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O PODER E A SEDUÇÃO DOS MITOS

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Fernanda Oliveira Cunha1

RESUMO
O mito exerce um grande poder e sedução no ideário social universal. O objetivo deste trabalho é estudar
dois grandes mitos: Dom Juan e o Rei Luís XIV. O mito de Dom Juan foi criado pelo Frei Gabriel Téllez
(1571-1648) conhecido como Tirso de Molina através da obra O Burlador de Sevilha e o Convidado de
Pedra, ganhando inúmeras versões, entre as quais podemos citar a obra de Molière Dom Juan ou Le Festin
de Pierre, bases de nossa análise. Dom Juan é um personagem que está constantemente no palco. O mesmo
acontece a Luís XIV rei da França no período de 1643 a 1715, todas as suas ações eram assistidas pela sua
corte, o seu despertar, as suas refeições e até mesmo quando fazia suas necessidades fisiológicas. Luis XIV
é conhecido como O Rei Sol, viveu grandes amores e foi um grande sedutor em seu tempo.

Palavras-chave: Mito. Dom Juan. Rei Luís XIV.

ABSTRACT
The myth has a major power and seduction in universal social ideals. The aim of this work is to study two
major myths: Don Juan and King Louis XIV. The myth of Don Juan was established by Fray Gabriel Téllez
(1571-1648) known as Tirso de Molina by his works: Burlador of Seville and The Stone Guest, which have
innumerous versions, among them we can mention the work of Molière's Don Juan or Le Festin de Pierre
and both are the basis of our analysis. Don Juan is a character who is constantly on stage. The same
happens to King Louis XIV of France in the period from 1643 to 1715, all his actions were attended by his
court, his awakening up, his meals and even when he was on his physiological needs. Louis XIV is also
known as The Sun King and because he was one of the greatest seducers at his time he lived intense loves.

Keywords: Myth. Don Juan. King Louis XIV.

“Mudam-se os tempos mudam-se as vontades...”


Camões

Mito é uma palavra tão pequena com um sentido tão amplo, sedução e magia,
que data da antiga civilização ocidental indo até os nossos dias. A impressão transmitida
é a de que cada ser humano que nasce, independente da raça ou posição social, já tem
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Fernanda Oliveira Cunha, graduada e mestranda em Letras. Orientadora: Daniela Mantarro Callipo.
Página

Projeto: Fábulosas Crônicas: La Fontaine e Machado de Assis. Linha de pesquisa: Arquivos da Memória:
Fontes e Periódicos Literários e Culturais (AMFP). Instituição Universidade Estadual Paulista “Julio de
Mesquita Filho” UNESP de Assis. E-mail para contato: airamlebasi@bol.com.br
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seu inconsciente permeado por estas histórias e símbolos, passando a pertencer a dois
mundos: o real X o irreal.
Dois mundos em pauta. O choque entre a realidade e o mundo dos sonhos onde
as impossibilidades tornam-se possibilidades independentes de qualquer fator. O ser
humano tem esta necessidade da fuga à realidade e a inserção em um mundo imaginário
cheio de beleza que o ajuda a viver num mundo cheio de problemas e imperfeições,
oposto do desejado. Assim o mito transmite sua cultura enraizando em diversas
gerações através dos tempos.
E é esta justamente a função do mito: expor, colocar em evidência sentimentos,
sonhos, conquistas, enfim tudo que antes pairava sobre a sombra e que através do relato
do povo transformou-se em mito e este mito alcançou a literatura, dando origem ao mito
literário.
O mito e o mito literário têm a mesma estrutura, através da narrativa eles são
transmitidos a diversos povos, podendo ser alterados de acordo com o contexto de vida
de cada indivíduo. A diferença entre eles é que o mito não tem autor, sua narrativa é
consagrada pela tradição e o sobrenatural.
Já o mito literário tem autor definido e passa por diversas releituras através do
tempo. Podendo ser vistos em diversas obras de arte, tais como: a pintura, a música, a
dramaturgia, a literatura, enfim tecendo contextos históricos e através deles criando
uma tradição literária que passa do sagrado para o profano. Mircea Eliade em Mito e
realidade descreve a passagem do mito para o plano sagrado

... os mitos revelam, portanto, sua atividade criadora e desvendam a sacralidade


(ou simplesmente a “sobrenaturalidade”) de suas obras. Em suma os mitos
descrevem as diversas, e algumas vezes dramáticas irrupções do sagrado (ou
do “sobrenatural”) no Mundo. É essa irrupção do sagrado que realmente
fundamenta o Mundo e o converte no que é hoje. (ELIADE, 2006,p.11)

As crenças, a religião, a fé no sobrenatural, em Deus (representando o bem) e no


Diabo (como representação do mal) existe em toda civilização tendo apenas uma
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mudança nos nomes dos deuses ou dos espíritos maus. Os símbolos religiosos e suas
imagens sagradas estão por toda parte em nossa sociedade. E quando falamos no mito o
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que nos vem à mente?


