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CHALHOUB, Sidney. Machado de Assis: historiador. São Paulo: Companhia das letras,
2003.
1
CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na corte. São
Paulo: Companhia das letras, 1990. p. 17.
acima de tudo, o caráter de testemunho histórico de sua produção literária, que não só expõe,
mas critica – às vezes sutilmente – a lógica de dominação senhorial e explicita, através de suas
personagens, possíveis discursos e atuações políticas de dependentes e escravizados por dentro
dessa lógica e, em última instância, registra a interpretação do próprio literato sobre as
transformações históricas em curso na segunda metade do oitocentos. No estudo supracitado,
da década de 90, ao resumir o objetivo de John Gledson em Machado de Assis: ficção e história,
o autor nos indica, de certa forma, sua própria visão sobre Machado de Assis enquanto
personagem histórico (e as disputas de narrativas que daí derivam) e, também, um de seus
principais posicionamentos em Machado de Assis, historiador: combater “a ideia de que
Machado foi fundamentalmente um comentarista da moralidade individual” e demonstrar que
“o romancista comentou intensamente as transformações sociais e políticas de seu tempo”2.
Além de realizar uma pormenorizada crítica histórica literária, Chalhoub investiga o
funcionário público Joaquim Maria Machado de Assis em seu exercício, a partir de 1873, no
Ministério da Agricultura, traçando paralelos entre sua produção literária e suas ações e
posicionamentos políticos, sobretudo no que diz respeito à execução da lei de setembro de 1871.
Em um primeiro momento, o autor foca suas atenções em analisar o romance Helena,
(publicado por Machado de Assis em periódicos no ano de 1876) pautando o seu debate a partir
de críticas e interpretações outras sobre os romances machadianos, em especial as de Roberto
Schwarz e John Gledson, ora se utilizando de suas chaves de interpretação, ora criticando-as.
Sua tese principal é de que a obra surge a partir da visão de Machado de Assis sobre a história
política e social do Brasil em meados do século XIX (p. 17). Antes de prosseguir para uma
análise sobre a “cuidadosa descrição da ideologia senhorial” presente nos primeiros capítulos
de Helena, o autor indica a necessidade de analisar a obra em suas duas historicidades, a da
narrativa (anos 1850, apogeu do Segundo Reinado e hegemonia da ideologia senhorial) e a do
autor: em 1876, já exercendo a chefia na segunda seção da Direção da Agricultura. Levando-se
em conta, também, o processo de “crise nas formas tradicionais de domínio” (p. 20) – que
remonta ao período entre 1866 (com o início da Guerra do Paraguai e aumento dos debates
sobre o “elemento servil”) e 1871 – que culminou na aprovação da lei de emancipação.
Adotando esta premissa interpretativa, o autor exemplifica, a partir da literatura,
elementos da ideologia senhorial, como o pressuposto da inviolabilidade da vontade senhorial
– alicerce de tal ideologia e base das políticas de dominação paternalistas – ilustrado no episódio
da abertura do testamento do conselheiro Vale, personagem senhorial, que continua exercendo
2
Idem, ibidem. p. 97.
sua soberania e impondo sua vontade, postumamente, sobre seus dependentes. Em seguida,
Chalhoub volta seu olhar para os dependentes e passa a reparar na personagem que a obra leva
o nome e na forma com que esta consegue compreender criticamente a lógica de domínio à qual
está submetida, conscientizar-se da vulnerabilidade da sua posição (tanto de classe, quanto de
gênero) e, assim, busca alcançar seus próprios objetivos por dentro da ideologia senhorial de
Estácio, filho do conselheiro, de forma que ele “nada ou pouco entende dos movimentos de
Helena” (p. 23). O momento do romance que melhor corrobora com este argumento é o qual a
menina consegue sair para andar a cavalo, sem precisar ao menos pedi-lo. Segue a fonte tal
como o autor nos apresenta:
– Não me dirá você, perguntou ele, por que motivo, sabendo montar, pedia-
me ontem lições?
– A razão é clara, disse ela; foi uma simples travessura, um capricho… ou
antes um cálculo.
– Um cálculo?
– Profundo, hediondo, diabólico, continuou a moça sorrindo. Eu queria
passear algumas vezes a cavalo; não era possível sair só, e nesse caso…
– Bastava pedir-me que a acompanhasse.
– Não bastava. Havia um meio de lhe dar mais gosto em sair comigo; era fingir
que não sabia montar. A ideia momentânea de sua superioridade neste
assunto era bastante para lhe inspirar uma dedicação decidida. (p. 25, grifo
nosso)
romance – o qual ele caracteriza como “deliberada e desagradavelmente conformista” (p. 45) –
, “talvez tolhido em excesso por definições convencionais de paternalismo, comuns à época”
(p. 48), não teve como revelar a ambiguidade, a polissemia, a camuflagem dos movimentos de
Helena. Outro ponto de atrito com a chave de leitura de Schwarz se dá na noção de uma
separação bem delineada entre paternalismo e escravidão. Nosso autor busca e identifica em
Helena, e outras obras, elementos que denotam a presença da mesma lógica de reprodução de
hierarquias e desigualdades sociais (p. 131), pautada na inviolabilidade da vontade senhorial,
tanto na dominação de escravizados, quanto na de dependentes livres; porquanto ambos
estavam submetidos à esta prerrogativa máxima, ou seja, sob a ótica da classe senhorial, tudo e
todos estavam subordinados à sua vontade e existência. O autor busca sustentar esta posição
recorrendo a diversas passagens de distintos romances e crônicas de Machado, e é explicitado
– de maneira ironicamente didática – através de uma filosofia, entre tantas outras, de Brás
Cubas.
