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Resumo: O presente trabalho parte da obra da renascentista Louise Labé, que viveu
durante o século XVI, na cidade francesa de Lyon, para compreender como são representados
o feminino e o masculino em sua narrativa. Esta autora designa à ʺFolieʺ (loucura) como uma
deusa que apesar de louca é muito sábia e o ʺAmourʺ (amor) como um jovem deus audacioso
e pretensioso. Dentro desta narrativa ambos se confrontam, entretanto a deusa mais velha,
mostra ao rapaz, como é ela que o move, como é ela que o guia, estabelecendo, entretanto,
que ambos necessitam um do outro. Dado os papéis atribuídos aos personagens e seus
discursos, pretende-se perceber o entrecruzamento da sua visão de mundo e sua narrativa que
estabelece conexão com o feminino e suas ações enquanto sujeito.
Antes de mais nada, se faz necessário colocar que o trabalho aqui apresentado, faz
parte de uma pesquisa em curso, cujas reflexões devem ser percebidas como resultados de
incursões ainda parciais.
A pesquisa que venho produzindo, a partir da observação da obra da escritora lionesa
Louise Labé, procura compreender, através da narrativa da autora, seu entorno sociocultural e
desta forma observar as relações sociais entre os sexos. Assim, cabe uma breve apresentação
da autora e de seu contexto.
Durante o século XVI, marco temporal famoso pelas discussões quanto às artes,
filosofias, ciências, conhecido como Renascimento, refletiu-se, também, acerca do papel das
mulheres em relação à penetração destas nas diversas esferas (como, por exemplo, política,
econômica, religiosa – ilustrada pela grande quantidade de escritos que tratam de alguma
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Mestranda na Universidade Federal de Pelotas, bolsista FAPERGS . E-mail: lulusmotta@gmail.com
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O respectivo trecho ocorreu por livre tradução de autoria própria e será, a partir de agora, apontado pelas siglas “T. A”,
constando nas notas os trechos que se referem à transcrição da obra, feita a partir do original do ano de 1555, como
apresentado a seguir, na fala do deus Amor: “& toy femme inconnue, oʃes tu te faire plus grande que moy? Ta ieuneʃʃe, ton
ʃexe, ta façon de faire te demĕtent aʃʃez” (Louise Labé, 1555, p. 10) (T. A.).
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Anais do XIV Encontro Estadual de História - Tempo, memórias e expectativas, 19 a 22 de agosto de 2012, UDESC, Florianópolis, SC
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Arlette Farge e Natalie Zemon Davis, em sua introdução no livro a “História das Mulheres: Do Renascimento à Idade
Moderna”, levantam a questão, discorrendo sobre o que se convencionou chamar de Querella das Mulheres - ou dos sexos -
como explicita, também, Margaret King, em seu livro sobre as “Mulheres Renascentistas e suas buscas por espaços”. Tais
passagens expressam, de forma direta ou indireta, como o tema foi amplamente debatido no final do século XVI e durante o
século XVII (FARGE;DAVIS, 1991). Cabe ressaltar, é claro, que tais discussões existiram antes desses períodos, como na
obra da autora Christine de Pisán e seus debates com contemporâneos, e acabaram por se manter até mais tardiamente, em
produções de escritores iluministas (KING,1993).
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Esta foi a principal, mas não a única razão de tal polêmica, como já foi dito anteriormente. Até porque, as questões sobre
tais capacidades intelectuais inseriram-se juntamente com as discussões acerca da capacidade das mulheres de governarem
(onde Igreja, Universidades e o próprio Estado tomavam partido de um outro discurso – como se percebe em suas leis que
não permitiam direitos similares para homens e mulheres). Obviamente, como prática dominante, esses questionamentos
recairiam sobre o exercício de um poder político destas sobre os homens, que lhes seriam “superiores” (KING, 1991). Assim,
dentro desse universo europeu ocidental, havia, por um discurso institucionalizado, a marginalização em relação a realizações
de certos ofícios, que não deveriam caber ao feminino. O que se insiste aqui, é que a visibilidade dessa rejeição, que
contestava a inteligência feminina, pode ser mais bem apreendida dentro do próprio âmbito da produção intelectual, que
constrói, ao mesmo tempo em que reproduz, determinados tipos de saberes em relação às mulheres da época. Como
exemplo, menciono um personagem bastante enaltecido por suas discussões filosóficas, Aristóteles, que também é utilizado
para justificar discursos que inferiorizam o sexo feminino, devido às suas considerações bastante negativas sobre a
passividade na mulher, mesmo na reprodução, relegando-a, sem princípios empiristas quaisquer, à subordinação e sujeição à
sociedade (SANTOS,1996, p.363).
