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Anais Eletrônicos do IV Seminário Nacional Literatura e Cultura

São Cristóvão/SE: GELIC/UFS, V. 4, 3 e 4 de maio de 2012. ISSN: 2175-4128


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O DUPLO EM O BÚFALO DE CLARICE LISPECTOR

Amael Oliveira (UFS)1

Não ter nascido bicho parece ser uma de minhas secretas nostalgias. Talvez seja
porque sou de sagitário, metade bicho.
Clarice Lispector

INTRODUÇÃO
Escritora de uma obra extensa e diversificada, Clarice Lispector nasceu em

1920 em Tchechelnik na Ucrânia. Com a família, imigra para o Brasil ainda antes de

completar um ano e meio, desembarcando em Maceió onde viveria por pouco tempo,

já que em seguida se mudaria para Recife. Ao longo da vida, escreveu contos,

romances, crônicas e livros voltados para o público infantil. E, em todos esses

gêneros, a autora alcançou um privilegiado. Faleceu nível de elaboração artística no

Rio de Janeiro em 9 de dezembro 1977, um dia antes de completar 57 anos.

A produção contística da autora a coloca na posição de destaque entre as

principais vozes do gênero na segunda metade do século XX. Publicou ainda em vida

sete coletâneas: Alguns contos (1952), Laços de família (1960), A legião estrangeira (1964),

Felicidade clandestina (1971), A imitação da rosa (1973), A via crucis do corpo (1974), Onde

estivestes de noite (1974). Após a sua morte, foi editado pela editora Nova Fronteira

um volume póstumo, contendo narrativas inéditas da autora, A bela e a fera (1979).

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Mestrando em Letras pela Universidade Federal de Sergipe. E-mail: amael.oliveira@aracaju.se.gov.br.
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Dessas obras, Laços de família é uma das mais populares, não só porque contém

narrativas antológicas como “Amor”, “Uma galinha”, “Feliz aniversário”, “Os laços

de família” e “O búfalo”, mas também porque representa uma das primeira

incursões da autora no gênero, tendo em vista que o volume de estreia, Alguns contos,

publicado na coleção “Cadernos de Cultura” pelo Ministério de Educação e Saúde

em 1952, contou apenas com seis narrativas.

Alfredo Bosi (2006), que elege os contos “O búfalo”, “Feliz aniversário” e

“Menino a bico de pena” como os mais representativos da autora, afirma que em

Clarice Lispector “seu espanto vem de constatar o que o senso comum já aceita sem

surpresa: por exemplo, o fato banal é infinitamente misterioso de que existem, fora e

além do eu, as coisas e outras consciências”. (BOSI, 2006, p. 14)

Desta forma, suas obras partem do que há de banal no cotidiano, da rotina

racionalizada que em um momento de privilegiada revelação é captada. Seus

personagens, na maioria mulheres, são surpreendidos por pequenos incidentes

domésticos que alteram a perspectiva adotada em relação ao mundo e a si mesmos,

como se um pequeno desvio do que já estava sedimentado no cotidiano tivesse o

poder de transformar a realidade em seu entorno.

Para Bosi (2006, p. 14), a pesquisa estética da contista, ainda que se expresse

por temática bastante diversa, “quer fale dos desencontros familiares, quer fale de

crianças ou de animais opacos e encerrados no seu mistério vital”, procura dar uma

versão existencial do mundo.


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Quando já não há uma firma rede mitológica de base, perdidas ou estancadas que
foram as fontes da sabedoria tradicional, o espírito paira inquieto sobre as coisas e as
pessoas e, não sabendo que sentido lhe atribuir, faz da vida uma constante
perplexidade. A que não responde o discurso psicológico simples, julgado rotineiro,
falseador. Então, é preciso descobrir, se não reinventar, o caminho que vai do eu
narrativo aos objetos. (BOSI, 2006, p. 13-14)

Essa versão existencial do mundo de que trata Bosi é caracterizada na escrita

clariciana pela perplexidade do ponto de vista adotado por seus narradores.

Observando o mínimo, o que é considerado irrelevante para o senso comum, esses

narradores são surpreendidos por pequenos incidentes que interrompe o curso

repetitivo do dia a dia.

