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AS RELAÇÕES HUMANAS E AFETIVAS EM UM SISTEMA DE


SUPERPRODUÇÃO: ZOIUDA, DE LUIZ VILELA

Mateus Antenor Gomes (UFMS)

RESUMO: O contista Luiz Vilela, desde a sua primeira coletânea de contos Tremor
de Terra (1967), apresenta um trabalho estético com o cotidiano, refletindo sobre a
existência humana, confrontos sociais e aspectos econômicos. O conto Zoiuda,
inserido no livro Você Verá, de Luiz Vilela, destaca-se por apresentar o conflito
existencial de um sujeito sufocado pelas condições de produções da vida em um
sistema de superprodução. Deste modo, o objetivo do presente trabalho é analisar a
construção narrativa do conto de Luiz Vilela, a fim de compreender como se
desenvolvem, nas estruturas semio-narrativas, as relações humanas e afetivas em
um sistema de superprodução. Assim, desvenda-se como o actante-sujeito, em suas
relações afetivas, é tocado pela solidão, pela indústria cultural e pelo sistema de
superprodução. Para isto, portanto, utilizou-se o aporte teórico-metodológico da
semiótica de linha francesa, essencialmente o percurso gerativo de sentido que,
atrelado a alguns pressupostos dos estudos acerca da indústria cultural, ofereceu os
conceitos necessários para a análise das relações humanas e afetivas desenvolvidas
pela personagem principal com Zoiuda. Concluiu-se que o actante-personagem, em
suas relações, é afetado pelas estruturas do sistema, visto que só consegue entrar em
conjunção com a liberdade através de uma relação afetuosa (passageira) com a
lagartixa.
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PALAVRAS-CHAVES: Indústria cultural; Luiz Vilela; Semiótica; Zoiuda.

ABSTRACT: The storyteller Luiz Vilela, since his first collection of short stories
Tremor de Terra (1967), presents an aesthetic work with the quotidian, reflecting on
human existence, fighting social and economic aspects. The tale Zoiuda, inserted in
the book Você Verá, Luiz Vilela, stands out by presenting the existential conflict of
a suffocated subject by the conditions of production of life in a system of
overproduction. Thus, the objective of this study is to analyze the narrative
construction of the tale of Luiz Vilela, in order to understand how to develop the
structures semi-narratives, the human and affective relations in a system of
overproduction. Thus, reveals himself as the actante-subject, in their affective
relations, is touched by loneliness, by cultural industry and by the system of
overproduction. To do this, therefore, we used the theoretical-methodological
framework of semiotics of French line, essentially the generative path of meaning
which, coupled to some assumptions of studies about the cultural industry, offered
the concepts needed for the analysis of human and affective relations developed by
the main character with Zoiuda. It was concluded that the actante-character, in their
relations, is affected by the structures of the system, since it can only enter in
conjunction with the freedom through an affectionate relationship (passing) with
the gecko.
KEY-WORDS: cultural industry; Luiz Vilela; Semiotics; Zoiuda.
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INTRODUÇÃO

Luiz Vilela nasceu na cidade de Ituiutaba, interior de Minas


Gerais, no dia 31 de dezembro de 1942. Iniciou sua carreira literária
muito cedo, publicando suas primeiras aspirações literárias no
suplemento literário de Minas quando ainda cursava filosofia na
Universidade Federal de Minas Gerais. Aos 24 anos de idade publicou
seu primeiro livro: a coletânea de contos Tremor de Terra (1967), já
recebendo o prêmio nacional de ficção. Depois publicou ainda: Tarde
da noite (1970); Os novos (1971); O fim de tudo (1973); Contos
escolhidos (1978); Lindas pernas (1979); O inferno é aqui
mesmo (1979); O Choro no travesseiro (1979); Entre amigos (1983);
Uma seleção de contos (1986); Os melhores contos de Luiz
Vilela (1988); O violino e outros contos (1989); Graça (1989); Te amo
sobre todas as coisas (1994); Contos da infância e da
adolescência (1996); Boa de garfo e outros contos (2000); Sete
histórias (2000); Histórias de família (2001); Chuva e outros
contos (2001); Histórias de bichos (2002); A cabeça (2002); Bóris e
Dóris (2006); Amor e outros contos (2009); Perdição (2011); Você
verá (2013).
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Seu último livro de contos, Você Verá (2013), publicado pela


