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Índice
Introdução........................................................................................................................................2

Biografia da obra.............................................................................................................................3

Tematicas da Obra...........................................................................................................................3

Recursos Estilisticos........................................................................................................................4

Relacao da obra com outras por mim lidas......................................................................................5

Reconto da Obra..............................................................................................................................6

Conclusão......................................................................................................................................16

Bibliografia....................................................................................................................................17
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Introdução
Várias obras ficcionais produzidas em Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São
Tomé e Príncipe, após o fim do período colonial, motivam-se em discussões acerca de (re)
construções identitárias em um ambiente no qual nem sempre foram possíveis negociações e/ou
expressões individuais, devido à brutalidade do regime colonial português. O romance Venenos
de Deus, remédios do Diabo (2008), do escritor Moçambicano Mia Couto, insere-se nessa
tradição, pois é constante em sua narrativa a relação dos indivíduos com o seu passado. A obra
exibe personagens/identidades em trânsito, recurso também presente em outros romances do
autor, como Terra sonâmbula (1992) e O outro pé da sereia (2006), em que se apresentam
personagens deslizantes, deslocadas, habitantes de entre-lugares que, segundo Homi K. Bhabha
(2007), são espaços intersticiais e propiciam estratégias de subjetivação que levam a novos
signos de identidade. (p.20). O romance Venenos de Deus, remédios do Diabo encena
deslizamentos de pertença, desmanches de tradições e identificações entre indivíduos de ordens
sociais e culturais diferentes, deixando a ideia de que “trânsito de alma [...] é bem mais
contagioso que o mais virulento micróbio.” (COUTO, 2008, p.80). Essa obra de Mia Couto pode
ser compreendida como um lugar de enunciação da subjetividade deslizante e/ou inquietante do
homem no período pós-colonial, em que “a identidade e a diferença estão inextricavelmente
articuladas ou entrelaçadas em identidades diferentes, uma nunca anulando completamente a
outra.” (HALL, 2003, p.86-87).
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Biografia da obra
Appiah, Kwame Anthony. Na casa de meu pai: a África na filosofia da cultura. Tradução por
Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. - Couto, Mia. Venenos de Deus, remédios do
Diabo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. Couto, Mia. O outro pé da sereia. São Paulo:
Companhia das Letras, 2006. Martins, José Endoença. Negritice: interculturalidades e
identidades na literatura afro-descendente No texto “Mais além da “cultura”: espaço, identidade
e política da diferença”, Gupta e Ferguson (2000) perguntam: o encontro colonial cria uma nova
cultura ou desestabiliza a ideia de que nação e cultura são isomórficos? Com essa questão, os
autores propõem que sejam pensadas, nos estudos relativos ao espaço, as culturas híbridas do
pós-colonialismo, já que o embaçamento de fronteiras mexe tanto com a metrópole quanto com o
colonizado. Na obra Venenos de Deus, remédios do Diabo, Mia Couto (2008) cria uma narrativa
em que a configuração espacial pode despertar reflexões acerca de formações e fragmentações
identitárias. O romance se passa em Vila Cacimba, na África, onde se dá o encontro entre o
médico português Sidónio Rosa e a família de sua amada Deolinda, Bartolomeu Sozinho e Dona
Munda. No capítulo dois, temos um importante relato a respeito de Bartolomeu Sozinho2

Tematicas da Obra
Nesta obra encotramos tematicas como, o amorx a guerrax a fome a misseria. Na qual levam esta
narrativa como um um diagrama de vin, Na esteira do pensamento de Bhabha (2007), Stuart
Hall, na obra A identidade cultural na pósmodernidade (2003), analisa as transformações pelas
quais passam as sociedades na pós-modernidade. Mudanças estruturais estão fragmentando
conceitos culturais antes sólidos, como classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade os
quais se apresentam atualmente de modo instável e provocador de mudanças nas identidades
pessoais. São comuns questionamentos a respeito “da idéia que temos de nós próprios como
sujeitos integrados.” (HALL, 2003, p.9). De acordo com esse pesquisador, a perda das certezas a
respeito da ideia de quem somos marca-se pela desestabilização de quadros de referências que
sustentavam a concepção de sujeito pleno e de identidade sólida. Relacionadas com essas
transformações, modelam-se mudanças profundas na concepção identitária, uma vez que o
sujeito pós-moderno não se percebe como portador de uma identidade fixa, essencial ou
permanente; ao contrário, os processos de identificação transformam-se a todo momento. “A
identidade torna-se uma ‘celebração móvel’: formada e transformada continuamente em relação
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às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos
rodeiam.” (HALL, 2003, p.12-13). Por tanto nessa obra literaria não foge dessa narativa
indentitaria na qual o autor busca a valorizacao da sua indentidade cultural na sua
narrativa.tambem temos alguns temas que o autor traz na sua narrativa fim de concluirmos, resta-
nos a percepção de que em “Venenos de Deus, remédios do Diabo”, Mia Couto engaja-se com
este Moçambique contemporâneo, não se furtando à problematização dos paradoxos do seu
desenvolvimento e da sua ocidentalização. A AIDS, o incesto, a crise familiar e o aborto – temas
que o autor trabalha neste seu romance – são as facetas deste desenvolvimento feito aos atropelos
e sem qualquer planejamento, deste flerte entre a África e o Hemisfério Norte, entre a tradição e
a modernidade, destas múltiplas identidades, invenções literárias, ainda prementes de diálogo.

