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RESUMO
A bruxaria e a sua influência para o movimento feminista atual é o objeto do
presente estudo. Objetiva desenvolver uma crítica jurídico-social – da Idade Média
à atualidade – partindo do sistema investigativo inquisitivo, quando o uso da
concepção da bruxaria levou à execução de mulheres, com finalidades políticas e
religiosas. Para tal fim foi utilizado um acervo de análise histórica qualitativa de
diversos casos concretos ocorridos na Idade Média, com projeções para os dias
correntes. Por fim, conclui-se que as bruxas de então atualmente representam as
mulheres feministas de hoje, com a resistência diante de retrocessos nas conquistas
das mulheres, tendo no movimento feminista a rebeldia necessária em busca de
novos horizontes emancipadores.
Palavras-chave: Feminismo. Bruxaria. Inquisição. Caça às Bruxas. Aborto.
ABSTRACT
The following study focuses on the influence of Witchcraft on the current feminist
movement. The goal is to develop a legal-social critical narrative, with its starting
point being the inquisitive system, when the idea of witchcraft led to the execution
of many women, with both political and religious purposes. A collection of historical
analysis of several actual cases that occurred during Middle Age was used to build
this study, discussing them, and building a parallel between the past and the present.
The analysis is set towards the realization that those who were viewed as witches
in the past are represented by nowadays feminist movement members, who fight
1 Pós-doutora pela Faculdade de Direito de Lisboa (2018), Doutora e Mestra em Direito pelo Curso
de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito/UFPE (2011). Exerceu os cargos de Promotora
e Procuradora de Justiça do Ministério Público do Estado de Pernambuco (1982-2003), Professora
Adjunta de Direito Penal da UFPE, exercendo o cargo desde 1995.
2 Acadêmica de Direito do 6º período da Universidade Federal de Pernambuco e monitora da
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setbacks on women’s achievements, using the movement as the necessary force of
rebellion.
Keywords: Feminism. Witchcraft. Inquisition. Witch hunt. Abortion.
1 INTRODUÇÃO
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desde a contenção simbólica dos hereges/criminosos até a aplicação das penas
julgadas mais apropriadas para cada caso de violação religiosa.
Para combater a bruxaria atribuída às mulheres, prioritariamente (KRAMER;
SPRENGER, 2017, p.17) organizou- se a denominada caça às bruxas, período de
repressão sistemática do fim do século XIV até meados do século XVII, em toda a
Europa. Naquele período, as mulheres foram perseguidas e conduzidas a injustos
julgamentos, tanto nos tribunais eclesiásticos quanto nos civis. A Igreja associava
aquelas mulheres às formas de magia, sendo esta considerada uma forma ilegítima
de controle de forças misteriosas, visto que a única instituição que detinha
legitimidade e monopólio para lidar com essa matéria era a própria Igreja Católica.
Os milagres admitidos por essa instituição eram, contudo, uma forma de magia. E a
sua legitimação vinha, segundo sua doutrina, por meio da intercessão divina. Esse
diferencial não era atribuído às práticas de magia das mulheres.
A bruxaria, como objeto de perseguição criminosa, teve as mais diferentes
abordagens ao longo da história. Tanto a religião católica como a protestante, por
meio dos Tribunais da Inquisição, torturaram, julgaram e condenaram à morte os
heréticos ou bruxos. Importava o controle sobre os corpos, principalmente, no meio
do feudalismo rumo ao capitalismo, como notoriamente realçou Michel Foucault.
A reação das mulheres surgiu ante essa adversa realidade. Veio essa reação
muito antes, portanto, da luta por voto e igualdade. O que se busca entender ainda
hoje é como essa questão histórica da caça às bruxas impacta na nossa sociedade
contemporânea e por que urge mudar tal realidade.
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Neste sentido, também os livros infanto-juvenis costumam descrever
histórias em que há uma fada boa e bela, por vezes loira, e uma bruxa má e feia.
Afinal, segundo afirmam Eherenreich e English (1984, s. 13), as bruxas
corporificadas nas pessoas não surgiram espontaneamente, mas fruto de uma
campanha de terror realizada pela classe dominante. Criou-se uma histeria
generalizada na população, de forma que muitas das mulheres acusadas passavam
a acreditar que, de fato, seriam bruxas e que possuíam um pacto com o demônio.
