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Entre o deslocamento e a recolocação cultural, um olhar crítico e cômico de Abba

T. Makama no filme “The lost Okoroshi”(2019)

Introdução

Este ensaio pretende trazer algumas reflexões e levantamentos críticos embasados


na bibliografia que permeia a primeira parte da disciplina “Teoria e crítica do
eurocentrismo em História”, ofertada pelo docente Bruno Uchoa. Nesse início,
dialogamos e trouxemos olhares pertinentes, a partir dos textos discutidos nas aulas,
sobre como o eurocentrismo normaliza nossas subjetividades condicionando as
narrativas que são angariadas e geradas ao decorrer das relações que estão diretamente
enlaçadas entre o eurocentrismo e o processo de colonização. Além de percebermos o
como a indústria da cultura de massa e seus diversos tentáculos macula toda e qualquer
produção cultural e material daqueles intitulados de “outros”, fazendo com que possam
em sua maioria “ser apropriadas e suas conquistas negadas, enquanto o ato de
apropriação que marca a antropofagia cultural européia é glorificado.” (SHOHAT e
STAM, p. 22)

Assim, ressaltando os atributos e potencialidades dos discursos construídos às


margens e com eles, novas formas de compreender movimentos complexos que
permeiam o tradicional e o contemporâneo, esse ensaio analisará o filme da indústria
cinematográfica nigeriana, conhecida como “Nollywood”, “The lost Okoroshi”. O longa
de 2019, disponível na Netflix, é do diretor e cineasta Abba T. Makama e já carrega
diversas críticas pertinentes devido seu grau de circulação nacional e internacional.
Além de apresentar uma história cômica e envolvente, o enredo permeia o cotidiano de
diversos indivíduos do continente africano que convivem com uma contemporaneidade
perfurada pelas influências massivas ocidentais e o reflexo desse movimento no legado
ancestral e em suas subjetividades.

Não propondo respostas, mas sim perguntas que caminham entre: quem somos,
para onde estamos indo e o que está acontecendo culturalmente, Abba T. Makama em
seu longa “The lost Okoroshi” nos leva a reflexão sobre o lugar da espiritualidade
tradicional africana na Nigéria moderna. Dessa forma, esse ensaio caminhará entre o
deslocamento e a recolocação cultural, o primeiro aspecto que é o causador do
desequilíbrio na consciência nigeriana em geral e que afeta diversos indivíduos que
necessitam enquadra-se em um espaço corporativo, capitalista e ocidental de uma Lagos
moderna. E o segundo aspecto proposto como solução por um dos personagens do
filme, a recolocação cultural representando um esforço consciente e inconsciente para
que de forma simbiótica, a espiritualidade possa coexistir frente às realidades
socioculturais modernas.

1. Raymond e o Okoroshi: caminhos e impactos de um deslocamento cultural

“Na noite passada, não consegui fazer com que os mascarados que
estavam na minha cabeça parassem de dançar. Eles dançaram por horas,
sem parar. Notei que não era uma dança comum. Era uma mensagem.
Uma mensagem de nossos antepassados.” 1

O longa-metragem aqui apresentado carrega além das vicissitudes presentes nas


diversas produções nollywoodianas, um novo realismo nigeriano que vem sendo notado
por diversos cinéfilos ao redor do mundo, além de refletir ao longo do seu enredo de
forma cômica mais contundente sobre um aspecto que permeia o cenário cultural e
social da população em questão.

O filme além de exibido em diversos festivais, como o de Toronto, e de estar


disponível na Netflix, carrega todos os elementos da terceira maior indústria
cinematográfica do mundo e destaca o espaço urbano como esse local não só de
realismo social, mas também de construção crítica para as diversas realidades que se
encontram presentes em todo território nigeriano. O espaço dado pelas plataformas de
streaming, pensando a Netflix como uma que vem desde 2015 aglutinando títulos de
Nollywood, possibilita pensarmos o papel dos meios de comunicação como espaços
para compreender a potencialidade das narrativas cinematográficas feitas fora do eixo
eurocêntrico por indivíduos considerados “outros” (HALL, 2016). Tais que
acompanham mudanças e constroem caminhos estratégicos para desvencilhar-se do
olhar ocidental e vislumbrar alternativas possíveis fora do eixo europeu através da
ferramenta audiovisual.