Recursos Estilisticos
Em Venenos de Deus, remédios do Diabo (2008), encenam-se vozes de portadores de
identidades deslizantes e esse deslizamento representa-se também na linguagem da narrativa. É
empregada a língua portuguesa, mas ressemantizada, reterritorializada. Desse modo, a língua
europeia é reconfigurada noutras feições, mostrando-se ao mesmo tempo mesma e diferente.
(FONSECA, 2008, p. 183). O romance acercase, nesse sentido, do conceito de literatura menor
proposto por Deleuze e Guattari (1977): “Uma literatura menor não é a de uma língua menor,
mas antes a que uma minoria faz em uma língua maior. No entanto, a primeira característica é,
de qualquer modo, que a língua aí é modificada por um forte coeficiente de desterritorialização.”
(DELEUZE & GUATTARI, 1977, p.25). A língua literária usada por Mia Couto é a portuguesa,
mas ela é territorializada em Moçambique, ou seja, a cultura oral africana é alocada no código
herdado do colonizador. Sobre esse “jogo estético” do escritor moçambicano, Inocência Mata
(1998, p.266) afirma haver “uma postura ideológica, de afirmação de uma diferença linguística e
literária no interior da língua de poder [...]” (MATA, 1998, p.266). Também se discute de
maneira mais explícita, no romance em estudo, a questão da língua como referente identitário.
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Relacao da obra com outras por mim lidas


Esta é uma obra surpreendente e, mesmo assim, traz características já observadas em minhas
leituras anteriores de outros livros do autor - a saber: o romance A confissão da leoa,

O início desta narrativa se consubstancia a partir de um mito fundador – “Deus já foi mulher.
Antes de se exilar para longe da sua criação e quando ainda não se chamava Nungu, o atual
Senhor do Universo parecia-se com todas as mães deste mundo” (COUTO, 2012, p. 13) – que
mais parece uma célula, um núcl O início desta narrativa se consubstancia a partir de um mito
fundador – “Deus já foi mulher. Antes de se exilar para longe da sua criação e quando ainda não
se chamava Nungu, o atual Senhor do Universo parecia-se com todas as mães deste mundo”
(COUTO, 2012, p. 13) Veja-se: [...] Todos sabemos, por exemplo, que o céu ainda não está
acabado. São as mulheres que, desde há milênios, vão tecendo esse infinito véu. Quando os seus
ventres se arredondam, uma porção de céu fica acrescentada. Ao inverso, quando perdem um
filho, esse pedaço de firmamento volta a definhar. (COUTO, 2012, p. 13) Embora na
contemporaneidade o mito não permaneça integralmente “‘vivo’ no sentido de que fornece os
modelos para a conduta humana, conferindo, por isso mesmo, significação e valor à existência”
(ELIADE, 2015, p. 8) dos habitantes de Kulumani, compreender a sua trajetória ajuda no
entendimento do pensamento mítico-ritualístico existente nessa sociedade, situada entre os
pressupostos da tradição e da modernidade, pois, como é possível verificar, representações
reviverão processos e normas importantes para a comunidade, portanto a obra venenos de Deus
remedio do diabo a semelha-se a este romance a confisao da leoa.