Tais mulheres substituíam, segundo relatos, até o papel do confessor pela
intimidade e confiança nas suas comunidadades. Aelas se pedia remédios, veneno,
aborto. Preocupações do corpo e da alma (MICHELET, 2003, p. 106).
Extremamente estigmatizadas, portanto, são as representações e os
conceitos que chegaram até os dias atuais da imagem da bruxa. O cinema é outro
grande responsável pela disseminação dessas imagens, funcionando como
perpetuador dessa relação de mulheres com a bruxaria. A representação das bruxas
mantém imagens preconceituosas estereotipadas, fazendo com que sua imagem seja
interligada ao diabo, ao mal.
Ademais, a bruxa foi, sempre, representada como resultante da realidade de
algumas mulheres. São elas mostradas solteiras, a elas associada a negação ao
casamento, primeiro pela condição de bruxa, depois por serem retratadas como
seres malévolos
A mulher que dedicava seu tempo à bruxaria, ou, em outras palavras, à busca
por conhecimento mágico, era configurada como indigna de casar-se.
Na época do povoamento brasileiro, a ideia do diabo que se comunicava com
as bruxas se espalhou entre os segmentos inferiorizados dos índios e dos negros
pela ação dos missionários europeus e pelos colonizadores portugueses (MACÊDO,
1968, p. 22).
As Bruxas de Salem marcam um episódio real ocorrido em 1692, em
Massachussets, nos Estados Unidos. Cinco meninas foram acusadas de bruxaria,
quando o pai de uma delas, Abgail, as flagrou praticando, na sua visão, danças
macabras na floresta e supostamente sob a influência de bruxas, que se
comunicavam com o diabo4 (MACÊDO, 1968, p. 22). Acusações da prática de atos
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macabros e magia negra foram lançadas. A histeria puritana se inflama, causando
uma enxurrada de acusações de bruxaria e gerando prisões, torturas e julgamentos.
Ao todo, foram 19 execuções.
No tocante à figura imagística do diabo, ela desembarcou no Brasil pela mão
dos missionários e colonizadores, e tal representação era desconhecida dos nativos
até então. O diabo brasileiro é o mesmo demônio português (MACÊDO, 1968, p. 22).
Outra imagem famosa de bruxas vem de William Shakespeare, que retrata
sob um cenário de nevoeiro sua aparição, saudada pelo personagem Macbeth.
O dramaturgo Arthur Miller, numa analogia ao macartismo, de caça aos
comunistas nos anos 50 nos Estados Unidos da América, imortalizou o episódio de
Salem com a peça “The Crucible”, traduzida para “As Bruxas de Salem”. Relata o
período colonial norte-americano, invocando o ritual medieval do Sabbath de culto
das bruxas ao diabo.
Durante o século XIV, na Inquisição europeia, o Sabbath era citado, nos
processos do Santo Ofício em confissões sob tortura. Seria uma cerimônia de bruxas
para cultuar o diabo. Nesses rituais se reportavam orgias, canibalismo e subversão
dos dogmas da igreja. E mesmo que as estórias desses rituais do Sabbath tenham
perdurado por séculos, nunca houve comprovação de tais práticas. Mas a sua
imagem ficou impregnada, culturalmente (SAIONETI, 2017). O Sabbath do Hallowen
marca o início do inverno, no hemisfério norte, comemorado no dia 31 de outubro
de cada ano.
Seguindo esse histórico, o estereótipo das bruxas seguiu caracterizado por
mulheres de aparência desagradável, índole ruim e, muito frequentemente
identificadas com alguma deficiência física, sendo senis e mentalmente perturbadas.
Conquanto possam ser representadas, também, por mulheres bonitas, mas
supostamente por alguma razão de lesão ao ego dos homens – hierárquicos
superiores da sociedade patriarcal – são ligadas, ainda assim, à figura do diabo. Isso
tudo sinaliza uma crítica à mulher independente e autônoma como algo anormal.
Esta tem sido uma estratégia para impor uma pretensa superioridade masculina, de
modo a desviar a atenção para aquilo que estava na margem ao invés de focar
naquilo que está no centro – a verdadeira imagem da bruxa como um ser que desafia.
