Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Sexualidade e mitologia
na encantaria amazônica da lenda do Boto:
um ensaio psicanalítico
Sexuality and mythology
in the amazonian enchantment of the legend of the Boto:
a psychoanalytic essay
Dorivaldo Pantoja Borges Junior
Ricardo César Gonçalves
Paulo Roberto Ceccarelli
Resumo
O presente ensaio objetiva apresentar reflexões introdutórias sobre as relações entre a sexuali-
dade e o mitológico, mais especificamente na encantaria amazônica da lenda do Boto. A lenda
em questão é uma das narrativas mais famosas do folclore da região. Dessa forma, realizou-se
uma breve explanação teórica sobre a lenda e os aspectos simbólicos a ela inerentes para, por
fim elucidá-los mediante fragmentos do filme Ele, o Boto (1987), dirigido por Walter Lima Jr.
A discussão presente nesses escritos apresenta aspectos como o retorno da sexualidade arcai-
ca presente na figura do Boto, bem como a quebra de paradigmas da moral sexual cultural
ocidental. Dessa forma, evidenciou-se a riqueza de conteúdos que a análise das construções
míticas proporciona ao trabalho de investigação dos processos subjetivos e culturais.
tica, muito menos reduzir às análises psica- seguinte, nas manifestações de adoecimento.
nalíticas o fenômeno cultural em questão. (Barreto; Ceccarelli, 2015).
Propomos, ao contrário, estabelecer apro- Frente a tal premissa, sobre o contexto
ximações entre o fenômeno e a teoria, visan- amazônico e, mais especificamente, as po-
do uma problematização sobre as relações pulações indígenas, Travassos (2014) mos-
entre aspectos psíquicos e culturais presentes tra que a natureza ocupa importância no
nas narrativas míticas. processo de reconhecimento dos sujeitos, a
Partindo do interesse em investigar a re- ponto de viabilizar parâmetros de expressão
lação entre subjetividade e cultura mediante e identificação com a fauna e a flora que os
as construções mitológicas amazônicas, to- cercam.
mamos a encantaria amazônica como obje- Frente ao exposto, decidimos traçar refle-
to de estudo, mais especificamente, a lenda xões a partir da lenda do Boto, mediante o
do Boto, uma das lendas mais famosas desse filme Ele, o Boto (1987), dirigido por Walter
emaranhado simbólico. Lima Jr, visando empreender reflexões sobre
O interesse pelos componentes míticos a relação entre a sexualidade e o mitológico,
justifica-se porque eles configuram impor- a partir do conteúdo apresentado no filme.
tantes aspectos da construção subjetiva dos Para estruturar a reflexão aqui proposta,
sujeitos e sua participação nas organizações este escrito ensaístico foi dividido em três
identitárias. (Ceccarelli, 2007). partes: primeiramente, comentamos breve-
Desde sua origem, a psicanálise sempre mente sobre a encantaria amazônica, espe-
manteve uma volumosa comunicação com cificamente a lenda do Boto para, posterior-
as produções culturais, como a literatura, a mente, introduzir breves discussões psicana-
escultura, a pintura, a poesia e a própria mi- líticas sobre o mito.
tologia. (Amaral, 2016). Passadas tais pontuações, articulamos os
Ainda no prelúdio da invenção da psica- pontos às elucidações provenientes de frag-
nálise, Freud ([1897] 1986, p. 266), em cor- mentos do filme. Além disso, para estruturar
respondência com seu amigo Wilhelm Fliess os tópicos, utilizamos fragmentos da canção
declara que “não se pode distinguir entre a Tajapanema [Foi o Boto, sinhá],1 interpretada
verdade e a ficção que foram catexizadas pelo por Mônica Salmaso e presente no filme cuja
afeto”. análise de fragmentos fundamenta o este en-
Salientamos que a relevância dos estudos saio.
dos mitos reside na sua importância para a
construção do capital fantasmático de uma Encantaria amazônica da lenda do Boto
comunidade, o que leva à influência no pro- Na tentativa de refletir sobre a riqueza que
cesso de constituição subjetiva dos sujeitos compõe os mitos,2 centramos o interes-
que compõem tal grupo, visto que o mito so- se numa das principais lendas do contexto
cial funda os mitos individuais, bem como amazônico. Alves e Pereira (2007, p. 55-57)
as maneiras de encarar temas tabus como a nos oferecem uma descrição detalhada do
sexualidade e a morte. (Ceccarelli, 2007). mito em questão:
Ademais, podemos identificar os aspec-
tos reveladores da subjetividade e da cultura 1. A canção é de autoria de Antônio Tavernard e Waldemar
presentes nos mitos, no que diz respeito tan- Henrique e pode ser encontrada em: https://www.youtube.
com/results?search_query=tajapanema. Acesso em: 15 jul.
to à moral sexual cultural e suas imposições 2021.
aos sujeitos de uma comunidade (Barbosa; 2. Assim como Assumpção e Camargo (2020), não preten-
Ceccarelli, 2019) quanto à influência que demos fazer a distinção entre lenda e mito neste trabalho,
mas tomar ambas enquanto mito, visto que são narrativas
tais construtos míticos exercem nas possibi- que portam verdades sobre o sistema cultural que represen-
lidades de constituição simbólica e, por con- tam.