“Em Memórias Póstumas de Brás Cubas, Machado de Assis reescreveu Helena” (p.
73). Ao fazer tal asserção, o autor se refere não somente ao semelhante recorte temporal dos
dois romances, mas também à preocupação do autor em descrever transformações históricas e
“revelar verdades históricas estruturais” a partir de suas personagens (p. 67). As duas obras
reportam ao período de apogeu das políticas de dominação paternalistas e o defunto narrador
não deixou de registrar a interpretação histórica de sua classe sobre esse período:
Já meditaste alguma vez no destino do nariz, amado leitor? A
explicação do doutor Pangloss é que o nariz foi creado para uso dos óculos, –
e tal explicação confesso que até certo tempo me pareceu definitiva; mas veio
um dia, em que, estando a ruminar esse e outros pontos obscuros de filosofia,
atinei com a única, verdadeira e definitiva explicação.
Com efeito, bastou-me atentar no costume do faquir. Sabe o leitor que
o faquir gasta longas horas a olhar para a ponta do nariz, com o fim único de
ver a luz celeste. Quando ele finca os olhos na ponta do nariz, perde o
sentimento das cousas externas, embeleza-se no invisível, apreende o
impalpável, desvincula-se da terra, dissolve-se, eteriza-se. Essa sublimação do
ser pela ponta do nariz é o fenômeno mais excelso do espírito, e a faculdade
de a obter não pertence ao faquir somente: é universal. Cada homem tem
necessidade e poder de contemplar o seu próprio nariz, para o fim de ver a luz
celeste, e tal contemplação, cujo efeito é a subordinação do universo a um
nariz somente, constitui o equilíbrio das sociedades. (ASSIS, 1881, cap.
XLIX, grifo nosso)
todo homem deve e pode “contemplar o seu próprio nariz”; a contemplação subordina o
universo a um único nariz; e isto constitui o “equilíbrio das sociedades”.
Chalhoub nos mostra, no entanto – já na parte do livro em que ele se dedica a investigar
o processo histórico que culmina na aprovação da lei de 28 de setembro de 1871 –, que, com o
aumento dos debates políticos sobre a “questão servil”, bem como influências externas
abolicionistas, somadas ao período de instabilidade política e econômica por conta da guerra
contra o Paraguai, instaurou-se uma crise (sentida, inclusive, pelas personagens senhoriais do
Bruxo do Cosme Velho) na lógica de dominação vigente em toda a sociedade, que passava a
ser paulatinamente deslegitimada e a classe senhorial tolhida de suas prerrogativas sobre seus
dependentes frente ao poder da lei. A instituição da escravidão já era tida, em meados do século
XIX, como “bárbara”, “fatal” e “odiosa”, que “corrompe os próprios opressores”, significando
um empecilho para o “progresso” e “civilização” do país (p. 141). É a partir do final de 1865 e
início de 66, contudo, que o governo imperial passa realizar os primeiros movimentos, de
estudos e propostas preliminares e debates no Conselho de Estado, que visam a emancipação
dos escravos (p. 139). Entretanto, em 1868, a ascensão de um gabinete e o estabelecimento de
uma Câmara conservadores, contrários à discussão emancipacionista, diminuem as
possibilidades de debates políticos frutíferos sobre o assunto nas instâncias parlamentares. E é,
então, somente após findada a guerra, na primeira metade de 1870, que a Câmara dos Deputados
nomeia uma comissão para fazer um parecer e um projeto sobre a questão do elemento servil,
que se conclui em agosto, mas o gabinete conservador ainda era um obstáculo. Em setembro
do mesmo ano, o imperador monta um gabinete liberal para conduzir o problema da
emancipação no parlamento e, entre 30 de junho e 27 de setembro, os legisladores debateram e
votaram os artigos do projeto apresentado pela comissão.
Houve, como salienta o autor, uma resistência contumaz, principalmente por parte dos
setores conservadores, ligados à classe latifundiária, à aprovação e execução da lei. Um dos
pontos fundamentais em debate partia do conflito existente entre o poder de intervenção do
Estado nas relações entre senhores e escravizados e o exercício axiomático da vontade
senhorial, suporte ideológico sobre o qual se fundamentava, inteira, a lógica de domínio de
classes em vigor. Ainda que conflitante com os interesses da classe senhorial e dos políticos
que a representavam, a emancipação deveria ocorrer de maneira gradativa – “estancando-lhe a
fonte”, por isso a defesa do “ventre livre” (p. 165) –, e não de maneira imediata, com a
finalidade precípua de não prejudicar a lavoura.
Após uma longa contextualização acerca das condições de emergência que
possibilitaram a aprovação da lei de 28 de setembro de 1871, o autor passa a acompanhar o