Diversos grupos sociais são transformados em anomalias por propósitos
políticos e religiosos, meramente como forma de aviltar a imagem de tais grupos,
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como é o caso das mulheres. As bruxas como seres pejorativos, por conseguinte, não
surgiram espontaneamente, mas fruto de uma campanha difamatória realizada pela
classe dominante.
Mesmo numa visão atual, menos frequente, mas ainda machista e patriarcal,
são, ainda, percebidas algumas ideais retrógradas, como as de que as mulheres que
possuem carreiras estruturadas ou ocupam posições consagradas como masculinas,
antes dominadas somente por homens, são menos susceptíveis a um casamento, a
uma relação estável, por exemplo. Isso se revela, por exemplo, na indústria cultural
internacional. Mulheres visadas, que se desviaram de determinado padrão adotado,
são tidas como vilãs/bruxas.
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Ressalte-se que a construção da imagem da bruxa vem de longo tempo, muito
antes da Inquisição e dos demais contextos de caça às bruxas. A bruxaria é
proveniente de uma relação travada com o senhor das trevas, ou o diabo, uma
relação de tentações e pecados apontando para a mulher infratora. Ora, houve uma
primeira mulher, na Bíblia, que teve sua história semelhante à das bruxas: Eva, no
Paraíso, caiu na tentação daquilo que era proibido, levando Adão para a perdição, e
não o contrário. Eva nasceu de uma costela torta de Adão, marcando a origem
tortuosa da mulher desde os primórdios bíblicos. Registre-se, no entanto, que essa
imagem de Eva pecadora, mulher pecaminosa, teve uma inflexão no Novo
Testamento pela bem-aventurança de Maria. Mas a ideia original é a de Eva tortuosa,
que tem seguidoras históricas em astúcia e malícia. Por exemplo, Dalila, que sabotou
a origem da força de Sansão, entregando-o aos filisteus; Helena foi o pivô da queda
de Troia. Impérios foram derrubados por força de mulheres, como Jezebel do reino
dos judeus e Cleópatra, no Egito (KRAMER; SPRENGER, 2017, p. 97).
Na esteira do aspecto religioso que guia a caracterização feminina como
objeto satânico, torna-se peça fundamental, também, a publicação do já referido
Malleus Maleficarum, importante livro sobre bruxaria que serviu de manual para os
inquisidores e que faz uma acusação direta ao sexo feminino, no geral, em situação
de bruxaria. O prestigiado livro do século XV ensina como identificar as pessoas que
eram “portadoras de desgraças”. O Malleus Maleficarum, também, parte do
pressuposto de que existiriam bruxas parteiras, que primeiro matariam crianças
recém-nascidas e depois as ofereceriam, em blasfêmico rito, aos demônios, o que foi
analisado por Kramer e Sprenger (2017, p. 283). A população passou a ter medo,
então, das habilidades tidas como mágicas que o grupo de parteiras e curandeiras
pudesse ter. Resultou que todo o conjunto de sabedorias populares dessas mulheres
fosse colocado sob vigilância na prática desses saberes. Por tais atividades estarem
conectadas às figuras femininas, tornou-se mais fácil a conexão da mulher com a
bruxaria.
Na Inquisição, tornava-se óbvio que aqueles que recorriam à bruxaria seriam os
que viviam à margem da sociedade, haja vista que esta seria o último recurso
marginal de socorro para quem buscava mudar a realidade em que vivia. Dentre os
grupos mais fragilizados economicamente, as mulheres eram as mais visadas, pois
um homem desafortunado ainda teria mais força social do que uma mulher,
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também, desafortunada. Desta maneira, a falta do poder social feminino e o
desespero econômico tornava o nexo entre a bruxaria e a figura feminina ainda mais
forte.
A liberdade sexual da mulher – ou a falta de liberdade, por assim dizer –
também foi um dos fatores marcantes para a consagração da imagem feminina como
bruxa. As viúvas e as solteiras eram alvos fáceis para perseguição, pois se acreditava
que a falta de companheiro, familiares ou amigos deixava essas mulheres mais
suscetíveis à sedução do senhor das trevas, porque ele usaria o seu poder sexual
para recrutar novas adeptas. Sobre isso, elucida Anne Barstow (1995, p.37): “O
Diabo podia seduzir uma mulher, colocando-a a seu serviço, quando ela ficava
sexualmente excitada ou melancólica.”
