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Resumo
O artigo apresenta uma análise das representações de gênero de três personagens da Série
Clássica Cavaleiros do Zodíaco: Afrodite de Peixes, Misty de Lagarto e Shun de Andrômeda.
A obra televisiva convida a uma reflexão acerca dos traços comumente associados aos
gêneros em função das caraterísticas ambíguas destes personagens, cujos corpos e
personalidades deslizam entre o que se convenciona considerar como características femininas
e masculinas. A pesquisa toma como referencial teórico autores dos Estudos Culturais e dos
Estudos de gênero, com o objetivo de analisar os personagens a partir de duas categorias:
caracterização visual (rosto e corpo) e ações. O anime sugere um tipo de masculinidade em
que, para vencer, é necessário mais do que ousadia e força física, mas uma complexa rede
A
subjetiva de valores que inclui inclusive qualidades consideradas femininas.
Abstract
99
The paper presents an analysis of gender representations of three characters from the
Classical Knights of the Zodiac Series: Pisces Aphrodite, Lizard Misty and Shun from
Andromeda. The television series invites us to a reflection on the traits commonly associated
with the genres because of the ambiguous characteristics of these characters, whose bodies
and personalities slide between what are conventionally considered to be as female and male
characteristics. The theoretical approach of the research is based in authors of Cultural Studies
and Gender Studies, with the objective of analyzing the characters from two categories: visual
and body characterization and personality traits. The anime suggests a type of masculinity in
which to win, it takes more than daring and physical strength, but a complex subjective network
of values that includes qualities considered feminine.
Keywords: Gender identity; Cultural Studies; Gender studies; Knights of the Zodiac
INTRODUÇÃO
A
cultura japonesa no mundo ocidental se popularizou nas últimas três
décadas, ampliando a oferta desde a culinária típica (sushi, sashimi, temaki,
yakissoba, sake), artes marciais (karatê, judô, aikidô, sumô, jiujitsu, ninjitsu,
kendô), músicas (j-pop, j-rock), histórias em quadrinhos (mangás) e até os desenhos
animados (animes). Com a proliferação das redes sociais, de platafomas como o
1 Doutora em Comunicação e Informação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Professora do curso de Comunicação Social da Universidade Luterana do Brasil (ULBRA). Email:
gabriela.mralmeida@gmail.com.
2 Mestre em Educação pela Universidade Luterana do Brasil (ULBRA). E-mail:
anelisefmachado@gmail.com
Amazônia e o Cerrado: entre ecos, diálogos e devires comunicacionais
N.08, Vol. 8, ed.008 2018, Ano 2017-18
A
cavaleiros. A narrativa de aventura conta a história de cinco cavaleiros de bronze que
têm como missão proteger a humanidade de ameaças malignas. Um de seus
personagens principais é Shun de Andrômeda, um herói pacífico, de feições
feminilizadas, voz delicada e que em muitos episódios é confundido com uma mulher.
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Sua armadura cor-de-rosa, com o formato de seios no peitoral, homenageia a
princesa Andrômeda. A personagem destaca-se por não gostar de conflitos e tentar
resolvê-los através do diálogo. Frequentemente demonstra seu afeto pelos demais
cavaleiros e se revela afetivamente dependente de seu irmão mais velho, Ikki. Outros
cavaleiros, como o de armadura de ouro, Afrodite de Peixes, e o de armadura de
prata, Misty de Lagarto, apesar de terem papéis secundários na narrativa, são
personagens que também contribuem para este estudo, devido às suas características
físicas e psicológicas dúbias.
Deste modo, para além da sua popularidade, a série é um produto da cultura
massiva que nos estimula a pensar a questão da identidade de gênero de forma
complexificada, em função de características ambíguas de alguns dos seus
personagens. O presente artigo tem como objetivo identificar aspectos das
representações gênero de Afrodite de Peixes, Misty de Lagarto e Shun de
Andrômeda, a partir de duas categorias: caracterização visual (rosto e corpo) e
ações, tomadas aqui como atos perpetrados pelos personagens em face a
3Abreviação de costume play, que define o ato de vestir-se a caráter como um personagem.
4Expressão originada do estrangeirismo animation e utilizada para denominar séries de desenho
animado japonesas.
