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“AMOR QUE NÃO OUSAVA DIZER O NOME”: A LESBIANDADE EM CASSANDRA

RIOS

Roberta Knapik Brum1

Resumo: O presente texto versa sobre as representações lésbicas na literatura de Cassandra Rios, conhecida
como uma das escritoras mais censuradas durante a Ditadura Civil-Militar, por meio de três personagens:
Andréa, Calíope e Débora, protagonistas em três romances da escritora. Tem por objetivo principal entender as
interpretações que pautaram as subjetividades das personagens lésbicas e para tanto norteia-se pelas seguintes
problematizações: a) discussão sobre a relação entre os campos da História e Literatura, sobretudo desta última
enquanto fonte para a historiografia; b) contextualização da obra de Rios, bem como apresentação da mesma; c)
identificação das representações das mulheres lésbicas no recorte temporal definido pela época de publicação
dos livros. Inserido no bojo das discussões sobre as convergências entre os campos da História e da Literatura, a
partir da perspectiva da História Cultural, o texto ancora-se no conceito de representação, a partir do referencial
do teórico Roger Chartier buscando uma análise interseccional. Tem como base as personagens protagonistas de
três romances, “As traças” (2005), “O gamo e a gazela” (1959) e “Tessa, a gata” (1968), em uma análise
documental e bibliográfica.
Palavras-chave: Cassandra Rios. Lesbiandades. Representação.

“Love that dare not say the name”: the lesbianity in Cassandra Rios

Abstract: This study deals with lesbian representations in Cassandra Rios' literature, known as one of the most
censored writers during the Civil-Military Dictatorship, through three characters: Andréa, Calliope and Débora,
protagonists in three novels of the writer. Its main objective is to understand the interpretations that guided the
subjectivities of lesbian characters and to do so it is guided by the following problematizations: a) discussion
about the relationship between the fields of History and Literature, especially Literature as a source for
historiography; b) contextualization of Rios' work, as well as its presentation; c) identification of lesbian
women's representations in the time frame defined by the time of publication of the books. Inserted in the midst
of discussions about the convergences between the fields of History and Literature, from the perspective of
Cultural History, the text is anchored in the concept of representation, from the theoretical framework of Roger
Chartier seeking an intersectional analysis. It is based on the protagonists of three novels, “As traças” (2005), “O
gamo e a gazela” (1959) and “Tessa, a gata” (1968), in a documentary and bibliographic analysis.
Keywords: Cassandra Rios. Lesbianity. Representation.

Cassandra Rios possivelmente não é uma autora conhecida no contemporâneo, mesmo


tendo uma obra vasta. Contudo ela é uma personagem histórica interessante, principalmente
quando se considera os motivos pelos quais ela se tornou “conhecida”, ou melhor, que ela
“entrou para a História” — mesmo que sejam suas margens. Além de ser uma das mais
vendidas2 do período — décadas de 1960, 1970 e também 1980, ou seja, Ditadura Civil-
Militar — ela também foi se não a mais, umas das mais censuradas, e devido aos motivos da
1
Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), campus Chapecó-SC, Brasil.
2
Segundo uma edição da revista Realidade datada de 1970, ela chegou a um milhão de exemplares vendidos, à
época, números que, mesmo dentre os homens, apenas Jorge Amado e José Mauro Vasconcelos alcançaram
vendagens similares (BRUM, 2018, p. 44).
censura, considerada pornográfica3, a “Papisa do Homossexualismo”, “Rainha das Lésbicas”
e talvez alcunhas menos lisonjeiras, como “Escritora Maldita”. Isto devido à particularidade
da temática central de seus livros, principalmente considerando o possível paradoxo dado o
contexto de conservadorismo característico do período militar: Rios escrevia sobre
sexualidades não-normativas4, sobre tudo sobre lesbiandades: seus livros eram romances
lésbicos5.
Dada esta enigmática sujeita histórica, a reflexão debruça-se não apenas sobre Rios,
mas sobretudo suas personagens, mais especificamente três delas, buscando identificar as
subjetividades da representação. A reflexão proposta é um desdobramento de uma pesquisa
em andamento sobre a escritora Cassandra Rios, de cunho biográfico, abordada a partir de três
reflexões: relação entre os campos da História e da Literatura, principalmente tendo esta
última como fonte; apresentação de Rios, bem como caracterização de sua obra; e por fim,
análise das representações das personagens de três de seus romances que pautam lesbiandades
e cujas protagonistas se identificam como lésbicas ao se relacionarem afetivamente com
outras mulheres — “O gamo e a gazela”, “Tessa, a gata” e “As traças”.

