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Não ter nascido bicho parece ser uma de minhas secretas nostalgias. Talvez seja
porque sou de sagitário, metade bicho.
Clarice Lispector
INTRODUÇÃO
Escritora de uma obra extensa e diversificada, Clarice Lispector nasceu em
1920 em Tchechelnik na Ucrânia. Com a família, imigra para o Brasil ainda antes de
completar um ano e meio, desembarcando em Maceió onde viveria por pouco tempo,
principais vozes do gênero na segunda metade do século XX. Publicou ainda em vida
sete coletâneas: Alguns contos (1952), Laços de família (1960), A legião estrangeira (1964),
Felicidade clandestina (1971), A imitação da rosa (1973), A via crucis do corpo (1974), Onde
estivestes de noite (1974). Após a sua morte, foi editado pela editora Nova Fronteira
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Mestrando em Letras pela Universidade Federal de Sergipe. E-mail: amael.oliveira@aracaju.se.gov.br.
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Dessas obras, Laços de família é uma das mais populares, não só porque contém
narrativas antológicas como “Amor”, “Uma galinha”, “Feliz aniversário”, “Os laços
incursões da autora no gênero, tendo em vista que o volume de estreia, Alguns contos,
Clarice Lispector “seu espanto vem de constatar o que o senso comum já aceita sem
surpresa: por exemplo, o fato banal é infinitamente misterioso de que existem, fora e
Para Bosi (2006, p. 14), a pesquisa estética da contista, ainda que se expresse
por temática bastante diversa, “quer fale dos desencontros familiares, quer fale de
crianças ou de animais opacos e encerrados no seu mistério vital”, procura dar uma
Quando já não há uma firma rede mitológica de base, perdidas ou estancadas que
foram as fontes da sabedoria tradicional, o espírito paira inquieto sobre as coisas e as
pessoas e, não sabendo que sentido lhe atribuir, faz da vida uma constante
perplexidade. A que não responde o discurso psicológico simples, julgado rotineiro,
falseador. Então, é preciso descobrir, se não reinventar, o caminho que vai do eu
narrativo aos objetos. (BOSI, 2006, p. 13-14)
A prosa de Clarice Lispector faz-se aos poucos, move-se junto com os seus exercícios
de percepção, e tacteia, e não pode nem quer evitar o lacunoso, ou o difuso, pois o seu
projeto de base é trazer as coisas à consciência, a consciência a si mesma. (BOSI, 2006,
p. 20)
autora, este artigo analisa o conto “O búfalo”, publicado em 1960 na coletânea Laços
O duplo em O búfalo
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Esse gosto, tão marcado, Clarice confirma em depoimento também da década de 70:
“Quando era pequena, eu olhava muito a galinha, muito tempo. E sabia imitar bicar
do milho e sabia imitar quando ela estava com doença. E me impressionou
tremendamente! Aliás, sou muito ligada a bicho. Então tremendamente à vida duma
oca. Uma galinha oca!”. (GOTLIB, 1995, p. 73)
além do animal que dá título ao conto. A obra problematiza o encontro entre uma
mulher ferida pelo abandono do amante e o bicho que representa não só o seu duplo,
como o do próprio amante. O animal é fecundo do ódio que ela não consegue
Acerca da noção de duplo, Nicole Fernandez Bravo (2000, p. 261) explica que o
por essa razão, “significa literalmente ‘aquele que caminha ao lado’, ‘companheiro de
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Segundo as lendas germânicas, é um monstro ou ser fantástico que tem o dom de representar uma cópia
idêntica de uma pessoa que ele escolheu ou que passa a acompanhar. Doppelgänger se originou da fusão das
palavras alemãs doppel (significa duplo, réplica ou duplicata) e gänger (andante, ambulante ou aquele que vaga).
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estrada’ [...], ‘assim designamos as pessoas que se veem a si mesmas”. (BRAVO, 2000,
p. 261)
sentir pelo amante que a abandonou. “Deus, me ensine somente a odiar”, suplica a
zoológico. De maneira vã, ela realiza um itinerário que passa pela jaula dos leões,
onde apenas percebe o amor, pela da girafa, que expressa “a tola inocência de quem é
grande e leve e sem culpa” (LISPECTOR, 2009, p. 126), pela do hipopótamo, que
contém um amor humilde, pela dos macacos, onde observa a felicidade e olhares
pela do quati, que curioso a indagava, e, por fim, o encontro com o búfalo.
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oposição de sentido a algo que não é dito expressamente, como também parece
para o leitor de a narrativa já começa duplamente, in media res. São duas histórias: a
do passeio pelo zoológico e a outra que não foi contada, mas que exerce influência no
andamento desta.
Esse caráter duplo se expressa pela referência a essa outra narrativa não dita,
perda, já que perdoara o amante por não querê-la mais. A relação de duplicidade
entre as duas narrativas se torna evidente no final da obra quando os dois enredos se
entrelaçam paralelisticamente. “Eu te amo, disse ela então com ódio para o homem
cujo grande crime impunível era o de não querê-la. Eu te odeio, disse implorando
Mas, além desse duplo estrutural, existe outro representado pelas oposições
entre a mulher ferida e o animal enjaulado, entre o amor e o ódio, ou ainda, entre o
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Expressão latina que significa “no meio das coisas”. Segundo Moisés (2004, p. 240), o termo foi cunhado por
Horácio na Arte Poética. “Convenção própria da poesia épica clássica, preconizava que a ação do poema deveria
começar pelo meio, no pressuposto de que o trecho inicial não só carecia de interesse para o leitor como poderia
perfeitamente ser narrado mais tarde” (MOISES, 2004, p. 240).
