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Desafio: Cultura

Segunda Laraia (2001) a cultura opera em distintas dimensões na sociedade


humanizada. Ela condiciona a visão e a percepção do ser humano; interfere no seu plano
biológico; cada indivíduo participa diferente em sua cultura; a mesma possui uma lógica
própria; é sempre mutável, flexível e dinâmica. Nesse sentido, o autor Laraia (2001)
postula que a cultura por ser humanamente produzida e alterada de acordo com as suas
necessidades, contexto histórico, é, portanto, uma construção histórica que amolda a
convivência em sociedade desde do início da humanidade.
Muitas vezes, sob a égide da cultura e seu controle está estritamente interligada à
manutenção do poder dos sistemas econômicos, políticos, sociais, entre outros para
organização de cada sociedade.
Kottak (2013) pontua que essa construção histórica contempla o conhecimento
adquirido pelo ser humano através de suas vivências em sociedade. Contemplando suas
crenças, regras morais, suas percepções de acordo com a sociedade que está inserida. O
autor afirma que a cultura pode ser compreendida como uma espécie de mecanismo de
controle para comandar comportamento. Nesse mote, Foucault (11111) em seu livro
Vigiar e Punir, estabelece que o Estado e a escola, através de contextos e regras culturais,
mantêm os “corpos disciplinados, e os que desviam desse padrão normatizado e
normalizado são vistos como desviantes, consequentemente, merecem ser punidos na
ótica dos indivíduos que compõe essa sociedade.
A Vila (The Village) é um filme norte-americano de suspense de 2004, escrito e
dirigido por M. Night Shyamala. Quanto ao filme, pode-se inferir algumas análises
importantes, como plano de fundo que evolve esse filme. Na Vila não tem o Estado, na
estrutura que conhecemos, contudo, existe o chamado Conselho, formado por anciãos,
que perceptivelmente mantém uma forma de controle. Realizam esse controle, que
percebem como uma “forma de equilíbrio”, de forma direta através as decisões dos
mesmos, e na reprodução dos seus ensinamentos, regras e condutas morais através da
escola que existe no local. Repreendendo sempre o que consideram atos subversivos ou
comportamentos que coloquem o coletivo dos moradores em risco. No caso do filme o
risco maior a ser evitado é o contato com a cidade. Local de onde os anciões vieram e
carregam histórias traumáticas, violentas e que desejam que sejam evitadas a todo custo.
O filme com uma abordagem de suspense, evolvendo terror e de medo relata a
vida coletiva de um vilarejo, que tem por volta 60 moradores. Ao final do enredo,
percebe-se que se passa na Pensilvânia, nos EUA.
O constructo cultural pontual do filme é que um grupo de anciões (O Conselho),
após vivências traumáticas de perda, violência, crimes entre outras mazelas existentes
nem sociedade que viviam, resolvem ir para um local distante de tudo. Tendo como
princípio e construção histórica cultural se subsistente para não precisarem ter contato
com a cidade. Buscam viver coletivamente e colaborativamente para suprir qualquer
necessidade, o que obviamente não acontece, pois uma das primeiras cenas do filme é um
velório o discurso cultural imposto é que a morte é algo inevitável. O que é não condiz
com a realidade. Caso tivessem acesso à cidade para adquirirem alguns medicamentos,
certamente, muitas mortes poderiam ser evitadas. Porém, culturalmente a percepção
repassada sobre a cidade é sua nocividade e que todas pessoas que vivem lá são maléficas.
Para manter o poder de controle daquela sociedade, o Conselho, utiliza de meios
culturais baseados na repressão e na disseminação de medo para que seus moradores não
queiram ir à cidade. Sendo considerado um ato subversivo grave para os que pensam em
fazer isso. Contudo, o controle e poder dos anciãos culturalmente aplicado e organizado,
faze com que quase todos não questione ultrapasse os limites da Vila para buscar
medicações, exceto o personagem Lucius, que questiona, mas não se atreve a desobedecer
a conduta moral estabelecida como regra (Barroso, 2017; Kottak, 2013)
Pode-se inferir que ao fazerem tais ações, os anciões produzem uma construção
histórica cultural, como forma repressora, de poder e controle sobre os corpos, coaduna
com as ideias de Foucault (1987) e de Kottak (2013), que a escola é um lugar de
reprodução sistemática de manutenção de sistema, pois “ensinando” que existem criaturas
maléficas na floresta que separa a Vila da cidade, mantém o status quo que estabelecem
como ideal. Os que ousarem a passar os limites do local, que demarcados com a cor
amarela, serão castigados ou mortos pelas criaturas.
Observa-se que a cultura nessa Vila, também pode ser analisada na perspectiva de