1
MAKAMA, 2019.
Já que todas as lutas políticas na era pós-moderna passam necessariamente pelo
reino dos simulacros da cultura de massa, os meios de comunicação são
absolutamente fundamentais para qualquer estudo sobre o multiculturalismo.
(SHOHAT e STAM, p. 27)

Assim, o filme de Abba T. Makama aqui discutido, além de apresentar elementos


de um realismo social, nos faz repensar conceitos como tradição e modernidade, que são
tão cristalizados pela perspectiva ocidental. O filme se inicia pelo sonho do protagonista
Raymond. Nele, o mesmo é levado para um ambiente fora do espaço urbano em que
observa diversos espíritos ancestrais e suas materialidades possíveis pelo conjunto
material e imaterial de elementos como ás máscaras, vestimentas e sons. Após essa
espécie de espetáculo, o mesmo parte para outro momento do sonho em que é
perseguido por um ancestral específico, o Okoroshi. E sempre que esse ancestral
aproxima-se dele para tocá-lo, o mesmo acorda com medo e ofegante. Tal sonho
acompanha Raymond em quase todas as noites, fazendo, inclusive, com que sua esposa
proponha a procura de um pastor para ajudá-lo em suas tormentas noturnas. Esse ponto
torna-se relevante pois o olhar em diversos elementos cristãos na casa do personagem,
como cruzes espalhadas nas paredes, remonta estruturas coloniais impostas que levaram
a um epistemicídio e à demonização da cultura tida como tradicional. A todo o
momento, o sonho de Raymond é colocado enquanto espaço de tensão, medo e
julgamento pela sua esposa.

Em contrapartida, o personagem secundário intitulado de “o Chefe” representa a


conexão oral e ancestral frente aos sonhos de Raymond e toda sua construção
sócio-cultural. Ao apresentar o sonho e os medos que o perseguem, “o Chefe” o
aconselha e, pelo viés da oralidade, fala sobre quem são os ancestrais por trás dos
“mascarados”. Ao mesmo tempo, esse personagem representa a crítica entre o descaso
com o território urbano, o avanço tecnológico e a perda do respeito pela longevidade
dos indivíduos e seus saberes pois “o Chefe”, devido um acidente em sua perna na
indústria na qual trabalhava, foi demitido por não servir mais ao sistema capitalista ali
imposto. E assim começou a viver das provisões daqueles ao redor e de seus saberes
como herbalista. Raymond começa seu processo de deslocamento cultural a partir das
narrativas orais do chefe, ora o escutando e o respeitando, ora desconfiando e agregando
o elemento cômico ao que era dito pelo ancião. Mesmo respeitando sua decisão em não
ir no “hospital dos brancos”, vê-se o elemento da desconfiança e comicidade por parte
do personagem principal quando o chefe dizia-o que não iria ao centro médico, pois em
sua etnia os homens são grandes caçadores e herbalista, culpando assim a sua demora
em curar-se a todo o descaso urbano presenciado ao redor.

“Cansei da cidade. Cansei dessa cidade porque há poluição em todo lugar.


Afetou até o plantio espiritual, os espíritos estão perdendo seus poderes. Há
atrocidades em todo canto. Sequestros, estupros e roubos. Tudo isso impede que
os espíritos se manifestem. Até nossas ervas, que poderiam curar doenças
comuns perderam sua força”.2

Debilitado, decidido e não cedendo a busca em tentar sua recuperação pela


medicina presente no “hospital dos brancos”, o chefe encerra seu momento em vida
envenenando-se e em sua última conversa com Raymond deixa o seguinte conselho
sobre o seu sonho: “Sempre que ver um mascarado chegando, não corra. Fique e dê um
abraço nele. Aqueles mascarados são nossos ancestrais. Eles devem ter algo bom para te
contar, sobre seu presente e sobre seu futuro. Trate-os como nossos antepassados”
(MAKAMA, 2019).