5 Fonte: Edição 1366 da Revista VEJA, 16 de novembro de 1994. Disponível em:
<https://www.cavzodiaco.com.br/revista_veja>. Acesso em 02/09/2015.
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A
o entendimento sobre as identidades de gênero na atualidade.
A representação dos gêneros, assim como as identidades, sofre transformações
contínuas6. A ideia tradicional de que o homem e a mulher possuem papéis sociais
definidos acaba sendo diretamente abalada neste contexto. Para compreender os
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gêneros na contemporaneidade, torna-se necessário desapegar-se de argumentos
que busquem limitar o seu entendimento a meras diferenciações biológicas. Segundo
Louro (1997, p. 21), “a forma como essas características (sexuais) são representadas
ou valorizadas, aquilo que se diz ou se pensa sobre elas que vai constituir,
efetivamente, o que é feminino ou masculino em uma dada sociedade e em dado
momento histórico”.
A abordagem deste estudo será realizada através de uma pesquisa
qualitativa de caráter analítico-interpretativo, tendo como referência a análise da
imagem conforme formulada por Martine Joly (1994). Os dados serão colhidos na
versão adaptada e dublada da Série Clássica Cavaleiros do Zodíaco que se encontra
6 Um espaço relevante para esta discussão têm sido eventos como o Seminário Internacional
Desfazendo Gênero e o Seminário Internacional Fazendo Gênero, promovidos com o objetivo de
consolidar caminhos, no âmbito institucional da pesquisa acadêmica, para a abordagem de diferentes
perspectivas teóricas, conceituais e metodológicas relacionadas às questões de gênero e sexualidade.
Ao mesmo tempo, pode-se observar que por todo o país uma série de movimentos sociais como a
Marcha das Vadias, Parada Gay e a própria conquista do direito ao casamento homoafetivo também
vêm fortalecendo uma discussão paralela à perspectiva dicotômica de gêneros. O ativismo LGBT tem
colaborado com a quebra de paradigma. O que antigamente era visto como objeto de censura, hoje é
explorado pela TV aberta. A dissertação Bicha (nem tão) má: representações da homossexualidade na
telenovela Amor à Vida (SILVA, 2015) é um exemplo de como o campo de comunicação também vem se
apropriando cada vez mais das discussões sobre gêneros e sexualidade a fim de fomentar
questionamentos acerca da diversidade.
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Esta seção é composta por três temas que se inter-relacionam para fornecer
subsídios teóricos à análise posterior dos personagens Afrodite de Peixes, Misty de
Lagarto e Shun de Andrômeda. Serão discutidas aqui as questões de identidade,
A
gênero e sexualidade que nortearão a posterior análise de Cavaleiros do Zodíaco.
Neste primeiro momento, abordamos de forma teórica os três conceitos mencionados,
buscando ensaiar uma relação com o universo empírico da pesquisa. As discussões
apresentadas têm como objetivo trabalhar as perspectivas de identidade, gênero e
sexualidade como conceitos que estão em construção, distanciando-se do propósito de
apontar verdades absolutas sobre o que são ou que deixam de ser, e tendo como
finalidade acrescentar compreensões teóricas sobre seus possíveis significados na
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contemporaneidade.
É fundamental, no entanto, mencionar que tomamos as contribuições de
Douglas Kellner em A Cultura da Mídia (2001) como pano de fundo para pensar nas
relações entre identidade, gênero e sexualidade atravessadas por uma dimensão
midiática, pois pensamos a cultura da mídia, à luz do autor, como “um terreno de
disputa que reproduz, em nível cultural, os conflitos fundamentais da sociedade, e não
como instrumento de dominação” (KELLNER, 2001, p. 134).
Partiremos do conceito de identidade defendido por Stuart Hall, que leva em
consideração uma das principais características para a fundamentação deste estudo:
seu caráter instável. Aquilo que em um determinado momento pode apresentar-se
como um elemento significativo para a identificação de sujeitos poderá modificar-se
conforme o passar do tempo por inúmeras vezes. Como Hall (1992) define, a
identidade torna-se uma “celebração móvel”, que se transforma continuamente com
relação às formas pelas quais somos representados nos sistemas culturais que nos
cercam, o que nos leva a refletir sobre a relevância do contexto histórico, social e
cultural para a compreensão da identidade de um indivíduo.