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Passam as imagens de lindos e fortes deuses guerreiros que saem do plano
sobrenatural e vêm para lutar em favor e às vezes juntos com os homens. Os banquetes
fascinantes onde estes heróis descansam e que muitas vezes lhes apresentam
armadilhas. Mulheres lindas que seduzem os guerreiros e muitas vezes os levam à morte
através de seus encantos.
Para fugir do caos (doenças, mortes, dor, tristeza) o homem precisava criar com
muito engenho uma máquina dos sonhos e para tal surgem os jogos, a música, o teatro, a
pintura, a poesia, a literatura e por fim o cinema.
Este trabalho tem como objetivo o estudo de dois mitos: Dom Juan e Luis XIV.
Veremos como estes mitos foram criados, como era o ambiente ao redor deles, no que
eles se assemelham e diferem, o contexto histórico em que estão inseridos, a máscara e a
importância dos símbolos.
Como embasamento teórico estudaremos o contexto histórico através da obra
de Peter Burke; na literatura com a obra O Burlador de Sevilha e o Convidado de Pedra de
Tirso de Molina e também o Dom Juan de Molière; na psicologia Carl G. Jung, e alguns
teóricos do mito como Mircea Eliade e Ian Watt.
Os dois personagens que nos propomos a estudar são muito conhecidos. Dom
Juan, por exemplo, elucida bem tudo que falamos até então. Embora as pessoas não
conheçam a obra original e suas releituras, sabem com precisão quem é Dom Juan e até
mesmo apontam homens que tenham traços donjuanescos.
O Rei Luís XIV é conhecido pelos símbolos que o rodeiam e pelo qual é
denominado “Rei Sol”, por esta denominação simbólica podemos associar a importância
do sol para a terra e ligarmos a importância que teve a figura deste rei para a França,
para os territórios vizinhos, passando enfim, para o mundo todo.
Em suma, o mito tem este caráter universal que torna um personagem
conhecido mundialmente e com uma característica importante como se ele fosse
pertencente à raça e a cultura de cada indivíduo. Dom Juan foi criado na Espanha, no
entanto pertence a cada um de nós. O rei Luís XIV era o rei da França, mas suas
características e seus símbolos são mundialmente conhecidos.
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O Rei Luís XIV

Cada tempo guarda consigo muitas histórias e segredos, dúvidas e anseios de


uma geração. Como a engrenagem de um relógio, com sua cadência constante marcando
o tempo para milhares de pessoas no mundo inteiro. O mesmo compasso, o mesmo
ritmo porém histórias diferentes sendo construídas através da época de cada indivíduo
que sela com ele seus costumes, ideologias, política, artes em geral, arquitetura, moda,
etc...
Em cada tempo um desejo, uma vontade, algo que seduz o homem e o coloca na
eterna busca pelo poder e pela estética. A beleza é o adjetivo que está presente
independente do tempo e do modo. Ele existe e os homens tentam de todas as maneiras
alcançar a perfeição em todas as áreas. A história não seria diferente na época do rei
Luís XIV, rei da França que ficou no poder por 72 anos de 1643 a 1715.
Falar do século XVII em pleno século XXI é uma aventura cheia de perigos.
Muitos historiadores retrataram a época e muitos ainda pesquisam sobre ela, porém é
muito difícil saber a totalidade dos fatos ocorridos, conhecer sentimentos que geraram
reações que marcaram a história, muita coisa ainda faz parte de um grande enigma que
por mais que estudemos deixaremos indagações e lacunas a serem preenchidas.
Este trabalho tem como base histórica o livro A fabricação do rei: a construção
da imagem pública de Luís XIV, 1994 de Peter Burke, que tem como foco a maneira como
esta fabricação da imagem real aconteceu e quem foram os responsáveis por ela. E a
obra de Jacques Wilhelm, Paris no tempo do Rei Sol que foca na vida cotidiana da época
e seus diversos setores em construção dentro da cidade luz .
Em primeiro lugar, discorreremos sobre a figura de Luís XIV, como aconteceu a
fabricação deste mito histórico e ao compararmos o rei da França com Dom Juan
falaremos sobre amores, desejos, vida cotidiana, costumes de épocas, as máscara e a
hipocrisia.
Luís XIV de Bourbon nasceu em Saint-Germain-em Laye em 5 de setembro de
1638 e morreu em Versalhes em 1 de setembro de 1715. Começou a reinar aos quatro
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anos por ocasião da morte de seu pai Luís XIII. Sua mãe Ana de Áustria governou a
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França em regime de regência até o rei atingir a idade de dezesseis anos. Existe um

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questionamento sobre a paternidade de Luís XIV, ele nasceu depois de 23 anos de
casamento, mas nada pode ser comprovado na íntegra.
O primeiro ministro era o Cardeal Mazarin. Segundo Peter Burke ele foi a figura
de proa do governo entre 1643 e 1661, pois foi o responsável pela educação política do
rei, ensinando até mesmo a maneira de se portar em público, manejando bem “ a arte da
simulação e da dissimulação” (BURKE,1994, p. 56). Foi amante e protetor das artes,
apreciando obras de pintores, escritores como Corneille e ópera, ele proporcionou a
apresentação de óperas italiana em Paris: “Mazarin amava a arte pela arte, mas tinha
também consciência de seus políticos.” (Ibidem, p. 58)
Em março de 1661 Mazarin morre e o rei declara sua intenção de governar sem
primeiro-ministro. Exercendo desta forma o poder absoluto, recebendo apenas
orientação e auxílio, porém não dividindo seu poder com outros.
Cria-se todo um mecanismo cuja finalidade era a fabricação da imagem real. O
rei agora é visto como um grande herói que governa sozinho o seu povo. Um guerreiro
mitológico que trabalha e guerreia bravamente.

A imagem do jovem rei projetada na década de 1660 foi a de um soberano


excepcionalmente dedicado aos negócios do Estado e ao bem-estar de seus
súditos. A própria decisão de governar pessoalmente tornou-se um evento a ser
celebrado, e até mitificado, isto é, apresentado de maneira dramática como uma
“maravilha”. (BURKE, 1994,p. 73)

Colbert, responsável pela superintendênca das Belas-Artes, foi um auxiliar de suma


importância na fabricação da imagem do rei. Ele proporcionou a divulgação da imagem
real através de todos os meios possíveis existentes na época: pintura, teatro, escultura,
literatura, música, óperas, balés, moeda, brasão, emblema do sol e até em pedra, bronze,
tinta e cera.
Duas palavras, segundo Burke (Ibidem, p.17) que definiam muito bem toda esta
construção simbólica da imagem do Rei é “Éclat” ( luz, estrondo de trovão). O sol como
símbolo de luz, calor, vida, mostrando a impossibilidade de viver na terra sem ele, ou
seja, a impossibilidade do povo de viver sem o poder de Luís XIV. A outra palavra é
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“divertissement” (divertimento). Os espetáculos eram armados para entreter e desviar a


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atenção do povo dos problemas e da política.

