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A presente pesquisa, desenvolvida no âmbito do projeto de PIBIC “Literatura Infantojuvenil, narrativas de ontem
e de hoje”, sob a orientação da Profª. Drª. Regina Michelli, tem por objetivo analisar a importância do maravilhoso
na literatura potencialmente destinada às crianças. Os contos de fadas atravessam tempos e espaços, resistem a
inúmeras intempéries. Chamamos de contos de fadas àqueles que se definem pela presença do maravilhoso, em
que acontecimentos sobrenaturais emergem na narrativa, sem quaisquer estranhamentos perceptíveis em
personagens, narrador e, por conseguinte, leitor. O maravilhoso está na origem dos tempos e continua
permanecendo entre nós, em narrativas ficcionais em diferentes suportes. Neste trabalho, intenta-se comparar a
fada, presença articuladora do bem e do mal nos contos de Charles Perrault, às fadas e bruxas de Sylvia Orthof,
especialmente em Uxa, ora fada, ora bruxa, Fada Fofa e os Sete anjinhos e A bruxa Fofim. Do escritor francês, a
presença da fada ocorre em narrativas como “Cinderela”, “As Fadas”, “Riquet, o topetudo”, “A Bela Adormecida”,
textos que nos permitem relativizar o imaginário de fada madrinha, benévola, que atua exclusivamente distribuindo
dons a seus afilhados. Se na tradição, as fadas remetem às deusas do destino, Moiras e Parcas, na
contemporaneidade, o humor irreverente de Orthof amplia essa visão, permitindo uma fada-bruxa como Uxa. Por
fundamentação teórica a sustentar o trabalho, há os estudos de Tzevtan Todorov, Jacques Le Goff, Nelly Novaes
Coelho, Regina Michelli, José Carlos Leal.
Palavras-chave: Contos de fadas. Charles Perrault. Sylvia Orthof.
ABSTRACT
This research, developed within the PIBIC project “Children's Literature, narratives of yesterday and today”, under
the guidance of Professor Regina Michelli, aims to analyze the importance of the wonderful in literature potentially
intended for children. Fairy tales cross time and space, resist countless adversities. We call fairy tales those that
define themselves by the presence of the marvelous, where supernatural events emerge in the narrative, without
any noticeable strangeness in characters, narrator and, therefore, reader. The marvelous is at the origin of the times
and continues to persist among us, in fictional narratives in different formats. In this work, we try to compare the
fairy, the articulating presence of good and evil in the tales of Charles Perrault, to the fairies and witches of Sylvia
Orthof, especially in Uxa, sometimes fairy, sometimes witch, Fairy Cuddly and the Seven Little Angels and The
Witch Cuddly. From the French writer, the fairy's presence occurs in narratives such as “Cinderella”, “The Fairies”,
“Ricky of the Tuft”, “The Sleeping Beauty”, texts that allow us to relativize the fairy godmother's imaginary,
benevolent, who acts exclusively by distributing gifts to her godchildren. If in tradition, fairies refer to the
goddesses of fate, the Moirae and the Parcae, in contemporary times, Orthof's irreverent humor amplifies this
vision, allowing a witch fairy like Uxa. For the theoretical basis to support the work, there are the studies of
Tzevtan Todorov, Jacques Le Goff, Nelly Novaes Coelho, Regina Michelli, José Carlos Leal.
Keywords: Fairy tales. Charles Perrault. Sylvia Orthof.
1
Aluna bolsista de PIBIC-CNPq, desenvolvendo pesquisa sobre o maravilhoso em contos da tradição e
narrativas contemporâneas; membro do GP-CNPq EnLIJ – Encontros com a Literatura Infantil/ Juvenil: ficção,
teorias e práticas. Endereço eletrônico: elenp.lima@gmail.com
1. INTRODUÇÃO
O mundo maravilhoso é inerente aos contos da tradição oral, que datam de tempos imemoriais.
Como afirma Nelly Novaes Coelho, “No início dos tempos, o maravilhoso foi a fonte misteriosa
e privilegiada de onde nasceu a literatura” (2000, p. 172). Narrar faz parte da vivência humana
– desde que existe humanidade, contam-se histórias, e, desde que se pode mapear, os elementos
maravilhosos estão presentes nessas narrativas. A pesquisa em andamento objetiva, portanto,
demonstrar a importância do maravilhoso na literatura potencialmente destinada a crianças e
jovens, gênero imprescindível de ser trabalhado em sala de aula.