As justificativas e construções históricas perpassaram as marcas temporais e
afetam o sexo feminino até os dias atuais, seja por conta da interpretação de uma
degradação religiosa, como no caso de Eva, fruto da costela de Adão, culpada pelo
seu ingresso no mundo da perdição; ou pela degradação social, visto que a mulher
ainda ocupa uma posição inferior na sociedade, sendo alvo de grande preconceito
social como se carregasse algo inadequado dentro de si. Sobre isso, destaca, ainda,
Anne Barstow (1995, p. 32) que, além de tudo, a mulher seria mais carnal. E que
houve uma falha na formação da primeira mulher criada a partir de uma costela
recurva, oposta à retidão do homem. Por essa razão, a mulher seria um animal
imperfeito.
A desconstrução da imagem da mulher se inicia, portanto, no episódio que é tido
como a origem criacionista da vida humana na Terra, cuja narrativa diminui a figura
feminina, sempre a colocando como aquela que não deve ser confiável e não a
tratando de maneira igualitária ao homem. Sendo assim, a figura da bruxa resulta de
um preconceito milenar.
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No dia 30 de maio se comemora o dia da Santa Joana D’Arc. Entretanto, a
canonização daquela que ora figura como um dos maiores símbolos do nacionalismo
francês não é suficiente para apagar o quanto a Igreja Católica a perseguiu e a
criminalizou.
A história de Joana D’Arc se inicia muito cedo, quando, ainda criança,
começou a revelar a verdadeira missão dela: coroar o delfim Carlos e conduzir os
exércitos franceses, levando-os à vitória contra os ingleses, tal como em Orléans, em
Loches e em Patay. Joana, rapidamente, se tornou um exemplo da resistência e força
francesa. A imagem da atual santa foi demonizada, no entanto, a partir da captura
dela no ano de 1430, num processo inquisitorial que teve, ao mesmo tempo, um
caráter político e religioso. Um verdadeiro lawfare5, numa linguagem da atualidade.
Os acusadores eram inimigos de Carlos VII e queriam provar que Joana era
herege e afeita à bruxaria. O processo, além de religioso, era político. Se culpada,
Carlos VII poderia ser acusado de ter recorrido aos serviços de uma bruxa. Entre 23
e 29 de maio de 1431, a sentença condenatória foi proferida e Joana foi queimada
em praça pública, com reflexos no conflito franco-inglês.
Na sua cela, no castelo de Ruão, Joana suportou todas as sessões de tortura
levadas a efeito para que confessasse ser herege. Seu processo, por óbvio, não era
conduzido de maneira equilibrada, dando a oportunidade justa e necessária de
defesa. Pelo contrário, estava sendo guiado com o único objetivo de condená-la.
Sobre tal aspecto do julgamento, o qual fomentava a teoria de ser guiado de maneira
fraudulenta, já elucidava Pernoud (1996, p. 126-7).
O objetivo dos inquisidores era comprovar que Joana D’Arc estava envolvida
com feitiçaria e que os seus feitos tinham origem satânica.
Joana não sustentou por muito tempo sua escolha pela abjuração, afirmando
que havia assinado o documento, nesta direção, por medo da fogueira, mas que, na
verdade, mantinha tudo aquilo que tinha dito anteriormente. Afirmou, além disso,
que preferia a morte a continuar submetida à tortura nas celas da prisão inglesa. A
abjuração foi suspensa de forma quase que imediata. Joana D’Arc foi condenada à
fogueira, momento que foi retratado por Twain (2001, p. 452-3).
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Em 1909, Joana é declarada beata; em 1920, recebe o título de Santa; em
1922, é canonizada como a “Segunda Padroeira da França”. Foram necessários
quase 500 anos para que a imagem de Joana D’Arc se transformasse de bruxa em
santa.
O caso de Joana D’Arc não foi o primeiro e nem foi o último a ser registrado
na história. O seu destaque é proveniente não somente da sua trajetória como líder
francesa, mas, também, pelo desenrolar histórico que se seguiu até mesmo depois
de sua morte carbonizada. A canonização de Joana, em 1922, foi resultado também
do início da desmistificação da imagem da mulher, visto que no século XV a figura
feminina vivia uma realidade de limitação quanto à sua voz e às suas ações, o que
fazia com que Joana D’Arc destoasse das demais.