Tanto as produções simbólicas quanto nossas relações interpessoais podem ser
um estímulo para a metamorfose. Mas é a partir de um filtro subjetivo (BARBERO,
2009) que são mediados os conteúdos com os quais os sujeitos se identificam na tevê,
na internet, nas revistas, jornais ou na exposição social. Com este filtro são feitas
combinações e recombinações daquilo que faz sentido no universo interno e externo
do sujeito.
Considerando-se, especialmente, a amplificação dos discursos em favor de
A
grupos minoritários nas mídias na última década, que popularizaram discussões sobre
temas envolvendo as mulheres e as populações LGBTs e negras, como o feminismo, o
racismo e a homofobia, torna-se compreensível que determinadas agendas passem a
fazer parte das relações sociais de forma mais presente:
Embora a série analisada nesse artigo seja anterior ao cenário descrito acima
(afinal, foi produzida e veiculada no Brasil na década de 1990), a recente
disseminação das discussões envolvendo gênero e sexualidade, tanto nas mídias
quanto no campo acadêmico, de algum modo explicam o desejo por olhar Cavaleiros
do Zodíaco a partir dessa perspectiva.
Os super-herois, frutos da cultura midiática, são objetos bastante analisados
pelas pesquisas no campo da Comunicação. Isto dá-se pelo entendimento de que “não
há imagens como representações visuais que não tenham surgido de imagens na mente
daqueles que as produziram, do mesmo modo que não há imagens mentais que não
tenham alguma origem no mundo concreto dos objetos visuais” (SANTAELLA e NÖTH,
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desestabilizando o quadro de referências nos quais os sujeitos ancoravam suas
identidades. A noção de que era possível controlar e estabilizar as identidades com
modelos sociais vem sendo cada vez mais desmistificada com o crescente número de
estudos sobre identidade de gênero, sexualidade e etnia. O “descontrole” ou
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descentralização pode ser observado como um processo que fortalece a miscigenação
cultural. As trocas de significados, representações, filosofias entre sociedades
historicamente distintas auxiliam nesta mudança estrutural.
Lidar com os constantes estímulos à diversidade em muitos momentos torna-se
desafiador. A sensação de que o pertencimento a um grupo depende da sua
adaptação a uma lógica que restringe para incluir interfere diretamente na escolha
do filtro subjetivo que forma a identidade do indivíduo. Neste cenário, a moderação
torna-se em muitos momentos um mecanismo de autocensura e repreensão, pela ideia
de que as identificações escolhidas possam não estar de acordo com o sistema ao
qual se deseja pertencer. Para Paes:
A
diferentes, variando conforme seu contexto social, por exemplo: “nos espaços políticos,
tradicionalmente masculinos, é comum as mulheres serem cobradas a deixarem um
pouco de lado a sua feminilidade e demonstrarem características compatíveis com o
modelo estabelecido” (FARIAS e NOBRE, 1997, p. 32 e 33).
O encontro de identificações do universo masculino com o feminino e vice-versa
é uma característica que pode ser compreendida como uma adaptação que os sujeitos
contemporâneos vêm sofrendo para administrar suas zonas de poder. A instabilidade
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das identidades sociais como um todo oportuniza a descoberta de outras significações
(não necessariamente novas) que muitas vezes foram suprimidas por determinados
hábitos que são impostos de forma silenciosa pelas práticas sociais restringentes. Há
de se observar que estas práticas não são propriamente de um ou outro sujeito que
tenta persuadir os grupos a se fechar em categorias excludentes, mas possivelmente o
reflexo de uma herança primitiva, como nas tribos ou clãs, que para distinguir-se dos
adversários precisavam unificar sua forma de vestir, pensar, agir.
Os questionamentos acerca dos gêneros em muitos momentos se revelam
complementares aos estudos das identidades. Partimos da visão de que o gênero é
uma construção cultural, não sendo, portanto, um conceito que se fixe ao sexo
biológico (BUTLER, 2015). A concepção de sexo binário (masculino e feminino) que
estabilizava os sujeitos vem sendo questionada sob diversas perspectivas que
encontram, em sua maioria, referências nos estudos sobre feminismo.