Assim, segue o conselho do ancião e na tensão da fuga em seu sonho, sendo


perseguido pelo mascarado, Raymond, em um momento de calma e descoberta,
aproxima-se e abraça o Okoroshi. Nesse momento, acontece outro deslocamento que o
leva para um espaço em que “o Chefe” encontra-se presente para contar-lhe a história
deste ancestral. E, em alguma língua étnica nigeriana (possivelmente Igbo), narra a
história desse espírito. No mais, ressalta que o Okoroshi é um ancestral que traz boa
sorte às boas pessoas e má sorte aos mal feitores. E numa espécie de processo iniciático,
coloca a máscara do Okoroshi em Raymond e o mesmo quando acorda em sua casa, já
não é mais um homem e sim o próprio ancestral Okoroshi.

Transformado no próprio ancestral em terra, seu descolamento conclui-se e outro


movimento se inicia. Nele, o cineasta Abba T. Makama nos leva a refletir a que ponto
estaríamos preparados ou não, ou quais seriam nossos sentimentos frente as nossas

2
Fala do Chefe no filme. MAKAMA, 2019.
tradições ancestrais caso elas se materializassem na nossa vida diária contemporânea.
Teríamos alguma aproximação ou medo? Levaríamos para o campo tecnológico?
Lucraríamos com tal presença? E os limites entre o crer e o poder? Perguntas que
Makama não faz explicitamente, mas nos deixa a refletir a partir do elemento ficcional e
cômico de entrada do Okoroshi na cena pela Nigéria contemporânea.

2. Okoroshi e a Nigéria Moderna: estratégias turvas de uma recolocação


cultural.

“Qualquer tribo, ou clã, ou grupo étnico, ou qualquer país, até os EUA, país dos
homens brancos, não pode existir sem seu povo. Portanto, qualquer terra onde
uma comunidade Igbo estiver reunida é uma terra Igbo.” 3

Com o Okoroshi em cena, os questionamentos anteriores ressurgem enquanto


outros novos também são colocados no enredo. Mas, a entrada desse elemento ancestral,
ao mesmo tempo em que relembra a força da ancestralidade coletiva frente ao espírito,
reforça o poderio ocidental que perpassa os pensamentos e a linguagem. Esse último
aspecto costura-se a partir da visão da esposa de Raymond ao deparar-se com o
Okoroshi ao seu lado invés do seu companheiro. No primeiro momento o sentimento da
personagem é de desespero, de demonizar aquele ancestral e rogar ao deus cristão para
trazer seu esposo de volta. Esse posicionamento reforça o aspecto produtivo da idéia de
“ocidente”, nela está incrustada na forma de falar, pensar e agir em que grande parte dos
indivíduos que passaram junto aos seus territórios por processos de colonização
carregam nas suas diversas maneiras de entender o mundo. Após esse primeiro
momento de atestação e aceitação, começa uma saga de atitudes da companheira do
protagonista em tentar trazê-lo de volta, essa que caminha entre levá-lo a hospitais,
igrejas e no seu trabalho. Todos esses caminhos, carregados dos olhares de negação,
medo e terror daqueles que cruzavam nas ruas movimentadas de Lagos com o Okoroshi.
Essas atitudes e o trânsito inicial do espírito ancestral junto à esposa de Raymond
conectam-se ao que Achile Mbembe, em seu livro “Crítica a razão negra” chama de
política da diferença.

3
Fala do filme de um dos sacerdotes da “Igbo People Secrety Heritage Restoration and
Reclamation – IPSSHRR” (Sociedade Secreta do povo Igbo pelo Restauro e Recuperação das
Tradições). MAKAMA, 2019.
Na impossibilidade de partilhar um mundo comum entre eles e nós, a política
africana do nosso mundo não tem como ser uma política do semelhante. Ela
somente conseguirá ser uma política da diferença – a política do Bom
Samaritano, que se alimenta do sentimento de culpa, seja por ressentimento,
seja por piedade, mas nunca por justiça ou responsabilidade. (MBEMBE, p. 97)

Assim os laços entre seres semelhantes são abalados pela presença do Okoroshi,
não há mais partilha de um mundo comum entre a esposa e Raymond. O sentimento que
a mesma possui ressalta a diferença e o descrédito frente ao que aquele ancestral
representa, algo que leva a quebra total do vínculo construído e a afirmação de não
partilha de um mundo comum. Com esse entendimento e como um sopro, o Okoroshi
libertar-se e inicia sua caminhada livremente pelas ruas, mercados e espaços diversos da
Lagos contemporânea. Nesse sentido, nesse misto de perda identitária que autoriza a
possessão, o ancestral releva sua verdadeira forma, aquilo que Mbembe irá ressaltar
como a verdadeira natureza do fetiche, uma metamorfose que revela o devir-forma da
força e o devir-força da forma.