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acusadora e acusada; do princípio da publicidade do processo, fiscalizável pelo
povo; do princípio da separação das funções de acusar, defender e julgar, que são
obrigatoriamente atribuídas a pessoas distintas.
É um sistema que respeita, por princípio, a individualidade do ser humano,
sua dignidade e seus direitos fundamentais, diferentemente do sistema inquisitivo,
que, no que tange ao tema aqui tratado, tem a finalidade principal de investigação e
punição dos hereges.
O sistema penal inquisitivo difundido na Idade Média por influência do
Direito Canônico passou a dominar quase toda a Europa a partir do Concílio
Lateranense, de 1215. Tal sistema se caracterizava fortemente pela ritualística
processual rígida, na qual se confundiam as figuras do acusador e do julgador,
diferentemente do primeiro sistema mencionado.
É pautado pelos atos secretos ocorridos, iniciando-se por denúncias
majoritariamente anônimas ou ex-officio (quando se tratava da ciência dos fatos por
parte do julgador). O inquisidor fazia o máximo de esforço para que tudo ocorresse
de forma oculta, sem respeitar os direitos e garantias fundamentais dos acusados.
O sistema inquisitivo, portanto, apresentava como característica
fundamental a concentração de funções na mão de uma só pessoa. O inquisidor
investigava, colhia as provas, insistindo na confissão pela tortura, ouvia as
testemunhas e ainda julgava o acusado, buscando sempre a verdade absoluta
revelada para a salvação e com pautas políticas e religiosas.
Preconizava Gilberto Thuns (2006, p. 202) que o sistema inquisitório se
caracterizava pela junção da persecução e julgamento em um mesmo órgão estatal.
Apresentando-se como uma importante característica do Estado Absolutista,
concentrava todo o poder na mão de um único soberano, cuja prova para o
julgamento poderia ser obtida por qualquer meio, não importando a liberdade ou a
integridade física, psíquica e mental dos acusados.
O juiz inquisidor era, portanto, o gestor da prova, buscando confirmar o que
já pensava sobre o fato quando deu início ao processo. Estabelece-se para o juiz
inquisidor um verdadeiro quadro mental paranoico, porquanto a prova servia para
demonstrar a correção da imputação formulada por ele próprio, com grave prejuízo
para sua imparcialidade (LOPES JÚNIOR, 2007, p. 78-80).
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Podem-se, ainda, apontar como características do sistema processual penal
inquisitivo o início da acusação pelo juiz ex officio; ser o processo sigiloso e sempre
escrito; a ausência do contraditório e da ampla defesa, uma vez que o acusado é visto
como mero objeto do processo, e não como sujeito de direitos, sem que sequer se
lhe confira qualquer garantia ou benefício da dúvida; e o sistema da prova tarifada,
sendo a confissão a principal das provas. Como exemplo, pode-se citar o julgamento
de Joana D’arc, em que ela só poderia escolher seu defensor entre os próprios
acusadores (RANGEL, 2005, p. 48).
O momento do apogeu do sistema penal inquisitivo deu-se entre os séculos
XV e XVI, justamente num momento de transição, em que há a decadência do
“teocentrismo” – a visão de que Deus está no centro de tudo – e a ascendência do
“antropocentrismo”, em que o ser humano passa a ocupar o centro.
A arte, a ciência e a filosofia desvincularam-se da teologia cristã, trazendo
como consequência instabilidade e descentralização do poder da Igreja. Como
reação para reconquistar o centro das atenções e o poder perdido, a Igreja Católica
instaurou os “Tribunais da Inquisição”, desvinculando-se do sistema acusatório, o
qual apresentava mais garantias ao acusado. Ao fortalecer e instaurar o sistema
penal inquisitivo, efetivou-se, assim, a “caça às bruxas”.
A escolha do sistema inquisitivo se deu por um critério político, com Estado
e Igreja em conjunto, apresentando um viés punitivo, a fim de permanecer e
fortalecer a hierarquia patriarcal pregada durante toda a Idade Média. Resultou na
concentração do poder punitivo na mão de apenas uma pessoa – um homem,
inquisidor – que seria responsável por todas as fases processuais, corroborando
para condenações despóticas e proporcionando verdadeiros “espetáculos” para os
apoiadores da causa.