Nesse sentido, buscamos, no presente trabalho, analisar a figura da bruxa e da fada em
algumas narrativas da tradição e contemporâneas, intentando verificar se tais personagens são,
de fato, antagônicas. Para isso, partiremos de pesquisadores como Jacques Le Goff, Tvetzan
Todorov, Nelly Novaes Coelho, Regina Michelli, entre outros, buscando construir uma base
teórica que demonstre a pertinência dos aspectos analisados no artigo.
O corpus ficcional selecionado para essa etapa da pesquisa foi: os contos “As Fadas”,
“Riquet, o topetudo” e “Bela Adormecida”, de Charles Perrault, e as obras Uxa, ora fada, ora
bruxa (1985), Fada Fofa e os Sete anjinhos (1997) e A bruxa Fofim (2002), de Sylvia Orthof,
obras de literatura infantojuvenil, produção literária de grande valor e qualidade estética, na
qual a presença do maravilhoso é fundamental.
2. O MARAVILHOSO
Toda criança, adolescente ou adulto, por mais distante que esteja de uma vida leitora, já
teve algum contato com as personagens fada e/ou bruxa. Em filmes, desenhos, livros didáticos,
músicas, diversos contextos apresentam tais figuras tão emblemáticas da tradição oral. No
entanto, essas representações, no senso comum, sempre se dão de forma bastante similar e
imutável: a fada aparece representando o bem, a benção, a boa sorte, enquanto à bruxa é legada
a má fama, a maldade, o obscuro. Tal construção torna possível questionar: será que sempre foi
assim?
Pode-se encontrar uma origem da figura da fada na tradição celta (MICHELLI, 2013).
O pesquisador José Carlos Leal apresenta algumas características da personagem, que remete
às deusas do destino, chamadas Moiras ou Parcas:
Assim, as fadas são aquelas que fadam, isto é, dão um destino. Neste sentido existe
uma perfeita equivalência entre a palavra fada e a palavra moira. A Moira ou Moiras,
às vezes personificadas pelas irmãs fiandeiras Lakesis, Atropos e Clotos, na crença
popular dos antigos gregos, presidiam os acontecimentos básicos da vida humana: o
nascimento, o casamento e a morte. Um levantamento, mesmo que não exaustivo, dos
contos infantis, mostra facilmente as fadas comparecendo a uma dessas três situações,
principalmente aos nascimentos, quando atribuem à criança recém--nascida um
determinado destino. (1985, p. 75)
Inicialmente, a figura da fada estava bem distante da comumente conhecida hoje: “A
fada medieval aproxima-se do conceito grego de feiticeira, do tipo de Circe ou de Medéia. [...]
Foi provavelmente no período medieval que a fada ganhou o estereótipo com o qual ficou
conhecida na literatura infantil.” (1985, p. 76), uma visão muito consagrada em filmes da
Disney, por exemplo: a fada madrinha, bela, com asas, capaz apenas de boas ações. Vale
salientar também um atributo inseparável desta personagem: a vara de condão, cujo nome
“deriva certamente do verbo latino condonare que tem o sentido de dar de presente [...] Esta é
a função exata da varinha de condão: dar algo a alguém, ajudar uma pessoa a resolver uma
questão difícil, uma tarefa impossível etc.” (1985, p. 79). Além disso, Michelli lembra o
simbolismo que cerca esse objeto:
O significado da varinha de condão das fadas pode ser explicado se considerarmos,
em primeiro lugar, o simbolismo mágico que adere à vara, representando, conforme
Chevalier e Gheerbrant, poder e clarividência advindos de Deus, das forças celestes
ou mesmo do demônio; [...] Na palavra condão ecoa o “dom” recebido e concedido.
(2013, p. 65)
Em contrapartida, pode-se refletir sobre a personagem bruxa, ou feiticeira, ser
caracterizada pelo conhecimento da natureza, com suas ervas, poções, feitiços, além da prática
de adivinhações, geralmente acompanhada de animais considerados venenosos ou associados à
magia negra ou à escuridão da noite, como sapos, cobras, gatos pretos, corvos e gralhas, corujas.
Sobre o espaço que habitam,
No final da Idade Média, tal conhecimento [ligado à natureza] já não era bem visto e
muito menos aceito e, assim, milhares de mulheres foram rotuladas e marcadas como
“diabólicas”, acusadas de fazerem pacto com o Diabo, obrigadas a assumirem o
estigma de praticarem bruxaria ou feitiçaria, atividades que amedrontavam, de forma
assustadora, o imaginário histérico e coletivo. (2020, p. 370)
Assim, a bruxa passa a ter uma representação totalmente negativa, arraigada no imaginário
popular, que é comumente encontrada também em muitas produções artísticas. A partir de uma
breve análise de algumas narrativas, em um recorte, torna-se possível observar em que medida
tais construções se confirmam na tradição e na contemporaneidade.