Segundo Butler (2015, p. 12) “o gênero pode ser compreendido como um
significado assumido por um corpo (já) diferenciado sexualmente; contudo, mesmo
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meio passivo sobre o qual se inscrevem significados culturais, ou então como
instrumento pelo qual uma vontade de apropriação ou interpretação determina o
significado cultural por si mesma”.
Em outras palavras, o corpo é compreendido como veículo (meio) pelo qual
106
transitam de forma não-fixada as inúmeras combinações de identificações que podem
compor um gênero. Conforme visto anteriormente a respeito das identidades instáveis,
estas identificações podem revelar-se em muitos momentos contraditórias – em outra
perspectiva, plurais – e diferentes do modelo tradicional.
Na perspectiva de Louro (2003, p. 23), os gêneros se constroem no âmbito das
relações sociais: “Observa-se que as concepções de gênero diferem não apenas entre
sociedades ou momentos históricos, mas no interior de uma dada sociedade, ao se
considerar diversos grupos (étnicos, religiosos, raciais, de classe) que a constituem”.
A representação da sexualidade na pós-modernidade é um tema que possui
conexão direta com as questões discutidas anteriormente. Por muito tempo, ela
apresentou-se como uma área da pedagogia regularizadora das práticas sociais, a
qual parece querer ensinar sobre os modelos desejáveis de masculino e feminino. Esta
visão fomentou um inconsciente coletivo pré-conceituado na ideia de que existem
comportamentos adequados aos sexos biológicos e que os mesmos estão conectados
aos gêneros. Nos acostumamos a ver com estranhamento toda representação
subversiva ao modelo tradicional, fortalecendo a cultura da exclusão de
representações da diversidade. Segundo Louro, as afirmativas “É uma menina!” ou “É
um menino!” são mais do que descrições, são decisões que tomamos sobre um corpo:
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Encaramos com anseio estruturas insolentes e imprevisíveis, por desconhecimento de
sua força, pelo poder de se reconstruir inúmeras vezes e de não sabermos como
desconstruí-las (ou destruí-las).
Seguindo nesta mesma linha de raciocínio, Louro explica que a “matriz
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heterossexual” é um dos fatores que ditam os padrões e ao mesmo tempo,
paradoxalmente, fornecem subsídios para as transgressões: “É em referência a ela
[matriz heterossexual] que se fazem não apenas os corpos que se conformam às
regras de gênero e sexuais, mas também os corpos que as subvertem” (LOURO, 2015,
p. 17).
Zago complementa que a heterossexualidade compulsória é produto e efeito
das relações de poder e define o mecanismo da sexualidade como um dispositivo,
que “ao invés de proibir e negar, incita discursos, gere a vida e estimula a produção
de corpos coerentemente sexuados, generificados e sexualidados” (ZAGO, 2013, p.
31). As perspectivas apontadas são um ensaio para a posterior análise dos
personagens Afrodite de Peixes, Misty de Lagarto e Shun de Andrômeda, a qual será
apresentada na seção seguinte.
A
espanhola, que por sua vez se baseou na adaptação/dublagem francesa) explica os
inúmeros problemas apresentados na versão exibida na Rede Manchete, os quais
foram corrigidos após redublagem dos estúdios Álamo, que foi exibida no canal
fechado Cartoon Network em 2003.
108
A saga12 Cavaleiros do Zodíaco é um produto japonês que mistura aspectos da
cultura oriental com a cultura ocidental. As motivações dos personagens envolvem
valores da cultura oriental, como honra e bravura. Entretanto, há uma mistura entre
elementos simbólicos presentes na cultura ocidental, os quais são expressos através
das feições e ambiguidades dos personagens. Em entrevista 13 , Masami Kurumada
comenta sobre a origem da sua obra:
Todas as historias que faço são de luta. Essa essência não se
altera nos mundos que crio. A única diferença está no
tempero, no algo mais. Então, em vez dos personagens se
transformarem como os super-heróis da TV, pensei neles
vestindo armaduras. As armaduras precisavam ser bonitas, e
aproveitar a Mitologia Grega e a Astrologia dava mais
força à idéia. Portanto, peguei uma boa historia de luta,
adicionei um elemento mais fashion – que são as armaduras –
A
quadrinhos norte-americanas.