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É preciso ressaltar, que nos debates ocorridos sobre a questão das mulheres e seus papéis, teve papel importante alguns
teólogos humanistas, que abriam o campo da discussão, se posicionando tanto a favor quanto contra a algumas reivindicações
de espaço destas (como Cornelius Agrippa, Guillaume Postel, François Billon, entre outros).
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Lembrando que tal ausência nem sempre foi o resultado de uma “não-expressão”, já que, como o autor citado acima
ressalta, tais expressões foram dignas de enormes relatos que denunciavam a “tagarelice” como um grande “defeito” das
mulheres (DUBY, 1990). Além disso, o fato de não termos algumas fontes à nossa disposição, dentre outros motivos, é
também resultado de períodos em que estas produções femininas não foram consideradas interessantes para serem
preservadas em acervos, visto que estes lugares, produtos de concepções e determinados valores, mantém apenas o que suas
sociedades consideram como “documento digno” de conservação.
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Faço aqui referência à autorização recebida para a publicação de livros.
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Defendo que a história tem de se preocupar com as diversas versões que os indivíduos produzem de suas realidades. Disto
decorre que o engajamento ou preocupação social de uns não deve ocupar o lugar de elaboração de um discurso histórico
“oficial”. Assim, como é de fácil entendimento que se produza história social a partir “de baixo”, como, por exemplo,
utilizando fontes que “operários” produziram sobre suas lutas e negociações, torna-se crível que há importância em se
produzir história a partir desse outro que é o feminino, ainda que devamos, muitas vezes, compreender e/ou lidar com o
silêncio das fontes.
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Ver: KANGUSSU, Imaculada. A Disputa de Amor e Loucura, segundo Louise Labé. Artefilosofia. Ouro Preto, n. 1, p. 56-
69, Julho, 2006.
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Vale ressaltar, que diante da escolha desses deuses apresentados como feminino
(Folie) e masculino (Amour), serve como importante consideração, a compreensão de que no
francês moderno estas palavras pertenciam a um gênero designado como substantivo neutro10.
Assim, a construção desses personagens, na forma que a autora propõe, que coincidirá com a
classificação de gênero atual (ou seja, “a deusa loucura” e “o deus amor”), não fez parte da
lógica gramatical da época. Seja por influência dos escritos do período, seja por afirmar neles
certos estereótipos11, que busco aqui compreender, podemos concluir que sua construção
“generificada” não foi acidental ou natural 12.
Dentro de seu estilo, podemos elencar que possui influências de Platão (quanto à
forma que constrói sua argumentação) e Petrarca – pelo formato dos sonetos e seus elementos
de antíteses (KANGUSSU, 2006) -, onde seu texto é produzido através do diálogo entre os
personagens, se assemelhando a um roteiro teatral. Esse tipo de construção possibilita a
exposição de diversos elementos argumentativos, o que também permite uma criação dialética
expondo, ao final, um resultado concluído “pelos personagens” (obviamente através deles)13.
Dentro dos papéis atribuídos na sua narrativa, há elementos muito característicos,
onde se verificam aspectos mundanos, mesmo em seu panteão de deuses. Isto é, alinha-se
com o conhecimento da cultura greco-romana. Porém, suas referências delimitam papéis um
tanto quanto diversos aos dois personagens principais. Em seu diálogo, nos é dado a conhecer
como o deus Amor/masculino, se posiciona como tolo. Já, Loucura/feminina, que deveria
pertencer, pelo senso-comum, a uma postura mais irracional, alicerça suas ações com
inteligência e eficácia. Como no trecho a seguir:
Loucura [diz ao Amor]: Você não tem nada além que o coração: a vida está
governada por mim. Tu não sabes os meios necessários para agir. E para declarar
aquilo que deverás fazer para satisfazer, eu te moverei e conduzirei: e não te
servirão teus olhos, não mais que a luz a um cego.
10
Ver: CÔRREA, Roberto A. &. STEINBERG, Sary H. Gramática da Língua Francesa. 3ª Ed. e 3ª tiragem. Rio de
Janeiro: FAE, 1990. P. 34
11
Estereótipo, aqui, refere-se a imagens simplificadas de objetos sociais - algo como uma caricatura. Embora, o estereótipo
esteja geralmente associado a uma atitude negativa, cabe salientar que é tratado aqui como o estabelecimento de atitudes ou
comportamentos padrões que determinados grupos de indivíduos incidem sobre seus elementos, tendo por base uma
generalização, que, obviamente, nem sempre condiz com as especificidades das múltiplas realidades. A formação e
reprodução dos estereótipos girariam em torno, então, do imaginário dos indivíduos sobre os elementos de sua sociedade.
