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Resenha Machado de Assis, historiador

História do Brasil II (Universidade do Estado de Santa Catarina)

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CHALHOUB, Sidney. Machado de Assis: historiador. São Paulo: Companhia das letras,
2003.

por Lucas Fonseca

A obra analisada é intitulada Machado de Assis, historiador, escrita por Sidney


Chalhoub e publicada em 2003. Chalhoub é um historiador social do Brasil, nascido na cidade
do Rio de Janeiro, em 1957. Já lecionou na Universidade de Campinas e atualmente é docente
na Universidade Harvard, nos Estados Unidos. Suas linhas de pesquisa principais giram em
torno da escravidão, do cotidiano, da cultura e do trabalho. Possui obras consagradas, tanto na
academia quanto fora dela, que têm como temática principal a escravidão, como, por exemplo,
A Força da Escravidão – publicada em 2012, que lhe rendeu um prêmio da Academia Brasileira
de Letras – e Visões da Liberdade (1990), cuja temática e metodologia tangenciam, em diversos
aspectos, a presente obra e, portanto, pode contribuir de maneira valiosa para uma melhor
compreensão tanto da postura metodológica, quanto dos objetivos do professor no estudo em
questão. A partir de literaturas, bem como documentos oficiais do Império, Chalhoub segue, no
livro resenhado, uma postura metodológica similar à que adotou em Visões da Liberdade.
Neste, o autor apresenta, de maneira mais explícita, o seu método investigativo, o “paradigma
conjectural” – em um diálogo teórico direto com o historiador italiano Carlo Ginzburg –, no
qual pequenos detalhes, usualmente negligenciados em detrimento de “grandes eventos”, são
de suma importância para o entendimento de certa realidade, tal como podem “dar a chave para
redes de significados sociais e psicológicos mais profundos, inacessíveis por outros métodos”1.
Machado de Assis, historiador, aborda, em linhas gerais, o contexto político e social da
Corte no século XIX, especialmente o período de debate, aprovação e aplicação da lei de
setembro de 1871 – a Lei do Ventre Livre. Buscando evidenciar as políticas de dominação
social vigentes no país neste período, o autor recorre às obras machadianas (principalmente
crônicas e romances, como Helena, Memórias Póstumas de Brás Cubas, Dom Casmurro, Iaiá
Garcia, entre outros) e de outros autores da época, e lá encontra exposições detalhadas dessas
políticas e “muita alegoria e reflexão sistemática sobre a experiência social de escravos,
dependentes e outros sujeitos que, dizia-se, não estavam no centro da obra de Machado” (p. 9).
Outrossim, o autor propõe vias de interpretação na leitura de Machado de Assis explicitando,