Braga Júnior (2011) destaca a preocupação com as expressões faciais e
corporais, que interferem na construção dos personagens: “Cortes, formas, volumes,
tamanhos são executados ao extremo. Existe, portanto, uma grande preocupação com
a cabeça dos personagens e suas vestes que sempre são bem trabalhadas, nos
mínimos detalhes.”
Outra questão que deve ser observada é que tanto os mangás quanto os
animes exploram a expressão corporal e os aspectos psicológicos de seus
109
personagens. Mesmo que uma produção tenha como público-alvo jovens do sexo
masculino, como é o caso de Cavaleiros do Zodíaco, ela poderá apresentar traços
diversos que tenham como finalidade outros segmentos de público, como afirma
Schmaltz Neto:
Apresentando-nos um corpo outro, diferente daquele das
formações discursivas a que estamos acostumados, o animê
instiga questões moralmente discutidas em todos os campos
de controle Ocidental e que no Japão são explícitas ou
admiradas: androginia, bissexualidade, pedofilia e
voyeurismo (SCHMALTZ NETO, 2013).
heróis míticos que despertariam para proteger a humanidade das forças malignas. O
universo diegético da narrativa se passa na Terra, em diferentes países, com
referências claras à Grécia.
Nesta seção, que apresenta uma análise destes três personagens, serão
observados alguns episódios em que cada um dos três cavaleiros se destaca, levando
em consideração que Shun de Andrômeda possui maior atuação na narrativa que os
demais e, por este motivo, terá maior número de episódios analisados.
A análise se baseia na proposta metodológica sugerida por Martine Joly
(1994), que propõe, num primeiro momento, uma descrição capaz de traduzir a
percepção visual em linguagem verbal; num segundo momento a reprodução do texto
que acompanha a imagem e, num terceiro momento, a separação de análise de três
tipos de mensagens possíveis: plástica (elementos visuais que compõem a imagem,
A
como ângulo, composição, suporte, formas, cores), icônica (figurativa, a partir das
quais surgem conotações decorrentes de interpretações baseadas em significados
culturais pré-estabelecidos) e linguística, que visa inferir as funções do texto na
mensagem.
ESTRANHOS NO NINHO
Três cavaleiros destinados a lutar contra as forças malignas para proteger a
110
deusa Atena, e consequentemente a Terra. Três corpos repletos de significados, traços
ambíguos, que oscilam entre o que nós (ocidentais) conhecemos como referências
masculinas e femininas. Os personagens apresentados a seguir são imagens que se
sobressaem na Série Clássica Cavaleiros do Zodíaco. Provocam estranhamento e
intimidam, por suas características físicas e psicológicas serem complexas e instáveis.
Afrodite de Peixes é um dos 12 cavaleiros de armadura de ouro, que na
diegese habita o templo da deusa Atena, no Santuário da Grécia, e é um dos
guerreiros mais próximos de Atena. Misty de Lagarto é um dos 24 cavaleiros de
armadura de prata. Somente os cavaleiros de ouro possuem local fixo na aventura.
Misty é um personagem que tem uma pequena aparição na Série Clássica Cavaleiros
do Zodíaco, entretanto, protagoniza uma das cenas mais ricas para a análise aqui
proposta, na qual pode ser observada claramente a intenção do autor em impactar o
espectador com a exibição do personagem nu, envolto em sombras e com uma
silhueta que parece indefinida.
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nos a pensar sobre o significado deste subtexto, já que em Cavaleiros do Zodíaco o
personagem é um homem.
Na série, Afrodite tem aproximadamente 22 anos, nacionalidade sueca, mais
de um metro e oitenta de altura, cabelos longos azuis, corpo atlético e feições que em
111
determinados enquadramentos ressaltam delicadeza em seus olhos azuis e traços
delicados. Em um primeiro olhar, Afrodite é um personagem enigmático e que
facilmente pode ser alvo de rotulações superficiais, que priorizem o entendimento de
que há uma atuação fixa de papeis masculinos e femininos.