Munido com os devir força e forma metamorfoseados, o Okoroshi passeia por


Lagos e um dos espaços em que encontra reconhecimento é o mercado. Território que
carrega relações de trocas e entretenimento, representando também um espaço de fluxo
contínuo de tradições e suas ressignificações. É a partir dele também que o ancestral
coloca em prática todas as dimensões possíveis que sua forma e força podem
proporcionar. No aspecto daquele que pune os maus feitores, é interessante notar a
inserção dos personagens: a prostituta e o ladrão. A primeira, no exercício de sua
profissão é ludibriada por um cliente, e o mesmo é punido pelo Okoroshi. Já o segundo,
após um roubo e punição do espírito ancestral apresenta queixas ao personagem Jagar,
um homem banhado pelos “espíritos do submundo” que encerra os caminhos do
ancestral em terra. Em ambos, o sentido de justiça que perpassa o Okoroshi é ressaltado.

Mas antes de refletirmos sobre o final desse enredo e as diversas perguntas que o
Makema nos faz, cabe apresentar outras ligações que o mercado proporciona ao espírito
ancestral a partir do entretenimento, da tecnologia, da tradição e da busca em
enquadrá-lo em um viés ocidental científico. Para isso, três personagens são importantes
para compreender esses imbricamentos, são eles: Willy-Willy, os membros da “Igbo
People Secrety Heritage Restoration and Reclamation – IPSSHRR” (Sociedade Secreta
do povo Igbo pelo Restauro e Recuperação das Tradições) e o doutor.

Willy-Willy encontra o Okoroshi no mercado e diante do respeito e busca por


riquezas e coisas boas, muitas pessoas jogam dinheiro por onde àquele ancestral passa.
O menino Willy, ao acompanhar e recolher o dinheiro jogado para o Okoroshi, observa
a possibilidade de lucrar com um espetáculo próprio da essência do ancestral. Nesse
sentido, falas como abrir um ramo de entretenimento com o mascarado e inseri-lo no
universo digital são tocados. Não no sentido de ressaltar a força e forma do ancestral,
mas de espetacularizar uma tradição e ganhar com o exotismo nos momentos em que
são lidos tanto por uma sociedade nigeriana contemporânea, quanto no próprio espaço
digital banhado pelas perspectivas ocidentais. Nesse sentido, apresentando uma
estratégia de marketing e divulgação do Okoroshi nas redes sociais Willy, se utiliza da
figura do meme, que em tom cômico e sarcástico faz uma comparação depreciativa
entre o deus nórdico Thor e o deus ioruba Xangô. Nessa imagem é possível ver a figura
tradicional ligada a Thor e outra de um homem negro com corporeidade e roupas
excêntricas possivelmente ligadas ao deus Xangô, abaixo uma frase que diz “The
difference between Thor and Shango is packaging”. O meme apresentado carrega um
discurso que não é neutro e nem inocente, em suas nuances se expressa a categorização
imposta pela Europa para compreender o outro através da incorporação das tradições
ocidentais de representação (HALL, p.22). Apesar de suas idéias mirabolantes de lucro
e riqueza, o Okoroshi vê no menino Willy-Willy a busca pela superação frente à dura
realidade de um garoto sem rumo pelas ruas de Lagos.