O processo desenvolvido no contexto histórico da caça às bruxas, nos séculos
XVI e XVII na Europa, foi decorrente, portanto, do sistema inquisitivo, que vem da
inquisição (Santa Inquisição – Tribunal Eclesiástico). Possuía como principal
finalidade a investigação e punição dos hereges, justificando assim a transição de
um sistema que apresentava garantias ao acusado para um sistema que tinha como
principal finalidade a punição infundada de caráter político e religioso.
211
6 A UTILIZAÇÃO DO SISTEMA PENAL INQUISITIVO COMO FORMA DE PUNIÇÃO
ÀS MULHERES
212
referentes à sexualidade feminina, passaram a ser considerados uma ameaça ao
poderio patriarcal e religioso.
Em 1233, o papa Gregório IX instituiu o Tribunal Católico Romano, conhecido
como “Inquisição” ou “Tribunal do Santo Ofício”, que tinha o objetivo de eliminar a
“heresia” e, neste contexto, conter o avanço de qualquer esboço de busca de
conhecimento das mulheres perseguidas, estigmatizadas. Assim, em 1320 a Igreja
declarou oficialmente que a bruxaria e a antiga religião dos pagãos representavam
uma ameaça ao cristianismo, iniciando-se assim, gradualmente, a perseguição aos
hereges.
Na Idade Média, essas bruxas faziam uso das plantas medicinais para curar
enfermidades e epidemias, possuindo um elevado conceito social. Em muitos locais
elas se constituíam como a única possibilidade de atendimento medicinal
(curandeiras) (MARTIN-BARBERO, 2006, p. 139). Representavam as bruxas um dos
modos fundamentais de consciência popular.
Naturalmente, essas mulheres consideradas bruxas não estavam usando
poderes sobrenaturais para fazer suas poções. Utilizavam, apenas, conhecimento
adquirido, dando início ao que hoje é conhecido como aromaterapia, fitoterapia e
farmacologia doméstica, conhecimentos inadmissíveis naquela sociedade.
O fato de essas mulheres utilizarem seus conhecimentos para a erradicação
de epidemias que porventura ocorriam em seus povoados, despertou a ira da
instituição médica masculina em construção, que viu na Inquisição uma maneira de
destruir concorrentes, eliminando não só a vida dessas mulheres como, também,
todo o conhecimento por elas produzido.
Além disso, em 1484, com a publicação por dois inquisidores de Malleus
Maleficarum, cuja tradução seria “Martelo das Bruxas”, houve um incremento nas
perseguições às bruxas. O livro trazia com riqueza de detalhes modos de reconhecer
uma bruxa e eliminá-la, dando vida, na verdade, a uma mitologia em torno da
sexualidade feminina, devida aos tipos de exames sexuais aos quais as mulheres
tidas como bruxas eram submetidas e ao desconhecimento que o homem tinha em
relação ao corpo feminino.
O livro ensinava técnicas para que o inquisidor investigasse, de modo a colher
provas, por meio de técnicas tortuosas e insistindo na confissão pela tortura,
buscando sempre, junto à igreja, a verdade “absoluta” revelada para a salvação.
213
Ademais, em uma de suas passagens, afirmava claramente, que as mulheres
deveriam ser mais visadas neste processo, pois estas seriam “naturalmente” mais
propensas às feitiçarias (MENSCHIK, 1997, p.132).
Na leitura do livro referido, é possível observar o medo do poder da
sexualidade feminina, tendo como alternativa para controlar essa possível ameaça
a criação do imaginário das bruxas. Afinal, no contexto da “caça às bruxas” havia
várias acusações contra as mulheres, sendo uma das principais a acusação de
supostas práticas sexuais contra os homens, sob a alegação de que fora firmado um
“pacto com o demônio” por tais mulheres, haja vista o poderio de “sedução” das
mesmas (ENRENREICH; ENGLISH, 1984, p.13).
A inquisição conseguiu frear o avanço do conhecimento das mulheres, de
conformidade com os interesses da hierarquia patriarcal. E o sistema penal
inquisitivo, que apresenta como característica fundamental a concentração de
funções na mão de uma só pessoa, seria o que melhor para atender a tal finalidade.
Afinal, o juiz inquisidor era o gestor da prova, buscando confirmar o que já pensava
sobre o fato quando deu início ao processo.