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A “propaganda” de Luís XIV era para moldar a “opinião pública”, a “ideologia”
era criar significados que serviam para reforçar as relações de dominação. Estes
conceitos “propaganda”, “opinião pública” e “ideologia” eram inexistentes no século XVII.
(Ibidem, p.16)
Estes significados são apresentados na forma de símbolos. Os símbolos fazem
parte da vida do homem de tal forma que não podemos dissociar um do outro. Enfim é
uma linguagem que consciente ou inconscientemente o homem procura e dialoga
consigo mesmo e com o outro.
Os símbolos são classificados em símbolos naturais e culturais. Na concepção de
Jung os símbolos naturais agem no inconsciente coletivo da psique, sendo responsável
por criar imagens arquétipas que imediatamente são reconhecidas pelo homem. E a
maneira como os arquétipos são definidos mostram claramente a importância do
reconhecimento da imagem, do símbolo, pois neles existe uma carga emotiva muito
grande. Já os símbolos culturais são tidos como “verdades eternas” que são usados na
religião, passando por transformações conscientes e cuja numinosidade original pode
despertar sentimentos nas pessoas.

... a maneira pela qual os arquétipos aparecem na experiência prática: são a um


tempo imagem e emoção. E só podemos nos referir a arquétipos quando estes
dois aspectos se apresentam simultaneamente. Quando existe apenas a
imagem, ela equivale a uma descrição de pouca conseqüência. Mas quando
carregada de emoção a imagem ganha numinosidade de (ou energia psíquica) e
torna-se dinâmica, acarretando conseqüências várias. ( JUNG, 1964, p. 96)

Tendo conhecimento da importância da imagem no inconsciente coletivo das


pessoas e o poder e sedução dos mitos no imaginário humano, a fabricação da imagem
real aconteceu pela união dos símbolos com o mito na figura do rei Luís XIV. Criou-se um
rei lendário, poderoso, ligado a imagens mitológicas tais como: Apolo, Júpiter, Hercules,
Netuno, e heróis do passado, Alexandre, Augusto, Carlos Magno, Clóvis, Constantino,
Justiniano, São Luís, Salomão, Teodósio, enfim é um paralelo magnífico que dava honra,
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dignidade e respeito ao rei.


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Quando ocorreu a Guerra da Devolução em que Luís impunha aos países baixos
espanhóis seu domínio, tudo se voltou para apresentar o rei como um soberano, muitos
escreviam apoiando o rei e a imprensa real trabalhava arduamente traduzindo os textos
para o latim, espanhol e o alemão.
O rei levou artistas para a guerra da Devolução e na guerra Holandesa “levou
historiadores. Pellison esteve em Flandres em 1677 na qualidade de historiador oficial,
tendo sido substituído por Boileau e Racine em 1678”. (BURKE, 1994, p. 87)
É sabido que o rei levava a fama pelo trabalho de seus subordinados.

A apresentação do rei como fazendo tudo por si mesmo é digna de nota.


Podemos suspeitar que Turenne, um brilhante e experimentado general, foi o
verdadeiro comandante, mas oficialmente era qualificado como mero executor
das ordens do rei. Chapelain, que numa carta particular qualificou Condé de “o
principal instrumento” da conquista, atribuiu no entanto ao rei o mérito da
conquista do Franche-Comté num poema divulgado ao público.
(Ibidem,p.86)

O rei era louvado por todos os meios possíveis existente na época, Colbert
sabendo da paixão do rei pela arte usou a arte para promover a figura do rei e mitificá-
lo. É sabido que de 1651 à 1659 o rei em pessoa chegou a participar de nove
apresentações de balé criado pelo poeta Isaac Benserade, e também encenou em
algumas peças de teatro.
A construção da imagem real aconteceu em todos os setores: arquitetura,
pintura, música, etc. Paris também era um grande canteiro de obras. Na arquitetura
podemos citar a reconstrução do Louvre depois do incêndio que sofrera, a construção de
grandes Boulevard muito bem arborizados, dando a impressão que o campo tinha
invadido a cidade.
Quando o rei foi morar no castelo de Versalhes, este passou a ser um palácio que
devia mostrar toda a grandeza do rei, um grande símbolo de soberania e poder. Havia,
portanto, a necessidade de reconstruir o palácio e esta grande obra foi confiada a Le Vau.
Segundo Burke, 1994,p.29: Um palácio é mais que a soma de suas partes. É um símbolo
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de seu proprietário, uma extensão de sua personalidade, um meio para sua auto-
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apresentação...

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Pinturas do rei foram feitas no Louvre, Versalhes, Tuilerie. Seus feitos eram
louvados não apenas na pintura, mas também na escultura, na arte da palavra. Na
música Lulli foi o responsável pela criação da Academia da Ópera, na imprensa, pelos
escritores da época: Molière, Racine, Boileau.e muitos outros.
Com muito engenho, o mito histórico estava sendo criado. Na época ocorriam os
grandes espetáculos que também em construção precisavam ganhar o gosto da
população em especial do rei e da corte. Estes espetáculos eram realizados sem ter lugar
apropriado. O público estava em formação e como todo início é penoso havia a
necessidade de aceitação e de proteção.
Luís XIV foi este protetor. Todos procuravam viver à sua sombra. Os
espetáculos teatrais ocorriam na presença do rei e muitas vezes somente para ele e sua
corte. Se o rei aprovava a peça, ela se tornava célebre e os artistas recebiam gordas
pensões do rei.
Havia, como era de se imaginar, uma grande repressão às idéias transmitidas
por estes artistas, o controle era muito grande, e as críticas eram severamente punidas.
Colbert juntamente com seu comitê eram responsáveis por supervisionar toda esta
vasta produção.

