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RIOS
Resumo: O presente texto versa sobre as representações lésbicas na literatura de Cassandra Rios, conhecida
como uma das escritoras mais censuradas durante a Ditadura Civil-Militar, por meio de três personagens:
Andréa, Calíope e Débora, protagonistas em três romances da escritora. Tem por objetivo principal entender as
interpretações que pautaram as subjetividades das personagens lésbicas e para tanto norteia-se pelas seguintes
problematizações: a) discussão sobre a relação entre os campos da História e Literatura, sobretudo desta última
enquanto fonte para a historiografia; b) contextualização da obra de Rios, bem como apresentação da mesma; c)
identificação das representações das mulheres lésbicas no recorte temporal definido pela época de publicação
dos livros. Inserido no bojo das discussões sobre as convergências entre os campos da História e da Literatura, a
partir da perspectiva da História Cultural, o texto ancora-se no conceito de representação, a partir do referencial
do teórico Roger Chartier buscando uma análise interseccional. Tem como base as personagens protagonistas de
três romances, “As traças” (2005), “O gamo e a gazela” (1959) e “Tessa, a gata” (1968), em uma análise
documental e bibliográfica.
Palavras-chave: Cassandra Rios. Lesbiandades. Representação.
“Love that dare not say the name”: the lesbianity in Cassandra Rios
Abstract: This study deals with lesbian representations in Cassandra Rios' literature, known as one of the most
censored writers during the Civil-Military Dictatorship, through three characters: Andréa, Calliope and Débora,
protagonists in three novels of the writer. Its main objective is to understand the interpretations that guided the
subjectivities of lesbian characters and to do so it is guided by the following problematizations: a) discussion
about the relationship between the fields of History and Literature, especially Literature as a source for
historiography; b) contextualization of Rios' work, as well as its presentation; c) identification of lesbian
women's representations in the time frame defined by the time of publication of the books. Inserted in the midst
of discussions about the convergences between the fields of History and Literature, from the perspective of
Cultural History, the text is anchored in the concept of representation, from the theoretical framework of Roger
Chartier seeking an intersectional analysis. It is based on the protagonists of three novels, “As traças” (2005), “O
gamo e a gazela” (1959) and “Tessa, a gata” (1968), in a documentary and bibliographic analysis.
Keywords: Cassandra Rios. Lesbianity. Representation.
Por mais que existam tensões em torno dos limiares dos campos da História e
Literatura, em alguns momentos mais próximos, em outros mais distantes; em alguns
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A definição conceitual de pornografia é uma discussão em andamento, que não ousaria resumir aqui, bem como
as delimitações e diferenciações entre termos como “pornografia”, “erotismo” e “obscenidade”, sendo que há
autores que empregam os termos indiscriminadamente, como também há aqueles que estipulam um conjunto de
características para cada, sendo definíveis as fronteiras entre os conceitos. Contudo, a fim de operacionalizar a
análise, tomo/parto do entendimento de Norberg, que entende a pornografia moderna como “textos ficcionais,
sexualmente explícitos e que ignoram tabus sexuais” (NORBERG, 1999, p. 245), que é o entendimento que os
pareceres favoráveis ao veto de suas obras indiciam. Em outros termos, a percepção social à época sobre
pornografia estava diretamente ligada ao sexo e também ao nível de explicitude.
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De toda sua produção — novamente não há consenso, mas em média são atribuídos a ela, considerando os
demais pseudônimos, cerca de cinquenta títulos - apenas sete não são de temática homossexual: “O bruxo
espanhol”, “As mulheres de cabelos de metal”, “Carne em delírio”, “Sarjeta”, “O gigolô”, “A santa vaca” e “A
piranha sagrada” (VIEIRA, 2010, p. 108).
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Já no bojo do espectro das homossexualidades ou sexualidades não-normativas, há mais uma clivagem. Vieira
(2010, p. 108) afirma que apenas dois de seus romances de temática homossexual não contemplam romances
lésbicos: “Crime de honra”, centrada em um relacionamento homossexual masculino e “Uma mulher diferente”,
cuja protagonista é uma travesti.
momentos com limites mais definidos e em outros mais difusos, os campos partilham pontos
em comum, mas também são marcados por divergências. Talvez a maior dessas seja a
premissa básica para a escrita da História: para a História é imperativo que tudo tenha
acontecido. O “real acontecido”, inscrito em fontes — os vestígios da ação humana, ou ainda
marcas de historicidade, da “presença de uma ausência” — é a principal distinção junto à
Literatura. Estes índices do real, juntamente aos rigores do método, são impreteríveis para a
História.
A História, ao contrário da Literatura, não cria eventos ou personagens. À Literatura
não é compulsório o emprego de fontes para a elaboração da narrativa. A historiografia é uma
operação balizada pelo rastro. Contudo, não é este o foco da reflexão aqui proposta: aqui em
uma espécie de simbiose entre os campos, calcada no entendimento do campo literário
enquanto fonte para a historiografia.