Cabe reforçar que a efetividade do sistema inquisitivo na Idade Média teve o
necessário apoio da Igreja Católica, que, entre outras razões, com receio da perda de
poder para as práticas “hereges” das mulheres que buscavam um conhecimento que
até então sequer a própria Igreja dominava, viu na caça às bruxas uma forma de
neutralizá-las.
Para cumprir tal desiderato, veio à tona a trama “A noiva do Diabo”, uma
contribuição da Igreja para os inquisidores, de forma a induzir as mulheres –
majoritariamente religiosas – a denunciar umas às outras, numa tentativa de busca
pela salvação que só seria possível pela confissão. Mas, em seguida, vinha a morte
cruel, que era feita por decapitação ou, mais comumente, queimando-as vivas na
fogueira.
Não restam dúvidas de que o sistema inquisitivo, em união com a Igreja e a
sociedade hierárquica patriarcal, perseguiu e executou, prioritariamente, as
mulheres, após torturá-las, com a finalidade de servir de exemplo (KRAMER;
SPRENGER, 2017, p. 308).
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7 CAÇA ÀS BRUXAS: A PRÁTICA ATUALMENTE
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As similaridades na perseguição que acontecia no século XV ocorrem nos dias
atuais. Silvia Federici (2019, p. 64) refere que as mulheres sempre tentaram
controlar sua função reprodutiva. Isto é observado nas numerosas referências ao
aborto e ao uso feminino de contraceptivos, bem como nas “poções de esterilidade”
nas penitenciárias, por exemplo.
A atualidade da discussão sobre o controle reprodutivo e métodos
contraceptivos é indiscutível. Uma das maiores pautas da atualidade gira em torno
da descriminalização do aborto. A conexão entre o controle corporal e o alicerce
econômico não é compreendida de imediato por parcela majoritária da população.
Entretanto, torna-se necessário o destaque para essa correlação. O corpo feminino
passa a servir como ferramenta de apoio para o modelo econômico, pois o contrato
social que consolidou a criação do Estado nada mais é, segundo Carole Pateman
(1993, p.28), do que um contrato sexual-social, isto é, o direito patriarcal masculino
de exercer poder sobre a mulher é legitimado através do pacto realizado entre a
sociedade civil e os direitos políticos.
Há uma redução do valor da mulher, considerada ainda em muitas
sociedades, como meras reprodutoras, meros ventres, o que torna o papel da mulher
limitado, assim como foi nos séculos passados. E faz com que as que tomem posições
diferenciadas tornem-se alvos fáceis de atitudes nocivas (FEDERICI, 2019, p. 37).
Essa concepção, até “atávica”, explica em parte a aversão emblemática ao pleito do
aborto voluntário em vários segmentos sócio-religiosos. A temática do aborto passa
a compor não a pauta da autonomia da mulher, da saúde pública, mas a demarcação
de terreno. Daqui não se deve ousar passar. É proibido, é imoral. E os que defendem
essa pauta sofrem até agressões pessoais, mesmo na contemporaneidade. Trata-se
de um assunto sensível. E mesmo nos países onde a legislação já contemplou o
aborto voluntário, houve e ainda há muitos percalços e tentativas de retrocesso.
Nenhum outro tema disputa tanta polêmica, por exemplo, na sociedade norte-
americana. E esse posicionamento é replicado em outros países (DWORKIN, 1989,
p. 49). Ou seja: não foi ainda assimilada a noção de que o corpo da mulher lhe
pertence plenamente.
São encontradas ainda hoje, portanto, novas e antigas formas de caças às
bruxas em muitas partes do mundo, como na África e na Índia. Mulheres estão
novamente sendo acusadas de bruxaria, literalmente sendo torturadas e mortas
216
(FEDERICI, 2019). Tudo conectado com as novas formas de acumulação de capital,
as novas formas de trabalho, a privatização da terra, o ataque às relações
comunitárias. Tal processo se dá, por exemplo, com a chegada de ‘o novo
missionário’. São grupos pentecostais evangélicos, que usam da temática do diabo,
induzindo que as pessoas são pobres porque são bruxas. Assim, estão contribuindo
e trabalhando para o desmantelamento de comunidades.
O Estado, na atualidade, exerce o papel dos antigos inquisidores no que concerne ao
controle e julgamento da sexualidade, da reprodução feminina.