Os membros desse comitê (Chapelain, Charles Perrault, Bourzeis, Cassagnes e


François Charpentier) reuniam-se na casa de Colbert todas as terças e sextas-
feiras. Sua missão era essencialmente supervisionar a criação da imagem
pública do rei. Corrigiam textos antes de sua publicação, inclusive descrições de
festivais escritas por Félibien e pelo próprio Perrault. Examinavam os projetos
e compunham descrições de tapeçarias e medalhas. Pelo menos durante alguns
anos, trabalharam numa história do reinado. A formação desse grupo mostra
com que seriedade Colbert encarava a tarefa da fabricação da imagem, e o
quanto seu senso de publicidade era aguçado.”(BURKE, 1994,p. 70)

Luís XIV, o lendário Rei Sol, também conhecido como o Grande era endeusado e
colocado em um patamar sagrado, como era costume da época comparar os reis a
deuses. Havia um ritual do toque do rei para curar doenças da pele, como se o toque real
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tivesse poder de cura ressaltando desta forma o “caráter sagrado da realeza” (ibidem,
p.55). Este caráter sagrado passa também para o Estado em que não se sabe se a célebre
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frase” L`État c´est moi” ( O Estado sou eu) foi falada na época ou apenas sentida nas
ações.
A magia e a sedução de um símbolo tão acarretado de emoção que cegava o
povo para a realidade. Quem ousaria tocar em um deus? Quando a doença ousou tocá-lo
ela foi transcrita por Racine como uma intrusa que com sua petulância tocara na vida de
um deus.

Em 1663,quando o rei se recuperou de uma doença, Racine celebrou o fato com


uma ode à convalescença, em que descrevia a “perfídia” da “insolente doença”
que tivera a ousadia de o ameaçar, comparando Luís ao sol e seu reinando à
idade de ouro. Muitos ecos dessa ode podem ser ouvidos entre os poetas
menores do reino, especialmente em 1687, quando o rei se restabeleceu de
uma séria cirurgia. (BURKE, 1994, p. 35)

A imagem do rei ligada a um deus, este é um toque final maravilhoso, podemos


dizer que um toque de mágica, pois é o que faltava para impor respeito e persuadir toda
uma época, enquanto com soberania e o poder absoluto nas mãos o rei fazia política.
Sabemos que a geração real futura sofrerá com a revolta do povo, que cansados
de serem enganados acabaram guilhotinando o rei Luís XVI e sua esposa Maria
Antonieta. Aliás este era um costume, podemos dizer normal, da época. As pessoas eram
julgadas, mesmo sem provas na maioria das vezes e mortas em público, fazendo parte do
espetáculo a que multidões gostavam de assistir.
Os reis tinham o poder na mão. E ser comparado a um deus ajudava a cegar a
população e persuadi-los a aceitar as leis da época, a política, o absolutismo de um rei,
visto como deus. Peter Burke escreve sobre a criação do mito do rei Sol e sua
comparação sagrada, mas uma vez o sagrado influindo no mundo real.

... mito de Luís XIV. À primeira vista a expressão parece apropriada, porque Luís
XIV era constantemente comparado com os deuses e heróis da mitologia
clássica, como Apolo e Hércules. Entretanto, o termo “mito” poderia ser
empregado de uma maneira mais ambiciosa, e também mais controvertida.
Poderíamos definir mito como uma história com significado simbólico ( como o
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triunfo do bem sobre o mal), em que os personagens, quer sejam heróis ou


vilãos, ganham dimensões maiores que na vida. Cada história se situa no ponto
de interseção entre o arquétipo e uma conjuntura, em outras palavras, entre
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imagens herdadas e acontecimentos específicos e individuais.

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Existiu um mito de Luís XIV no sentido de que ele era apresentado como
onisciente (informe de tout), invencível, divino, e assim por diante. Era o
príncipe perfeito, associado ao retorno da idade de ouro. Poetas e historiadores
qualificaram o rei como “herói” e seu reinado como “uma série ininterrupta de
maravilhas”, para usar as palavras de Racine. Sua imagem pública não era
simplesmente favorável: tinha uma qualidade sagrada. Historiadores
profissionais usam com frequência o termo”mito” para designar “uma história
não verdadeira” ( em contrastre com as histórias que eles mesmos criam, tal
como as vêem). O que me importa aqui, contudo, não é o Luís “real” em
contraposição ao mítico. Ao contrário, o que me interessa é precisamente a
realidade do mito, isto é, seus efeitos sobre o mundo externo aos meios de
comunicação – sobre estrangeiros, sobre súditos de Luís e igualmente sobre o
próprio rei. O termo “mito” tem também a vantagem de nos lembrar que
artistas e escritores não se restringiram a imagens estáticas do rei, tendo
procurado propor uma narrativa, l´histoire du roi, como a chamavam, tanto em
pinturas, tapeçarias, medalhas e gravuras como em histórias oficiais. Para
combinar esse sentido de movimento com o sentido de espetáculo, poderíamos
empregar o conceito de “teatro” de Luís XIV. (BURKE,1994, p.18)