Reconto da Obra
Em seu romance “Venenos de Deus, remédios do Diabo” (2008), Mia Couto dá continuidade a
este seu projeto literário, onde a relativização das verdades (e das mentiras) engendra a trama
deste livro que conta a história de Bartolomeu Sozinho (ex-mecânico naval da Companhia de
Navegação Colonial), sua esposa Dona Munda, o médico Sidónio Rosa e a mulher que este ama
e busca reencontrar em Vila Cacimba, cenário da história, Deolinda.
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O primeiro aspecto que chama nossa atenção em “Venenos de Deus, remédios do Diabo” é seu
aspecto fantástico. Ao chegar em Vila Cacimba, o médico Sidónio Rosa se vê na obrigação de
tratar os habitantes do lugarejo de uma estranha epidemia (supostamente de meningite) que os
transforma, segundo o narrador, em “tresandarilhos”. A despeito da epidemia, Sidónio dedica
especial atenção a Bartolomeu Sozinho, que vive enclausurado em seu quarto e padecendo de
misteriosa e mortal debilidade, visitando-o diariamente. Bartolomeu é casado com Munda,
mulher que vive a hostilizar e que acredita infiél. Esta, por sua vez, mantém uma relação incerta
com seu marido: ao mesmo tempo em que o hostiliza e pede por sua morte, é capaz de dormir à
porta de seu quarto para estar atenta se for solicitada. A atenção especial do médico ao casal
justifica-se em seu interesse por Deolinda, mulher que conhecera em Portugal e pela qual se
apaixonara, supostamente filha de Bartolomeu e Munda, e ausente de Vila Cacimba para realizar
cursos de aperfeiçoamento. Seu destino e a data de retorno são ignorados, porém comunica-se
com Sidónio através de cartas que lhe chegam às mãos por intermédio de Munda, que por sua
vez as recebe de “familiares”, pois “aqui em África, todos são familiares” (p. 47) – argumenta a
personagem em arroubo pan-africano. Nestas cartas, Deolinda pede a Sidónio que vele por seus
pais, e que lhes dê alguns presentes a fim de lhes atenuar as dores e propiciar um pouco de
conforto, como um televisor para a mãe, por exemplo. O leitor tem aqui a impressão do caráter
de escambo apresentado pelo conteúdo dos pedidos das cartas; escambo tão próprio dos tempos
coloniais. Na relação do nativo com o europeu, estabelece-se um interesse mercantil onde ambos
procuram obter vantagens da condição que ocupam: o europeu, que detém o capital, crê que pode
comprar a confiança e o respeito do casal de nativos através dos presentes e da atenção que
dispensa; os nativos se aproveitam de uma suposta situação de vitimização para alcançarem aos
artefatos da modernidade que desejam possuir. é o desejo de usarem dos recursos e da atenção
de Sidónio que leva Bartolomeu e Munda, em “Venenos de Deus, remédios do Diabo”, a
falsearem as cartas de Deolinda. Sob esta lógica, justifica-se a irritação externada pelo médico
quando reflete: “Os que a mim se dirigem não me querem como pessoa. Uns chegam-se para
vender, outros para roubar. Ninguém me aborda sem interesse, meu Deus, como me custa ter
raça!” (p. 75). Cabe, entretanto, ressaltar a veracidade da recíproca, porque também ele, Sidónio,
tem seus interesses; também ele não é quem aparenta ser. E o que parece ser mentira, é tão
somente outra verdade; daí um certo caráter fantástico inerente a este romance: nunca sabemos
qual o relato que nos dá a verdade dos fatos, nunca sabemos quem falseia e quem revela, afinal,
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nada há além do discurso, da literatura, responsável até mesmo pela construção da própria
identidade, da raça. Neste sentido o trecho abaixo, excerto de uma conversa entre Bartolomeu e
Sidónio, tem muito a nos dizer: “ – A propósito da língua, sabe uma coisa, Doutor Sidonho? Eu
já estou a desmulatar. E exibe a língua, olhos cerrados, boca escancarada. (...) a mucosa está
coberta de fungos, formando uma placa esbranquiçada. quais fungos? – reage Bartolomeu. Eu
estou é a ficar branco de língua, deve ser porque só falo português (...)” (p. 110-111).

Se nas páginas finais Deolinda afirma ao médico que “esta terra mente para viver” (p. 181),
podemos entender que ao falar de sua Vila Cacimba (extensão do Moçambique?), Deolinda diz
também de toda terra, dos territórios que, através do discurso, permanentemente inventamos,
sejam estes territórios geográficos ou identitários, e é nesta invenção que existimos e habitamos.
Talvez por isso, também, não há maniqueísmo em “Venenos de Deus, remédios do Diabo”. O
próprio título já indica este relativismo ao atribuir a cura ao Diabo e o mal a Deus. Há, isto sim,
posições, e por isso a relativização, seja do bem e do mal, seja do nacional e do estrangeiro ou do
branco e do negro, porque ser branco, segundo Bartolomeu no excerto que apresentamos acima,
é uma questão de “língua”. Daí a complexidade psicológica e identitária dos personagens deste
romance.