A prosa de Clarice Lispector faz-se aos poucos, move-se junto com os seus exercícios
de percepção, e tacteia, e não pode nem quer evitar o lacunoso, ou o difuso, pois o seu
projeto de base é trazer as coisas à consciência, a consciência a si mesma. (BOSI, 2006,
p. 20)

Partindo dessas assertivas preliminares acerca da produção contística da

autora, este artigo analisa o conto “O búfalo”, publicado em 1960 na coletânea Laços

de família. O argumento desenvolvido neste trabalho é de que o animal, que dá nome

à narrativa, é, por um efeito de visão da própria personagem, um duplo tanto de si

mesma como do amante, que a rejeitou. Em um búfalo de um zoológico, a

personagem encontra o ódio que deveria sentir pelo amado.

O duplo em O búfalo
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Clarice Lispector sempre demonstrou possuir um amor por bichos em

crônicas, entrevistas e em sua vasta produção contista. São baratas, galinhas,

cachorros, coelhos, leões, girafas, macacos, peixes, búfalos, pombos, lagartixas,

pintos, periquitos, ratos, cavalos, patos.

Esse gosto, tão marcado, Clarice confirma em depoimento também da década de 70:
“Quando era pequena, eu olhava muito a galinha, muito tempo. E sabia imitar bicar
do milho e sabia imitar quando ela estava com doença. E me impressionou
tremendamente! Aliás, sou muito ligada a bicho. Então tremendamente à vida duma
oca. Uma galinha oca!”. (GOTLIB, 1995, p. 73)

Somente em “O búfalo”, que narra uma visita a um Jardim Zoológico, surgem

leões, uma girafa, um hipopótamo, macacos, um elefante, um camelo e um quati,

além do animal que dá título ao conto. A obra problematiza o encontro entre uma

mulher ferida pelo abandono do amante e o bicho que representa não só o seu duplo,

como o do próprio amante. O animal é fecundo do ódio que ela não consegue

elaborar em si mesma. A narrativa engendra, por isso, uma relação de duplicidade

entre a personagem e o animal enjaulado.

Acerca da noção de duplo, Nicole Fernandez Bravo (2000, p. 261) explica que o

termo consagrado pelo movimento do Romantismo é o de Doppelgänger2. A palavra,

por essa razão, “significa literalmente ‘aquele que caminha ao lado’, ‘companheiro de

2
Segundo as lendas germânicas, é um monstro ou ser fantástico que tem o dom de representar uma cópia
idêntica de uma pessoa que ele escolheu ou que passa a acompanhar. Doppelgänger se originou da fusão das
palavras alemãs doppel (significa duplo, réplica ou duplicata) e gänger (andante, ambulante ou aquele que vaga).
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estrada’ [...], ‘assim designamos as pessoas que se veem a si mesmas”. (BRAVO, 2000,

p. 261)

Conforme argumenta Nöel Carroll (1999, p. 68), a criação de duplos pode

também ser compreendida como um mecanismo de elaboração de monstruosidades.

Para o teórico, estruturalmente o duplo é um processo de multiplicação que revela o

que no personagem originário estava reprimido.

Um personagem ou conjunto de personagens é multiplicado em uma ou mais novas


facetas, cada uma delas representando outro aspecto do self, em geral, algum aspecto
que seja oculto, ignorado, reprimido ou negado pelo personagem que foi clonado.
(CARROLL, 1999, p. 68)

Em “O búfalo”, a mulher procura encontrar no animal o ódio que deveria

sentir pelo amante que a abandonou. “Deus, me ensine somente a odiar”, suplica a

personagem (LISPECTOR, 2009, p. 127). Incapacitada de odiar, a mulher passeia pelo

zoológico. De maneira vã, ela realiza um itinerário que passa pela jaula dos leões,

onde apenas percebe o amor, pela da girafa, que expressa “a tola inocência de quem é

grande e leve e sem culpa” (LISPECTOR, 2009, p. 126), pela do hipopótamo, que

contém um amor humilde, pela dos macacos, onde observa a felicidade e olhares

resignados de amor, pela do elefante, uma potência que se deixa conduzir

docilmente pelas crianças em um circo, pela do camelo, onde encontra a paciência,

pela do quati, que curioso a indagava, e, por fim, o encontro com o búfalo.
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De uma forma geral, a narrativa já se inicia em uma espécie de in media res3,

introduzida pela conjunção coordenada adversativa “mas”. A frase “Mas era

primavera”, que aparece em dois momentos da narrativa, não só introduz uma

oposição de sentido a algo que não é dito expressamente, como também parece

dialogar com um momento anterior ao início da narrativa. Daí resultar a sensação

para o leitor de a narrativa já começa duplamente, in media res. São duas histórias: a

do passeio pelo zoológico e a outra que não foi contada, mas que exerce influência no

andamento desta.