O segundo personagem que merece nossa atenção nesse ensaio concentra-se na


atuação dos sacerdotes e membros da IPSSHRR. Como uma sociedade secreta
responsável em salvaguardar e recuperar as tradições da sociedade Igbo, saber da
presença do Okoroshi em Lagos causou curiosidade e um encontro não muito amistoso
com o espírito ancestral. Nesse encontro, apesar de partir do sequestro do ancestral para
a sede da sociedade, busca-se ofertar todas as honrarias necessárias ao Okoroshi. Como
as oferendas e elementos próprios ao ancestral, deixado a sua frente para agradá-lo e
contê-lo diante daqueles que o saúda. Porém, entre glórias e júbilos exaltados pelos
membros da sociedade secreta com a presença do Okoroshi, as disputas de interesses
por traz do vislumbre das tradições aparecem. Nesse sentido, três sacerdotes discutem
sobre aonde o ancestral deve permanecer para ser cultuado. A frase que inicia a segunda
parte desse ensaio é proferida e com ela a tentativa de considerar o trânsito ancestral do
Okoroshi, e muitos outros que cruzaram inclusive o Atlântico, como elemento de uma
tradição viva e em constante transformação nas diversas manifestações religiosas e
espirituais no mundo.

Mas, o que se desenha em seguida são possibilidades de barganha através da


presença do Okoroshi, no sentido capitalista e do poder de um território sobre o outro. E
outra vez, os recursos tecnológicos são tocados como elementos aglutinadores e de
aproximação com os territórios em que a presença física do ancestral não for
viabilizada. Carecendo nesse momento dos aspectos rituais e espirituais que envolvem a
presença do ancestral em meio ao seu povo, algo que o cineasta nos faz questionar sobre
até que ponto, na contemporaneidade, o poder e o espetáculo são elementos
supervalorizados e hierarquizados frente a aspectos inerentes a espiritualidade de um
coletivo/indivíduo.

A última ligação que se inscreve perpassa a tentativa incrédula e cientificista do


personagem “doutor” em encontrar explicações nas representações dos mundos
espirituais que se materializam no mundo físico e principalmente no caos da vida
nigeriana urbana. Nesse sentido, enquanto psicólogo, ele entende que há um
deslocamento espírito-cultural em voga na Nigéria contemporânea e que isso causou um
desequilíbrio na consciência nigeriana em geral. Em um processo de deslocamento
causado pelo campo da psique, que se reverbera nos sonhos como o de Raymond e de
alguns pacientes, defende que o processo de recolocação cultural é necessário para um
despertar consciente e inconsciente da espiritualidade tradicional que sempre esteve
presente simbioticamente nas realidades socioculturais. Essa recolocação vem
acontecendo em pequenas coisas, mas ainda com certo descuido e investido por
perspectivas ocidentais cristalizadas pelas estruturas coloniais europeias ainda presentes
em países como a Nigéria,
Vemos pessoas voltando às práticas tradicionais perdidas, vemos uma Nigéria
corporativa em busca de uma identidade africana corporativa em coisas
pequenas como no uso de abadas e bubás ao invés de ternos.4

Esse processo de “africanização” que parte do continente para outras partes do


mundo agrega o poderio que os elementos de negação/apagamento tiveram sobre
práticas como o epistemicídio/genocídio de diversos grupos compreendidos como o
“outro”. E esse processo de volta, de busca por uma identidade própria ressalta um
apelo à reparação, à restituição e à justiça desses indivíduos em seus territórios
(MBEMBE, p.104).

Mesmo destacando a necessidade desse processo de recolocação, quando


questionado sobre o caso do Raymond, o personagem “o doutor” não hesita em colocar
a esse experiência espiritual em particular no campo de um “estado psicoespiritual
desequilibrado”. Assemelhando-o a casos estadunidenses mundialmente conhecidos e
eventos extremamente dispares e cruéis (como os esfaqueamentos do Slender Man e os
assassinatos do Filho de Sam) frente à presença do Okoroshi naquela realidade, mais
uma vez o olhar ocidental opera como elemento de significado e representação que visa
uma semelhança em meio uma diferença latente e presente, fazendo-nos questionar até
que ponto as tessituras científicas auxiliam na compreensão das realidades outras ou
afirmam estereótipos construídos por visões eurocêntricas frente às realidades
estudadas.