Partindo da tradição, pode-se começar por um dos maiores nomes daquele contexto:
Charles Perrault (1628-1703), que foi um escritor francês, “homem da corte, considerado um
genuíno burguês parisiense, intelectual ativo e poeta da Academia Francesa” (MICHELLI;
LIMA, 2019, p. 97). O autor foi um dos pioneiros no registro dos contos de fadas, advindos da
tradição oral: “ao registro, por escrito, das histórias ouvidas, provavelmente desde a infância,
seguiu-se a artesania literária do escritor” (2019, p. 97), ou seja, tendo recolhido essas narrativas
entre o povo e seus representantes, Perrault as tratou esteticamente, reunindo seus contos em
sua obra Histoires ou Contes du Temps Passé, avec les Moralités: Contes de Ma Mère l'Oye e
criando a obra mundialmente conhecida hoje.
Dos nove contos de Perrault, em cinco aparece a figura da fada, em nenhum é
mencionada a personagem bruxa. Em “Cinderela” e “Pele de Asno”, tem-se a fada madrinha,
que concede, respectivamente, à Cinderela, a transformação das roupas e da carruagem, para
que ela possa participar do baile, e à princesa de “Pele de Asno” o auxílio para fugir do rei, seu
pai, ajudando-a durante a viagem.
Neste trabalho, porém, objetiva-se atentar para os contos em que a fada foge um pouco
a esse padrão estritamente benévolo. Em “Bela Adormecida”, são apresentadas sete fadas
bondosas, que vão conferir dons a uma princesa recém-nascida, e uma fada velha, que, em
vingança ao que considera um menosprezo – não ter sido convidada para o banquete –, lança a
maldição sobre a Bela Adormecida. Nesse conto, a figura da fada é responsável tanto pelo
benefício quanto pelo malefício. Já em “As Fadas”, observa-se uma fada que concede dons às
duas irmãs protagonistas de acordo com a postura delas: à moça bondosa e pura, que a ajudou,
um dom positivo, de cuspir flores e diamantes ao falar; à irmã má e mesquinha, que a
menosprezou, e buscava tão somente ganhar uma recompensa, o dom negativo, de cuspir sapos
e cobras ao falar. A atitude da fada expressa justiça; ela é a “responsável pela distribuição do
prêmio e do castigo, do bem e do mal, consoante o mérito das personagens, sem que haja,
porém, o menor investimento para que a moça arrogante modifique seu comportamento,
acentuando a visão maniqueísta da narrativa” (MICHELLI, 2013, p. 67).
Em “Riquet, o topetudo”, um dos contos menos conhecidos, uma rainha tem um filho
extremamente feio, tão feio que “por muito tempo duvidaram que ele tivesse forma humana”
(PERRAULT, 1989). Uma fada que assiste ao nascimento, numa atitude de compensação,
concede-lhe o dom da inteligência, de tal forma que ele poderia dar tanta inteligência como a
que tinha à pessoa que mais amasse. Esse menino, que nasce com um pequeno tufo de cabelo
na cabeça, é chamado de Riquet, o topetudo. Alguns anos depois, uma rainha de um reino
vizinho dá à luz duas filhas: uma extremamente bela, à qual a mesma fada decreta falta de
inteligência, para que a mãe não ficasse alegre de maneira exacerbada, e outra muito feia, a
quem a fada dá o dom da inteligência. Para consolar a mãe, ela garante que a filha bela poderá
tornar belo àquele a quem mais amar.
Ao longo da narrativa, Riquet e a bela princesa se conhecem, num bosque, e ele se
apaixona, concedendo a ela a inteligência que lhe faltava, desde que eles se casem. Ela aceita,
recebe o dom da inteligência e eles marcam o casamento para dali a um ano. Ao longo desse
ano, ela se esquece do acordo que havia feito com Riquet quando ainda era tola, até que um dia,
para pensar em propostas de casamento que recebera, decide passear pelo mesmo bosque onde
havia conhecido Riquet anteriormente. Ali, ela vê muitas pessoas preparando um banquete, e
indaga para o quê seria aquilo, ao que respondem: “Para o príncipe Riquet, o Topetudo,
senhorita, cujo casamento vai ser celebrado amanhã” (PERRAULT, 1989). Ela se lembra,
então, da promessa, ficando triste. Quando Riquet a encontra e vê que ela ainda não tinha se
decidido a casar com ele, mostra que ela poderia desejá-lo e, por isso, torná-lo bonito, com o
dom que recebera. Assim, tudo se resolve e eles se casam.