12
Principalmente a partir dos anos 1970, com contribuições diversas de estudos realizados pela Escola Canadense de
Tradução, começa-se a pensar a linguagem como lugar de influência na produção e reprodução de hábitos, em relação,
inclusive, à exclusão social e política das mulheres. Percebe-se que, “através de sua escrita [da linguagem], de sua produção
literária interveem no seio mesmo da instituição patriarcal, de seus símbolos e de seu imaginário, pois a língua, enquanto
instituição ‘é um local de exercício de poder e o alvo de ataques de facções’”(DÉPÊCHE, 2003).
13
Aliás, através da escolha de construção do texto por diálogos (ou sermo uiuens), é possível “superar a dificuldade de se
comunicar conceitualmente a experiência de limites. (...) costuma ser mais potente, dada a sua capacidade de produzir afetos,
do que argumentos desencarnados. Platão que sempre colocou suas palavras em lábios alheios sabia disso” (KANGUSSU,
2006).
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(...)[Narradora:] Loucura tira os olhos de Amor .
amor, apresenta-se um jogo que distingue grupos sociais, onde esses escritos colocam seus
personagens a capturarem as donzelas, não pela força, mas pelas palavras e carícias, e isso
designaria as qualidades de um cavaleiro que o distanciaria de um guerreiro boçal,
transformando o cavaleiro em cavalheiro (DUBY, 1989). Esse tipo de amor é uma postura
diferente: ele é essencialmente um amor carnal. Já Rivair Macedo apresenta-nos, em um de
seus trabalhos, a probabilidade, também referente à Idade Média, quanto ao amor possuir
conotação ao mesmo tempo afetiva e jurídica “revelando tanto os sentimentos recíprocos
quanto os compromissos partilhados”(MACEDO, 1999).
O amor da Idade Moderna, ainda que permaneça confundido entre sexo e prazer,
aparece em muitas situações como um sentimento puro, dedicado a Deus, aos filhos, aos
governantes, e essa distinção enquadra o amor em um grupo mais nobre, dentro da existência
humana, situando-o entre aqueles que são controlados pela razão. E essa confusão
permaneceria admitindo algumas variações.
Quanto a aparência do deus amor, há no período renascentista, referências numerosas
de um deus cupido, que, com suas flechas, acerta os corações dos deuses e dos homens, como
no Roman de la Rose, provavelmente dos escritores Guillaume de Lorris e Jean de Meun
(RÉGNIER-BOHLER,2009). Essa asserção, embora nos leve a lançar a hipótese de que a
base de apresentação do personagem Amour possui influência de leituras contemporâneas à
nossa autora, permite-nos inferir, mais fortemente, que esta “generificação” de tal deus, não se
fez ao acaso.
Porém, quanto à Folie, o significado ou a percepção deste termo teria preservado
algumas designações. No famoso estudo sobre a loucura, de Michel Foucault, vemos esta
associada a uma espécie de doença, uma doença perigosa, que deve ser vigiada e controlada,
sendo a modernidade responsável por criar lugares para a sua contensão (FOUCAULT, 1978).
Contudo, Foucault ressalta que essas vozes muitas vezes malquistas, em momentos de
desespero são tidas como mais sábias que a própria sabedoria. Sugerindo situações em que se
pensariam estas vozes, as do louco e sua loucura, como se se posicionassem a frente de seu
tempo, como que sábios oráculos, ajudando a decifrar códigos. E, embora nunca
verdadeiramente inclusas, são em algum momento escutadas (FOUCAULT, 1971).
Ainda sobre este tema, podemos pensar, a partir de outros estudiosos da Renascença,
que a Loucura possui importantes significados sociais, como nos estudos de Danielle Régnier-
Bohler sobre Amadas et Ydoine. Neste estudo, observamos que esta palavra está associada à
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ação contra os costumes ou fuga de uma coletividade, isolamento que se realizaria sem
motivação ou perigo latente, onde só um tolo cometeria tal ato contra si mesmo, ou seja, ser
livre ou solitário carregava-se do mesmo signo de “louco”16.