Dom Juan de Tirso de Molina e de Molière

Dom Juan nasceu em uma peça teatral espanhola do século XVII intitulada EL
Burlador de Sevilha y el convidado de piedra, escrita pelo religioso Frei Gabriel Téllez
(1571-1648) conhecido como Tirso de Molina.
Esta narrativa não é muito conhecida pela população, apenas alguns
universitários e na maioria estudantes de literatura é que conhecem a origem de Dom
Juan, na introdução da peça de Molina feita por Mario González, ele descreve justamente
esta ignorância popular do personagem que originou o célebre sedutor.
Esta imagem que temos de Dom Juan como um grande sedutor, contendo um
catálogo de conquistas vem das inúmeras versões, ou seja, releituras pelas quais o
personagem passou e continuara passando através dos tempos e das épocas.
O filme de 1995 dirigido por Jeremy Leven, Don Juan de Marco, é a narrativa que
permeia o conhecimento da sociedade, poucos percebem que o autor do filme deixou
indícios de onde nasceu o roteiro deste filme, pois o livro aparece no início e na cena em
que o psiquiatra vai até a casa de Don Juan e encontra o livro na cabeceira da cama,
mostrando que o nosso protagonista leu Tirso e conhece a história do século XVII.
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A questão do catálogo surgiu com Da Ponte, ela não existe na história original.
Existem muitas versões de Don Juan, nosso trabalho atem-se ao estudo da obra original
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e da releitura feita por Molière Don Juan ou Le festin de Pierre por ser escrita na mesma
época em que viveu o rei Luís XIV.
O Don Juan de Tirso de Molina não é um sedutor como todos conhecem. Ele é
um burlador, tem um grande prazer em enganar as mulheres. Nesta narrativa aparecem
quatro mulheres burladas: Isabela que vivia no palácio real, Dona Ana, filha do
comendador; Tisbea a pescadora burladora que passa a beber do próprio copo e Aminta
noiva de Batrício.
Portanto, não existe ainda a questão do catálogo, são apenas quatro mulheres
burladas. A peça é composta por três jornadas, começa com Isabela que fazendo parte da
corte do rei foge de todas as convenções sociais da época e aceita uma visita íntima de
seu noivo duque Otávio, antecipando desta maneira a noite de núpcias que deveria
ocorrer somente após o casamento.
Quem vai a este encontro e goza Isabela é Dom Juan. É incrível como esta
personagem feminina parece estar cega pelo seus próprios desejos de quebra das
convenções que não percebe que está sendo enganada, depois do ato sexual consumado
ela descobre que seu amante é um homem sem nome, não é seu noivo e grita por
socorro, porém já tendo perdido o que tanto lhe era caro, sua honra.
A questão da honra para a mulher do século XVII era de muita valia. Estamos
falando de um tempo em que a igreja estava passando pela Contra-Reforma, termo até
então desconhecido. A igreja católica passa por reformas, muitos conflitos políticos
religiosos acontecerão. O Concílio de Trento foi o instrumento gerador destas reformas e
também buscava um meio de entrar em acordo com os protestantes.
A inquisição foi o meio criado para submeter à população aos interesses da
igreja católica e para tal tudo passava por uma rigorosa fiscalização, livros eram
proibidos e considerados heréticos, pessoas eram condenadas por muito pouco, muitos
eram taxados de bruxos (as) e mortos em plena praça pública, sendo assistido pela
população como se fosse um grande espetáculo. Molière sofreu estas interdições
primeiro com seu famoso personagem Tartufo e depois quando começou a encenar Don
Juan.
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As convenções e regras deviam ser respeitadas por todos. As mulheres viviam


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uma situação delicada, elas eram totalmente inferiorizadas e muitas vezes eram moeda

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de troca de suas famílias. Casamentos eram arranjados como contrato econômico. A
mulher devia total obediência à parte masculina da família e esta poderia ser
representada pelo pai, irmão ou na falta de ambos a algum parente próximo.
A instabilidade estava em toda a parte, as pessoas procuravam a ascensão social
através do casamento, favores do rei ou por seus dons pessoais como os artistas que
viveram na corte de Luís XIV(Molière, Racine, Boileu).
Era o tempo do Barroco, um tempo em construção, reinava a desordem e as
grandes angústias existenciais, havia uma busca pela beleza estética e pela
reorganização do caos instalada na sociedade. O céu, o castigo, a danação eram sempre
citados por todos sendo um meio para encontrar esta ordem a ser estabelecida.
Veremos que as mulheres burladas por Dom Juan fugiram desta ordem. Os atos
de Don Juan evidenciam a hipocrisia social e as máscaras usadas pela sociedade e até
mesmo pelo rei, pessoa que devia fazer valer a lei já que ele era representante da lei e da
conduta moral e social.
Isabela ao aceitar um homem em sua cama antes de se casar, desrespeita os
protocolos existentes e rompe com eles. Ela desonra o palácio real, pois o encontro
acontece neste ambiente protegido pela lei. Aceita a relação sexual antes do casamento o
que não era aceitável na época. Perde sua honra por nada como Jacó perdeu seu direito
de primogenitura por um prato de lentilhas.
Até mesmo o rei sofre a burla e ao invés de fazer justiça, trabalha para que as
aparências sejam mantidas. A lei se mostra tão lenta que Don Juan pode se ver no direito
de zombar e esconder-se no seu título de nobreza para sair ileso. Existe aqui uma crítica
à política de favores que substituía o governo e a justiça.
As mulheres burladas são vítimas de suas próprias violações e convenções. Elas
facilmente quebram princípios em nome daquilo que desejam alcançar, o que na maioria
é a ascensão social.
Tisbea a pescadora que burlava e passa a ser burlada, fica encantada com a
possibilidade de se casar com um nobre que não titubeia em entregar sua honra antes
do casamento.
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Podemos ver que um anseio muito grande da época era o casamento. Ele trazia
honra à mulher e a colocava na sociedade e casar com um nobre então era símbolo de
segurança social, o que todos buscavam.
Dona Ana, a filha do Comendador, também quebra com as convenções quando
marca um encontro íntimo com um homem que escolhera e que nem seu marido era. Ela
queria gozar o prazer sexual com alguém que ela escolhera e não com alguém ditado
pelo rei ou por seu pai.
Aminta também sofre a influência da possibilidade de ascender socialmente. E
absurdamente no dia de seu casamento, conhece Dom Juan e deixa este humilhar seu
noivo em público e decide ceder à proposta de casamento de um desconhecido pelo
simples fato deste ser um nobre.
Porém, Don Juan está além do sentimento. Ele não ama. Jamais pensa no
passado ou se preocupa com o futuro, não pensa em seus atos, não sente culpa e não
demonstra nenhum tipo de misericórdia ou compaixão por quem quer que seja. Ele é um
personagem sem conflito, sem traços de angústia, que vive o instante, o resto parece não
ter nenhuma importância para ele.
Conforme Watt (1997, p.110), Don Juan diverte-se com o resultado de suas
trapaças; mas o fato é que ele habita um mundo no qual, como em quase todos os outros,
a aceitação dos códigos morais, sociais, e religiosos é puro fingimento.
Sua vida tem sentido de eternidade, portanto, o casamento seria algo impossível
de se concretizar em sua vida, pois ele o incluiria no tempo. E ser temporal o tiraria
desta eternidade, colocando o no plano mortal. Para conseguir ter o objeto de seu
desejo, ele é capaz de prometer casamento, porém são só palavras escolhidas a dedo
(WATT,1997, p. 115), “...Don Juan terá de mentir, se quiser furtar-se às exigências
preliminares do compromisso eterno e todos os seus dissabores...”.

