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ROSANE ALVES DA SILVA

REFLEXÕES ACERCA DO CONTO A SAIA ALMARROTADA DE MIA COUTO

Trabalho de pesquisa apresentado ao


Departamento de .... requisito parcial para
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....
2020/2
Ver cultura e literatura em Moçambique
REFLEXÕES ACERCA DO CONTO A SAIA ALMARROTADA DE MIA COUTO

O presente trabalho busca fazer uma reflexão a cerca do conto A Saia Almarrotada,
de Mia Couto, o referido conto encontra-se presente no livro O Fio das Missangas
publicado em 2009. Mia Couto, escritor moçambicano, reconhecido internacionalmente,
conquistou o seu espaço na escrita africana, apresentando em suas obras disputas internas,
acontecimentos nos núcleos familiares, entre outros resquícios que destinam os seres
humanos a margem da sociedade, em especial as mulheres inseridas no contesto tradicional
de submissão e opressão, de uma sociedade vinda de um cenário deixado pelo pós-
colonialismo.
No conto A Saia Almarrotada,de Mia Couto, temos por conseguinte uma
protagonista sem nome, revelando seu dia-a-dia, sob as ordens dos homens com os quais
convive, em especial o pai. Como já evidenciado o conto é narrado em primeira pessoa,
tecendo ao leitor a simplicidade do momento ocupado por esse ser humano. O autor vem
compondo a narrativa, dando voz a essa personagens que está sujeita à opressão vivenciada
pela mulher em uma sociedade patriarcal, onde os afazeres domésticos e a limitação do
prazer eram as únicas obrigações.
Rememorando os períodos históricos, vários fatores colocam em discussão a
posição ocupada pela mulher na sociedade: a dona de casa, a boa mãe, a boa esposa, aquela
que não exercia o direito a nada. Um dos meios de significar essa passagem da mulher na
história pode ser observado através da literatura. Dentre os meios que encontraram de
silenciar o feminino perante a sociedade, começa pelo corpo e sua vestimenta.
Sobre o silenciamento da mulher Perrot (2003, p. 13) enfatiza a seguinte
observação “Há muito que as mulheres são as esquecidas, as sem-voz da História. O
silencio que as envolve é impressionante. Pesa primeiramente sobre o seu corpo,
assimilado à função anônima e impessoal da reprodução”.
Observamos que o conto A Saia Almarrotada, vem denunciando o silenciamento e
a opressão vivenciados pela personagem começando pelo próprio título, o que nos remete a
pensar como uma analogia de uma alma que sofre, de uma alma derrotada, amarrada,
condicionada a não existência de viver, onde a igualdade de gênero e a busca pela
liberdade é uma utopia, pensar A saia símbolo da vestimenta feminina separada da palavra
que a complementa, nos faz pensar em um objeto isolado, como se A Saia fosse a própria
personagem, um objeto amarrotado, algo sem valor, um ser perdido em suas angustias e
devaneios.
A opressão sofrida pela personagem fica evidente logo no primeiro parágrafo:
Na minha vila, a única vila do mundo, as mulheres sonhavam com
vestidos novos para saírem. Para serem abraçadas pela felicidade.
A mim quando me deram a saia de rodar, eu me tranquei em casa.
Mais que fechada, me apurei invisível, eternamente nocturna.
Nasci para cozinha, pano e pranto. Ensinaram-me tanta vergonha
em sentir prazer, que acabei sentindo prazer em ter vergonha.
(COUTO, 2009, p.29)

Observa-se que a ela não era concedido nem mesmo o direito de sonhar, pois “as
mulheres sonhavam com vestidos”, já a personagem quando toma para si o presente que é
a saia de rodar, ao invés usá-la para se sentir bonita, para sair para uma festa, enclausura
suas vontades dentro de si, se torna anônima a elas. E essa vestimenta tida como símbolo
de sensualidade, objeto de desejo de mulheres de sua época e de sua idade, não pertence ao
seu mundo, pois a mesma foi condicionada a sentir vergonha de tudo que pudesse expor o
seu lado feminino. Em (COUTO, 2009, p.30) a personagem enfatiza ainda a seguinte
indagação “Eles me quiseram casta e guardada. Para tratar deles, segundo as inclinações
das suas idades – E assim se fez: desde nascença, o pudor adiou o amor”. Com isso,
podemos observar que sua existência era apenas para um propósito, cuidar dos homens de
sua casa, a ela era permitido apenas o compromisso com os afazeres domésticos, não tinha
“permissão” para desfrutar dos poucos prazeres que a sociedade vinha a oferecer.
Temos uma personagem vivida sobre as ideologias a ela impostas, subalterna um
ser sem voz. Regina Dalcastagnè (2008, p. 78) analisa a circunstancia autoral de vozes
subalternas, “O silencio dos marginalizados é coberto por vozes que se sobrepõem a ele,
vozes que buscam falar em nome dele”. Sobre isso é importante ressaltar uma passagem do
conto, em que a personagem retrata como era quanto todos se sentavam a mesa para as
refeições, “E esperava ser a última, arriscando nada mais a sobrar. Mas havia essa voz que
sobrepunha minha existência – Deixem um pouco para a miúda. Afinal, sempre eu tinha
um socorro. Um pouco para a miúda: assim, sem necessidade de nome”. A personagem
estava tão subjugada à condição de opressão, e vai perdendo a autenticidade dos sentidos
da vida. Afinal o que ou quem era ela? Um ser sem necessidade de nome?
Por fim a narrativa se encerra com a personagem esperando por vozes que sobrepõe
a sua, ordenando-lhe a sua vez de existir:
É essa voz que ainda paira, ordenando a minha vez de existir. Ou
de comer. E escuto a sua ordem para que a vida me ceda a vez. E
pergunto: posso agora, meu pai, agora que eu já tenho mais ruga
que pregas tem esse vestido, posso agora me embelezar de
vaidades? Fico à espera de sua autorização [...] (COUTO, 2009,
p.32).