editora Record, foi ansiosamente aguardado por questões
publicitárias. Neste livro, destaque, aqui, para o primeiro conto –
Zoiuda – que se sobressai devido ao cunho de investigação psíquico-
social acerca de um sujeito inserido em um sistema de superprodução
capitalista e opressor. Por isto, o objetivo do presente trabalho consiste
em analisar a construção narrativa do conto para compreender como
são desenvolvidas, nas estruturas semio-narrativas, as relações
humanas e afetivas do sujeito inserido em um meio social de
produção.
Assim, o aporte teórico-metodológico eleito para a análise do
conto foi o percurso gerativo de sentido da semiótica francesa,
utilizando-se, como complemento teórico, alguns preceitos dos
estudos sociais de Theodor W. Adorno (2002). Pois, desta forma, é
possível, por meio da análise das estruturas contrárias e das
transformações juntivas, desvendar as configurações do sistema de
produção que cerceiam e influenciam as relações sociais das
personagens.
Este trabalho, por tais objetivos e fundamentação teórica,
divide-se em três etapas distintas. Desta maneira, em um primeiro
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momento, dedica-se a uma breve revisão, passando por alguns pontos


da recepção crítica, do presente objeto; delineia-se, em um segundo
momento, concepções teóricas e metodológicas de maior importância
para o desenvolvimento da análise; em terceiro lugar, analisa-se o
conto Zoiuda de acordo com as concepções apresentadas nas duas
etapas anteriores.

ZOIUDA: breve revisão

O conto Zoiuda, de Luiz Vilela, inserido na coletânea Você verá,


destaca-se pelo enredo inusitado: o convívio afetuoso entre um ser
humano e um animal não doméstico. Assim, entre idas e vindas, as
relações entre a lagartixa e o professor vão se delineando de forma não
recíproca, visto que o professor cria expectativas futuras acerca do
relacionamento (atributos racionais e humanos) enquanto Zoiuda
não firma contratos fiduciários.
A partir de um ponto vista externo (onisciente), são
apresentadas situações díspares do convívio humano – solidão,
incomunicabilidade e até mesmo amor. Deste modo, através das
situações mais cotidianas, a aproximação do professor com a lagartixa
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possibilita a construção psicológica complexa da personagem


humana, visto que esta relação afetuosa é um meio para suprir a
necessidade (do professor) de interação social, revelando a solidão
deste ser humano em um contexto de superprodução.
Nesta perspectiva, o conto revela que a personagem humana
apresenta uma dependência para com outrem, ou seja, uma
necessidade (humana) de contato, de manter relações intersubjetivas
e trocas de experiências, que motiva o apego pela lagartixa. O
resultado final dessa configuração psicológica é o vazio interior –
manifestado em forma de solidão e incomunicabilidade. Deste modo,
no percurso narrativo da personagem humana, tal vazio é preenchido
pela companhia animalesca – humanizada pela perspectiva da
personagem.
Portanto, o desenvolvimento do conto direciona para uma
relação afetuosa idealizada – resultante da tentativa de encontrar uma
completude interior – entre o professor e a lagartixa, pois “a
necessidade de afeto, revelada pela incomunicabilidade e solidão,
marca [...] a psicologia da personagem principal do conto e pode estar
associada ao aspecto antropomórfico dos animais aí representados.”
(AMARAL; SOUZA, 2016, p. 163). Todavia, o preenchimento da
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incompletude, obtido por meio das horas passadas com Zoiuda, é


passageiro; assim:

O tédio e o vazio existencial predominam no texto,


pois o apartamento ficara “mais vazio” e as noites
“mais tristes”, de modo que podemos inferir que
tanto a tristeza quanto a ausência (aqui em diversas
categorias possíveis: de companhia, de afeto, etc.) já
faziam parte do ambiente domiciliar e,
conseguintemente, da vida da personagem. (TORRE,
2013, p. 86)