Conquistar é a fórmula encontrada para burlar não apenas as mulheres, mas


toda a sociedade. A mulher é apenas o instrumento com o qual ele pode atingir os
homens e tirar-lhe a honra publicamente, fazendo com que as máscaras caiam. E este
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desrespeito se dá com relação a seu pai, seu tio, o rei, seus amigos, enfim a toda uma
sociedade.
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Revista de Letras Dom Alberto, v. 1, n. 3, jan./jul. 2013


Seus atos seguem sempre o mesmo ritual, ele é um personagem que não muda. Não
precisa de grandes armações para burlar uma mulher, com muita facilidade isto
acontece. Suas ações parecem querer punir as mulheres por entregar tão facilmente
seus corpos.
Era costume da época quando um homem se via desonrado chamar o seu rival para
um duelo, geralmente de espada, porém até mesmo deste costume Don Juan foge,
sempre apelando para o seu título de nobreza e para sua juventude.
Por se sentir na flor da idade, despreza os mais velhos e se engana ao pensar que
ainda tem muito tempo para se arrepender, o mote usado na peça é Tan largo tempo me
dais (Que longo tempo me dais).
Como Don Juan é um personagem atemporal, a justiça não pode vir atrás dele. Sua
juventude o engabela achando-se fora da justiça divina e com tempo para se arrepender
e não sofrer a danação.
É onde entra a figura do Comendador Dom Gonzalo de Ulhoa pai da Dona Ana,
morto por um golpe da espada de Don Juan quando fugia de sua empreitada com sua
filha que logo perceberá o ludibrio e antes de sofrer a burla, grita por socorro.
Morto o comendador, o rei manda levantar em sua homenagem um busto de pedra
em sua lápide. Desde os primórdios a pedra é um símbolo que fascina os homens. Muitas
pedras eram guardadas por diversas civilizações sendo vista como um elemento sagrado
“Os antigos germânicos, por exemplo, acreditavam que os espíritos dos mortos
continuavam a existir nas lápides dos seus túmulos.” (JUNG, 1964, p. 210)
Também segundo Jung existe uma necessidade das civilizações de erigirem “
monumentos de pedras a homens famosos ou nos cenários de acontecimentos
importantes...” (Ibidem, p. 210)
Na época de Don Juan este costume vinha do folclore. Ironicamente o castigo do
nosso protagonista vem através da estátua de pedra, de um poder sobrenatural vindo na
figura de um homem considerado senil. E este castigo reforça as idéias da Contra-
Reforma para as pessoas que esqueceram de ganhar a salvação através das obras.
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Dom Juan pensa que pode quebrar impunemente as leis seculares dos homens
durante o seu “breve tempo” na Terra; e deverá sofrer por toda a eternidade, de
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acordo com a doutrina da Contra-Reforma. Cabe ao convidado de Pedra dar
uma demonstração de que não pode zombar de Deus. (WATT,1997, p.124)

O convidado de Pedra seria o instrumento de Deus para punir as obras de Don Juan
e levá-lo à danação. Este personagem é de suma importância, pois ele representa a mão
de Deus que fica muito evidenciada nas duas obras a de Tirso e a de Molière.
Durante toda a narrativa, Don Juan é um personagem que não apresenta mudança.
Sua maneira de agir, seduzir, burlar e punir as mulheres por entregar tão facilmente
seus corpos é sempre a mesma: “A aventura donjuanesca reflete as mudanças de
ideologia de cada época, mas o próprio Don Juan não muda nunca.”(BRUNEL, 2005, p.
259)
Mas quando ele se vê frente à morte sente medo, porém “sem reconhecimento de
culpa, nem sinal de remorso” (Ibidem, 1997, p. 125). Ele insultou a morte, zombando
dela ao fazer o convite ao convidado de pedra para cear com ele. O convidado de pedra
aceita o convite o que não era esperado por Dom Juan que ao ver o convidado sente
medo e gela antecipando a sensação da própria morte.
Faz alguns questionamentos ao comendador que não são respondidos, mostrando
desta forma uma certa curiosidade se teria este morrido em paz e se estava em um bom
lugar ou se sofria a danação.
Seu orgulho, egoísmo (que já o levara a perder a noção de castigo), sua honra, não
o deixa faltar com a palavra de aceitar a retribuição do convite feito. E desta forma ele é
castigado por suas ações, selando uma grande moral que aqueles que se rebelam com as
normas da Contra-Reforma acabam sendo castigados por não temerem o castigo de suas
ações, não temerem o céu e a danação.
O Don Juan de Molière apresenta algumas mudanças. Ele é um personagem mais
cético, guiado pela razão, não desenvolve em o plano da emoção. Ele acredita na
matemática em que “dois mais dois são quatro”.
Seu criado Sganarelle está sempre discordando de suas ações, mostrando a ele que
há uma justiça celeste. Ele busca saber em que seu amo acredita, faz lhe muitas
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Revista de Letras Dom Alberto, v. 1, n. 3, jan./jul. 2013