Esse caráter duplo se expressa pela referência a essa outra narrativa não dita,

que relata o abandono da mulher pelo amante, mola propulsora do conto. A

personagem procura no zoológico elaborar o ódio que lhe faltou no momento da

perda, já que perdoara o amante por não querê-la mais. A relação de duplicidade

entre as duas narrativas se torna evidente no final da obra quando os dois enredos se

entrelaçam paralelisticamente. “Eu te amo, disse ela então com ódio para o homem

cujo grande crime impunível era o de não querê-la. Eu te odeio, disse implorando

amor ao búfalo” (LISPECTOR, 2009, p. 134).

Mas, além desse duplo estrutural, existe outro representado pelas oposições

entre a mulher ferida e o animal enjaulado, entre o amor e o ódio, ou ainda, entre o

civilizado e o selvagem. A busca da personagem se revela como uma trajetória entre

3
Expressão latina que significa “no meio das coisas”. Segundo Moisés (2004, p. 240), o termo foi cunhado por
Horácio na Arte Poética. “Convenção própria da poesia épica clássica, preconizava que a ação do poema deveria
começar pelo meio, no pressuposto de que o trecho inicial não só carecia de interesse para o leitor como poderia
perfeitamente ser narrado mais tarde” (MOISES, 2004, p. 240).
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o humano e a animalidade, principalmente, se tiver em vista a oposição entre o amor,

emoção que é um construto do mundo civilizado, e o ódio (ou raiva), instinto de

defesa primitivo em todos os animais.

A raiva é uma das emoções consideradas naturais ou inatas – junto com alegria,
tristeza e medo – porque não pode ser separada em partes mais básicas. Ela pode
variar de leve irritação à fúria e à violência. Geralmente é sentida após injustiça,
restrição, bloqueio ou interrupção de uma atividade ou objetivo, ou como reação a um
estímulo aversivo, calúnia ou insulto, indignação moral, ataque, perda ou ameaça.
(CARVALHO; CARVALHO, 201, p.17)

O ódio é, pois, uma resposta instintiva de autoproteção. Já o amor é uma

criação humana, elaboração cultura de uma sociedade civilizada. “O amor é uma

invenção humana, construção cultural valiosíssima que assume roupagens

diferenciadas a cada época, ainda que mantenha a força avassaladora dos

sentimentos”. (HADDAD, 2010, p. 09)

Como o amor depende do outro, do amante que se une a ele, é a relação

amorosa também um duplo, pois está vinculado ao mito do andrógino, criatura que

desafiou os deuses e que como punição recebeu a secção em duas partes. Separadas,

as metades se tornaram incompletas e sempre em busca uma da outra. O mito,

cunhado pelo filósofo grego Platão, analisa a relação amorosa como sempre dupla,

sempre dependente de um outro para se completar, restaurando nostalgicamente a

antiga unidade.

Como a natureza humana foi dividida em duas, cada uma das partes, saudosa, unia-
se à outra, aos abraços, ardentes por se confundirem num único ser. Morriam de fome
e de inércia porque não queriam fazer nada separadamente. [...] Eros, que atrai um ao
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outro, está implantado nos homens desde então para restaurar a antiga natureza, faz
de dois um só e alivia as dores da natureza humana. Cada um de nós é, portanto, a
metade complementar de outro (um símbolo). (PLATÃO, 2009, p. 65-67)

Esse parece ser o motivo do mal-estar da personagem que desesperada

interroga a Deus sobre sua solidão. “Oh, Deus, quem será meu par neste mundo?”

(LISPECTOR, 2009, p. 128). A pergunta confirma o caráter duplo da noção platônica

do amor, posto que se direciona para a crença de que existe um outro, criado para

completá-la. Esse senso de solidão está expresso ainda pela nulidade de sua figura

entre os demais seres do zoológico. Não vista, a mulher vaga como um fantasma

entre as jaulas do local.