White (1953) apud Barroso (2017), que elucida que a mesma tem sua gênese quando
nossos antepassados adquiriram as habilidades e competências de utilizar símbolos, para
dar significação a um objeto, evento ou situação e compreendê-la a partir do sentido
cultural dado ao mesmo. No filme, verificamos que as cores são simbólicas. O vermelho
representa a cor vedada, por “atrair” as ditas criaturas do mal. Sempre que aparece no
contexto cinematográfico, é destruída ou enterrada. Seu significado pode representar,
medo, o orgulho, violência, a paixão, revolta, entre outros, de acordo com cada cena que
aparece. Esses sentimentos são vistos como negativos, os quais devem ser proibidos para
evitar questionamentos, reflexões e rebelações de seus moradores em indagar o modus
operandi estabelecido e enraizada culturalmente na construção e percepção histórica de
seus moradores.
O amarelo é percebido como uma cor boa, protetora contra as criaturas e que
mantém o equilíbrio que a Vila finge manter. Pois, os anciões sabem que não existem
criaturas e as utilizam, pela cultura do medo, para controlar, vigiar e manter o local
isolado e “protegido” nas suas concepções. Contudo, é interessante o sentido
simbolicamente atribuído e perpetuado pela cultura, dos anciões de esconderem uma
caixa preta onde guardam vários elementos que forjam sua construção histórica com
registros de quando viviam na cidade. Para os mesmos, tal ato era para mantê-los sempre
vigilantes fortalecidos e lembrá-los de como era vida na cidade, a qual repudiavam.
São dois contextos que operam historicament3e a manutenção do poder do
Conselho sobra a Vila, através da cultura contraditoriamente: liberdade e medo. O autor
Thomas Hobbes (2002) discorre que a liberdade e o medo são codependentes, e que a
existência de um implica na presença do outro, da mesma forma, a ausência de um incide
na não presença do outro. No caso da Vila era uma falsa liberdade, por ser mantida por
uma mentira que desencadeava o medo, controlado por u “Estado”, o Conselho, que
oferecia “segurança e “liberdade” aos seus moradores através da repressão e do medo de
forma imperceptível pelos mesmos, pois foi engendrada uma construção histórico cultural
aos moradores que era real para eles.
Para compreendermos com o esse filme dialoga com nossa disciplina – Questões
Socioantropológicas Controvertidas – percebe-se que a cultura não é maniqueísta (uma
briga entre o bem o mal), mas que tanto o que se considera como bem, pode para uns
causar mal a outros, quanto o que é visto como mal pode acarretar a um bem.
Tudo começa a sair do considerado equilíbrio preconizado pelos anciões, quando
desenrola o ápice do filme entre os personagens: Ivy, uma moça cega e filha de uma das
principais anciãs do Conselho; Lucas e Noah, que também são filhos de anciões que
participam do Conselho.
No triângulo amoroso, Ivy e Lucas são apaixonados, entretanto, Noah tem uma
obsessão por Ivy e não aceita o relacionamento dos dois. Interessante aspecto cultural que
envolve o personagem Noah. Ele era o único realmente livre naquela Vila. Ele sabia que
as criaturas eram uma farsa e forma de controle do Conselho. Com sua personalidade
perturbada utiliza-se de tal conhecimento para assustar e causar pânico nos moradores.
Em uma das cenas se disfarça de criatura (vermelha) e mata um monte de animais,
e todos amedrontados correm para se esconderem em um porão. Enquanto, alguns choram
e se mostram amedrontados, Noah, ironicamente se diverte rindo da situação. Esse fato
evidencia o que Kottak (2013) afirma que cada um vive sua cultura de forma distinta. O
autor Kottak (2013), descreve sobre as influências culturais, as crenças e as regras morais
e como elas podem interferir ou influenciar comportamento em uma dada sociedade.
Ao prosseguir o suspense, Noah rompe com uma das regras e esfaqueia Lucius
por ciúmes. Isso abala a construção histórica cultural da Vila sobre a não violência e as
relações de convívio pacífico entre seus membros. Noah despreza o coletivismo e se
entrega ao individualismo de suas vontades. Neste mote, observa-se os estudos de Kottak
(2013) que elucida que ao viver distintamente uma mesma cultura, o indivíduo pode
provocar alterações na mesma, por isso, o autor chama a atenção que a cultura é dinâmica,
flexível e mutável servindo de interesse às necessidades dessa sociedade ou como forma
de poder.
Lucius correndo risco de vida, passa a representar o que não concordava em sua
cultura, ou seja, uma pessoa que precisa da ajuda das condições da cidade para evitar a
morte. Há uma mudança de paradigma nesse momento do filme, retornando ao que Kottak
(2013) elucida que a cultura é dinâmica e serve às necessidades e interesses de grupos