A partir destes contos, pode-se perceber que as fadas de Perrault ocupam uma posição
ambivalente: concedem bênçãos e maldições, fazem justiça e compensam faltas e excessos,
cumprindo também o papel que, tradicionalmente e consagrado pelo senso comum, seria
destinado à bruxa. Segundo Regina Michelli,
Ela vira estrela e apaixona-se por Dragão, namorado da Lua, com o qual se casa ao fim
da narrativa, dando fim ao relacionamento que as personagens tinham, o que também causa
algum estranhamento ao se levar em consideração a ideia de adultério, fim de casamento e
estabelecimento de nova união – Orthof, pela via do humor, aborda temas importantes. Ao
longo da narrativa, Fofa se apresenta como uma fada espevitada, que apronta, questiona, erra,
confronta – um ser de emoções, que se distancia de uma construção etérea e benfazeja,
representação geralmente legada às fadas. Como o próprio narrador diz “Fada Fofa é uma
fofura... Ela apronta!” (1997, s.p.).
Em Uxa, ora fada, ora bruxa, temos a bruxa Uxa, que às vezes é fada, outras vezes é
bruxa. O nome da obra já sinaliza a dualidade que o texto vai apresentar: uma figura que assume
a posição ambivalente de bruxa e fada, de acordo com sua vontade ou como resultado de suas
ações, nem sempre muito bem planejadas. A capa da obra apresenta os dois “lados”: o da fada,
com a varinha de condão, os tons rosados, o cabelo loiro, penteado, e o da bruxa, com tons mais
escuros, a vassoura na mão, o cabelo “lelé da cuca”. A ilustração da obra, como um todo,
expressa bem a construção dual da protagonista.
Figura 3: capa de Uxa, ora fada, ora bruxa
Ao longo do livro, é possível notar que Uxa é uma figura que muda constantemente de
opinião, ora extremamente positiva, em outros dias totalmente negativa, sem que haja a
exigência de ser “coerente” com as expectativas sociais, com uma única face, uma única visão.
Uxa tem uma caracterização própria para quando se decide fada, com “vestido de cetim, varinha
de condão, peruca escandinava” (1985, s.p.), em contraste com a caracterização como bruxa:
“a peruca é de cabelo lelé da cuca, o chapéu tem uma lua, a varinha de condão virou vassoura,
e lá vou eu, cansei de ser tão boa” (1985, s.p.). Os elementos integrantes do perfil dessas
personagens comparecem na narrativa, como a varinha das fadas e a vassoura das bruxas.
Até aqui, aparentemente, as construções da fada e da bruxa de Orthof estariam alinhadas
ao perfil normalmente disseminado, se não fosse um paradoxo genial que perpassa toda a
narrativa. Uxa busca ser fada fazendo bondades, mas, talvez por ser bruxa, não consegue: por
exemplo, ela resolve dar um bombom para um idoso, mas era um bombom puxa-puxa, e o
senhor usava dentadura, o que causa uma desordem... Quando se cansa de ser fada e decide
virar bruxa, acaba realizando boas ações por meio de suas travessuras – ela também é fada! –,
como distribuir as balas puxa-puxa para crianças com dente de leite, que não precisam arrancá-
los... Há ainda uma sátira ao sapatinho de cristal de Cinderela e ao príncipe cheio de “bestagem
na cabeça”, que Uxa, como bruxa, retira, fazendo ele “acordar para a realidade” e ir trabalhar.
Tal paradoxo se revela também na construção imagética da obra:
Se, inicialmente, todo o desenho que caracteriza o mundo da fada está em cor-de-rosa,
aos poucos rosa e preto se mesclam, compondo o mesmo quadro. O mesmo ocorre
com o mundo da bruxa que, de início totalmente caracterizado em traços negros, aos
poucos vai sendo invadido pelo cor-de-rosa. Assim, a síntese que se realiza, no
conteúdo do texto, entre os valores em tensão é representada, visualmente, pelo
colorido de seus desenhos que, ao mesmo tempo que contrastam, se harmonizam.
(GOMES, 2014, p. 138)
Como declara a própria autora, no fim do livro, “E assim é Uxa, a bruxa, ora boa, ora
ruim, ora antiga, ora moderna... afinal, Uxa muda, muda muito, constantemente...” (1985, s.p.).