São fortes os aspectos de elementos censuráveis que promovem o silenciamento e a


subordinação da mulher. Temos, portanto um conto que vem refletindo os sentimentos de
alguém dominado, oprimido e subalterno. Vê-se que, o autor, vem denunciando por meio
da literatura as fragmentações sofridas em seu tempo e espaço, segundo Candido “[...] A
literatura confirma e nega, propõe e denuncia, apoia e combate, fornecendo a possibilidade
de vivermos dialeticamente os problemas”. (CANDIDO, p.243). Sobre esse pensar os
“problemas”, que Candido propõe, é viável pensar a sociedade sobre essa direção,
buscando refletir sobre o conto em suas respectivas temporalidades. Sem sobrepor uma
cultura a outra.
Os debates que permeiam a temática ligada a corpo, liberdade, vestimenta,
pensamento feminino e suas construções de memória, estão sempre presentes nas obras de
Mia Couto e também de outros escritores da África de língua portuguesa, bem como nas
literaturas brasileiras.
Em Bosi, “... o contista é um pescador de momentos singulares cheios de
significação” (BOSI, 1999. p.09). Mia Couto deixa evidente também, os problemas e
humanos e conflitos sociais na obra. Deixando para que cada leitor reflita no tempo e
espaço as sociedades da qual fazem parte.
Vale ressaltar que mesmo na contemporaneidade em algumas culturas, ainda tem
uma visão estereotipada das mulheres na sociedade, sempre as deixando a margem, as
considerando o sexo frágil, aquela que nasceu somente para os afazeres domésticos. Por
fim, a literatura traz essas evidencias que destinam as mulheres a margem, cabe a
sociedade promover a equidade entre os gêneros em prol de um mundo mais humanizador.
Referências

CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. 9. Ed. Belo


Horizonte: Itatiaia, 2000. 2 v.

COUTO, Mia. O Fio das Missangas. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
PERROT, Michelle. Os silêncios do corpo da mulher. In: MATOS, Maria Izilda S. de (org.);
SOLHET, Rachel (org.). O corpo feminino em debate. São Paulo: Editora Unesp, 2003, p. 13-27.

SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? 1. ed. Trad. Sandra Regina
Goulart Almeida; Marcos Pereira Feitosa; André Pereira. Belo Horizonte: Editora da
UFMG, 2010.

DALCASTAGNÈ, Regina (Org.). (2008). Vozes e sombras: representação e legitimidade na


narrativa contemporânea. In: Ver e imaginar o outro: alteridade, desigualdade, violência na
literatura brasileira contemporânea. Vinhedo: Horizonte.

BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembrança dos velhos. 3 .ed. São Paulo: Companhia
das Letras, 1994.
Anexo I
A saia almarrotada

O estar morto é uma mentira.


O morto apenas não sabe parecer vivo.
Quando eu morrer, quero ficar morta.
(Confissão da mulher incendiada)