O fim dessa ficção/comédia de Makama retoma a figura do ladrão como aquele


que rouba a vida do ancestral em terra. Após ser açoitado pelo roubo cometido, o
mesmo comunica ao poderoso Jagar, nomeado como um homem banhado pelos
“espíritos do submundo” sobre a tentativa do Okoroshi em punir os ladrões presentes
naquela região. A vingança de Jagar diante do ocorrido com os ladrões que o servem só
é concluída em um embate frente a frente com o espírito ancestral. Nesse momento, o
Okoroshi não consegue reagir ao poderio jovem, robusto e incisivo do decidido Jagar
que, protegido pelos poderes do “submundo”, o fere fatalmente e, como uma fumaça do
no céu, o Okoroshi dissipa-se em busca de outro espaço. Essa cena nos faz questionar se

4
Fala do personagem “o doutor”. MAKAMA, 2019
essa força e forma do submundo não seria a própria contemporaneidade que suga a
potencialidade da força ancestral que perambula de maneira visível a esfera urbana na
Lagos Moderna.

Considerações Finais

Na estréia de “The lost Okoroshi”, no Festival de Internacional de Toronto em


2019, Abba T. Makama evidencia que mais do que fornecer respostas sobre esse cenário
nigeriano contemporâneo e as tradições que transcendem esse espaço, pretende levantar
questionamento e perguntas sobre essas dinâmicas. Tais que evidenciam as influências
coloniais britânicas na Nigéria e consequentemente o olhar ocidental que distorcem
essas práticas pelo viés capitalista, cientificista e ideológico.

O Okoroshi perdido nos faz mergulhar em um cenário permeado entre a tradição


que é viva, como bem ressalta Hampâté Bâ, e que se encontra em constante processo de
ressignificação e de aproximação com as novas gerações, além de nos apresentar um
universo ficcional repleto de encontros, desencontros e construções que pelo sentido do
questionamento nos transporta para possibilidades múltiplas e interligadas, algo que,
muitas vezes, o olhar ocidental tenta desfazer hierarquizando e enquadrando em suas
explicações dimensões que fogem da realidade contemporânea e da tradição presente
em tais territórios fora do eixo europeu.

Referências

Reportagens:

Native Exclusive: Into the mind of surreal 16 filmmaker, Abba T. Makama – Portal
Native - Disponível em: https://thenativemag.com/surreal-16-filmmaker-abba-makama/.
Acessado em 02 de Novembro de 2021

O novo realismo social no cinema da Nigéria – Portal Geledés – Disponível em:


https://www.geledes.org.br/o-novo-realismo-social-no-cinema-da-nigeria/. Acessado em
02 de Novembro de 2021

Audiovisual:
BBC Talking Movies: The lost Okoroshi Full segment, 2019. 1 vídeo (4min:59seg).
Publicado pelo canal Osiris Creatives. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=bh2qBDOBpiA . Acessado em 02 de Novembro de
2021

Culture Diaries meets filmmaker Abba T Makama, 2017. 1 vídeo (18min:42seg).


Publicado pelo canal WanaWana Udobang. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=gv0d6Q5jtfQ. Acessado em 02 de Novembro de
2021

How 'The Lost Okoroshi' unmasks the disconnect between tradition & modernity, 2020.
1 vídeo (7min:33seg). Publicado pelo canal Guardian Nigeria. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=6O_P8nLSAmE . Acessado em 02 de Novembro de
2021

MAKAMA, Abba T. – The Lost Okoroshi. Direção: Abba T. Makama. Produção de


Abba T. Makama, Rimini Makama. Nigéria: Nollywood, 2019. Disponível em Netflix:
https://www.netflix.com/br/title/81103512. Acessado em 02 de Novembro de 2021

Bibliográficas

BÂ, Amadou Hampaté. A tradição Viva. In: Iskander, Z. (Org.) História Geral da
África. Vol. 1. São Paulo: Ática, Unesco, 1980. p. 181-218

GROSFOGUEL, Ramón. A estrutura do conhecimento nas universidades


ocidentalizadas: racismo/sexismo epistêmico e os quatro genocídios/epistemicídios
do longo século XVI - Revista Sociedade e Estado – Volume 31, Número 1,
Janeiro/Abril 2016.

HALL, Stuart. O OCIDENTE E O RESTO: DISCURSO E PODER. Projeto História, São


Paulo, n. 56, pp. 314-361, Mai.-Ago. 2016.

MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra. São Paulo: n-1 edições, 2018b.

SHOHAT, Ella; STAM, Robert. Crítica da imagem eurocêntrica: multiculturalismo e


representação. São Paulo: Cosac Naify, 2006.

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