Bartolomeu Sozinho, apesar de negro e nativo, ocupa uma posição arielista, segundo conceito de
José Endoença Martins (2007); ou seja, reconhece no branco, no europeu, qualidades e
superioridades que inveja e deseja para si. Tanto que, cansado da vida, pede ao médico que lhe
mate sob o argumento de que “ele tinha que valorizar a única riqueza que lhe restava: a sua
morte. – Tenho que ser morto por um branco!” (p. 54). Bartolomeu orgulha-se de um passado
que julga glorioso, a serviço da Companhia de Navegação Colonial, como único tripulante negro
do navio Infante D. Henrique, apesar de atravessar os mares no fundo de um porão escuro. E
com o fim do regime colonial, “o navio encalhou, virou sucata e estava, um pouco como ele
mesmo, à espera de ser abatido” (p. 14). A multietnicidade pode ser observada também se
atentarmos para a miscigenação dos personagens. Bartolomeu é negro, mas afrontou sua família
ao se unir a Munda, uma mulata de ascendência alemã. Ambos geraram Deolinda que, ao visitar
Portugal, apaixonou-se por um português. Miscigenações que são vistas com muita resistência.
Os alemães, por exemplo, são alvo de preconceito, e os restos mortais dos seus antepassados
repousam em um cemitério evitado pelos nativos; assim como Bartolomeu teve de enfrentar a
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resistência da família, que considerava sua união com uma mulata como um pioramento
genético.

Ao protagonismo de Bartolomeu, opõe-se o personagem Suacelência, administrador de Vila


Cacimba e seu principal rival. Suacelência é, também, personagem de complexidades. Pelos
juízos de Bartolomeu, somos levados a crer no caráter corrompido, vil e chauvinista do
administrador; mas no final do livro somos surpreendidos ao sabermos Suacelência demitida do
seu posto justamente por se opôr à derrubada ilegal de madeira na região. E se a rivalidade entre
ambos existe e é recíproca, esta se dá principalmente pela posição social que cada um ocupa: um
como administrador nacional, outro como saudosista da administração colonial. Segundo o
administrador, “esses colonos precisavam de um preto decorativo! Não era por méritos próprios
que o mecânico negro seguia no navio. Ele era tripulante apenas como instrumento de uma
mentira: de que não havia racismo no império lusitano” (p. 26). Tão logo destituído de seu cargo
oficial, Suacelência aponta seu caráter humano, sensível até, ao revelar o uso de seus últimos
dinheiros para ofertar a Bartolomeu um enterro de pompa e condizente com suas vontades finais.

Quero ainda apontar um último aspecto deste romance de Mia Couto que me chama a atenção: a
problematização do conflito entre a tradição e a modernidade no contexto pós-colonial, fato não
menos recorrente em sua literatura. A própria presença de um personagem médico torna-se
emblemática, haja visto este se opor ao curandeiro, personagem a quem recorre Deolinda para se
tratar do mal que a acometia. Interessante observar que o curandeiro está situado no Zimbabwe,
ou seja, fora das fronteiras do Moçambique. Também Bartolomeu externa o desconforto entre o
antigo e o novo, a tradição e a modernidade, quando diz que a televisão o poupa dos sonhos,
sonhando por si. A percepção que temos é a da existência de um certo desconforto, como aquela
expressão no rosto de um indígena brasileiro quando lhe vestiram um chapéu na cabeça. A poeira
das estradas contradiz com a tecnologia capaz de produzir a camioneta que liga Vila Cacimba ao
resto do país; assim como uma epidemia de meningite (cuja proliferação se dá a partir de lugares
fechados) não condiz com os horizontes da savana africana.