Sua caracterização corporal é composta pela armadura de ouro da
constelação zodiacal de peixes, e o desenho da sua vestimenta remete à imagem de
escamas de peixes. Sua forma de ataque é o lançamento de três tipos de rosas
mágicas: Rosa Diabólica Real - rosas vermelhas que liberam uma fragrância letal;
Rosa Sangrenta - rosas brancas que perfuram o coração do adversário e sugam seu
sangue; Rosa Piranha - rosas pretas que têm o poder de desintegrar o adversário.
A partir de seus golpes, pode-se observar que Afrodite é um personagem
sedutor e violento, com comportamento forte, porém também oscilante. No episódio
68 (Um maravilhoso Guerreiro Afrodite), Seiya e Shun vão à Casa de Peixes para
enfrentar Afrodite, que lutaria contra os guerreiros para defender o falso Mestre do
Santuário (que na verdade era Saga, o cavaleiro ouro de gêmeos). Na cena, Afrodite
é descrito da seguinte forma:
Mestre (Saga): O cavaleiro de ouro que defende a última das doze
Casas, a Casa de Peixes, é o cavaleiro mais formoso dos 88
combatentes. É um guerreiro de muito brilho e muito orgulho entre o
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céu e a terra… Qualquer um esperaria que ele não fosse tão forte por
causa de sua beleza, mas ao contrário, ele é o cavaleiro mais temível.
A Figura 1: Detalhes da cena em que Afrodite aparece na Casa de Peixes para lutar contra
Seiya e Shun.
(Impressão de tela da Série Clássica Cavaleiros do Zodíaco)
112
A
assumindo comportamentos semelhantes àqueles identificados como
femininos. (WAGNER e BONIN, 2008)
Episódio 23 (Misty de Lagarto - Um anjo da morte), após lutar contra Seiya, Misty
banha-se no oceano, enojado com um respingo de sangue que atingiu seu corpo. Ele
diz, na cena:
Misty: Maldição, este sangue… Estou imundo, vou me lavar no
oceano. Quando meu corpo está sujo a minha alma também está.
A
Figura 2: Cena em que o sangue de Seiya atinge Misty após uma luta.
(Impressão de tela da Série Clássica Cavaleiros do Zodíaco)
Um dos códigos que se evidenciam na cena é a cor rosa, tanto em sua pele
quanto em detalhes de sua roupa. Este elemento marcante da caracterização do
personagem é um dado extremamente codificado na cultura ocidental: desde o nosso
nascimento, somos induzidos à noção de que o rosa representa o sexo biológico
114
feminino, assim como o azul o masculino.
O olhar e os lábios do personagem também se destacam, assim como no
personagem Afrodite. No entanto, suas expressões são diferentes: Misty é um
personagem vaidoso, obcecado por sua própria imagem, egocêntrico, narcisista. Seu
olhar é para si, enquanto o olhar de Afrodite é para os outros. Em sequência à cena
da figura 2, acontece a seguinte fala do personagem que reforça a ideia
apresentada:
Misty: Meu deus todo poderoso, como eu sou bonito, como eu sou
forte, mais do que qualquer outra coisa na Terra... A lua, as estrelas, o
sol brilhante são insignificantes diante de mim. Nada é mais bonito do
que eu…
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Figura 3: Cena em que Misty de Lagarto banha-se em mar após se sujar de sangue em luta
contra Seiya. (Impressão de tela da Série Clássica Cavaleiros do Zodíaco)
A
entre sombras e reflexos que revelam o seu corpo de forma poética, sutil e não
explícita. A imagem é bastante erotizada, sensual, entretanto o personagem não
exerce sua sexualidade na série, sugerindo uma tensão. O movimento de sua mão ao
alisar o cabelo, a silhueta acinturada, o destaque da musculatura do seu busto, a pose
de seu corpo e a própria luz do sol que ajuda a encobrir seu sexo são códigos que
favorecem uma intepretação ambígua da cena. O olhar automaticamente procura
códigos que o definam como sendo uma coisa ou outra, masculino ou feminino, mas
encontra signos tanto de um quanto de outro.
115
SHUN, O COELHO QUE SE ATIRA NO FOGO
Na narrativa, Shun de Andrômeda é um menino de 13 anos, nacionalidade
japonesa, um metro e sessenta e cinco de altura, cabelos compridos verdes, olhos
castanhos e corpo esguio. A formação genealógica de Cavaleiros do Zodíaco descreve
Shun de Andrômeda como um dos filhos adotivos do senhor Mitsumasa Kido, um
arqueólogo que recebeu a tarefa de proteger a reencarnação de Atena e auxiliar na
formação dos cavaleiros guardiões do santuário da deusa.
