruídas, humoristicamente, no texto de Orthof.

Figura 1: trecho de A bruxa Fofim

Ao final da história, Fofim consegue se lembrar da palavra mágica, recuperando suas


roupas. A personagem é ilustrada de forma extremamente colorida, alegre. Ao longo da
narrativa, é possível notar, nas ilustrações (que são da própria Orthof), vários animais que
reagem aos atos de Fofim proporcionando um tom bem brincalhão, junto com as rimas, à obra.

Em Fada Fofa e os 7 anjinhos, uma paródia de “Branca de Neve e os 7 anões”, temos a


história de uma fada que mora com 7 anjinhos, os quais trabalham no céu diariamente. Ela é
descrita como “rosada, gorda, redonda e pesada, engraçada” (1997, s.p.), uma fada nada
convencional. A ação na história se desencadeia quando, certo dia, a Lua aparece e traz pirulitos
para todos os anjinhos, deixando Fada Fofa sem. A fada, em uma atitude que comumente não
se esperaria de uma personagem benévola, inocente e adulta, revolta-se, questionando: “Não
ganho um pirulito? Só posso limpar a casa, cozinhar, contar história?” (1997, s.p.) e vai embora
de casa, negando-se a assumir tão somente o papel de madrinha, dona de casa.

Figura 2: trecho de Fada Fofa e os 7 anjinhos

Ela vira estrela e apaixona-se por Dragão, namorado da Lua, com o qual se casa ao fim
da narrativa, dando fim ao relacionamento que as personagens tinham, o que também causa
algum estranhamento ao se levar em consideração a ideia de adultério, fim de casamento e
estabelecimento de nova união – Orthof, pela via do humor, aborda temas importantes. Ao
longo da narrativa, Fofa se apresenta como uma fada espevitada, que apronta, questiona, erra,
confronta – um ser de emoções, que se distancia de uma construção etérea e benfazeja,
representação geralmente legada às fadas. Como o próprio narrador diz “Fada Fofa é uma
fofura... Ela apronta!” (1997, s.p.).
Em Uxa, ora fada, ora bruxa, temos a bruxa Uxa, que às vezes é fada, outras vezes é
bruxa. O nome da obra já sinaliza a dualidade que o texto vai apresentar: uma figura que assume
a posição ambivalente de bruxa e fada, de acordo com sua vontade ou como resultado de suas
ações, nem sempre muito bem planejadas. A capa da obra apresenta os dois “lados”: o da fada,
com a varinha de condão, os tons rosados, o cabelo loiro, penteado, e o da bruxa, com tons mais
escuros, a vassoura na mão, o cabelo “lelé da cuca”. A ilustração da obra, como um todo,
expressa bem a construção dual da protagonista.
Figura 3: capa de Uxa, ora fada, ora bruxa

Ao longo do livro, é possível notar que Uxa é uma figura que muda constantemente de
opinião, ora extremamente positiva, em outros dias totalmente negativa, sem que haja a
exigência de ser “coerente” com as expectativas sociais, com uma única face, uma única visão.
Uxa tem uma caracterização própria para quando se decide fada, com “vestido de cetim, varinha
de condão, peruca escandinava” (1985, s.p.), em contraste com a caracterização como bruxa:
“a peruca é de cabelo lelé da cuca, o chapéu tem uma lua, a varinha de condão virou vassoura,
e lá vou eu, cansei de ser tão boa” (1985, s.p.). Os elementos integrantes do perfil dessas
personagens comparecem na narrativa, como a varinha das fadas e a vassoura das bruxas.
Até aqui, aparentemente, as construções da fada e da bruxa de Orthof estariam alinhadas
ao perfil normalmente disseminado, se não fosse um paradoxo genial que perpassa toda a
narrativa. Uxa busca ser fada fazendo bondades, mas, talvez por ser bruxa, não consegue: por
exemplo, ela resolve dar um bombom para um idoso, mas era um bombom puxa-puxa, e o
senhor usava dentadura, o que causa uma desordem... Quando se cansa de ser fada e decide
virar bruxa, acaba realizando boas ações por meio de suas travessuras – ela também é fada! –,
como distribuir as balas puxa-puxa para crianças com dente de leite, que não precisam arrancá-
los... Há ainda uma sátira ao sapatinho de cristal de Cinderela e ao príncipe cheio de “bestagem
na cabeça”, que Uxa, como bruxa, retira, fazendo ele “acordar para a realidade” e ir trabalhar.
Tal paradoxo se revela também na construção imagética da obra:
Se, inicialmente, todo o desenho que caracteriza o mundo da fada está em cor-de-rosa,
aos poucos rosa e preto se mesclam, compondo o mesmo quadro. O mesmo ocorre
com o mundo da bruxa que, de início totalmente caracterizado em traços negros, aos
poucos vai sendo invadido pelo cor-de-rosa. Assim, a síntese que se realiza, no
conteúdo do texto, entre os valores em tensão é representada, visualmente, pelo
colorido de seus desenhos que, ao mesmo tempo que contrastam, se harmonizam.
(GOMES, 2014, p. 138)