que a têm como forma de poder e dominação, sendo capaz de negá-la se for de seu
interesse. Com esse princípio, Ivy para não perder o seu amado, Lucius, recorre ao seu
pai, que participa do Conselho, para ira à cidade buscar medicações para ele. Numa
perspectiva individualista de ambos em relação ao prejuízo do coletivismo enraizado
culturalmente para sobrevivência da Vila, libera que sua filha, Ivy, vá a cidade e busque
os remédios necessários para salvar Lucius.
É uma das cenas mais impactantes do enredo. Ivy completamente cega,
desprotegida, movida pelo amor, entra na floresta simbolicamente vestida de capa
amarela, que culturalmente em sua sociedade lhe oferecia proteção contra as criaturas que
a mesma acreditava existir. Enfrenta a floresta sozinha. Noah se utiliza a construção
histórica cultural de medo das criaturas e o poder repressor que a mesma inferia nos
moradores, surge tentando apavorar Ivy. Ela, por sua vez, rompe e transforma o seu
conceito cultural alicerçado no medo, por necessidade individual de salvar seu amado,
acaba matando a criatura, consequentemente o próprio, Noah.
É relevante ressaltar que as crenças, as regras morais e sociais que são impostas
por uma cultura podem ser limitantes como forma de controle em diferentes aspectos
como denuncia Kottak (2013). Ivy, enquanto as a capa amarela que representa a sua vida
regrada, limitada, e condicionada à Vila, não conseguia sair a floresta. Ao se despir da
capa na materialidade e simbolicamente, seu inconsciente apresenta-se como livre, assim
em seguida encontra a cidade (Barroso, 2017).
Nessa parte, Ivy depara-se com uma sociedade culturalmente distinta visualmente.
Enquanto que a Vila estava em contexto do séc. XIX, a cidade apresentava caraterísticas
do séc. XXI percebe que o ensinado historicamente na escola da Vila e legitimado nas
regras estabelecidas pelo Conselho, como a cidade e todos seus moradores como
maléficos, não eram totalmente verdadeiro, pois tem a ajuda de um guarda florestal,
levando-a para conseguir as medicações, ou seja, bondoso. Este, se assusta ao conhecer a
história da Vila. Ao passo, que é recebida com indiferença, preconceito e desprezo por
outro ao buscar os remédios. Isso ilustra o que Kottak (2013) aborda em seu estudo que
não existem sociedades hierarquicamente melhores ou consideradas boas em relação às
outras, o que existe é uma utilização errônea da cultura que subjuga e estigmatiza outras
sociedades por se considerarem culturalmente mais desenvolvidas e por não valorizar
outros tipos de conhecimentos ou artes em detrimento de suas produções culturais.
Por fim, com a volta de Ivy a Vila com as medicações e salvando Lucius, a morte
de Noah é revelada e que se passava como uma criatura. O desfecho mostra a força do
poder quando o mesmo é sustendo pela cultura e vice-versa (Barroso, 2017). Os anciões,
até mesmos os pais de Noah, encontram em sua morte, uma suposta legitimação para
manter a Vila sob a égide de sua suposta segurança, ou seja, na manutenção do poder
estabelecido naquele vilarejo, construído historicamente e repassado pela cultura do
medo. Assim, as regras morais, discutidas por Kottak (2013) fora condições primordiais
para forjar a cultura de controle social daquela sociedade.
nos traz o questionamento de quantos epistemicídios temos promovidos em
defesa de uma cultura unificada e globalizada para todo o mundo, com intuito mascarado
de manter o sistema hegemônico capitalista, ideológico ou de crenças o qual toma um
contorno falso de ser legitimidade diante do último fardo do homem branco de civilizar,
através de sua cultura, toda humanidade.
Como ponto de reflexão o filme evidencia em seu escopo, o que Kottak (2013)
conceitua a cultura, como sendo simbólica, aprendida, compartilhada e integrada à
sociedade que se circunscreve, servindo ao interesse da classe dominante dessa mesma
sociedade. Percebe-se uma linha tênue entre a relação de poder e o que é considerado
como cultura, para ser constituido historicamente como uma produção humana.
Referências Bibliográficas

Barroso, P. F. (2017) Antropologia e cultura / Priscila Farfan Barroso, Wilian Junior Bonete,
Ronaldo Queiroz de Morais Queiroz – Porto Alegre: Material Online, SAGAH

FOUCAULT, M. (1987) Vigiar e Punir: história da violência nas prisões. Petrópolis: Editora Vozes.

HOBBES, T. (2002). Elementos da lei natural e política. São Paulo: Ícone.

KOTTAK, C. P. (2013) Espelho para humanidade: uma introdução concisa à antropologia cultural.
8. ed. Porto Alegre: AMGH.

LARAIA, R. (2001) Cultura: um conceito antropológico. 14. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

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