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MONÓLOGO INTERIOR E FLUXO DE CONSCIÊNCIA

Clarice desenvolveu um estilo literário ímpar. Com livros marcados por singularidades e
inovações lingüísticas, a escritora encabeça a lista dos que mais incorporaram traços inéditos à
literatura nacional.

A ficção clariceana se concentra nas regiões mais profundas do inconsciente, ficando em


segundo plano o meio externo, pois quase tudo se resume à mente das próprias personagens.
Portanto, Lispector é o principal nome de uma tendência intimista em nossa literatura. O ser, o
estar no mundo, o intimismo formavam o eixo principal de questionamentos tecidos em seus
romances introspectivos. Não centra sua obra no social, no romance engajado, mas sim no
indivíduo e suas mais íntimas aflições, reproduzindo pensamentos das personagens.

Artifício largamente utilizado por James Joyce, Proust e, sobretudo, Virgínia Woolf [indico ao
lado livro da escritora inglesa], o fluxo da consciência marca indelevelmente a literatura de
Clarice. Tal aspecto consiste em explorar a temática psicológica de modo tão profundo que o
assunto nunca é completamente explorado, ou seja, as diversas possibilidades de análise
psicológicas e a complexividade da temática contribuem para a inesgotabilidade do assunto. O
fluxo da consciência indefine as fronteiras entre a voz do narrador e a das personagens, de
modo que reminiscências, desejos, falas e ações se misturam na narrativa num jorro
desarticulado, descontínuo que tem essa desordem representada por uma estrutura sintática
caótica. Assim, o pensamento simplesmente flui livremente, pois as personagens não pensam
de maneira ordenada, mas sim de maneira conturbada e desconexa. Portanto, é a
espontaneidade da representação do pensamento das personagens que caracteriza o caos de
tal marca literária.

O monólogo interior é outro artifício utilizado por Clarice que contribui para a construção da
atmosfera introspectiva. Essa técnica consiste em reproduzir o pensamento da personagem
que se dirige a si mesmo, ou seja, é como se o “eu” falasse pra si próprio. Registra-se,
portanto, o mergulho no mundo interior da personagem que revela suas próprias emoções,
devaneios, impressões, dúvidas, enfim, sua verdade interior diante do contexto que lhe é
posto.

Heitor Nogueira, 2009.

http://esteticaliteraria.blogspot.com/2009/01/clarice-lispector-estilo.html

<As características do fluxo de consciência>

O conceito de “fluxo de consciência” foi cunhado por William James e se referia ao


turbilhão de pensamentos na mente consciente, isto é, toda a gama de impressões,
sensações, raciocínios que se desenrolam em nível superficial.

A definição básica de William James é a seguinte:

"O primeiro e mais importante fato concreto que cada um afirmará pertencer a sua
experiência interior é o fato de que a consciência, de algum modo, flui. “Estados
mentais” sucedem-se uns aos outros nela. Se pudéssemos dizer “pensa-se”, do
mesmo modo que “chove” ou “venta”, estaríamos afirmando o fato da maneira
mais simples e com o mínimo de presunção. Como não podemos, devemos
simplesmente dizer que o pensamento flui." (JAMES, William. The Stream of
Consciousness. 1892)

E William James ainda enumera quatro características deste fluxo mental: 1 – cada
estado tende a ser parte duma consciência pessoal; 2 – dentro de cada consciência
pessoal os estados estão sempre mudando; 3 – cada consciência individual é
sensivelmente contínua e 4 – é interessada em algumas partes de seu objeto em
detrimento de outras, e acolhe ou rejeita – escolhe-os, numa palavra – o tempo
todo.

A grosso modo, o que se propõe é que a consciência está em constante mutação,


ininterruptamente, concentrado-se sobre determinadas impressões e sensações,
enquanto ignorando outras.

A primeira aplicação óbvia na Literatura é através dum narrador em primeira


pessoa, que expõe seus pensamentos e vivências numa sequência contínua e
abrupta, alternando seu foco de acordo com a corrente mental.

<A revolução joyceana>

Poucos autores enfeixaram tanto as propriedades do mundo moderno quanto James


Joyce. Este autor irlandês, que viveu grande parte de sua vida no exílio, introduziu
na Literatura um novo universo de possibilidades estéticas, temáticas e linguísticas,
digerindo a tradição e abrindo as portas para toda uma geração futura, que
encontraria em Joyce a inspiração para inovar.