Sidónio Rosa é um médico português que viaja para Vila Cacimba, em Moçambique, para
supostamente curar o vilarejo de uma epidemia. Mas na verdade, ele está à procura de Deolinda,
uma mulata pela qual se apaixonou durante uma viagem que ela fizera a Lisboa. Porém ela está
desaparecida, e como quisesse ter de alguma forma a sua presença, o médico passa a cuidar do
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pai de Deolinda, Bartolomeu, ex-mecânico naval e doente terminal, que nunca sai de casa. O
velho tem o espírito pessimista de quem morreu já bem antes mesmo de a alma sair de dentro do
corpo, e um ar misterioso que percorre toda a narrativa. Vive com Dona Munda, sua esposa e
principal alvo de seus resmungos, personagem de uma força tal que só atesta o quanto Mia Couto
sabe traçar perfis femininos inigualáveis. Ao mesmo tempo que é observador, Sidónio pensa em
seus momentos de amor com Deolinda e ansia reencontrá-la. Porém, ele se enreda cada vez mais
nas explicações que Dona Munda dá sobre o assunto. Esse mistério é levado por meio da
incansável prosa poética do Mia, que nos diz muito sem necessitar de descrições longas,
encerrando na poesia o sentido último de sua narrativa - entendendo poesia aqui não como
gênero, mas como forma de narrar. "Sidónio sabe da rotina de Bartolomeu: domingo é dia de
janela. A meio da manhã, ele se desamarra do reumatismo, ergue-se arrastoso e se encosta na luz,
a contemplar a rua. Meio oculto entre os cortinados, não vê muito, quase que não escuta. Melhor
assim: os sons desfocados já não o convocam. Apesar de tudo, vai acenando. De que vale estar à
janela se não é para dizer adeus?"

A história de Bartolomeu, um negro que viu na navegação uma oportunidade de mudar um


pouco a sua vida, por vezes romantizando suas perspectivas, era um chiste para o administrador
da Vila, Suacelência. Essa autoridade, que não parece lhe impor medo, dizia que "esses colonos
precisavam de um preto decorativo", o que enchia Bartolomeu de revolta. Além do amor, da
solidão advinda da velhice e das doenças, nesse romance há reflexões sobre racismo - inclusive
fala-se sobre o complicado relacionamento entre negros e mulatos. Há também muito sobre
incerteza, pois tanto quanto o discurso, que é feito para encantar, a realidade parece, por vezes,
forjada. De fato é uma obra que nos tira o chão, o conforto, mas ao mesmo tempo nos traz
experiência e emoção tais que os venenos e remédios se fundem. Como é comum em suas obras,
o fantástico e o real se cruzam, se tornando praticamente a mesma substância, pois como o
próprio autor já disse em uma das edições da Fliporto (Festa Literária Internacional de
Pernambuco) não há grandes separações entre esses aspectos na realidade africana.
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Conclusão
Parafraseando Silviano Santiago (1978), na qual chegando ao fim da abordagem dessa temática
da obra em alusão tivemos uma profunda analise e critica do mesmo e juntando com a realidade
Moçambicana pós colonial e os desafios que o enfrentamos, cremos que entre a submissão ao
código e a agressão, entre a obediência e a rebelião, entre a assimilação e a expressão, - ali, nesse
não-lugar aparente constroem-se as identidades das personagens de Mia Couto. Parece-nos, pois,
coerente afirmar que, no campo da ficção, o autor de Venenos de Deus, remédios do Diabo
torna-se agenciador dos muitos papéis identitários que se configuram nos sujeitos, sempre com
toda consciência de que o termo e o conceito de identidades são legitimamente plurais. Em
consonância com reflexões teóricas que acreditam estar o homem pós-moderno em constante
“celebração móvel”, cremos que são agenciadas, na narrativa ficcional de Mia Couto, vozes e
visões de homens e mulheres, estrangeiros e nativos em espaços de múltiplas percepções de
sistemas culturais.
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Bibliografia
BHABHA, Homi K. Locais da cultura. In: Idem. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2007.

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: Artes de fazer. Trad. Ephraim Ferreira Alves. 4
ed. Petrópolis: Vozes, 1999, p.199-217. COUTO, Mia. Venenos de Deus, remédios do Diabo.
São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. A literatura menor. In: Idem. Kafka, por uma literatura
menor. Trad. Júlio Castagnon Guimarães. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1977. p.5-78.

FONSECA, Maria Nazareth Soares. Literaturas africanas de língua portuguesa: percursos da


memória e outros trânsitos. Belo Horizonte: Veredas e Cenários, 2008.

FONSECA, Maria Nazareth Soares; CURY, Maria Zilda Ferreira. Mia Couto: espaços
ficcionais. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.

GUPTA, Akhil. FERGUSON, James. “Mais além da ‘cultura’: espaço, identidade e política da
diferença”. In: ARANTES, Antônio. (org.) O espaço da diferença. Campinas: Papyrus, 2000.
p.30-49.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 8.ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.

MATA, Inocência. A alquimia da língua portuguesa nos portos da expansão em Moçambique,


com Mia Couto. Scripta, v.1, n.2, p.262-268, Belo Horizonte, 1º sem. 1998.

SANTIAGO, Silviano. O entre-lugar do discurso latino-americano. In: Idem. Uma literatura nos
trópicos. São Paulo: Perspectiva, 1978. p.6-25.

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