1
CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na corte. São
Paulo: Companhia das letras, 1990. p. 17.

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acima de tudo, o caráter de testemunho histórico de sua produção literária, que não só expõe,
mas critica – às vezes sutilmente – a lógica de dominação senhorial e explicita, através de suas
personagens, possíveis discursos e atuações políticas de dependentes e escravizados por dentro
dessa lógica e, em última instância, registra a interpretação do próprio literato sobre as
transformações históricas em curso na segunda metade do oitocentos. No estudo supracitado,
da década de 90, ao resumir o objetivo de John Gledson em Machado de Assis: ficção e história,
o autor nos indica, de certa forma, sua própria visão sobre Machado de Assis enquanto
personagem histórico (e as disputas de narrativas que daí derivam) e, também, um de seus
principais posicionamentos em Machado de Assis, historiador: combater “a ideia de que
Machado foi fundamentalmente um comentarista da moralidade individual” e demonstrar que
“o romancista comentou intensamente as transformações sociais e políticas de seu tempo”2.
Além de realizar uma pormenorizada crítica histórica literária, Chalhoub investiga o
funcionário público Joaquim Maria Machado de Assis em seu exercício, a partir de 1873, no
Ministério da Agricultura, traçando paralelos entre sua produção literária e suas ações e
posicionamentos políticos, sobretudo no que diz respeito à execução da lei de setembro de 1871.
Em um primeiro momento, o autor foca suas atenções em analisar o romance Helena,
(publicado por Machado de Assis em periódicos no ano de 1876) pautando o seu debate a partir
de críticas e interpretações outras sobre os romances machadianos, em especial as de Roberto
Schwarz e John Gledson, ora se utilizando de suas chaves de interpretação, ora criticando-as.
Sua tese principal é de que a obra surge a partir da visão de Machado de Assis sobre a história
política e social do Brasil em meados do século XIX (p. 17). Antes de prosseguir para uma
análise sobre a “cuidadosa descrição da ideologia senhorial” presente nos primeiros capítulos
de Helena, o autor indica a necessidade de analisar a obra em suas duas historicidades, a da
narrativa (anos 1850, apogeu do Segundo Reinado e hegemonia da ideologia senhorial) e a do
autor: em 1876, já exercendo a chefia na segunda seção da Direção da Agricultura. Levando-se
em conta, também, o processo de “crise nas formas tradicionais de domínio” (p. 20) – que
remonta ao período entre 1866 (com o início da Guerra do Paraguai e aumento dos debates
sobre o “elemento servil”) e 1871 – que culminou na aprovação da lei de emancipação.
Adotando esta premissa interpretativa, o autor exemplifica, a partir da literatura,
elementos da ideologia senhorial, como o pressuposto da inviolabilidade da vontade senhorial
– alicerce de tal ideologia e base das políticas de dominação paternalistas – ilustrado no episódio
da abertura do testamento do conselheiro Vale, personagem senhorial, que continua exercendo

2
Idem, ibidem. p. 97.

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sua soberania e impondo sua vontade, postumamente, sobre seus dependentes. Em seguida,
Chalhoub volta seu olhar para os dependentes e passa a reparar na personagem que a obra leva
o nome e na forma com que esta consegue compreender criticamente a lógica de domínio à qual
está submetida, conscientizar-se da vulnerabilidade da sua posição (tanto de classe, quanto de
gênero) e, assim, busca alcançar seus próprios objetivos por dentro da ideologia senhorial de
Estácio, filho do conselheiro, de forma que ele “nada ou pouco entende dos movimentos de
Helena” (p. 23). O momento do romance que melhor corrobora com este argumento é o qual a
menina consegue sair para andar a cavalo, sem precisar ao menos pedi-lo. Segue a fonte tal
como o autor nos apresenta:

– Não me dirá você, perguntou ele, por que motivo, sabendo montar, pedia-
me ontem lições?
– A razão é clara, disse ela; foi uma simples travessura, um capricho… ou
antes um cálculo.
– Um cálculo?
– Profundo, hediondo, diabólico, continuou a moça sorrindo. Eu queria
passear algumas vezes a cavalo; não era possível sair só, e nesse caso…
– Bastava pedir-me que a acompanhasse.
– Não bastava. Havia um meio de lhe dar mais gosto em sair comigo; era fingir
que não sabia montar. A ideia momentânea de sua superioridade neste
assunto era bastante para lhe inspirar uma dedicação decidida. (p. 25, grifo
nosso)

Neste trecho, ficam evidentes os movimentos de Helena de distanciamento, análise e


crítica da estrutura mental de Estácio, tornando dele a sua vontade, conseguindo induzir no
senhor o comportamento que lhe interessava, “inculcando-lhe superioridade”. Com isso, o autor
defende que “a chave do livro” é perceber que há na personagem dependente uma
mundividência própria, que não tem como referência apenas a ideologia senhorial (p. 23). Esta
última constatação reflete em um posicionamento específico em um debate teórico sobre o
conceito de “paternalismo”, debate este para o qual o autor oferece uma contribuição.
Em sua perspectiva, “as políticas de dominação vigentes na sociedade brasileira do
século XIX poderiam ser apropriadamente descritas como paternalistas” (p. 58). Contudo, –
respaldando-se em historiadores e historiadoras sociais, como E. P. Thompson, Eugene
Genovese e Rebecca Scott – Chalhoub chama atenção para a “complexidade histórica do
conceito” que, em sua definição convencional como “política de domínio na qual a vontade
senhorial é inviolável, e na qual os trabalhadores e subordinados só podem se posicionar como
dependentes em relação a essa vontade soberana”, exclui-se a possibilidade da existência de
redes de solidariedade horizontais e antagonismos sociais na medida em que todas as relações
se pautavam na verticalidade (p. 47). Ele ainda defende que Schwarz, em sua análise do