No que diz respeito ao mito, Guedes 3. Partimos da mesma premissa que Assumpção & Camar-
(2004) traz reflexões sobre um possível lu- go (2020) sustentam ao afirmar – durante a análise de Ele,
o Boto – que, quando o mito adentra o cinema, há um mo-
gar do mito do Boto na cultura, a partir de vimento de atualização e resistência do imaginário cultural
uma relação extraconjugal: um filho nascido em questão, o que aponta para as possibilidades de articu-
diferente dos outros, um abuso sexual, uma lações teóricas mediante a análise de materiais cinemato-
gráficos.
gravidez misteriosa e, até mesmo, insatis- 4. Disponível em: http://www.adorocinema.com/filmes/fil-
fação sexual no casamento. Nesse sentido, me-61308/. Acesso em: 07 jul. 2021.
cessos de subjetivação adjacentes à mitologia meio dessa narrativa, tornou-se viável justi-
que ele compõe? ficar e encobrir os pecados do clero, desde
relações incestuosas à infidelidade no casa-
Encantamento e sedução: mento.
desdobramentos na lenda do Boto Michel de Certeau, em História e psica-
nálise: entre a ciência e a ficção (2020), re-
Foi Boto, sinhá. Foi Boto, sinhô. conhece que a linguagem dos mitos é por si
Que veio tentar e a moça levou. só extremamente rica e sobredeterminada,
E o tal dançará. Aquele doutor. assumindo aspectos metafóricos. Nesse sen-
Foi Boto, sinhá. Foi Boto, sinhô. tido, configura-se uma linguagem peculiar
[...] Tajapanema se pôs a chorar da qual se extrai indefinidamente efeitos de
[...] Quem tem filha moça, é bom vigiar.5 sentido, que não podem ser inteiramente cir-
cunscritos ou controlados.
De acordo com Travassos (2014), a lenda Uma curiosidade perceptível na lenda do
do Boto talvez seja a mais emblemática da Boto é justamente a variação de sua narra-
região amazônica. Apesar de sua notória po- tiva, isto é, dependendo da localização geo-
pularidade, sua origem permanece revestida gráfica, os pormenores de sua estrutura nar-
de mistérios. Diante disso, estipula-se que rativa se alteram. Dessa forma, poderíamos
sua origem esteja intimamente ligada à che- constatar certa “polimorfia do mito”.
gada dos lusitanos no território tupiniquim. Ainda de acordo com Certeau (2020, p.
Além disso, é provável que a lenda não te- 48):
nha sido introduzida pelos indígenas do ter-
ritório local, mas repetida sistematicamente De fato, apesar do quiproquó de seus estatutos
para justificar as “misteriosas paternidades”. sucessivos ou simultâneos, a ficção – sob suas
(Britto, 2007). modalidades místicas, literárias, científicas
Independentemente de sua origem, con- ou metafóricas – é um discurso que dá forma
cordamos com esta afirmação de Ceccarelli [“in-forme”] ao real, sem qualquer pretensão
(2007, p. 189): de representá-lo ou ser credenciado por ele.
Desde modo, ela opõe-se, fundamentalmen-
As construções sintagmáticas de uma cultura te, a uma historiografia que se articula sempre
têm, dentre outras, a função de confortar, ain- a partir da ambição de dizer o real.
da que imaginariamente, o desamparo consti-
tutivo do ser humano. Como já dissemos, os mitos represen-
tam o capital fantasmático de uma cultura.