Assim, ao mesmo tempo que supre parcialmente o vazio


interior, o contato com Zoiuda destaca a solidão e a dificuldade de
convívio, de manter relações humanas do professor. Ou seja, a
subjetividade do professor está inserida no isolamento social, sendo
Zoiuda um simples representante ou metonímia das relações (e,
também, decepções) afetuosas: um tema, portanto, universal.
Constata-se, ainda, uma “tentativa de incorporação da subjetividade
[do animal] pela personagem. [Isto é,] a encarnação de uma
subjetividade possível e inventada do animal.” (AMARAL; SOUZA,
2016, p. 167).
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A presença do animal no desenvolvimento da narrativa revela


que a carga psicológica atribuída ao homem advém de Zoiuda,
destacando a dificuldade – às vezes por escolha e às vezes por
imposição – de relacionamento dos seres humanos em um sistema de
produção contemporâneo. A animal no conto, então, é o “retrato de
uma desgastante vida social e rotineira e de um sofrimento frente aos
relacionamentos humanos, de modo que a personagem supre essa
necessidade de interação ao nutrir sentimentos unilaterais por um
animal irracional.” (TORRE, 2013, p. 80).
Nesse jogo psicológico, o confronto entre a subjetividade do
professor e a subjetividade que este atribui a lagartixa vai se
transformando em uma construção dialética das relações humanas.
Zoiuda funciona, a grosso modo, como elemento metonímico das
relações afetuosas e pessoais, que, nos dias modernos, tornam-se cada
vez mais difíceis e escassas. Desta forma, a própria perspectiva da
personagem atribui centralidade e maior autonomia ao animal, isto
desde o nome (só Zoiuda tem nome próprio enquanto o professor é
qualificado por um substantivo simples) às ações (ele que sempre
procura e espera algo de Zoiuda). E, portanto:
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A lagartixa, inserida na categoria literária, dá


ferramentas suficientes, sobretudo ao leitor do
conto, para que haja uma espécie de choque e de
estranheza, capazes de fazerem emergir reflexões
próprias acerca dos temas universais e tão preciosos
nos tempos atuais: a solidão humana, a carência, a
incapacidade de interagir, de doar e receber afetos.
(TORRE, 2013, p. 84).

E nessa listagem de temas universais e comuns aos tempos


atuais, pode-se acrescentar a condição dos sujeitos diante do meio de
produção, isto é, o retrato das relações sociais opressivas e sufocantes
mantidas sob a vigilância do capitalismo e da indústria cultural.

PERCURSO GERATIVO DE SENTIDO: metodologia

A semiótica de linha francesa, fundada por Greimas é um ramo


da linguística que se dedica ao estudo analítico de textos produzidos
em variados contextos. Desta forma, tal teoria apresente um
arcabouço teórico-metodológico objetivo e funcional, permitindo a
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decodificação do sentido desde texto literários à textos usuais.


Segundo, Diana Barros (2005, p. 12):

a semiótica tem caminhado nessa direção e


procurado conciliar, com o mesmo aparato teórico-
metodológico, as análises ditas “interna” e “externa”
do texto. Para explicar “o que o texto diz” e “como o
diz”, a semiótica trata, assim, de examinar os
procedimentos da organização textual e, ao mesmo
tempo, os mecanismos enunciativos de produção e
de recepção do texto.

O percurso gerativo de sentido – uma das principais técnicas


analíticas dessa teoria – é, segundo José Luiz Fiorin (1990, p. 17), uma
sucessão de patamares que mostram, durante a análise de diversos
tipos de textos, como o sentido é construído e como deve ser abstraído
no momento da leitura. Para isto, o percurso utiliza três níveis de
leitura: fundamental, narrativo e discursivo, que vão do mais
complexo e abstrato ao mais simples.
Na semântica do nível fundamental, a leitura do texto se ocupa
em “determinar a oposição ou as oposições semânticas a partir das
quais se constrói o sentido do texto”. (BARROS, 2005, p. 14). Desta
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forma, é preciso encontrar as categorias contrárias que servem de base