Encontros e desencontros: a História e a Literatura

Por mais que existam tensões em torno dos limiares dos campos da História e
Literatura, em alguns momentos mais próximos, em outros mais distantes; em alguns

3
A definição conceitual de pornografia é uma discussão em andamento, que não ousaria resumir aqui, bem como
as delimitações e diferenciações entre termos como “pornografia”, “erotismo” e “obscenidade”, sendo que há
autores que empregam os termos indiscriminadamente, como também há aqueles que estipulam um conjunto de
características para cada, sendo definíveis as fronteiras entre os conceitos. Contudo, a fim de operacionalizar a
análise, tomo/parto do entendimento de Norberg, que entende a pornografia moderna como “textos ficcionais,
sexualmente explícitos e que ignoram tabus sexuais” (NORBERG, 1999, p. 245), que é o entendimento que os
pareceres favoráveis ao veto de suas obras indiciam. Em outros termos, a percepção social à época sobre
pornografia estava diretamente ligada ao sexo e também ao nível de explicitude.
4
De toda sua produção — novamente não há consenso, mas em média são atribuídos a ela, considerando os
demais pseudônimos, cerca de cinquenta títulos - apenas sete não são de temática homossexual: “O bruxo
espanhol”, “As mulheres de cabelos de metal”, “Carne em delírio”, “Sarjeta”, “O gigolô”, “A santa vaca” e “A
piranha sagrada” (VIEIRA, 2010, p. 108).
5
Já no bojo do espectro das homossexualidades ou sexualidades não-normativas, há mais uma clivagem. Vieira
(2010, p. 108) afirma que apenas dois de seus romances de temática homossexual não contemplam romances
lésbicos: “Crime de honra”, centrada em um relacionamento homossexual masculino e “Uma mulher diferente”,
cuja protagonista é uma travesti.
momentos com limites mais definidos e em outros mais difusos, os campos partilham pontos
em comum, mas também são marcados por divergências. Talvez a maior dessas seja a
premissa básica para a escrita da História: para a História é imperativo que tudo tenha
acontecido. O “real acontecido”, inscrito em fontes — os vestígios da ação humana, ou ainda
marcas de historicidade, da “presença de uma ausência” — é a principal distinção junto à
Literatura. Estes índices do real, juntamente aos rigores do método, são impreteríveis para a
História.
A História, ao contrário da Literatura, não cria eventos ou personagens. À Literatura
não é compulsório o emprego de fontes para a elaboração da narrativa. A historiografia é uma
operação balizada pelo rastro. Contudo, não é este o foco da reflexão aqui proposta: aqui em
uma espécie de simbiose entre os campos, calcada no entendimento do campo literário
enquanto fonte para a historiografia.
Para Pesavento (2008, p. 74) a narrativa literária “opera como que janelas ou portas de
entrada para a compreensão de formas de agir, de pensar e de representar o mundo em uma
determinada época”. No momento em que se toma personagens como representantes de um
segmento da sociedade, parte-se do pressuposto de que
A literatura permite o acesso à sintonia fina ou ao clima de uma época, ao modo
pelo qual as pessoas pensavam o mundo, [...] quais os preconceitos, medos e sonhos.
Ela dá a ver sensibilidades, perfis, valores. Ela representa o real [...]. [...] o que é
recorrente em uma época, o que escandaliza, o que emociona, o que é aceito
socialmente e o que é condenado ou proibido? Para além de disposições legais ou de
códigos de etiquetas de uma sociedade, é a literatura que fornece os índices para
pensar como e por que as pessoas agiam desta e daquela forma (PESAVENTO,
2008, p. 82-83).

Na esteira desta construção teórico-metodológica, ancora-se no conceito de


representação para analisar as personagens e suas subjetividades. Entende-se por
representação “[...] faz ver um objeto ausente substituindo-lhe uma “imagem” capaz de repô-
lo em memória e de “pintá-lo” tal como é. “[...] relação entre uma imagem presente e um
objeto ausente, uma valendo pelo outro porque lhe é homóloga [...].” (CHARTIER, 1991, p.
13). Pesavento também dá sua contribuição entendendo representação a partir da “ideia de
substituição, ou ainda presentificação de ausência” (PESAVENTO, 2003, p. 33).