Com base nessa observação, constatamos A cosmologia que os sustenta cria um ponto
que a mitologia amazônica do Boto, parece de partida que funda a história imaginária
uma forma de lidar com o desamparo, ainda da origem do homem e assegura a passagem
que metaforicamente. do caos à ordem, do irrepresentável ao repre-
Outro aspecto interessante sobre a função sentável. Os mitos balizam, então, o caminho
exercida pela difusão da lenda no imaginário imaginário, através da barra do recalque, li-
social pode ser encontrado em Britto (2007), gando os processos primários aos secundá-
que afirma a lenda do Boto também como rios.
uma estratégia útil aos portugueses, pois, por Pelo exposto, percebemos que a psicaná-
lise se interessa não apenas pela literalidade
e pela fidedignidade de um relato lendário-
5. Tajapanema [Foi o Boto, Sinhá], de Antônio Tavernard e mitológico, mas também por suas repercus-
Waldemar Henrique. sões psíquicas. (Ceccarelli, 2007).
Azevedo (2004) discorre afirmando que a Pires (2008) salienta que o mito também
psicanálise, desde seus primórdios, atribuiu é uma representação coletiva que passou a
legítimo valor a relatos mitológicos. Já na ser transmitida de geração para geração. Seu
obra fundante do método psicanalítico, a In- conteúdo costuma tratar de questões profun-
terpretação dos sonhos (Freud, [1900] 2019), das, como o mistério sobre a origem da vida,
observamos que os mitos figuram como uma enigmas sobre a sexualidade humana ou in-
fonte ímpar de inspiração e reflexão. Mais dagações a respeito da vida após a morte. Em
precisamente no capítulo V, seção D, Freud suma, os mitos são relatos humanos construí-
evoca o mito de Édipo, com o propósito de dos para explicar aquilo que é inexplicável,
analisar os sonhos sobre morte de pessoas lacunar ou ignorado. (Ceccarelli, 2007).
queridas ou familiares. Em síntese, a utili- Outra característica peculiar encontrada
zação de relatos mitológicos mostra-se uma na lenda amazônica do Boto diz respeito à
ferramenta privilegiada para investigação do forma como a moral sexual é ali descrita. Em
funcionamento psíquico. (Azevedo, 2004). princípio, com base nos elementos teóricos
Em O escritor e a fantasia, Freud ([1908] pormenorizados em A moral sexual civiliza-
2019) alega não excluir de sua disciplina psi- da e o nervosismo moderno (Freud, [1908]
canalítica a investigação dos povos. Reitera 2015), constatamos que a maneira de lidar
uma genuína importância ao material colhi- com a sexualidade guarda profundas rela-
do no “tesouro popular”, ou seja, mitos, fábu- ções com as mitologias de origem.
las e lendas. Verificamos na lenda do Boto uma certa
Para Freud ([1908] 2015, p. 337): quebra de paradigma, visto que tradicional-
mente é a figura da mulher que seduz os ho-
É bastante provável que os mitos, por exem- mens. Entretanto, essa tradição é rompida,
plo, correspondam a vestígios deformados de uma vez que o Boto sai das águas para se-
fantasias-desejos de nações inteiras, a sonhos duzir as mulheres. A sedução parte da figura
seculares da jovem humanidade. masculina. (Travassos, 2014).
Secundariamente ocorre também a que-
Posteriormente, em Sobre o sentido anti- bra dos padrões de moralidade e culpa femi-
tético das palavras primitivas, Freud ([1910] nina, uma vez que os filhos nascidos da rela-
2013) retoma a importância do trabalho do ção com o Boto são usualmente conhecidos
sonho, destacando a peculiaridade das mais como “filhos do Boto” ou “filhos das águas”.
antigas línguas e suas repercussões de cará- Através dessa perspectiva, se dá a aceita-
ter regressivo no inconsciente. Tal caráter ção do sobrenatural e, consequentemente, a
arcaico, manifesto no trabalho do sonho, é ausência do pecado, haja vista que a mulher
particularmente interessante para o ofício só se deixou seduzir devido ao poderoso “en-
do psicanalista, pois, assim como os mythos, cantamento do Boto”. (Travassos, 2014).
as línguas arcaicas representam valiosas relí- A mitologia criada sobre o Boto revela a
quias arqueológicas para a compreensão do moral sexual local, apontando para caracte-
inconsciente. rísticas tolerantes e permissivas. Há cumpli-
De forma complementar, Campbell (1990, cidade entre o desejo do sedutor e a seduzida.
p. 42) traça um curioso paralelo ao afirmar Dessa forma, Travassos (2014, p. 69) afir-
que: “o mito é o sonho público, e o sonho é o ma:
mito privado”. Ademais, Pires (2008) ressalta
que a linguagem mitológica é ambígua, pois O Boto é o encantado da metamorfose por
une polaridades em vez de dissociá-las. Mais excelência, uma espécie de êxtase dionisíaco,
uma vez, observamos similaridades entre que faz com que as mulheres esqueçam todas
mito e sonho. as normas para seguir os impulsos libidinais.