No processo de formação dos guerreiros, houve um sorteio para a escolha do
lugar onde cada um iria para encontrar a sua armadura. Shun recebeu um dos mais
perigosos lugares para ir, a Ilha da Rainha da Morte. Sensibilizado, Ikki, seu irmão
mais velho, se ofereceu para ir em seu lugar, e Shun foi à Ilha de Andrômeda, local
que havia sido destinado originalmente a seu irmão.
Na Ilha de Andrômeda, Shun precisou passar por um teste de resistência,
permanecendo acorrentado e resistindo até o fim, para ser digno de receber a
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16Segundo a Mitologia Grega, a fúria do Deus Poseidon foi desencadeada após a Rainha Cassiopéia
(mãe da princesa Andrômeda) ter comparado a beleza da filha à beleza das Nereidas (filhas do deus
Poseidon). No mito, quando a princesa estava quase morrendo ela foi salva pelo semideus Perseu e
assim Zeus homenageou-a pelo seu ato de bravura e deu seu nome à constelação de Andrômeda.
17 Disponível em: <http://www.robolaranja.com.br/cinco-cenas-proibidas-de-cavaleiros-zodiaco>
Acesso em: 07/12/2015.
Amazônia e o Cerrado: entre ecos, diálogos e devires comunicacionais
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A
namorada, Esmeralda, a imagem do irmão:
Figura 5: Cena em que Ikki confunde a sua namorada, Esmeralda, com seu irmão mais novo,
Shun. (Impressão de tela da Série Clássica Cavaleiros do Zodíaco)
117
Esmeralda: Sim, você está bem, Ikki? Você me confundiu de novo com o seu irmão, não foi isso?
Ikki: Sim, exceto pela cor do seu cabelo e pelo fato de que é uma
mulher, vocês dois são exatamente iguais.
18 Segundo Brait (1985) “as personagens classificadas como redondas, por sua vez, são aquelas
definidas por sua complexidade, apresentando várias qualidades ou tendências, surpreendendo
convincentemente o leitor. São dinâmicas, são multifacetadas, constituindo imagens totais e, ao mesmo
tempo, muito particulares do ser humano” (1985, p. 41).
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A Figura 6: Cena em que Shun faz conchinha no cavaleiro Hyoga para aquecê-lo e ajudá-lo a
recuperar sua energia. (Impressão de tela da Série Clássica Cavaleiros do Zodíaco)
A
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A
heterossexuais, conforme Wagner e Bonin (2008).
O anime sugere um tipo de masculinidade em que, para vencer, é necessário
mais do que ousadia, mas uma complexa rede subjetiva de valores que incluem a
fragilidade e de certo modo a passividade, o diálogo e o equilíbrio emocional,
120
expressos em especial no personagem Shun. Tais valores sugerem o modelo de um
homem com qualidades mais femininas que priorizam a afetividade, a solidariedade
e a transformação da agressividade em proatividade. Em tempos de transformações
de determinadas identidades e de reafirmação também de algumas, que por tanto
tempo estabilizaram o mundo social, ganham espaço a abertura, a diversidade e o
reconhecimento das diferenças como produção cultural, apontando, conforme Hall
(1992) para a ausência de unificação do sujeito moderno.
REFERÊNCIAS
BRAIT, B. A personagem. São Paulo: Ática, 1985.
PAES, M. H. R. Cara ou coroa: uma provocação sobre educação para índios. Revista
Brasileira de Educação, no. 23, 2003. Disponível em:
A
<http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1413-
24782003000200007&script=sci_arttext> (Acesso em 08/10/2015).
PERET, Eduardo. Percepções da Sexualidade: Anime e Mangá. S/d. Disponível em:
http://www.elo.uerj.br/pdfs/ELO_Ed4_Artigo_animemanga.pdf (Acesso em
30/11/2015)
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SANTAELLA, L., NÖTH, W. Imagem: cognição, semiótica, mídia. São Paulo: Iluminuras,
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