Figura 4: trecho de Uxa, ora fada, ora bruxa

Como declara a própria autora, no fim do livro, “E assim é Uxa, a bruxa, ora boa, ora
ruim, ora antiga, ora moderna... afinal, Uxa muda, muda muito, constantemente...” (1985, s.p.).
Corroborando o que se intenta analisar aqui, Regina Souza Gomes afirma:

Na narrativa “moderna” que [Orthof] cria, não há mais vilões ou heróis (que fazem
convergir para si ou todo o mal ou todo o bem), pois a protagonista sincretiza o herói
e o vilão, e mesmo bem e mal tomam agora novas formas, novos contornos. Como
Uxa, o enunciador “bota uma língua para as histórias antiquadas”, mas sem recusá-las
totalmente, já que utiliza, como figuras, os personagens que povoam essas histórias
antigas. Desmascaradas [...], fada e bruxa não são o que parecem: parecendo ser fada
e devendo fazer bondades, Uxa na verdade não sabe fazê-las, não quer ser fada — não
é fada; parecendo ser bruxa e devendo fazer maldades, Uxa na verdade sabe divertir
e alegrar, não quer também ser a bruxa que a fantasia vestiu — não é bruxa. (2004, p.
129-30)
Dessa forma, observa-se que, nas obras de Orthof, o humor e a irreverência apresentam
fadas e bruxas muito distintas da visão maniqueísta comumente disseminada: a fada apronta, a
bruxa ajuda, fada e bruxa são faces da mesma personagem, num jogo que diverte e desconstrói
quaisquer expectativas prévias do leitor. Em relação à construção física, observam-se fadas e
bruxas “gorduchas”, cômicas, fugindo à ideia da fada pequenina e/ou bela e da bruxa sedutora
e/ou de aspecto horroroso. É válido pontuar também que, nas três obras analisadas, a ilustração
tem um papel essencial na construção do imaginário sobre a personagem principal.

6. FADA E BRUXA, FACES DE UMA MESMA MOEDA

Encontra-se, então, a principal questão desse trabalho: seriam a fada e a bruxa, figuras
essenciais nas narrativas maravilhosas, dois lados de um mesmo ser? Como afirma José Carlos
Leal,

No paganismo a fada e a bruxa pertenciam a um mesmo espaço. No momento em que


o Cristianismo procurou reprimir ambas as crenças, a fada ofereceu menor resistência
à nova religião e passou do espaço da matéria para o espaço do espírito, embora não
completamente assimilada. (1985, p. 81)
Leal assevera que, nos primórdios, fada e bruxa não estavam dissociadas, em lados opostos, e
que essa separação é causada por uma repressão da Igreja, que, pela impossibilidade de apagar
tais figuras do imaginário popular, vão moldando-as às crenças cristãs: a fada é “raspada” de
elementos pagãos, “a fim de que se pudesse tornar instrumento dócil à nova pedagogia” (1985,
p. 77), e a bruxa é relegada a um universo mal e vil, já que, conforme afirma a pesquisadora
Tuane Silva, a feiticeira “era vista como ameaça iminente e sombria às ordens religiosas e ao
conhecimento científico, que condenavam aquilo que não poderia ser explicado, compreendido
e admitido naquela época” (2020, p. 372), o que “justificaria” essa exclusão de sua figura.
As afirmações de Leal ecoam nas pesquisas do historiador Jacques Le Goff, que ratifica:
“durante a alta Idade Média, mais ou menos do século v ao século xi [...] Em geral, creio poder
dizer-se para este período que se verificou uma espécie, se não de rejeição, pelo menos de
repressão do maravilhoso” (2010, p. 17), quando era possível

encontramos [...] essencialmente a preocupação por parte da Igreja de transformar –


até dar-lhe um significado de tal modo novo que o fenômeno que temos perante nós
já não é o mesmo – ou de ocultar e eventualmente até destruir aquilo que para ela
representava um dos elementos quiçá mais perigosos da cultura tradicional, por ela
globalmente qualificada como pagã: o maravilhoso, que exercia sobre os espíritos
uma evidente sedução, que constitui uma das suas funções na cultura e na sociedade.
(LE GOFF, 2010, p. 18)
Nota-se, portanto, que a Igreja se preocupava em transformar e ocultar aquilo que
considerava pagão e perigoso, nesse caso, o maravilhoso, os seres maravilhosos, a fada e a
bruxa, distorcendo-os de sua configuração original até que se tornassem aceitáveis aos seus
critérios morais e religiosos. Isso evidencia que, historicamente, se criou uma cisão entre dois
seres e suas respectivas características, o que não existia anteriormente: fada e bruxa eram
expressões de uma mesma figura, e não personagens rivais ou antagônicas como hoje se crê,
conforme afirma Regina Michelli:

Em suas origens, é uma figura ambivalente, benéfica e/ou maléfica, imagem dual do
feminino, tal como aparece nos contos de Perrault [...] Somente mais tarde,
provavelmente por obra da Igreja, é que a visão dicotômica, separando-a em fada e
bruxa, se concretiza, recaindo a imagem nefasta, encarnação do mal demoníaco, sobre
a bruxa, enquanto a fada mantém o aspecto virtuoso, divino. (2013, p. 70)

7. CONSIDERAÇÕES FINAIS

É possível concluir que a repressão ao maravilhoso, ao longo das eras, legou a bruxa ao
contexto do mal, dissociando-a da fada, que foi, então, moldada a um padrão benéfico, gerando
a compreensão dicotômica que se consagrou em filmes da Disney, desenhos, HQs etc. Na fada
de Perrault, encontra-se uma figura ainda ambivalente, salva dessa reconstrução que
posteriormente se deu a ela. As narrativas contemporâneas, a exemplo de Orthof, trazem uma
visão já desconstruída em relação ao padrão maniqueísta que se formou. Tais figuras são
frequentes em obras de literatura infantojuvenil, sendo essenciais no que se refere à construção
da fabulação e ao desenvolvimento da criatividade e da sensibilidade artística do leitor.
Observa-se, por fim, que ambas as personagens, as quais na sua essência seriam a mesma,
demonstram o paradoxo que também vive todo ser humano: o eterno caminhar entre o bem e o
mal, estradas cujos limites são tênues demais para não serem atravessados.

REFERÊNCIAS

COELHO, Nelly Novaes. Panorama histórico da Literatura Infantil/Juvenil. 4. ed. São


Paulo: Ática, 1991.

______. Literatura infantil: teoria, análise, didática. São Paulo: Moderna, 2000.

CÔRTES, Flávia. Fiando histórias, tecendo vidas: a literatura infantil na formação de


leitores. 2020. 104 f. Dissertação (Mestrado em Estudos de Literatura) – Instituto de Letras,
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2020.

GABORIT, Lydia; GUESDON, Yveline; CAPORAL, Myriam B. As feiticeiras. In:


BRUNEL, Pierre (Org.). Dicionário de mitos literários. Rio de Janeiro: José Olympio, 2000.

GOMES, Regina Souza. O ensino da leitura uma abordagem semiótica. Linguagem em


(Re)vista, Niterói, ano 1, n. 1, jul./dez. 2004. Disponível em
<http://www.filologia.org.br/linguagememrevista/1/09.pdf> Acesso em: 4 out. 2020.
IORIO, Maria Isabel. Biografia de Sylvia Orthof. s/d. Disponível em
<https://sites.google.com/site/sylviaorthof/biografia-da-autora> Acesso em: 4 out. 2020.

LEAL, José Carlos. A natureza do conto popular. Rio de Janeiro: Conquista, 1985.

LE GOFF, Jacques. O maravilhoso e o quotidiano no ocidente medieval. Tradução:


António José Pinto Ribeiro. Lisboa: Edições 70, 2010.

MICHELLI, Regina. Nas trilhas do maravilhoso: a fada. Terra roxa e outras terras - Revista
de Estudos Literários, n. 26, p. 61-72, 2013. Disponível em
<http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/terraroxa/article/view/25161/18417>. Acesso em
30 ago. 2020.

______; LIMA, Elen Pereira de. Charles Perrault, breve história. In: PERRAULT, Charles.
As Fadas/ Les Fées. MICHELLI, Regina; GARCÍA, Flavio; BATALHA, Maria Cristina
(Eds.). Tradução: Elisângela Maria de Souza. Rio de Janeiro: Dialogarts, 2019, p. 102-112.

ORTHOF, Sylvia. Uxa, ora fada, ora bruxa. Ilustrações de Tato. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1985.

_______. Fada fofa e os sete anjinhos. Ilustrações da autora. Rio de Janeiro: Ediouro, 1997.

______. A bruxa Fofim. Ilustrações da autora. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002.

PERRAULT, Charles. Contos de Perrault. 2. ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1989.

SILVA, Tuane. Da curandeira à feiticeira, o conhecimento proibido e maligno. In: LIMA,


Elen Pereira de; MICHELLI, Regina; GREGORIN FILHO, José Nicolau; GARCÍA, Flavio
(Orgs.). Anais das comunicações em mesas-redondas do I ENLIJ – I Encontro Nacional de
Literatura Infantil/Juvenil: teorias e práticas leitoras. Rio de Janeiro: Dialogarts, 2020, p. 370-
408.

TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. 3.ed. São Paulo: Perspectiva,


2004.

VASSALLO, Márcio. Sylvia Orthof para sempre – entrevista com Sylvia Orthof em 07 de
agosto de 2012. Disponível em:
http://www.agenciariff.com.br/site/NoticiaEntrevista/ShowEntrevista/82 Acesso em 02 jul.
2017.

Você também pode gostar