Apesar dessas designações, em Labé, Loucura é encaminhada a um diálogo
extremamente articulado. Do mesmo modo, isto reflete não apenas os limites da razão, como
já foi exposto, mas, também, um agir mais elaborado da mulher, levando em conta a
“feminização” desta personagem, que se afirma enquanto Dama. Aliás, para tornar mais
visível essa caracterização, podemos vislumbrar uma passagem em que defende-se como
muito respeitável, não podendo ser sua figura passível de ultraje por jovens presunçosos:
Assim se castiga os jovens e presunçosos como tu. Ah que temeridade uma criança
de se endereçar a uma mulher e lhe injuriar e ultrajar com palavras: depois
encaminhar-se para tentar, com mácula, mata-la 17 [grifos meus].
Como podemos ver, faz duas menções bastante significativas sobre sua posição:
primeiro, contrapõe sua identidade contra a de jovens, afirmando-se enquanto mulher, que
deve ser respeitada. Depois, pronuncia-se sobre o castigo aplicado, o que, note-se, sustenta a
característica da mulher que trama (o estereótipo de Eva). Entretanto, impõe o caráter de que
se faz independente, e que age por estar fundamentada em defesa de sua própria reputação.
Ou seja, possui um saber onde articula com lógica e racionalidade suas atitudes18. Tal postura
fica ainda mais explícita na citação a seguir:
Folie: Deixe-me ir, não me arraste a este ponto, porque te será vergonhoso brigar
gananciosamente com uma mulher. E se tu me exaltares mais uma vez, tu não
obterás a melhor.
(...) Folie: Tu mostras bem a tua falta de discernimento, tomando como mal o que eu
te faço por brincadeira: e tu não conheces bem a ti mesmo, revelando maldade
quando eu pensei que teria do melhor, se tu se dirigisses a mim. Você não vê que
você é apenas um jovem garoto? De fraco tamanho que quando eu levantar um
19
braço heroicamente, se não desistires, eu vencerei .
Como podemos perceber a partir da lente do Gênero, quando Folie diz ao jovem
deus, a quem dirige uma contenda, que se cale e que a respeite, dá margem a se pensar a
16
Quem houvesse fugido de sua cidade, poderia ser tido como louco, já que isso resultava num perigo a si mesmo
(RÉGNIER-BOHLER, 2009).
17
Folie: Ainʃi ʃe chatient les ieunes & preʃomptueus, comme toy. Quelle temerité ha (19) un enfant de ʃ’adrefʃer à une femme,
& l’iniurier & outrager de paroles: puis de voye de fait tacher à la tuer.(Louise Labé, 1555, p. 18-19). T.A.
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Principais itens que, como colocado anteriormente, geravam discussões polêmicas, sendo elencados elementos de discursos
diversos, mas que visavam ordenar o feminino a um lugar inferior quanto à sua intelectualidade.
19
Folie: Laiʃʃe moy aller, ne m’arreʃte point car ce te ʃera honte de quereler auer vne femme. Et ʃi tu m’eʃchaufes vne fois, tu
n’auras du meilleur.
(...)Folie: Tu montres bien ton indiʃcrecion, de prendre em mal ce que ie t’ay par ieu:& te meʃconnois bien toymeʃme
trouuant mauuais que ie penʃe auoir du meilleur ʃi tu t’adreʃʃ à moy. Ne vois tu pas que tu n’es qu’vn ieune garʃonneau? De
ʃi foible taille que quand i’aurois um bras lié, ʃi ne te creindrois ie gueres(Louise Labé, 1555, p. 10). T.A.
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posição de mulheres em relação ao lugar que ocupam numa hierarquia. Tal interação responde
com certa dose de humor à questão das relações de poder entre os sexos. Se de um lado, existe
uma literatura que posiciona o masculino acima do feminino, a colocação despretensiosa da
autora e outros estudos contemporâneos, nos permitem pensar como essa sociedade no
entorno de nossa escritora, funciona de forma menos determinante ou simplificada em relação
a atribuições de papéis. O jovem, perante uma mulher de mesma classe, que em nosso texto é
uma deusa, deveria calar-se, já que esta, pelas suas próprias inferências, se proclama mais
velha e mais sábia que ele.