perguntas sobre sua crença no céu ou no inferno chega a conclusão que seu amo é “ un
héretique, qui ne croit, ni Ciel, ni Enfer ( MOLIÈRE, 2000, p.3).2
As mulheres burladas são também quatro, porém como a história já começa com a
burla de Elvire, a filha do comendador já tinha sido burlada e o comendador já tinha sido
morto, portanto, somente tomamos conhecimento de sua existência, mas ela não
aparece na trama, em seguida aparecem na narrativa Charlotte e Mathurine..
Depois de seduzir Elvire seu desejo se vai e ele a abandona. A família da moça o
procura por todos os lados para exigir reparação de seus atos, porém ele continua com
as mesmas ações, burla os parentes da moça, foge ao “honor” briga de espada.
As outras duas mulheres seduzidas são duas camponesas Charlotte e Mathurine
ludibriadas pela promessa de casamento feito a ambas. Nestes dois casos não há
nenhuma demonstração de que o ato sexual é consumado. A sedução se dá apenas no
nível das palavras. O que traduz muito bem a época de Molière em que as palavras
estavam sempre em evidência.
Nada muda nas ações de Don Juan, suas táticas de conquistas são sempre a mesma,
porém na peça de Molière ele cria uma aparente mudança que ajuda a seduzir Charlotte
e Mathurine “Don Juan cria a ilusão de mudança, ainda pela máscara, que ele gosta de
usar. É o homem do disfarce: o fidalgo reluzindo em dourados que tanta admiração
causa em Mathurine e em Charlotte no Don Juan de Molière (1665).” (BRUNEL,2005,
p. 256)
E também convence seu pai Luís e seu criado Sganarelle sobre seu arrependimento
“Ele é capaz de assumir um outro rosto quando finge o arrependimento, o amor por seu
pai e a devoção, no 5º ato do Don Juan de Molière.” (Ibidem, p. 256)
Segundo Brunel (Ibidem, p. 256) “Don Juan dá a ilusão de mudança devido à
mobilidade.”, ele está sempre indo de um lugar para outro, na peça de Tirso ele vai de
Nápoles a Tarragona de Tarragona a Sevilha, de Sevilha a aldeia de Dos Hermanas.
Mas é apenas uma impressão de mudança, pois como analisamos, ele jamais muda,
(ibidem,2005, p. 257) “ o que não muda em Don Juan é o seu gosto por mudança.” Ele
não se prende a um único objeto de desejo, está sempre à procura de uma beldade nova
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2
um herético que não crê nem no céu, nem no inferno”.
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Revista de Letras Dom Alberto, v. 1, n. 3, jan./jul. 2013


para gozar “Ele cede à vertigem da quantidade, e essa quantidade jamais é
suficiente”(Ibidem, p. 257).
Enfim, o lendário Don Juan motivou várias releituras, ganhando às vezes um
enredo um pouco diversificado, mas cujos traços míticos são mantidos em todas as
narrativas “e que encarna ou simboliza alguns dos valores básicos de uma sociedade”
(WATT, p. 16).
Mesmo em épocas e culturas diferentes Dom Juan sai da ficção, ganhando as ruas.
Ele é a representação do mito do poder que pode suscitar uma grande diversidade de
moldes de máscaras adaptável a todo indivíduo das mais diversas culturas, de tal modo
que cada um pode encontrar o molde que lhe sirva.

Comparação entre os dois mitos: Dom Juan e Luís XIV

Existe uma grande diferença entre Dom Juan e Luis XIV. Dom Juan sai da literatura
para o mundo, ele não é uma pessoa real, com data de nascimento e morte, o contrário
se dá com a figura do lendário rei Luís XIV cujo nascimento data de 1638 e falecimento
em 1715, ele é a representação do mito histórico.
Como vimos, o mito tem um caráter universal e algo muito comum entre eles é não
ter mudanças. Eles têm hábitos rotineiros em suas ações que produzem sempre o
resultado desejado. Segundo Umberto Eco (ECO, 2008, p. 250) “... A personagem do mito
encarna uma lei, uma exigência universal, e deve, numa certa medida, ser, portanto,
previsível, não pode reservar-nos surpresas...”
E assim acontece. Dom Juan age sempre da mesma maneira, seu intuito é seduzir. A
palavra seduzir tem em si uma carga demoníaca muito grande, pois significa persuadir
uma pessoa e tirar dela aquilo que você deseja. Na obra de Tirso de Molina nas notas de
Cojorian existe a comparação de Dom Juan a um demônio (Exu).
A questão do demonismo está presente em diversas personagens literárias. E são
principalmente identificadas nas histórias de vampiros e dráculas. As características de
um vampiro são detectas em Dom Juan. Ele seduz as suas vitimas roubando lhes a alma,
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sugando o sangue, os sonhos, a alegria e principalmente, a honra.


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Revista de Letras Dom Alberto, v. 1, n. 3, jan./jul. 2013


Como já vimos, a honra é um fator importante em Dom Juan, ele seduz as mulheres,
seja através do sexo ou das palavras, como vimos em Molière, a sedução pode se realizar
nos dois planos, pois para Dom Juan o importante é conquistar sua vítima. Ele enlaça de
tal forma sua presa que esta não consegue mais ver o mundo sem a presença de seu
conquistador.
Segundo Renato Janine Ribeiro (1988, p.13) : ... a Don Juan pouco importa o gozo
físico, sexual, o que conta é a vitória sobre a alma, a entrega a ele do desejo. Sensual ele é,
e muito..., mas o sexual, para Don Juan, é governado pela honra.
A honra era um fator muito importante no século XVII. A vida estava em
transformação, todos queriam o seu lugar na sociedade. Os nobres eram considerados
superiores aos plebeus. Assim todos queriam tornar-se nobre e usufruir das regalias que
o título de nobreza lhes conferia.
As mulheres “enfeitiçadas” por Dom Juan queriam a ascensão social e o meio pelo
qual elas enxergavam uma possibilidade disso acontecer era através do casamento com
um nobre.
Dom Juan tinha sangue nobre, “... Para os nobres a honra vem do sangue: o
merecimento hereditário, passa pelo nascimento” (Ribeiro, 1988, p.13) Seu poder
demoníaco sobre as mulheres começa daí.
A nobreza do nosso sedutor atrai suas vítimas e depois de atraídas são totalmente
dominadas por ele. Atingindo a mulher, seu DNA é vampirizado: pais, mães, irmãos,
noivos, namorados, maridos. Enfim, a honra é tirada da geração.