Corroborando o que se intenta analisar aqui, Regina Souza Gomes afirma:
Na narrativa “moderna” que [Orthof] cria, não há mais vilões ou heróis (que fazem
convergir para si ou todo o mal ou todo o bem), pois a protagonista sincretiza o herói
e o vilão, e mesmo bem e mal tomam agora novas formas, novos contornos. Como
Uxa, o enunciador “bota uma língua para as histórias antiquadas”, mas sem recusá-las
totalmente, já que utiliza, como figuras, os personagens que povoam essas histórias
antigas. Desmascaradas [...], fada e bruxa não são o que parecem: parecendo ser fada
e devendo fazer bondades, Uxa na verdade não sabe fazê-las, não quer ser fada — não
é fada; parecendo ser bruxa e devendo fazer maldades, Uxa na verdade sabe divertir
e alegrar, não quer também ser a bruxa que a fantasia vestiu — não é bruxa. (2004, p.
129-30)
Dessa forma, observa-se que, nas obras de Orthof, o humor e a irreverência apresentam
fadas e bruxas muito distintas da visão maniqueísta comumente disseminada: a fada apronta, a
bruxa ajuda, fada e bruxa são faces da mesma personagem, num jogo que diverte e desconstrói
quaisquer expectativas prévias do leitor. Em relação à construção física, observam-se fadas e
bruxas “gorduchas”, cômicas, fugindo à ideia da fada pequenina e/ou bela e da bruxa sedutora
e/ou de aspecto horroroso. É válido pontuar também que, nas três obras analisadas, a ilustração
tem um papel essencial na construção do imaginário sobre a personagem principal.
Encontra-se, então, a principal questão desse trabalho: seriam a fada e a bruxa, figuras
essenciais nas narrativas maravilhosas, dois lados de um mesmo ser? Como afirma José Carlos
Leal,
Em suas origens, é uma figura ambivalente, benéfica e/ou maléfica, imagem dual do
feminino, tal como aparece nos contos de Perrault [...] Somente mais tarde,
provavelmente por obra da Igreja, é que a visão dicotômica, separando-a em fada e
bruxa, se concretiza, recaindo a imagem nefasta, encarnação do mal demoníaco, sobre
a bruxa, enquanto a fada mantém o aspecto virtuoso, divino. (2013, p. 70)
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS
É possível concluir que a repressão ao maravilhoso, ao longo das eras, legou a bruxa ao
contexto do mal, dissociando-a da fada, que foi, então, moldada a um padrão benéfico, gerando
a compreensão dicotômica que se consagrou em filmes da Disney, desenhos, HQs etc. Na fada
de Perrault, encontra-se uma figura ainda ambivalente, salva dessa reconstrução que
posteriormente se deu a ela. As narrativas contemporâneas, a exemplo de Orthof, trazem uma
visão já desconstruída em relação ao padrão maniqueísta que se formou. Tais figuras são
frequentes em obras de literatura infantojuvenil, sendo essenciais no que se refere à construção
da fabulação e ao desenvolvimento da criatividade e da sensibilidade artística do leitor.
Observa-se, por fim, que ambas as personagens, as quais na sua essência seriam a mesma,
demonstram o paradoxo que também vive todo ser humano: o eterno caminhar entre o bem e o
mal, estradas cujos limites são tênues demais para não serem atravessados.
REFERÊNCIAS
______. Literatura infantil: teoria, análise, didática. São Paulo: Moderna, 2000.
LEAL, José Carlos. A natureza do conto popular. Rio de Janeiro: Conquista, 1985.
MICHELLI, Regina. Nas trilhas do maravilhoso: a fada. Terra roxa e outras terras - Revista
de Estudos Literários, n. 26, p. 61-72, 2013. Disponível em
<http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/terraroxa/article/view/25161/18417>. Acesso em
30 ago. 2020.
______; LIMA, Elen Pereira de. Charles Perrault, breve história. In: PERRAULT, Charles.
As Fadas/ Les Fées. MICHELLI, Regina; GARCÍA, Flavio; BATALHA, Maria Cristina
(Eds.). Tradução: Elisângela Maria de Souza. Rio de Janeiro: Dialogarts, 2019, p. 102-112.
ORTHOF, Sylvia. Uxa, ora fada, ora bruxa. Ilustrações de Tato. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1985.
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______. A bruxa Fofim. Ilustrações da autora. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002.
VASSALLO, Márcio. Sylvia Orthof para sempre – entrevista com Sylvia Orthof em 07 de
agosto de 2012. Disponível em:
http://www.agenciariff.com.br/site/NoticiaEntrevista/ShowEntrevista/82 Acesso em 02 jul.
2017.