É interessante pensar o contorno de ambos os personagens ao perseguir nossa
análise. A visão de Amour como jovem, arrogante e cego, que merecerá a ação disciplinadora
que Folie impõe a ele, pode ser percebida através de outro escrito de Labé, como
características que coincidem com o que pensa sobre os homens de seu tempo. Em uma
passagem de sua epístola dedicatória, Louise nos diz que os homens se equivocavam, quando
privavam as mulheres de obterem acesso ao conhecimento, e que quando as mulheres a isto se
dedicassem, causariam vergonha aos homens, pois estes perceberiam que elas os
ultrapassariam, não passando, enfim, tal postura de mera pretensão masculina de se verem
superiores (Louise Labé, 1555, p.3-4). Assim, a coincidência entre as características de Amor
e estas últimas informações, não parece ocorrer de maneira tão casual. Pelo contrário, parece-
nos que é possível que se imbrique no deus Amour um estereótipo de sua concepção do
masculino. Na verdade, ao relacionarmos os dois textos que possuem formatos diferentes, vê-
se que as características de ambos, misturam-se com as percepções que esta escritora tem de
sua sociedade e que, embora possuam alguma dose de subjetividade, pode nos ajudar a
entrever o real, já que aquilo que homens e mulheres do passado pensavam e sentiam sobre si
mesmos, e seu próprio tempo, também se constituem em objeto de interesse do pesquisador.
Aliás, na seguinte frase, podemos examinar melhor ainda suas expectativas:
Se alguma de nós logra colocar por escrito as suas ideias, que o faça com aplicação
e não desdenhe a glória, e se adorne com ela, mais do que com colares, anéis e
suntuosos vestidos (...) [e] não posso fazer outra coisa senão suplicar às virtuosas
Damas que elevem um pouco seus espíritos por cima de suas rocas e fusos, e se
dediquem a mostrar ao mundo, que se nós não fomos feitas para combater, não
devemos contudo ser desdenhadas como companheiras tanto nos negócios
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domésticos, como nos públicos . [grifos meus]
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FORTUNA, Felipe. Louise Labé. Editora Siciliano: SP, 1995, p.43.
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Ou seja, somados esses dois trechos, vemos como Loucura relaciona-se com a
produção do conhecimento, ainda que queiram relega-la a um lugar desonroso, parecendo
mesclar tanto a concepção mais acima, de que uma Dama deve perceber na produção de
conhecimento o lugar feminino e glorioso, estimulando-a à produção, como de que esta
loucura, que não deve ser vista como irracional, e sim como Dama honrável, produz o
conhecimento de diversas ciências. Nessas duas passagens, reconhece-se que o estereótipo de
Loucura pode portar também a defesa da figura feminina na esfera intelectual, sendo ainda
inspiradora e produtiva, pois, como vimos, Mércurio postula-a como Dama, a quem todos os
outros devem respeito, pelos seus enormes feitos.
Já no trecho abaixo, observemos como apresenta-se um determinado tipo de
masculinidade da época na expressão do que seria o poder do personagem Amor:
Não preciso de carroça, soldados, homens armados e grandes tropas, sem as quais
os homens não triunfariam lá embaixo. (...) Eu não tenho outras armas, conselho,
munição, ajuda, senão eu mesmo. Quando vejo os inimigos preparando a guerra, eu
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me apresento com meu arco: a batalha que surge é minha vitória certa .
21
Ibidem, p.133-5.
22
Ibidem, p.57.
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a Loucura guiará o Amor cego, e ela o conduzirá por onde lhe parecer
23
conveniente .
Como podemos observar neste trecho, o julgamento não termina, embora tenha
predominado a vontade da figura Folie em conduzir o Amour.
Assim, com essas sintéticas análises sobre a discussão trazida na obra de Louise
Labé, busquei mostrar aqui as ideias que a autora induze-nos a formular, através de seus
personagens, Amor e Loucura. Neles, parece-me, há um saber sobre a diferença sexual
socialmente produzida, onde seus escritos, e mesmo a própria autora, podem vir a refletir um
espaço diferenciado nesta época da querelle des sexes.
23
Ibidem, p.141-143.
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Renascimento à Idade Moderna. Vol. 3. Edições Afrontamento: Porto, 1991.
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Christiane. História das Mulheres no Ocidente: A Idade Média. Vol. 2. Edições
Afrontamento: Porto, 1990.
DUBY, Georges Idade Média, Idade dos Homens. Do amor e outros ensaios, SP:
Companhia das Letras, 1989.
FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica. Trad. José Teixeira Coelho
Netto. Ed. Perspectivas: São Paulo, 1978.
__________. L’Ordre du Discours. Leçon inaugurale ao Collège de France prononcée le 2
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KANGUSSU, Imaculada. A Disputa de Amor e Loucura, segundo Louise Labé.
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KING, Margaret L. Mujeres Renascentistas. La búsqueda de um espacio. Ed. Alianza
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Estudo Feministas. Rio de Janeiro, V. 4, n. 2, p. 355-381, 1996.
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