E o grande diferencial de Joyce foi justamente a apropriação do “fluxo de


consciência” como técnica narrativa, que também ficaria conhecido como
“monólogo interior”, quando os pensamentos do personagem são apresentados, de
maneira ilógica, ao contrário do solilóquio, quando um personagem expõe oral e
logicamente suas reflexões.

Na antologia de contos “Dublinenses”, James Joyce realizou os primeiros


experimentos com esta forma, mas ainda com timidez.
Mas foi em seu primeiro romance, “Retrato do artista quando jovem”, que narra a
juventude de Stephen Dedalus e seu processo de ruptura com a Igreja Católica e
com o provincianismo dublinense, que Joyce realmente desenvolveu a sua técnica
de “fluxo de consciência”, cujo ápice se deu no romance “Ulisses”, publicado em
1922.

Numa espécie de releitura do enredo da “Odisseia” de Homero, “Ulisses” é a


história do anti-herói Leopold Bloom, que vaga pelas ruas de Dublin atormentado
pela suspeita de que sua esposa o trai, mas sem coragem para tomar atitude.
Nesta obra, James Joyce apela para vários recursos narrativos, desde o monólogo
interior, passando por um narrador onisciente em terceira pessoa, até a estrutura
dramatúrgica. O autor transita por estes vários registros estilísticos, eliminando os
limites do gênero romanesco, e também une a fala da rua e dos bares ao mais
sofisticado discurso teórico.

“Ulisses” tenta abarcar a totalidade do mundo através da linguagem, e isto passa


necessariamente pela dissecação da mente dos personagens. Três momentos
antológicos do romance são também três grandes monólogos interiores, ou “fluxos
de consciência”: o primeiro deles ocorre no terceiro capítulo e se passa na mente
de Stephen Dedalus (o mesmo personagem de “Retrato do artista quando jovem”);
o segundo deles no quarto capítulo, no qual Leopold Bloom é mostrado em sua vida
cotidiana, despertando e saindo para comprar o café-da-manhã; e o terceiro deles
é o gigantesco monólogo interior, sem sinais de pontuação e com pouquíssimos
parágrafos, que encerra o livro e se trata dos pensamentos da esposa de Leopold,
Molly Bloom.

O biógrafo Richard Ellmann, em seu livro “James Joyce”, afirma que o


desenvolvimento da técnica joyceana de “fluxo de consciência” ocorreu
acidentalmente. Joyce era professor de inglês em Triste, na Itália, e um de seus
alunos, o também escritor Italo Svevo, tinha dificuldade para pontuar suas
redações em inglês, escrevendo assim um texto contínuo. Joyce teria achado
engraçada esta peculiaridade, mas logo percebeu as implicações literárias duma
estrutura como esta, adotando-a em sua escrita quase imediatamente.

<Outros fluxos de consciência>

Paralela e simultaneamente a Joyce, vários outros autores também mergulhavam


neste turbilhão interior das psiques de seus personagens, fossem eles influenciados
pelos trabalhos de Freud, Jung ou Henri Bergson.

Na França, o grande expoente foi Marcel Proust e sua monumental obra “Em Busca
do Tempo Perdido”, dispersa em vários volumes e relatando, de maneira bastante
pessoal e autobiográfica, as rememorações do narrador, Marcel, desde a infância
até a idade adulta.
Na Inglaterra, Virginia Woolf experimentava novas formas narrativas através de
enredos cotidianos ambientados nos círculos da alta classe média britânica.
Enquanto que, nos EUA, o fluxo de consciência apareceria nos trabalhos de
Faulkner e T. S. Eliot.

O impacto desta técnica narrativa foi avassalador. Ela se disseminou entre os


autores das gerações seguintes, perpassando todo o movimento modernista da
década de 20 e chegando até os nossos dias, acolhida pelos arautos da pós-
modernidade.

A lista de autores que namoraram “o fluxo de consciência” é imensa: Albert Camus,


Hermann Hesse, Salinger, Samuel Beckett (herdeiro direto de Joyce), William
Burroughs e vários outros autores da geração beatnik, Milan Kundera, Julio
Cortázar e alguns outros escritores do Boom latino-americano.

O Brasil também possui os seus representantes, como Clarice Lispector, Paulo


Leminski, Graciliano Ramos e Guimarães Rosa, para citarmos alguns, dentre
inúmeros autores contemporâneos, que se munem deste mergulho ao íntimo do ser
humano para expressarem o assombro dum sujeito cindido, desorientado,
esmagado pela rapidez da era digital.

https://www.recantodasletras.com.br/teorialiteraria/1657679

http://gilbertoscarton.blogspot.com/2016/01/guia-de-producao-textual.html

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