Cassandra Rios: uma voz silenciada


Em meados da década de 1940, 1948 especificamente, uma jovem de 16 anos publica
seu primeiro romance. Apesar de dois fatores saltarem aos olhos — o gênero e a idade — não
era isto o que mais causou comoção: “Volúpia do Pecado”6 aborda a história de amor de duas
adolescentes. Outra particularidade: a jovem não assina com seu nome, Odette Rios, mas sim
com um pseudônimo, que viria a se tornar famoso: Cassandra Rios7.
A narrativa construída sobre Rios na posteridade é delineada por uma tríade sígnica
indissociável entre si: pornografia, lesbiandade e censura, mas também por dissensos,
sobretudo quanto ao número de obras publicadas e ao número de obras censuradas.
Apesar da associação imediata, Rios não foi censurada apenas na Ditadura Militar. Em
1952 ela foi processada por seu livro “Eudemônia” 8, ou seja, ainda no governo de Getúlio
Vargas. A censura foi mais rígida durante a Ditadura Civil-Militar, mas é importante ressaltar
que não foi iniciada ali, mas sim foi uma continuidade.
Além dos dissensos, também é marcada por aparente paradoxos: mais censuradas 9,
mas também a mais vendida. A censura10 era sobretudo calcada no Decreto-lei 1.077 de 1971,
cujo cerne encontrava-se na “defesa da família”, ao não tolerar exteriorizações “contrárias à
moral e aos costumes”, afinal era tudo parte de “um plano subversivo, que põe em risco a
segurança nacional”. É possível entender a censura por múltiplos eixos, todos inseparáveis

6
A publicação do primeiro romance é uma saga à parte: ainda morando com os pais, Odette era proibida de
escrever, sobretudo por ser pai. Então escrevia às escondidas, durante as madrugadas, com uma máquina de
datilografar emprestada do dono da serraria. Mas esse não era o único obstáculo. As editoras recusaram seus
originais, restando como única possibilidade o financiamento próprio. Como um empréstimo junto aos pais
obviamente não era uma opção, ela consegue um emprego como secretária, em um escritório de advocacia.
Contudo, o fato de Rios trabalhar fora era motivo de tensões familiares. Assim, mãe e filha fazem um acordo
secreto: sem que o marido soubesse, dona Damiana emprestaria o valor da entrada desde que Odette se
demitisse. Contudo, havia mais um adendo: dona Damiana nunca leria o romance. Odette se demitiu e o livro foi
para a gráfica.
7
A escolha possivelmente não foi aleatória: a influência dos gregos - desde filosofia até mitologia - é notável nas
obras: desde citações que permeiam momentos de reflexão nas narrativas até nomes de personagens. Cassandra
não é o único pseudônimo: Clarence Rivers e Oliver Rivier - Rios em inglês e francês respectivamente.
8
Pelo livro ela foi condenada a um ano de prisão, que não foi cumprido.
9
Não há consenso quanto ao número de títulos censurados: os arquivos da Divisão de Censura de Diversões
Públicas (DCDP), um dos órgãos oficiais da censura - é outro ponto a ser ressaltado: a censura não era velada,
ela era não apenas explicita, como dotada de mecanismos legais, dentre eles legislações - registra 21 títulos como
censurados, mas apenas 16 pareceres cujo parecer é pelo veto. Reimão (2014) traz 18 livros de autoria de
Cassandra Rios como censurados e uma reportagem do jornal Lampião da Esquina em sua quinta edição, de
outubro de 1978, menciona na manchete 36 títulos: “Com 36 livros proibidos ela só pensa em escrever”.
10
Pesquisas indicam que os livros apreendidos eram destruídos, principalmente sob o método da incineração.
entre si — inclusive os que são associados quase que imediatamente a ela: a pornografia e a
lesbiandade. São estes dois eixos as principais razões da censura.
O que se constituía em algo “contrário à moral e aos costumes” é difuso, contudo dos
pareceres depreende-se dois elementos: sexo e existências não-normativas, sobretudo
existências lésbicas. Em primeira instância o sexo materializa-se em descrições sexuais,
principalmente devido ao “realismo” destas11, mas também pela abordagem do mesmo: o sexo
não era um meio para a reprodução12, mas sim um fim em si mesmo, como uma busca pelo
prazer13. E a segunda instância, encontra-se as lesbiandades 14, que por si só constitui matéria
por se tratar de sexualidade dissidente ou não-normativa.
Outra questão que se impõe é se as descrições das cenas sexuais. Nas vivências
lésbicas havia o componente sexual, ou seja, eram comtempladas descrições das relações
sexuais, não de maneira sutil, implícita — permeado por metáforas, por exemplo — ou velado
— marcado por insinuações: não era apenas explícito, como era detalhado — a um nível que
possivelmente chocava a sociedade -, como os fragmentos a seguir esclarecem:

Num passo calculado, Dafne jogou-a sôbre [sic] o sofá e beijando-a e tateando-a
com suas mãos nervosas e grandes, livrou-a ágilmente [sic] das calças; sem que
Calíope tivesse tempo para evitar ou mesmo perceber o que iria acontecer entre elas.
Dafne ajoelhou-se aos seus pés ao lado do sofá. Numa atividade completamente
estranha, louca, foi deslizando a bôca [sic] trêmula e pecaminosa pelas coxas de
Calíope, que ficou estarrecida, vítima daquele gesto vil e sem pudor. Mal pôde [sic]
gozar a sensação do êxtase, apavorada com aquele asqueroso procedimento de
Dafne, Calíope soergueu meio corpo apoiando os cotovelos no sofá, para certificar-
se de que não estava sendo vítima de uma alucinação satânica. E quase desfaleceu

11
Os pareceres censórios da DCDP corroboram o fato em passagens como “[...] as descrições dos atos sexuais
são feitas nos mínimos detalhes [...]”, em parecer de 1978 sobre o livro “A Paranóica” e “[...] a descrição das
cenas [...] entre as personagens extrapolam qualquer limite de tolerância [...]”, sobre o livro “A Volúpia do
Pecado" em 1976. (BRUM, 2018, p. 58, grifos meus).
12
Há de se considerar que o período era permeado por um conservadorismo calcado na religião, sobretudo cristã,
no qual o sexo era um meio para um fim, a reprodução. Sexo reprodutivo era o único aceitável. Então imaginem
relações sexuais cujo único fim era o gozo no bojo de um “amor não-natural”.
13
Um trecho no qual o ideal de sexo é explicitado: “[...] fazendo da satisfação sexual o fim primeiro, seja qual
for o modo de realizá-lo, podendo levar o leitor a ficar excitado ou mesmo a esta prática.” (BRUM, 2018, p.
58, grifos meus), cujo parecer é pelo veto datado de 1976, sobre o livro “Macária”.
14
Já sobre as lesbiandades, os pareceres também são explícitos: “[...] verdadeira apologia ao lesbianismo [...]. O
tema em si [...] justifica a interdição [...]” em parecer de 1976 sobre o livro “Marcella”; e “[...] tema central é
o homossexualismo feminino, apresentado de forma minuciosa e chocante, sendo que tal relacionamento é
valorizado pela autora como se fosse algo ‘fantástico e incomparável’ [...]”, trecho do parecer também datado
de 1976 sobre “A borboleta branca” (BRUM, 2018, p. 61, grifos meus).
horrorizando-se mais. Aquela bôca [sic] quente sugava-lhe a alma, bebia-lhe o
sêmem [sic] do pecado (RIOS, 1959, p. 150).

Eu tinha o cheiro dela na bôca [sic] e nos dedos. Nos ombros marcas de dentes.
Haviam sido mordidinhas leves que causaram prazer e que provavam agora que tudo
realmente acontecera. Alisei meus ombros com emoção. Aspirei forte meus dedos.
Disse baixinho o nome dela (RIOS, 1968, p. 53).