Para Pesavento (2008, p. 74) a narrativa literária “opera como que janelas ou portas de
entrada para a compreensão de formas de agir, de pensar e de representar o mundo em uma
determinada época”. No momento em que se toma personagens como representantes de um
segmento da sociedade, parte-se do pressuposto de que
A literatura permite o acesso à sintonia fina ou ao clima de uma época, ao modo
pelo qual as pessoas pensavam o mundo, [...] quais os preconceitos, medos e sonhos.
Ela dá a ver sensibilidades, perfis, valores. Ela representa o real [...]. [...] o que é
recorrente em uma época, o que escandaliza, o que emociona, o que é aceito
socialmente e o que é condenado ou proibido? Para além de disposições legais ou de
códigos de etiquetas de uma sociedade, é a literatura que fornece os índices para
pensar como e por que as pessoas agiam desta e daquela forma (PESAVENTO,
2008, p. 82-83).
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A publicação do primeiro romance é uma saga à parte: ainda morando com os pais, Odette era proibida de
escrever, sobretudo por ser pai. Então escrevia às escondidas, durante as madrugadas, com uma máquina de
datilografar emprestada do dono da serraria. Mas esse não era o único obstáculo. As editoras recusaram seus
originais, restando como única possibilidade o financiamento próprio. Como um empréstimo junto aos pais
obviamente não era uma opção, ela consegue um emprego como secretária, em um escritório de advocacia.
Contudo, o fato de Rios trabalhar fora era motivo de tensões familiares. Assim, mãe e filha fazem um acordo
secreto: sem que o marido soubesse, dona Damiana emprestaria o valor da entrada desde que Odette se
demitisse. Contudo, havia mais um adendo: dona Damiana nunca leria o romance. Odette se demitiu e o livro foi
para a gráfica.
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A escolha possivelmente não foi aleatória: a influência dos gregos - desde filosofia até mitologia - é notável nas
obras: desde citações que permeiam momentos de reflexão nas narrativas até nomes de personagens. Cassandra
não é o único pseudônimo: Clarence Rivers e Oliver Rivier - Rios em inglês e francês respectivamente.
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Pelo livro ela foi condenada a um ano de prisão, que não foi cumprido.
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Não há consenso quanto ao número de títulos censurados: os arquivos da Divisão de Censura de Diversões
Públicas (DCDP), um dos órgãos oficiais da censura - é outro ponto a ser ressaltado: a censura não era velada,
ela era não apenas explicita, como dotada de mecanismos legais, dentre eles legislações - registra 21 títulos como
censurados, mas apenas 16 pareceres cujo parecer é pelo veto. Reimão (2014) traz 18 livros de autoria de
Cassandra Rios como censurados e uma reportagem do jornal Lampião da Esquina em sua quinta edição, de
outubro de 1978, menciona na manchete 36 títulos: “Com 36 livros proibidos ela só pensa em escrever”.
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Pesquisas indicam que os livros apreendidos eram destruídos, principalmente sob o método da incineração.
entre si — inclusive os que são associados quase que imediatamente a ela: a pornografia e a
lesbiandade. São estes dois eixos as principais razões da censura.
O que se constituía em algo “contrário à moral e aos costumes” é difuso, contudo dos
pareceres depreende-se dois elementos: sexo e existências não-normativas, sobretudo
existências lésbicas. Em primeira instância o sexo materializa-se em descrições sexuais,
principalmente devido ao “realismo” destas11, mas também pela abordagem do mesmo: o sexo
não era um meio para a reprodução12, mas sim um fim em si mesmo, como uma busca pelo
prazer13. E a segunda instância, encontra-se as lesbiandades 14, que por si só constitui matéria
por se tratar de sexualidade dissidente ou não-normativa.
Outra questão que se impõe é se as descrições das cenas sexuais. Nas vivências
lésbicas havia o componente sexual, ou seja, eram comtempladas descrições das relações
sexuais, não de maneira sutil, implícita — permeado por metáforas, por exemplo — ou velado
— marcado por insinuações: não era apenas explícito, como era detalhado — a um nível que
possivelmente chocava a sociedade -, como os fragmentos a seguir esclarecem:
Num passo calculado, Dafne jogou-a sôbre [sic] o sofá e beijando-a e tateando-a
com suas mãos nervosas e grandes, livrou-a ágilmente [sic] das calças; sem que
Calíope tivesse tempo para evitar ou mesmo perceber o que iria acontecer entre elas.