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romance – o qual ele caracteriza como “deliberada e desagradavelmente conformista” (p. 45) –
, “talvez tolhido em excesso por definições convencionais de paternalismo, comuns à época”
(p. 48), não teve como revelar a ambiguidade, a polissemia, a camuflagem dos movimentos de
Helena. Outro ponto de atrito com a chave de leitura de Schwarz se dá na noção de uma
separação bem delineada entre paternalismo e escravidão. Nosso autor busca e identifica em
Helena, e outras obras, elementos que denotam a presença da mesma lógica de reprodução de
hierarquias e desigualdades sociais (p. 131), pautada na inviolabilidade da vontade senhorial,
tanto na dominação de escravizados, quanto na de dependentes livres; porquanto ambos
estavam submetidos à esta prerrogativa máxima, ou seja, sob a ótica da classe senhorial, tudo e
todos estavam subordinados à sua vontade e existência. O autor busca sustentar esta posição
recorrendo a diversas passagens de distintos romances e crônicas de Machado, e é explicitado
– de maneira ironicamente didática – através de uma filosofia, entre tantas outras, de Brás
Cubas.
“Em Memórias Póstumas de Brás Cubas, Machado de Assis reescreveu Helena” (p.
73). Ao fazer tal asserção, o autor se refere não somente ao semelhante recorte temporal dos
dois romances, mas também à preocupação do autor em descrever transformações históricas e
“revelar verdades históricas estruturais” a partir de suas personagens (p. 67). As duas obras
reportam ao período de apogeu das políticas de dominação paternalistas e o defunto narrador
não deixou de registrar a interpretação histórica de sua classe sobre esse período:
Já meditaste alguma vez no destino do nariz, amado leitor? A
explicação do doutor Pangloss é que o nariz foi creado para uso dos óculos, –
e tal explicação confesso que até certo tempo me pareceu definitiva; mas veio
um dia, em que, estando a ruminar esse e outros pontos obscuros de filosofia,
atinei com a única, verdadeira e definitiva explicação.
Com efeito, bastou-me atentar no costume do faquir. Sabe o leitor que
o faquir gasta longas horas a olhar para a ponta do nariz, com o fim único de
ver a luz celeste. Quando ele finca os olhos na ponta do nariz, perde o
sentimento das cousas externas, embeleza-se no invisível, apreende o
impalpável, desvincula-se da terra, dissolve-se, eteriza-se. Essa sublimação do
ser pela ponta do nariz é o fenômeno mais excelso do espírito, e a faculdade
de a obter não pertence ao faquir somente: é universal. Cada homem tem
necessidade e poder de contemplar o seu próprio nariz, para o fim de ver a luz
celeste, e tal contemplação, cujo efeito é a subordinação do universo a um
nariz somente, constitui o equilíbrio das sociedades. (ASSIS, 1881, cap.
XLIX, grifo nosso)

Em outras palavras, contemplação do próprio nariz permite a eliminação de “cousas


externas”, isto é, de atores e ações políticas antagônicos à visão de mundo do narrador senhorial
(p. 72). A metáfora de uma dominação política e social fica clara no silogismo final da citação:

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todo homem deve e pode “contemplar o seu próprio nariz”; a contemplação subordina o
universo a um único nariz; e isto constitui o “equilíbrio das sociedades”.
Chalhoub nos mostra, no entanto – já na parte do livro em que ele se dedica a investigar
o processo histórico que culmina na aprovação da lei de 28 de setembro de 1871 –, que, com o
aumento dos debates políticos sobre a “questão servil”, bem como influências externas
abolicionistas, somadas ao período de instabilidade política e econômica por conta da guerra
contra o Paraguai, instaurou-se uma crise (sentida, inclusive, pelas personagens senhoriais do
Bruxo do Cosme Velho) na lógica de dominação vigente em toda a sociedade, que passava a
ser paulatinamente deslegitimada e a classe senhorial tolhida de suas prerrogativas sobre seus
dependentes frente ao poder da lei. A instituição da escravidão já era tida, em meados do século
XIX, como “bárbara”, “fatal” e “odiosa”, que “corrompe os próprios opressores”, significando
um empecilho para o “progresso” e “civilização” do país (p. 141). É a partir do final de 1865 e
início de 66, contudo, que o governo imperial passa realizar os primeiros movimentos, de
estudos e propostas preliminares e debates no Conselho de Estado, que visam a emancipação
dos escravos (p. 139). Entretanto, em 1868, a ascensão de um gabinete e o estabelecimento de
uma Câmara conservadores, contrários à discussão emancipacionista, diminuem as
possibilidades de debates políticos frutíferos sobre o assunto nas instâncias parlamentares. E é,
então, somente após findada a guerra, na primeira metade de 1870, que a Câmara dos Deputados
nomeia uma comissão para fazer um parecer e um projeto sobre a questão do elemento servil,
que se conclui em agosto, mas o gabinete conservador ainda era um obstáculo. Em setembro
do mesmo ano, o imperador monta um gabinete liberal para conduzir o problema da
emancipação no parlamento e, entre 30 de junho e 27 de setembro, os legisladores debateram e
votaram os artigos do projeto apresentado pela comissão.
Houve, como salienta o autor, uma resistência contumaz, principalmente por parte dos
setores conservadores, ligados à classe latifundiária, à aprovação e execução da lei. Um dos
pontos fundamentais em debate partia do conflito existente entre o poder de intervenção do
Estado nas relações entre senhores e escravizados e o exercício axiomático da vontade
senhorial, suporte ideológico sobre o qual se fundamentava, inteira, a lógica de domínio de
classes em vigor. Ainda que conflitante com os interesses da classe senhorial e dos políticos
que a representavam, a emancipação deveria ocorrer de maneira gradativa – “estancando-lhe a
fonte”, por isso a defesa do “ventre livre” (p. 165) –, e não de maneira imediata, com a
finalidade precípua de não prejudicar a lavoura.
Após uma longa contextualização acerca das condições de emergência que
possibilitaram a aprovação da lei de 28 de setembro de 1871, o autor passa a acompanhar o

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processo de aplicação da legislação – “às vezes acompanhado pelo funcionário Machado de


Assis”. Por meio da análise de relatórios ministeriais, anais parlamentares, legislações,
pareceres, reclamações e outros documentos oficiais de cunho jurídico-administrativo,
Chalhoub demonstra, além do papel da segunda seção do Ministério da Agricultura na defesa
da aplicação rigorosa de artigos da lei de 1871 e seus regulamentos, como Machado, em seu
cargo ministerial, trabalhou para expandir as possibilidades de liberdade e direitos dos
escravizados e submeter as prerrogativas senhoriais ao domínio dos aparatos legais. Em um de
seus pareceres (em 1876, meses antes de assumir a chefatura da repartição), o funcionário
resume a “doutrina” da seção no acompanhamento da aplicação da lei, que se pautava: na
impossibilidade da existência de argumentação favorável à escravidão, uma vez que esta é uma
instituição contrária ao direito natural; na compreensão da lei de 1871 como uma “lei de
liberdade”, devendo-se seguir o “espírito da lei” em casos de dúvidas ou brechas; e na
submissão do poder privado dos senhores à lei (p. 221).
Em meio a debates sobre os direitos políticos dos filhos livres de mulheres escravas, as
aplicações do fundo de emancipação, a exclusão do eleitorado analfabeto – e muitos outros que
passavam pela segunda seção da Diretoria da Agricultura –, imerso neste clima político de
decadência dos moldes tradicionais de dominação e expansão das prerrogativas do poder
público e das garantias de liberdade para os escravizados, o literato Machado de Assis, tal como
seus personagens dependentes, se distancia, analisa e critica a lógica e a estrutura da sociedade
de seu tempo a partir de sua experiência histórica; cria diálogos, personagens e narradores que,
aparentemente, reproduziam os ideais da elite letrada que o lia e – na leitura a contrapelo –
realiza seu próprio objetivo: dizer o que pensa sobre a sociedade brasileira do século XIX.

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