Nunca o perdão, se aquela mulher perdoasse mais uma vez, uma só vez que fosse, sua
vida estaria perdida – deu um gemido áspero e curto, o quati sobressaltou-se -
enjaulada olhou em torno de si, e como não era pessoa em quem prestassem atenção,
encolheu-se como uma velha assassina solitária, uma criança passou correndo sem vê-
la. (LISPECTOR, 2009, p. 131)

A invisibilidade é marcada ainda pelo uso de um casaco marrom, uma espécie

de esconderijo opaco para a sua identidade. A cor denota a opacidade de sua

imagem. “Dentro de um casaco marrom, respirando sem interesse, ninguém

interessado nela, ela não interessada em ninguém” (LISPECTOR, 2009, p. 132). A

vestimenta da personagem também a aproxima do animal. A roupa é quase uma

camuflagem, uma espécie de pele ou de pêlos.

Essa invisibilidade será apenas alterada pela presença do búfalo. O bicho nota

a presença da mulher e vem em sua direção. “De longe, no seu calmo passeio, o
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búfalo negro olhou-a um instante. [...] Mas de novo ele pareceu tê-la visto ou sentido.

[...] E mais uma vez o búfalo pareceu notá-la” (LISPECTOR, 2009, p. 133).

A insistência em demarcar o fato de ser vista pelo animal – que aparece

ressaltada em três pontos da narrativa - denota a preocupação com o olhar do outro,

do duplo. Ser visto é também ser amado? Para a personagem, o amor e o ódio andam

juntos e se mesclam paradoxalmente. “Eu te odeio, disse implorando amor ao

búfalo” (LISPECTOR, 2009, p. 134).

A perda do amante desorienta a personagem que não consegue elaborar por

ele as emoções destrutivas do ódio. O ódio dito não é o ódio sentido, vivenciado, isto

porque, a personagem foi, por assim dizer, domesticada pelo ambiente civilizado

urbano e, por essa razão, higienizado dos sentimentos primitivos, da violência, da

raiva, do “coração selvagem da vida”, como escreve a autora em seu livro de estreia.

“Eu te odeio”, disse ela para um homem cujo crime único era o de não amá-la. “Eu te
odeio”, disse muito apressada. Mas não sabia sequer como se fazia. Como cavar na
terra até encontrar a água negra, como abrir passagem na terra dura e chegar jamais a
si mesma? (LISPECTOR, 200, p. 127)

De acordo com o biógrafo americano Benjamin Moser (2009, p. 93), a

predileção de Clarice por histórias de bichos já aponta desde o seu primeiro romance

Perto do coração selvagem (1944), para um ideal filosófico, a saber, uma recusa de

qualquer moralidade antropocêntrica. Para o biógrafo (2009, p.93), a escritora

brasileira rejeita a noção de moralidade, definida como um “esforço para elevar a

vida humana, para lhe dar um valor humano”. Ainda segundo Moser (2009, p. 93), a
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aproximação de Clarice do universo animalesco reflete uma postura que nega a

condição de superioridade do homem em relação aos demais animais.

É essa tentativa de reduzir a vida às dimensões humanas – qualquer ideia de que a


vida é humana ou de que o universo é organizado para confortar os humanos – que
Clarice rejeitará de modo célebre em A paixão segundo G. H., monumental romance
de 1964 em que a protagonista se dá conta de sua identificação com uma barata.
(MOSER, 2009, p. 93)

A rejeição pelo civilizado encontra sua metáfora no passeio da montanha

russa. Aparentemente violento, o trajeto não satisfaz o anseio da personagem pela

experiência concreta de um risco selvagem. “Só isso? Só isto. Da violência, só isto”

(LISPECTOR, 2009, p. 130). A montanha russa é, por isso, a representação da

violência segura, do risco calculado matematicamente, é uma resposta ao desejo

humano de vivenciar o perigo, a aniquilação do próprio ser, da quase-morte, uma

espécie de válvula de escape para essa aspiração destruidora. Contudo, é um

brinquedo, ou seja, depois da volta violenta, a personagem retorna em segurança

para o seu lugar, que se confunde com uma prisão, com uma jaula.

A metáfora da jaula também é posta como uma forma de representar o duplo.

Se de um lado há o animal trancado em grades de ferro, do outro está o homem

trancado em outro tipo de grade, na grade da civilização, do bom tom, do

comportamento adequado e socialmente aceito. Mesmo fora da cela, a mulher é

também uma enjaulada. “A testa estava tão encostada às grades que por um instante

lhe pareceu que ela estava enjaulada e que um quati livre a examinava”

(LISPECTOR, 2009, p. 130).


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Dessa forma, o encontro com o seu duplo revela à personagem a sua

condição também de animal, também enjaulado, presa de seus próprios sentimentos.