para consolidação do significado que o texto expressa. Essas
categorias podem se manifestar como eufóricas ou disfóricas de
acordo com cada texto, por exemplo: morte e vida são normalmente
taxadas como disfórica e eufórica, respectivamente, entretanto, em
contextos bem específicos, como em casos terminais de câncer, essa
valoração pode se modificar.
Já na sintaxe fundamental ocorrem os processos de negação e
asserção. Isto é, parte-se de um determinado ponto (“a”), depois se
nega esse ponto (“não-a”) e, enfim, afirma-se outro ponto (“b”).
(FIORIN, 1990). É, portanto, delineado um percurso na sintaxe
fundamental que parte da afirmação para negação, chegando à
asserção.
“No nível das estruturas narrativas, as operações da etapa
fundamental devem ser examinadas como transformações operadas
por sujeitos.” (BARROS, 2005, p. 18). Assim, em sua sintaxe, pode se
consolidar dois tipos de enunciados: de estado – que representam a
relação de junção do sujeito com um objeto, podendo ser de conjunção
e disjunção; e de fazer – que representam as mudanças no estado de
junção durante a narrativa, portanto o sujeito muda de um estado
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juntivo para outro: conjunção-disjunção (sendo um enunciado de


privação) ou disjunção-conjunção (sendo um de liquidação da
privação).
As narrativas de enunciado de fazer se estruturam sobre um
paradigma: manipulação, competência, performance e sanção. A
manipulação é quando um sujeito (destinador) tenta convencer outro
(destinatário) a agir de determinado modo. Tem-se quatro tipos de
manipulação mais comuns: tentação (oferece-se uma recompensa ao
destinatário), sedução (por meio de um elogio das competências do
destinatário), intimidação (por meio de um ameaça) e provocação
(através da desvalorização das capacidades do destinatário) (FIORIN,
1990). A segunda etapa, a competência, corresponde à aquisição do
destinatário do querer, dever, saber e poder fazer. Estas competências
podem ser adquiridas por meio de uma doação (outro sujeito dá as
competências ao destinatário) ou por vias próprias (o destinatário cria
essas competências). A performance corresponde a fase de
transformação dos estados de junção, portanto é central na narrativa.
A sanção, a última etapa, é o momento em que o destinatário é ou não
recompensado pela sua performance; assim, existem sanções
positivas e negativas.
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Já na semântica narrativa, estuda-se os objetos modais e os


objetos de valor. Os primeiros dizem respeito a objetos necessários
para aquisição de outros objetos (de valor); os segundos contêm um
final em si mesmo. Os modais correspondem às competências –
querer, dever, saber e poder – necessárias para realização da
performance. Já os de valor, correspondem aos resultados
conquistados/adquiridos por meio da performance.
No nível discursivo, por sua vez, as formas significativas serão
enquadradas em um meio de expressão específico e em coerência com
o sentido, isto é, “as formas abstratas do nível narrativo são revestidas
de termos que lhe dão concretude”. (FIORIN, 1990, p. 29). Assim, na
semântica deste nível, devem ser analisadas as configurações dos
percursos figurativos (encadeamento de figuras que produzem
determinado tema), dos percursos temáticos (encadeamentos de
temas que consolidam determinado sentido), bem como a isotopia
criada pelo encadeamento coerente tanto das figuras como dos temas.
Já na sintaxe se estuda as marcas de enunciação presentes em um
enunciado, analisa-se a actorialização, espacialização e
temporalização (pessoas, espaço e tempo do discurso). E, também,
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estuda-se as relações entre enunciador (aquele que comunica e tenda


persuadir) e enunciatário (receptor que aceita ou não ser persuadido).