Os aspectos pulsionais presentes nesse con- Segundo Silva (2009), uma das principais
to reiteram o dualismo de Eros, isto é, vida e características da lenda do Boto está ligada
morte, que seduz e goza de pleno vigor, porém à sedução. É válido destacar que a temática
se for pego ou descoberto, degrada-se, trans- da sedução já havia sido pormenorizada por
figura-se num indigente. (Azevedo, 2004). Freud no início da construção da psicanálise.
Amaral (2016) enfatiza que Freud reser- Elaborada em meados de 1896-1897, a teoria
vou um lugar de destaque para a mitologia da sedução visava explicar a origem da neu-
e a literatura, ora se utiliza de ambas como rose.
interlocutoras, ora se serve como o próprio Mezan (2005, p. 33) comenta:
objeto de análise.
Em carta a Einstein, Freud (1932) ponde- [...] sabe-se que os esforços iniciais de Freud
ra o fato de toda e qualquer ciência vir a ser para descobrir a etiologia das neuroses o con-
uma mitologia, inclusive a própria física. duziram a formular uma teoria que escanda-
lizou os médicos da época: os pais das histéri-
Talvez o senhor tenha a impressão de que cas as teriam seduzido quando pequenas.
nossas teorias são uma espécie de mitologia
[...] Mas toda ciência não termina numa es- Em 21 de abril de 1886, Freud apresentou
pécie de mitologia? Parece-lhe diferente da na conferência da Associação de Psiquiatria
física de hoje? (Freud, [1932] 2020, p. 429). e Neurologia locais o trabalho intitulado A
etiologia da histeria. Em sua apresentação,
Como expresso anteriormente, torna-se Freud defendia a teoria da sedução peran-
evidente a importância atribuída por Freud te um público seleto. Entre os espectadores
à mitologia. Complementarmente, Roudi- estava o notável Richard Von Krafft-Ebing,
nesco e Plon (1998) reiteram que Freud, ao que definiu a apresentação de Freud como
dissertar sobre a formação dos analistas, en- “um conto de fadas científico”. (Gay, 2019,
fatizou um ensino que não se limitasse uni- p. 109).
camente aos conhecimentos médicos, mas Apesar de Freud concentrar um notável
englobasse a história das civilizações, da lite- esforço teórico para persuadir seus ouvintes,
ratura e da mitologia. a teoria da sedução não foi bem aceita entre a
De forma análoga, entende-se que o mito sociedade médica da época. (Gay, 2019).
é um bem cultural, pois se integra à cultura A hipótese da sedução baseada nos dis-
desde as sociedades primitivas até a contem- cursos das histéricas não foi suficiente para
poraneidade. A relevância de sua investiga- fundamentar uma teoria justamente por ge-
ção advém do fato de pensar sua função e o neralizar que todos os pais eram abusadores.
lugar que ocupa dentro da cultura. (Ama- Então, em 21 de setembro de 1897, Freud
ral, 2016). ([1887] 1996, p. 306), em correspondência
O folclórico Boto amazônico integra for- com Fliess afirma: “não acredito mais em
temente o imaginário local e, tratando-se de minha neurótica”.
regiões interioranas, sua história é repetida Assim sendo, Freud abandona a teoria da
mais frequentemente. O Boto representa sedução, entretanto não nos deixa sem um
também a violação de tabus, pois em sua es- aclaramento. Em resposta a isso, Freud per-
trutura narrativa há menções à cópula en- muta a teoria da sedução pela da fantasia, ou
tre homens e animais, isto é, Boto-macho e seja, ele passa a elaborar uma doutrina da
mulher, além de outras violações, como sexo realidade psíquica baseada no inconsciente.
durante a menstruação e adultério. (Britto, (Silva, 2009).
2007). Constatamos, mais uma vez, a quebra Se a teoria da sedução naufraga em 1897,
de paradigma com a moral sexual local. a temática da sedução permanece viva nas
tato com a figura do Boto. Uma delas é Tere- Não obstante, em outra cena do filme,8
za, uma moça que se deixou levar pelos en- quando a comunidade está em festejo, os ho-
cantos do Boto. De acordo com o narrador, mens da vila estavam atentos a qualquer ho-
após esse encontro, Tereza se mostrou uma mem diferente, que usasse chapéu e se ves-
“mulher calada e cheia de desejos”. Além dis- tisse de branco. É possível identificar que – já
so, aparece Luciano – menino calado e um que os mitos exercem a função, para além
bom pescador – filho de Boto. de explicação, de organização (Ceccarelli,
Podemos identificar que a figura do Boto 2007) – a figura do Boto mobiliza certa or-
marca as pessoas que tiveram alguma relação ganização social à comunidade, estabelecen-
com ele, o que também ocorreu com Corina do perigos que fazem com que as pessoas se
que, após ser encantada pelo Boto, olhava fi- portem de determinadas formas para evitar
xamente às águas e por elas era chamada, até um possível mal-estar.