Dafne ajoelhou-se aos seus pés ao lado do sofá. Numa atividade completamente
estranha, louca, foi deslizando a bôca [sic] trêmula e pecaminosa pelas coxas de
Calíope, que ficou estarrecida, vítima daquele gesto vil e sem pudor. Mal pôde [sic]
gozar a sensação do êxtase, apavorada com aquele asqueroso procedimento de
Dafne, Calíope soergueu meio corpo apoiando os cotovelos no sofá, para certificar-
se de que não estava sendo vítima de uma alucinação satânica. E quase desfaleceu
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Os pareceres censórios da DCDP corroboram o fato em passagens como “[...] as descrições dos atos sexuais
são feitas nos mínimos detalhes [...]”, em parecer de 1978 sobre o livro “A Paranóica” e “[...] a descrição das
cenas [...] entre as personagens extrapolam qualquer limite de tolerância [...]”, sobre o livro “A Volúpia do
Pecado" em 1976. (BRUM, 2018, p. 58, grifos meus).
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Há de se considerar que o período era permeado por um conservadorismo calcado na religião, sobretudo cristã,
no qual o sexo era um meio para um fim, a reprodução. Sexo reprodutivo era o único aceitável. Então imaginem
relações sexuais cujo único fim era o gozo no bojo de um “amor não-natural”.
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Um trecho no qual o ideal de sexo é explicitado: “[...] fazendo da satisfação sexual o fim primeiro, seja qual
for o modo de realizá-lo, podendo levar o leitor a ficar excitado ou mesmo a esta prática.” (BRUM, 2018, p.
58, grifos meus), cujo parecer é pelo veto datado de 1976, sobre o livro “Macária”.
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Já sobre as lesbiandades, os pareceres também são explícitos: “[...] verdadeira apologia ao lesbianismo [...]. O
tema em si [...] justifica a interdição [...]” em parecer de 1976 sobre o livro “Marcella”; e “[...] tema central é
o homossexualismo feminino, apresentado de forma minuciosa e chocante, sendo que tal relacionamento é
valorizado pela autora como se fosse algo ‘fantástico e incomparável’ [...]”, trecho do parecer também datado
de 1976 sobre “A borboleta branca” (BRUM, 2018, p. 61, grifos meus).
horrorizando-se mais. Aquela bôca [sic] quente sugava-lhe a alma, bebia-lhe o
sêmem [sic] do pecado (RIOS, 1959, p. 150).
Eu tinha o cheiro dela na bôca [sic] e nos dedos. Nos ombros marcas de dentes.
Haviam sido mordidinhas leves que causaram prazer e que provavam agora que tudo
realmente acontecera. Alisei meus ombros com emoção. Aspirei forte meus dedos.
Disse baixinho o nome dela (RIOS, 1968, p. 53).
[...] vagarosamente foi estirando-se em cima dela. Andréa percebia o peso dela
aumentar e, depois, quando ela soltou em cima do seu corpo e começou a mover-se,
esfregando-se nela, atrevendo-se a outros impulsos, continuou atenta, deixando-a
deslizar as mãos por suas coxas, subirem, enfiarem-se pelo decote do vestido e
buscarem seus seios, afagando os biquinhos. [...] assanhou-se e sugou-lhe os seios
com sofreguidão. Estava escuro e era muito fácil continuar imaginando coisas que a
faziam vibrar. Rosana percebeu que Andréa estava se entregando, debruçou-se
inteira em corpo, apoiando-se sobre a perna fora do sofá, calcando o pé no chão; a
outra movimentando-se entre as coxas de Andréa (RIOS, 2005, p. 154-155).
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Joaquim Manoel de Macedo, com “As mulheres de Mantilha”, no final do século XVIII; Aluísio Azevedo com
“Condessa Vésper” e “O cortiço”, no final do século XIX e Lygia Fagundes Telles, contemporânea à Cassandra
Rios com “Ciranda de Pedra” cuja primeira publicação data de 1954 são exemplos de obras com personagens
lésbicas. Isso sem contar o poema de Gregório de Matos, “A uma dama que macheava outras mulheres”, ainda
no século XVII.
A conclusão constitui uma problemática em si mesma: “lésbicas” não constitui um
grupo homogêneo, pelo contrário. Cada sujeita é atravessada por diversos marcadores sociais.
A comunidade, ainda que sintetizada em uma letra em um acrônimo, é plural. Assim, a
importância em não pensar em uma categoria universal e universalizante. São diversos os
atravessamentos nela, mesmo se tratando de personagens ficcionais.
Já à guisa de conclusão, no momento em que se constrói uma representação, deve-se
assinalar que essa representação corresponde a um recorte da comunidade, sobretudo se
considerarmos os marcadores — e a partir disso, questionar a representatividade dessa
representação. Por mais que falamos de um mesmo gênero, de uma mesma orientação sexual,
as iniquidades nunca atingiram a todas em intensidades e frequências análogas, sobretudo
devido aos demais marcadores sociais. Por isso a importância dos plurais, não tendo uma via
determinista, porque por mais que para fins de análise elas foram sistematizadas em
categorias — considerando os marcadores sociais — cada personagem tem suas vivências e
suas peculiaridades de sua própria existência
Referências