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A raiva é uma das emoções consideradas naturais ou inatas – junto com alegria,
tristeza e medo – porque não pode ser separada em partes mais básicas. Ela pode
variar de leve irritação à fúria e à violência. Geralmente é sentida após injustiça,
restrição, bloqueio ou interrupção de uma atividade ou objetivo, ou como reação a um
estímulo aversivo, calúnia ou insulto, indignação moral, ataque, perda ou ameaça.
(CARVALHO; CARVALHO, 201, p.17)
amorosa também um duplo, pois está vinculado ao mito do andrógino, criatura que
desafiou os deuses e que como punição recebeu a secção em duas partes. Separadas,
cunhado pelo filósofo grego Platão, analisa a relação amorosa como sempre dupla,
antiga unidade.
Como a natureza humana foi dividida em duas, cada uma das partes, saudosa, unia-
se à outra, aos abraços, ardentes por se confundirem num único ser. Morriam de fome
e de inércia porque não queriam fazer nada separadamente. [...] Eros, que atrai um ao
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outro, está implantado nos homens desde então para restaurar a antiga natureza, faz
de dois um só e alivia as dores da natureza humana. Cada um de nós é, portanto, a
metade complementar de outro (um símbolo). (PLATÃO, 2009, p. 65-67)
interroga a Deus sobre sua solidão. “Oh, Deus, quem será meu par neste mundo?”
do amor, posto que se direciona para a crença de que existe um outro, criado para
completá-la. Esse senso de solidão está expresso ainda pela nulidade de sua figura
entre os demais seres do zoológico. Não vista, a mulher vaga como um fantasma
Nunca o perdão, se aquela mulher perdoasse mais uma vez, uma só vez que fosse, sua
vida estaria perdida – deu um gemido áspero e curto, o quati sobressaltou-se -
enjaulada olhou em torno de si, e como não era pessoa em quem prestassem atenção,
encolheu-se como uma velha assassina solitária, uma criança passou correndo sem vê-
la. (LISPECTOR, 2009, p. 131)
Essa invisibilidade será apenas alterada pela presença do búfalo. O bicho nota
a presença da mulher e vem em sua direção. “De longe, no seu calmo passeio, o
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búfalo negro olhou-a um instante. [...] Mas de novo ele pareceu tê-la visto ou sentido.
[...] E mais uma vez o búfalo pareceu notá-la” (LISPECTOR, 2009, p. 133).
do duplo. Ser visto é também ser amado? Para a personagem, o amor e o ódio andam
ele as emoções destrutivas do ódio. O ódio dito não é o ódio sentido, vivenciado, isto
porque, a personagem foi, por assim dizer, domesticada pelo ambiente civilizado
raiva, do “coração selvagem da vida”, como escreve a autora em seu livro de estreia.
“Eu te odeio”, disse ela para um homem cujo crime único era o de não amá-la. “Eu te
odeio”, disse muito apressada. Mas não sabia sequer como se fazia. Como cavar na
terra até encontrar a água negra, como abrir passagem na terra dura e chegar jamais a
si mesma? (LISPECTOR, 200, p. 127)
predileção de Clarice por histórias de bichos já aponta desde o seu primeiro romance
Perto do coração selvagem (1944), para um ideal filosófico, a saber, uma recusa de
vida humana, para lhe dar um valor humano”. Ainda segundo Moser (2009, p. 93), a
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para o seu lugar, que se confunde com uma prisão, com uma jaula.
também uma enjaulada. “A testa estava tão encostada às grades que por um instante
lhe pareceu que ela estava enjaulada e que um quati livre a examinava”
“Lá estavam o búfalo e a mulher, frente a frente. Ela não olhou a cara, nem a boca,
nem os cornos. Olhou nos olhos” (LISPECTOR, 2009, p. 135). E, por essa troca de
sua raiva contida e reprimida pelo amante que a deixou. “Lentamente a mulher
meneava a cabeça, espantada com o ódio com que o búfalo, tranquilo de ódio, a
Considerações finais
enfrentam frente a frente, em uma luta silenciosa de olhares. Se o duplo, como afirma
Bravo (2000, p. 263), pode ser a representação de “uma parte não apreendida pela
imagem de si que tem o eu, ou por ela excluída”, o búfalo é, pois, uma face
Como num espelho, a mulher precisa olhar nos olhos do animal para
sua mão se tivesse grudado para sempre ao punhal que ela mesma cravara”
tempo, uma face do próprio eu, do eu selvagem e, por isso, violento, não
do amante. A lacuna deixada pelo ente amado não é simplesmente superada, fica
latejando com chaga aberta, incurável e imperdoável. O ódio é, por essa razão, um
negativa do amor.
prisioneira de seus sentimentos pelo homem “cujo grande crime impunível era o de
Referências
BOSI, Alfredo (org.). O conto brasileiro contemporâneo. São Paulo: Cultrix, 2006.
BRAVO, Nicole Fernandez. O duplo. In: BRUNEL, Pierre (Org.). Dicionário de mitos
literários. Trad. Carlos Sussekind et al. 3. ed. Brasília: UNB; Rio de Janeiro: José
Olympio, 2000, p. 261-288.
CARVALHO, Luciane Bizari Coin de; CARVALHO, João Eduardo Coin de. Raiva.
São Paulo: Duetto, 2010. (Coleção Emoções: Mente & Cérebro)
GOTLIB, Nádia Battella. Clarice: uma vida que se conta. São Paulo: Ática, 1995.
HADDAD, Giselda. Amor. São Paulo: Duetto, 2010. (Coleção Emoções: Mente &
Cérebro)
MOSER, Benjamin. Clarice, uma biografia. Tradução de José Geraldo Couto. São Paulo:
Cosac Naify, 2009.