[...] vagarosamente foi estirando-se em cima dela. Andréa percebia o peso dela
aumentar e, depois, quando ela soltou em cima do seu corpo e começou a mover-se,
esfregando-se nela, atrevendo-se a outros impulsos, continuou atenta, deixando-a
deslizar as mãos por suas coxas, subirem, enfiarem-se pelo decote do vestido e
buscarem seus seios, afagando os biquinhos. [...] assanhou-se e sugou-lhe os seios
com sofreguidão. Estava escuro e era muito fácil continuar imaginando coisas que a
faziam vibrar. Rosana percebeu que Andréa estava se entregando, debruçou-se
inteira em corpo, apoiando-se sobre a perna fora do sofá, calcando o pé no chão; a
outra movimentando-se entre as coxas de Andréa (RIOS, 2005, p. 154-155).

Contudo, se considerarmos que livros da própria Rios de temática heterossexual —


“Santa vaca”, por exemplo15 —, cujas descrições dos atos sexuais eram do mesmo teor, com a
mesma intensidade e com a mesma abordagem do sexo, não sofreram a mesma censura,
infere-se que não era o sexo em si que era necessariamente “contrário à moral e aos bons
costumes”, mas sim uma clivagem sexual.
Se colocássemos duas questões considerando estes dois elementos postos em relevo
nas suas narrativas — sexo e lesbiandades — talvez fique mais nítido: a) caso as cenas de
sexo fossem mantidas, mas cujos protagonistas fossem heterossexuais, possivelmente os
livros não seriam censurados; b) contudo, se invertermos a lógica, caso as protagonistas
fossem lésbicas, mas as cenas de sexo fossem suprimidas, possivelmente os livros ainda assim
seriam censurados.
O sexo, sobretudo sob a perspectiva trabalhada por Rios constituía um problema, mas
um problema menor se comparado às lesbiandades. Assim, na soma destes dois elementos —
sexo + lesbiandades — está a razão da censura, dado que no momento em que as narrativas
abarcam experiências lésbicas em seus mais diversos aspectos, dentre eles o sexual, ela se
opõe frontalmente ao padrão normativo — heteronormativos — estabelecido. Destaca-se
assim que se tratava não de uma censura política, mas sim moral. Décadas depois, em uma
entrevista ela fala sobre a censura: “[...] A Volúpia do Pecado não tem nada de mais! Uma
personagem fala que ‘passou a mão na outra e deu um choquinho’. Porque ‘deu um
choquinho’ condenaram meu livro” (REVISTA TPM, 2001 apud BRUM, 2018, p. 12).
15
Quando Rios escrevia como Clarence Rivier e Oliver River, geralmente narrativas heterossexuais, também não
havia censura (LONDERO, 2013).
Cabe uma ressalva — também uma possível problematização — sobre a censura: as
alcunhas “autora mais proibida do Brasil” ou a similar “autora mais maldita do Brasil” eram
impressas pelas próprias editoras nas capas dos livros como um chamariz. Inclusive matéria
do jornal O Globo já assinala o aspecto “comercial” da censura ao afirmar que este
“promocional adjetivo [...] ganha, no comércio das letras, proporções de comenda”. Outra
matéria do mesmo jornal, desta vez sobre noticiando a proibição de livros, vai ao encontro
disso ao apontar que “alguns livreiros afirmaram que com a proibição a [sic] procura do livro
se vai acentuar, pois o povo só gosta de coisas proibidas” (BRUM, 2018, p. 51 e p. 29). Há,
portanto, uma ressignificação da censura, dotando-a de um aspecto comercializável, posto que
o “veto”, a “proibição” era transformada em um elemento de atração, transformava-se em um
atrativo.
Mas que isto não signifique que a censura tenha quaisquer aspectos positivos,
sobretudo para Rios: os pareceres pela proibição e as consequentes apreensões — e
posteriormente destruições — dos exemplares acarretavam não somente em perdas
financeiras, já que a literatura era a fonte de renda de Rios, não era algo secundário. Ela não
tinha um outro emprego, seu trabalho era escrever, então a censura afetava diretamente sua
sobrevivência. Inclusive este é um dos fatores para ela escrever um livro atrás do outro:
sempre estar nas bancas, e, portanto, vender. A censura também implicava em multas,
processos que poderiam resultar em prisão, bem como na própria estigmatização da figura de
Rios, que era marginalizada inclusive no bojo da comunidade literária - vide as alcunhas
muitas vezes pejorativas e o fato de não ser signatária do icônico “Manifesto dos 1046
Intelectuais contra a censura”.