A CONFIGURAÇÃO DAS RELAÇÕES HUMANAS EM ZOIUDA, DE


LUIZ VILELA

Observando as categorias semânticas contrárias que alicerçam


a construção do sentido em Zoiuda, de Luiz Vilela, chega-se a oposição
“liberdade” vs. “prisão”, pois o sujeito-actante encontra, nessas duas
categorias, os valores para a sua vida cotidiana. Destarte, a categoria
“liberdade”, em um primeiro olhar, é um simulacro das relações
sociais mantidas pelo actante fora do controle do sistema, ou seja, as
atividades de distração e lazer desenvolvidas durante o tempo livre. A
categoria oposta, por sua vez, é o simulacro das relações sociais
mantidas sob a vigilância do meio de superprodução, isto é, as horas
de trabalho em que o indivíduo se submete a cumprir tarefas e seguir
regras, negando sua própria consciência e existência. Por meio desta
configuração, insinua-se – como apontar-se-á posteriormente –, no
conto, um sentido de crítica à configuração do tempo livre em um
sistema de superprodução.
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Já quanto aos valores tímico-fóricos investidos


semanticamente, constata-se que liberdade – ao representar o
momento de distração, de lazer e fuga da rotina desgastante do dia a
dia – torna-se eufórica, pois significa a negação dos valores opressores
e a afirmação do tempo livre, dedicado ao esquecimento e à não
submissão as normas sociais. Já a categoria “prisão” é caracterizada
como disfórica, pois representa o momento em que o sujeito se
submete ao sistema de produção, tendo uma impossibilidade de
escolha e uma objetificação pessoal.
Na sintaxe fundamental, portanto, observa-se que,
inicialmente, o sujeito-actante se encontra impregnado pelos valores
da categoria semântica “prisão” devido ao ambiente de trabalho (“uma
escola pública num dos bairros mais distantes da capital”).
Posteriormente, são negados os valores da categoria prisão
(instaurando-se uma “não-prisão”) quando o sujeito se dedica a
atividades, promovidas pela indústria cultural, de cunho alienado para
se distrair ou passar o tempo (assistir televisão, ir ao bar e manter
conversas despropositadas). Por fim, é afirmada a categoria oposta
(liberdade) por meio da conjunção com a lagartixa (Zoiuda) – que é
objeto de valor da busca do actante –; assim, o sujeito consegue
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imprimir liberdade ao seu tempo livre, negando a ditadura da indústria


cultural.
Obtém-se o seguinte percurso da sintaxe fundamental: prisão >
não-prisão > liberdade. Prisão corresponderia ao tempo que é
preenchido pelo trabalho e determinado por ele (ADORNO, 2002, p.
62). Por outro lado, a categoria não-prisão corresponderia a uma
instância em que o sujeito não desfruta da plena liberdade (ou seja,
uma não-liberdade). Tal instância se instaura devido às condições
impostas aos sujeitos para desfrutarem do seu tempo livre, surgindo,
por conseguinte, um conjunto de regras sociais e econômicas que
orientam as atividades de lazer (tornando-se, portanto, alienado).
Assim, o tempo livre, que ocupa a categoria semântica “não-prisão”,
não corresponde a instauração da “liberdade”, ou seja, nas formas
alienadas de preenchimento do tempo livre, surge a:

Suspeita de que o tempo livre tende em direção


contrária à de seu próprio conceito, tornando-se
paródia; deste. Nele se prolonga a não-liberdade, tão
desconhecida da maioria das pessoas não-livres
como a sua não-liberdade, em si mesma. (ADORNO,
2002, p. 62-3)
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Assim, as idas ao bar, conversas despropositadas e horas


assistindo televisão não correspondem à liberdade, instaurando
apenas um estágio intermediário em que não predomina nem a
liberdade e nem a prisão:

Na noite seguinte – de novo bar, de novo as


conversas e as bebidas, conversas e bebidas que só
serviam para matar o tempo e dentro dele alguma
coisa que ele não sabia bem o que era, mas que sabia
ser essencial [...] Na terceira noite – o mesmo bar e
os mesmos amigos e as mesmas conversas e bebidas
(VILELA, 2014, p. 8).