que desapareceu no fundo do rio. Nesse sen- Após a descoberta do Boto, Rufino, es-
tido, o mito é apresentado, conforme Britto poso de Tereza, uma das moças encantadas
(2007) e Ceccarelli (2009), como uma alego- pelo Boto, convoca todos os homens da co-
ria que explique o desamparo e o abandono. munidade para encontrar o animal e ma-
Em outro momento,7 quando ambos es- tá-lo. Dessa feita, todos se mobilizam para
tão juntos na água, Luciano avança em Tere- eliminar a criatura. Entretanto, em todas as
za e a chama de Mãe. Seus movimentos nas vezes, o Boto consegue fugir deles e enganá
águas se assemelhavam aos de um peixe que -los, fazendo-os ir por caminhos onde não
pulava e retornava ao fundo do rio. Nesse iriam encontrá-lo.9
momento, Tereza se mostrou assustada, re- Assumpção e Camargo (2020), ao anali-
petindo incessantemente “Fora! Eu não sou sar o filme, descrevem a figura do Boto en-
sua Mãe!”. quanto um Trickster, um sedutor, brincalhão
Quanto a esse fragmento, podemos elu- e, comparando com outras figuras da mitolo-
cidar outro ponto interessante para este gia brasileira, um malandro.
ensaio: os conteúdos arcaicos que um mito Na adaptação cinematográfica, mais um
pode comportar, sobretudo no que diz res- elemento é inserido na narrativa: somente
peito à sexualidade incestuosa, como já ana- um filho de Boto pode matar o pai, o que
lisado por Freud (1900; 1910). acontece quando Luciano, filho de Boto, o
Ao observar a sequência de construções procura e, com um arpão, o acerta e o devol-
que o filme apresenta, podemos identificar ve às águas do mar.
também que a presença do Boto na comuni- Entretanto, posteriormente ao assassinato
dade divide opiniões. A figura do Boto é uma do Pai, Luciano assume o seu lugar e adentra
figura ambivalente às pessoas. Nas mulheres, as águas enquanto boto.10 Nesse aspecto, rei-
a criatura desperta encantamento, contem- tera-se o teor sexual arcaico que o mito com-
plação, sedução e beleza, deixando-as hipno- porta, não só na sexualidade arcaica e poli-
tizadas com sua beleza. morficamente perversa, mas também nos
Entretanto, sua presença desperta horror, impulsos agressivos e parricidas, conforme
medo, estranhamento e ódio nos homens, Freud ([1913] 2012) apresenta como crimes
visto que as mulheres da vila eram seduzi- fundadores da cultura.
das; além disso, os peixes desapareciam com Ainda no que diz respeito à moral se-
a presença do Boto nas águas. xual cultural, podemos identificar, de forma
textos (1909-1910). Tradução: Paulo César de Souza. da Cobra Norato. 2009. 168 f. Dissertação (Mestrado
São Paulo, SP: Companhia da Letras, 2013. p. 302- em Psicologia) – Programa de Pós-Graduação da
312. (Obras completas, 9). Universidade de Fortaleza, CE, 2009.
FREUD, S. Totem e tabu (1912-1913). In: ______. TRAVASSOS, M. R. C. Mitos de origem e processos
Totem e tabu, contribuição à história do movimento identificatórios na Amazônia: uma visão psicanalítica.
psicanalítico e outros textos. Tradução: Paulo César de 2014. Dissertação (Mestrado) - Programa de Pós-
Souza. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2012. p. Graduação em Psicologia Instituto de Filosofia e
13-241. (Obras completas, 11). Ciências Humanas, Universidade Federal do Pará,
Belém, PA, 2014.
GAY, P. Freud: uma vida para nosso tempo (1988).
Tradução: Denise Bottmann. 2. ed. São Paulo, SP:
Companhia das Letras, 2019. Recebido em: 14/05/2021
Aprovado em: 12/06/2021
GONÇALVES, R. C; CECCARELLI, P. R. A
erotização do ódio: contribuições de Stoller para
clínica das perversões. Polêm!ca, Revista eletrônica da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Rio
de Janeiro, RJ, n. 2, v. 20, p. 77-93, 2020. Disponível
em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/
polemica/article/view/60211. Acesso: 20 jun. 2021.
Sobre os autores