“Lá estavam o búfalo e a mulher, frente a frente. Ela não olhou a cara, nem a boca,

nem os cornos. Olhou nos olhos” (LISPECTOR, 2009, p. 135). E, por essa troca de

olhares, o animal a ensina a odiar, ensina-a a encontrar em si mesma as origens de

sua raiva contida e reprimida pelo amante que a deixou. “Lentamente a mulher

meneava a cabeça, espantada com o ódio com que o búfalo, tranquilo de ódio, a

olhava” (LISPECTOR, 2009, p. 135)

Considerações finais

Em “O búfalo”, Clarice Lispector elabora uma narrativa de confronto, em que

dois personagens – o animal também se configura como um personagem – se

enfrentam frente a frente, em uma luta silenciosa de olhares. Se o duplo, como afirma

Bravo (2000, p. 263), pode ser a representação de “uma parte não apreendida pela

imagem de si que tem o eu, ou por ela excluída”, o búfalo é, pois, uma face

complementar da mulher, e por extensão da própria humanidade, já que o bicho

também é o duplo do amante. “Trata-se das duas faces complementares do mesmo

ser”, garante Bravo (2000, p. 263).

Como num espelho, a mulher precisa olhar nos olhos do animal para

descobrir em si o ódio reprimido e silenciado pelo perdão. E, como se estivesse

diante de um monstro, a personagem desmaia como consequência da vertigem que o


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duplo engendra. O reconhecimento do desejo assassino, do ódio contido, desarticula

as bases de sua identidade humana, aproximando-a do animal preso. “Presa como se

sua mão se tivesse grudado para sempre ao punhal que ela mesma cravara”

(LISPECTOR, 2009, p. 135).

Dessa forma, o búfalo reaparece como um outro, o duplo, que é, ao mesmo

tempo, uma face do próprio eu, do eu selvagem e, por isso, violento, não

domesticado. A mulher se encontra no animal, no reconhecimento de seus contornos

selvagens, nas proximidades do coração mais primitivo, da experiência mais vital. O

amor, duplamente instituído na relação do eu com o outro, é transitivo, necessitando

de um complemento ausente, que nessa narrativa é substituído pelo animal, o duplo

do amante. A lacuna deixada pelo ente amado não é simplesmente superada, fica

latejando com chaga aberta, incurável e imperdoável. O ódio é, por essa razão, um

duplo do amor desfalcado, se misturando nele paradoxalmente. É, pois, a face

negativa do amor.

O encontro aparentemente banal entre uma mulher e um animal enjaulado se

transforma em Clarice Lispector em uma experiência subjetiva que desestabiliza os

limites identitários da personagem, que como o animal também se encontra

prisioneira de seus sentimentos pelo homem “cujo grande crime impunível era o de

não querê-la” (LISPECTOR, 2009, p. 134). Rejeitada e ferida, a personagem se liberta

no contato com o que há de mais primitivo em si mesma, o que fora domesticado


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pelo processo civilizatório. Livre de si mesma, a mulher aprende a odiar com a

liberdade de um búfalo selvagem, ainda que preso num zoológico.

Referências

BOSI, Alfredo (org.). O conto brasileiro contemporâneo. São Paulo: Cultrix, 2006.

BRAVO, Nicole Fernandez. O duplo. In: BRUNEL, Pierre (Org.). Dicionário de mitos
literários. Trad. Carlos Sussekind et al. 3. ed. Brasília: UNB; Rio de Janeiro: José
Olympio, 2000, p. 261-288.

CARROLL, Nöel. A filosofia do horror ou paradoxos do coração. Tradução de Roberto


Leal Ferreira. Campinas: Papirus, 1999.

CARVALHO, Luciane Bizari Coin de; CARVALHO, João Eduardo Coin de. Raiva.
São Paulo: Duetto, 2010. (Coleção Emoções: Mente & Cérebro)

GOTLIB, Nádia Battella. Clarice: uma vida que se conta. São Paulo: Ática, 1995.

HADDAD, Giselda. Amor. São Paulo: Duetto, 2010. (Coleção Emoções: Mente &
Cérebro)

LISPECTOR, Clarice. O Búfalo. In: LISPECTOR, Clarice. Laços de família. Rio de


Janeiro: Rocco, 2009, p. 126-135.

MOSER, Benjamin. Clarice, uma biografia. Tradução de José Geraldo Couto. São Paulo:
Cosac Naify, 2009.

PLATÃO. O banquete. Tradução de Donaldo Schüler. Porto Alegre: L&PM, 2009.

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