Na minha vila, a única vila do mundo, as mulheres sonhavam com vestidos novos para
saírem. Para serem abraçadas pela felicidade. A mim, quando me deram a saia de rodar, eu me
tranquei em casa. Mais que fechada, me apurei invisível, eternamente noturna. Nasci para
cozinha, pano e pranto. Ensinaram-me tanta vergonha em sentir prazer, que acabei sentindo
prazer em ter vergonha.
Belezas eram para as mulheres de fora. Elas desencobriam as pernas para maravilhações.
Eu tinha joelhos era para descansar as mãos. Por isso, perante a oferta do vestido, fiquei dentro,
no meu ninho ensombrado. Estava tão habituada a não ter motivo, que me enrolei no velho sofá.
Olhei a janela e esperei que, como uma doença, a noite passasse. No dia seguinte, as outras
chegariam e me falariam do baile, das lembranças cheias de riso matreiro. E nem inveja sentiria.
Mais que o dia seguinte, eu esperava pela vida seguinte.
Minha mãe nunca soletrou meu nome. Ela se calou no meu primeiro choro, tragada pelo
silêncio. Única menina entre a filharada, fui cuidada por meu pai e meu tio. Eles me quiseram
casta e guardada. Para tratar deles, segundo a inclinação das suas idades.
E assim se fez: desde nascença, o pudor adiou o amor. Quando me deram uma vaidade,
eu fui ao fundo. Como o barco do Tio Jonjoão que ele construiu de madeira verde. Todos
teimaram que era desapropriado o material. Um arco nos ombros foi sua resposta. Jonjoão
convocou toda a vila para assistir à largada do barco. Dessa vez, até eu desci aos caminhos. Mal se
barrigou nas águas do rio, a barcaça foi engolida nas funduras.
- Maldição - propalou meu pai, gritando com as nuvens.
Mas eu sabia que não. O barco estava ainda muito cru, a madeira tinha ainda vontade de
raiz. Nosso tio não tinha feito um barco para flutuar. Isso fazem todos, disse, é tudo barcos, uns
iguais e os outros também. E acrescentou:
- Quando secar o rio, o meu barco ainda estará aqui.
Agora, a saia de roda era o barco na fundura das águas. Uma tristeza de nascença me
separava do tempo. As outras moças, das vizinhanças, comiam para não ter fome. Eu comi a
própria fome.
- Filha, venha sentar.
Não diziam “comer” que era palavra dispendiosa. Diziam “sentar”. E apontavam uma
estreiteza entre cotovelos em redor da mesa. Os braços se atropelavam, disputando as magras
migalhas. Em casa de pobre ser o último é ser nenhum. Assim eu não me servia. Meu coração já
me tinha expulso de mim. Estava desalojada das vontades. E esperava ser a última, arriscando
nada mais sobrar. Mas havia essa voz que sobrepunha minha existência:
- Deixem um pouco para a miúda. Afinal, sempre eu tinha um socorro. Um pouco para a
miúda: assim, sem necessidade de nome. Que o meu nome tinha tombado nesse poço escuro em
que minha mãe se afundara. E os olhos da família, numerosos e suspensos, a contemplarem a
minha mão, atravessando vagarosamente a fome. Não tendo nome, faltava só não ter corpo.
A meu tio, certa vez, ousei inquirir: quando secar o rio estarei onde? E ele me respondeu:
o rio vive dentro de si, o barco é que secará.
Na minha vila, as mulheres cantavam. Eu pranteava. Apenas quando chorava me
sobrevinham belezas. Só a lágrima me desnudava, só ela me enfeitava. Na lágrima flutuava a
carícia desse homem que viria. Esse aprincesado me iria surpreender. E me iria amar em plena
tristeza. Esse homem me daria, por fim, um nome. Para o meu apetite de nascer, tudo seria
pouco, nesse momento.
As outras moças esperavam pelo domingo para florescer. Eu me guardava bordando,
dobrando as costas para que meus seios não desabrochassem. Cresci assim, querendo que o meu
peito mirrasse na sombra. As outras moças queriam viver muito diariamente. Eu envelhecendo, a
ruga em briga com a gordura. As meninas saltavam idades e destinavam as ancas para as danças.
O meu rabo nunca foi louvado por rolhar de macho. Minhas nádegas enviuvavam de assento em
assento, em acento circunflexo.
Chega-me ainda a voz de meu velho pai como se ele estivesse vivo. Era essa voz que fazia
Deus existir. Que me ordenava que ficasse feia, desviçosa a vida inteira. Eu acreditava que nada
era mais antigo que meu pai. Sempre ceguei em obediência, enxotando tentações que
piripirilampejavam a minha meninice. Obedeci mesmo quando ele ordenou:
- Vá lá fora e pegue fogo nesse vestido!
Eu fui ao pátio com a prenda que meu tio secretamente me havia oferecido. Não cumpri.
Guiaram-me os mandos do diabo e, numa cova, ocultei esse enfeitiçado enfeite. Lancei, sim, fogo
sobre mim mesma. Meus irmãos acorreram, já eu dançava entre labaredas, acarinhada pelas
quenturas do enfim. E não eram chamas. Eram as mãos escaldantes do homem que veio tarde,
tão tarde que as luzes do baile já haviam esmorecido.
É essa voz que ainda paira, ordenando a minha vez de existir. Ou de comer. E escuto a sua
ordem para que a vida me ceda a vez. E pergunto: posso agora, meu pai, agora que eu já tenho
mais ruga que pregas tem esse vestido, posso agora me embelezar de vaidades? Fico à espera de
sua autorização, enquanto vou ao pátio desenterrar o vestido do baile que não houve. E visto-me
com ele, me resplandeço ante o espelho, rodopio para enfunar a roupa. Uma diáfana música me
embala pelos corredores da casa.
Agora, estou sentada, olhando a saia rodada, a saia amarfanhosa, almarrotada. E parece
que me sento sobre a minha própria vida.
O calor faz parar o mundo. E me faz encalhar no eterno sofá da sala enquanto a minha
mão vai alisando o vestido em vagarosa despedida. Em gesto arrastado como se o meu braço
atravessasse outra vez a mesa da família. E me solto do vestido. Atravesso o quintal em direção à
fogueira. Algum homem me visse, a lágrima tombando com o vestido sobre as chamas: meu
coração, depois de tudo, ainda teimava?
COUTO, Mia. O fio das missangas. São Paulo: Cia. das Letras, 2009

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