Desta forma, o tempo livre, ao ser determinado pela indústria


cultural, torna as relações humanas escassas e difíceis. Isto ocorre
porque as determinações econômicas e sociais impregnadas ao tempo
livre objetificam e mecanizam cada vez mais os sujeitos para garantir
a continuidade do sistema de superprodução, tornando os seres
humanos (no caso o professor) solitários e incomunicáveis.
Nessa perspectiva, perante esta estruturação socioeconômica,
a personagem humana é, conforme o desenvolvimento do conto,
sufocado e oprimido. A incomunicabilidade e a solidão se tornam um
ponto tensivo insuportável para o actante, que, diante disto, cria uma
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psicologia inventada para a lagartixa, a fim de suprir suas


necessidades (outrora furtadas pelo sistema) de afeto e
relacionamento:

[...] Ele, num momento de quase convulsivo tédio


(“isso mesmo”, se diria depois, “convulsivo tédio),
lembrou-se de Zoiuda, isolando-se por alguns
minutos do ambiente ao redor, um leve sorriso lhe
aflorando nos lábios.
“O que foi”, perguntou a amiga que estava ao seu
lado, na mesa. “Estou me lembrando de Zoiuda”, ele
respondeu. (VILELA, 2014, p. 8)

Portanto, a conjunção com Zoiuda é a única forma encontrada


para o actante alcançar a liberdade, porque rompe com as pressões
exercidas pelo sistema de produção massificado, exercendo uma
escolha calcada na sua própria consciência (isto é, abdica do que é
imposto pelo sistema para manter uma relação afetiva totalmente
insólita).
Já no nível narrativo, constata-se que Zoiuda é destinador do
percurso narrativo do professor – o destinatário. Ela manipula o
actante-sujeito a entrar em conjunção com os valores da liberdade,
entrando em conjunção com o objeto de valor também Zoiuda. Deste
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modo, está-se diante de um enunciado de fazer, pois ocorrem


transformações nos estados juntivos do sujeito. Mas não pode se
esquecer que toda essa psicologia é imprimida ao animal pelo
professor, ou seja, o próprio actante torna, dadas as suas necessidades
humanas de relacionamento, Zoiuda manipulador.
Já nos termos referentes à competência do actante-sujeito,
constata-se que ele possui, inicialmente, as modalidades atualizantes,
visto que possui o saber e poder buscar os valores da liberdade. Porém,
quando este actante firma o contrato fiduciário de destinador-
destinatário, o próprio destinador lhe doa as modalidades
virtualizantes, isto é, o querer e o dever. Deste modo, o actante pode
se tornar um sujeito do fazer (realizado).
Na performance, por sua vez, o actante se encontra em
disjunção com os valores da liberdade, todavia, no desenvolvimento
da narrativa, acontecem transformações nos estados juntivos do
sujeito com o objeto de valor. Assim, o actante, manipulado por
tentação (lhe é oferecida a companhia como recompensa/sanção) por
Zoiuda, recebe as modalidades do dever e do querer entrar em
conjunção com o objeto de valor Zoiuda (e, assim, entra em conjunção
com os valores da liberdade). Ou seja, o actante muda seu estado
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juntivo de disjunção para conjunção com o objeto de valor, entrando,


também, em conjunção com os valores da liberdade. Por fim, tem-se a
sanção: a companhia – parcial – de Zoiuda. A sanção é pragmática e
de cunho positivo, já que o actante é recompensado por cumprir a sua
performance enquanto destinatário.
Pensando, a partir de uma perspectiva social, contata-se que,
em um sistema de produção, o tempo livre não significa a afirmação
da liberdade, porém, somente, uma continuidade mecânica do
movimento interno da produção. Assim, “o conceito de tempo livre,
em oposição ao de trabalho, é colocado de maneira tão estrita, como,
ao menos, corresponde a uma velha ideologia, hoje talvez
ultrapassada, então ele se torna algo nulo.” (ADORNO, 2002, p. 65).
O tempo livre e o trabalho (tempo não-livre) acabam se tornando
resultantes e símiles. Em Zoiuda tal característica do tempo livre
predomina nas atividades desenvolvidas pelo professor até o
momento da conjunção com o objeto de valor. Zoiuda significa a
ruptura com as amarras sociais impostas pelo sistema que controla
(durante o tempo não-livre) através trabalho profissionalizado –
rotineiro e desgastante – e (durante o tempo livre) através indústria
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cultural que cerceia as atividades de lazer para a afirmação de uma


afetividade baseada em princípios de plena liberdade:

“Zoiuda!”, exclamou, com alegria de um menino;


“você está ai!...”
Estava; ali estava ela de novo, próximo à talha, e,
como sempre, permaneceu impassível – ou lá dentro,
àquela hora, o minúsculo coração também estaria
batendo um pouquinho mais forte?:.. (VILELA, 2014,
p. 10)

Assim, o diálogo e a afetividade com a lagartixa é a forma,


alegada a estranheza, de preencher o tempo livre com uma autêntica
liberdade, desmascarando a dificuldade dos seres humanos de se
relacionar em um sistema de produção por causa do controle e da
opressão.
Já na sintaxe discursiva, a enunciação se situa em um aqui e em
um agora na perspectiva de um eu. Portanto, observa-se que, no conto,
constitui-se uma debreagem enunciva, pois se instaura, no enunciado,
projeções de enunciação de um eu-lá-então. Assim, a narrativa é
constituída por um distanciamento e impessoalidade, existindo
poucas interferências pessoais do narrador, criando um caráter de
investigação psíquico-social.
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Já na semântica discursiva do conto analisado persiste uma


temática referente à alienação do tempo livre e as relações humanas.
Isto porque a narrativa se caracteriza como uma interpretação das
relações mantidas pelos sujeitos durante o tempo livre: o tempo livre
só possui liberdade quando preenchido pelo insólito que causa
estranhamento (a conjunção com a lagartixa). Assim, são retratadas
as situações de convívio social em um sistema de superprodução, no
qual os sujeitos são massacrados por interesses socioeconômicos.
Assim, o próprio tempo livre acaba sendo preenchido pelos meios de
produção e a liberdade usurpada do indivíduo por formas diversas de
alienação. Sendo, por fim, as relações afetivas e humanas de caráter
insólito a única forma de desalienação do tempo livre: a conjunção
com Zoiuda, firmando uma relação pessoal e afetuosa.

CONCLUSÃO

Conclui-se que, por meio da técnica discursiva de debreagem


enunciva, o conto Zoiuda apresenta – no nível fundamental e
narrativo – uma perspectiva acerca da configuração do tempo livre e,
por conseguinte, da liberdade nas relações inter-humanas (relações
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afetuosas) em um meio de superprodução capitalista. Portanto, o


exemplo específico de afetividade, entre o professor e a lagartixa,
reveste uma temática universal: a situação do sujeito em um sistema
de superprodução em que a liberdade é usurpada dos sujeitos. Isto
significa que a configuração do conto conduz à concepção crítica da
organização do sistema de produção, sendo a relação afetuosa insólita
a única forma autêntica de liberdade na narrativa. Deste mesmo
modo, a organização das categorias contrárias e as mudanças nos
estados juntivos, revelam uma ordem do sistema que só se altera com
as relações afetivo-humanas. Assim, o conto de Luiz Vilela constrói
uma atmosfera de cunho investigativo social de oposição à estrutura
dominante, expressada pelas relações de trabalho, de afeto e pela
indústria cultural.

REFERÊNCIAS

AMARAL, Pauliane; SOUZA, Eunice Prudenciano de. O animal como


figura representativa do descompasso amoroso e da solidão
humana. Estação Literária, Londrina, Brasil, v. 17, n. 1, p. 162-174, jul.
2016.
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ADORNO, Theodor, W. Indústria cultural e sociedade. (Trad.) Julia


Elisabeth Levy, et al. 4. Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.
BARROS, D. L. P. Teoria do discurso: fundamentos semióticos. 3. ed.
São Paulo: Humanitas/FFLCH/USP, 2001.
FIORIN, J. L. Elementos de análise do discurso. 2. ed. São Paulo:
Contexto, 1990.
TORRE, Felipe Santos de. A animalidade e a condição
humana: aspectos zooliterários na obra contística de Luiz Vilela.
2013. (Mestrado em Letras). Universidade Estadual de Londrina,
UEL.
VILELA, Luiz. Zoiuda. In______. Você verá - contos. 2. ed. Rio de
Janeiro, Record, 2014, p. 7-11.

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