Quem são elas? Calíope, Débora e Andréa

Para operacionalizar a análise, foi necessário um recorte, afinal a obra de Rios é


prolífica e no espaço da comunicação não é possível abordar a totalidade de suas personagens.
Assim foram selecionadas três obras — “O gamo e a gazela”, “Tessa, a gata” e “As traças” —
e as protagonistas destas obras, sobre as quais me deterei: Calíope, protagonista de “O Gamo
e a Gazela”; Débora, de “Tessa, a gata” e Andréia, de “As Traças”, lançados respectivamente
em 1959, 1968 e meados da década de 1970.
Vivências lésbicas não são temáticas necessariamente novas ou inéditas, mas ao
mesmo tempo são pouco exploradas. Rios não foi necessariamente a primeira a ter
personagens lésbicas16, ou ainda ter protagonistas lésbicas, mas foi pioneira em seu constante
protagonismo.
Partindo do pressuposto que a realidade nunca é alcançada por completo e o que existe
é uma representação da realidade, o passado real ao qual me remeto, a figura da mulher
lésbica, portanto, será construído na forma de uma representação. Assim, a questão
mobilizadora é: como são as lésbicas de Cassandra Rios? Questiona-se sobre as
representações das lesbiandades, como as lesbiandades são representadas. Afinal, se como
Pesavento afirma, a Literatura fornece índices para pensar sobre comportamentos e
subjetividades de uma determinada época, é possível considerar tais representações como
pinceladas do “real” da sociedade, no sentido de refletirem/espelharem comportamentos
“reais”. Não ipsis litteris nem algo no sentido de uma síntese, mas aspectos de vivências
lésbicas à época, abarcando intersecções às quais estão submetidas uma comunidade,
representada por estas sujeitas, em a comunidade lésbica.
Também considerando que Calíope, Débora e Andréa não eram somente mulheres
lésbicas, mas sim atravessadas simultaneamente por outras posicionalidades identitárias —
por mais que as mais explicitadas fossem gênero e orientação sexual —, pauta-se a partir de
uma perspectiva interseccional, dada a inseparabilidade entre as posicionalidades
(AKOTIRENE, 2019) e ao fato de que todas são constituintes das identidades, não é possível
a abstenção de nenhuma, dada suas heterogeneidade bem como a importância da não
hierarquização de eixos de opressão, no sentido de um marcador ter prevalência sobre outros.
As personagens de Rios correspondem a um recorte social específico considerando
marcadores sociais de raça, classe e geração: são mulheres cisgêneras brancas, geralmente de
classe média-alta, residentes de centros urbanos, entre 15 e 30 anos. Inserem-se no bojo do
espectro daquilo estabelecido como padrão da performance de feminilidade.

16
Joaquim Manoel de Macedo, com “As mulheres de Mantilha”, no final do século XVIII; Aluísio Azevedo com
“Condessa Vésper” e “O cortiço”, no final do século XIX e Lygia Fagundes Telles, contemporânea à Cassandra
Rios com “Ciranda de Pedra” cuja primeira publicação data de 1954 são exemplos de obras com personagens
lésbicas. Isso sem contar o poema de Gregório de Matos, “A uma dama que macheava outras mulheres”, ainda
no século XVII.
A conclusão constitui uma problemática em si mesma: “lésbicas” não constitui um
grupo homogêneo, pelo contrário. Cada sujeita é atravessada por diversos marcadores sociais.
A comunidade, ainda que sintetizada em uma letra em um acrônimo, é plural. Assim, a
importância em não pensar em uma categoria universal e universalizante. São diversos os
atravessamentos nela, mesmo se tratando de personagens ficcionais.
Já à guisa de conclusão, no momento em que se constrói uma representação, deve-se
assinalar que essa representação corresponde a um recorte da comunidade, sobretudo se
considerarmos os marcadores — e a partir disso, questionar a representatividade dessa
representação. Por mais que falamos de um mesmo gênero, de uma mesma orientação sexual,
as iniquidades nunca atingiram a todas em intensidades e frequências análogas, sobretudo
devido aos demais marcadores sociais. Por isso a importância dos plurais, não tendo uma via
determinista, porque por mais que para fins de análise elas foram sistematizadas em
categorias — considerando os marcadores sociais — cada personagem tem suas vivências e
suas peculiaridades de sua própria existência

Referências

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faces de Cassandra Rios, a romancista mais censurada da ditadura militar brasileira. 2018. 111
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