Os mecanismos de repressão ainda continuam na identificação da figura
feminina, enquanto louca desadaptada ao seu status. O recurso a ideologias
religiosas, por meio da temática demoníaca, é recorrente, para que comportamentos
culturais sejam vistos como satânicos. Na sociedade pós-moderna pode-se reiterar
o pensamento de que, embora tenham se passado mais de 500 anos, o epíteto de
bruxa ainda não foi inteiramente separado da figura feminina, havendo, assim,
outras formas de bruxaria nos dias atuais.
217
O feminismo se apresenta frente a este tema justamente como forma de
resgatar a verdadeira imagem das bruxas, e não aquela difundida, por vezes, em
filmes e na literatura. E para tal fim, analisa não somente os aspectos religiosos, mas
também os aspectos políticos e sociais que envolveram as bruxas da Idade Média.
Na visão feminista, tais mulheres pagãs, bruxas “noivas do diabo”, exerciam
uma contrarreação frente à estrutura política e religiosa da época, de modo a
afrontar o patriarcado e o poder da Igreja por meio de sua atuação nas comunidades,
dos seus conhecimentos medicinais e de sua curiosidade sobre a sexualidade
feminina.
É patente que essas mulheres que foram mortas na inquisição foram vítimas
do patriarcado (ALAMBERT, Ano II: 48). Foram condenadas por serem unicamente
mulheres (LOVELACE, 2018). Nesse raciocínio, dizia-se, ainda, que a mulher era
inferior ao homem em decorrência dos “perigos da carne”, pois o prazer sexual era
condenável e a mulher era considerada mais vulnerável aos prazeres
“mundanos”. Até hoje, é algo de que as mulheres são vítimas. Mesmo nos dias atuais,
em pleno século XXI, as denominações pejorativas atribuídas às mulheres apenas
adquiriram variantes, bem como a forma de punição, visto que segundo pesquisa
realizada pelo Datafolha, nos 27 estados da federação brasileira no ano de 2019 foi
atingido o marco de 1.310 mulheres mortas vítimas de violência doméstica ou por
sua condição de gênero. Isto quer dizer que, de acordo com os registros oficiais, três
a quatro mulheres são assassinadas diariamente no Brasil, em sua maioria vítimas
de seus companheiros e ex-companheiros (BRAGON; MATTOSO, 2020).
Punições jurídicas e sociais são aplicadas às mulheres que destoam do
pensamento imposto pela sociedade por apresentarem condutas que não condizem
com as normas impostas pelo Estado ou pela sociedade em que vivem. Tudo, ainda,
semelhante ao que ocorreu durante a Idade Média. A criminalização do aborto, por
exemplo, possui ligação direta com o estigma da bruxa medieval, no sentido de que
a forte atuação da igreja Católica e do cristianismo como um todo impõe diretrizes
para serem adotadas pela sociedade de modo a influenciar na legislação (FARIAS,
2019, p. 171). Por outro ângulo, há a manutenção do domínio masculino em
praticamente todas as esferas da vida e uma inexplicável passividade da população,
consubstanciada em tratar a mulher como um objeto, no sentido de justificar as
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agressões verbais e físicas das quais as mulheres são vítimas, invertendo assim os
papeis do “culpado” e da “vítima”.
Essa cultura supremacista e sexista faz com que a mulher continue esboçando a
representação do “mal” e da “culpa”. Hoje não mais justificadas em figuras
apocalípticas como na Idade Média, mas sim na própria realidade. Por consequência,
continuam as mulheres sendo as “bruxas” e queimadas na fogueira da intolerância
machista diariamente, desde cada assovio aparentemente inofensivo ao atravessar
a rua até casos extremos de relacionamentos abusivos, com violência sexual e morte.
Conclui-se este artigo com a afirmação de que o simbolismo das bruxas
representa para o movimento feminista não somente resistência, mas também a
rebeldia na busca de novos horizontes emancipadores. As adversidades se
multiplicaram ao longo da trajetória das mulheres e ainda existem. Amanda
Lovelace (2018, p. 35) adverte no sentido confortador de que quando uma árvore
pega fogo, não demora muito para que toda a floresta esteja em chamas. O fator
multiplicador da conscientização, da comunicação para o conhecimento das
condições de contorno, em que se encontra a fase atual de reação das mulheres são
recursos relevantes para o processo da sua emancipação no mundo todo.
REFERÊNCIAS
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(110 min.)
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Comercial, Ano II, n° 48.
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