... cria-se um cenário no qual todo homem é potencialmente vampirizável: por


danação( por vezes hereditária), pacto ou possessão diabólica, excomunhão,
excesso de volúpia, crueldade, imortalidade, soberba; alternativamente, por
propagação contagiosa (por excelência, na mordida do vampiro)
(CARVALHO, 2010, p. 480)

Esta “propagação contagiosa” também ocorre no tempo de Luís XIV seu título de
rei, seu sangue real são atrativos que seduzem toda uma geração a fazer um pacto com
sua imagem real. Todos querem estar à sombra do rei, usufruir de seus dons e para tal
260

não se importam em vender suas almas ao “demônio”. Conforme, Carvalho, 2010, a


honra vem do rei não apenas por causa do sangue real, mas por ser um monarca que
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com o passar do tempo atinge o poder absoluto.


Revista de Letras Dom Alberto, v. 1, n. 3, jan./jul. 2013
O rei, Senhor absoluto, que reina sozinho, mitificado em batalhas, em brasões,
moedas, na música, nas artes, no teatro. Considerado um deus poderoso, cujo toque real
tem o poder de curar, “às vezes o vampiro é apresentado como possuindo influência ou
controle sobre as forças naturais (tempestade, vento)” (Ibidem, p. 481).
A imagem deste ser sagrado vampiriza toda sua geração. Desta forma pode ter
poder sobre tudo e todos. Assim como em Dom Juan, seu demonismo é uma categoria
ética e política.
O que entendemos por ética: Ética é um valor moral que faz parte do caráter do ser
humano que o leva a seguir as normas e regras sociais em que vive e a respeitar o direito
de cada cidadão.
O rei Luís XIV teve sua imagem pública muito bem construída, porém toda esta
mitificação da figura real começa a ser desmitificada em suas relações amorosas.
Diferente de Dom Juan que deseja as belas, mas não é por elas dominado, o Rei Sol é
totalmente dominado por suas mulheres.
Como costume de época seu casamento ocorreu para unir dois países e selar
acordos políticos entre eles. Assim, Luís XIV aceita casar-se com Maria Teresa de
Espanha. Sua esposa era espanhola, assim como sua mãe, talvez apenas uma
coincidência em relação as mulheres conquistadas por Dom Juan.
Ele sempre fora ensinado a se portar em público “... aí incluída a arte da simulação
e da dissimulação” (BURKE, 1994, p.56). Teatralizar o social fazia parte do seu dia-a-dia.
Porém, suas máscaras caem quando se trata das mulheres. O desejo do rei era
incontrolável e todos sabiam que “o rei era um escravo de seus desejos” (Ibidem, p.134)
o dito propagado na época era “Foges da guerra, mas persegues as belas” (Ibidem, p.
151).
A questão do catálogo que nasceu com Da ponte sobre Don Juan é muito bem
aplicado em relação às amantes do rei Luis XIV. Ele teve muitas amantes e favoritas.
Porém são quatro suas preferidas: Madame de Montespan ( uma mulher incomum para
sua época, ela era viciada em sexo); madame de La Vallière, Fontanges e Maintenon.
O rei sol burla a lei para se casar com Madame de Maintenon, contraindo o
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segundo casamento escondido de todos. Ao que se sabe seu gosto era muito eclético,
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Madame de Maintenon era completamente diferente de Madame de Montespan.

Revista de Letras Dom Alberto, v. 1, n. 3, jan./jul. 2013


Maintenon era muito religiosa e tem uma história de vida de muita luta, tendo até
mesmo vivido na miséria, passando até mesmo a passar fome. Madame de Montespan a
contrata para ajudar a cuidar dos seus filhos que eram filhos bastardos do rei.
O rei logo se apaixona por Maintenon e esta paixão o leva a contrair o matrimonio,
tornando-o um burlador como Dom Juan. Só que a burla ocorre contra a lei e a igreja não
contra a mulher.
Outra diferença marcante entre o Rei Sol e dom Juan é a questão dos filhos. Dom
Juan não deixa filhos, podemos dizer que não literalmente, pois deixa vários seguidores
e em diversas culturas. Sua sedução é tamanha que consegue saltar para a vida real
gerando filhos desta forma.
Porém, Luis XIV vai além, ele tem vários filhos e muito ilegítimos. Algo muito
curioso é que as suas amantes participavam de sua mesa, moravam no palácio. Para
honrá-las o rei desonra o sangue nobre, a sua rainha é humilhada com esta situação.
Assim como Dom Juan, Luis XIV não demostrava nenhum sentimento de culpa. Ele
apenas queria satisfazer seus desejos. A diferença entre eles é que o rei parecia amar
suas amantes, amar o sexo e não apenas a sedução do momento. Ele era dominado por
suas mulheres.
O demonismo ético em Don Juan, segundo Renato Janine Ribeiro, 1988 p. 15
provém de sua mentira, ele mente contra aquilo que tem maior valor nas relações
humanas que são as questões sobre o amor.

Don Juan constrói para as mulheres uma série de espelhos falsos nos quais elas
enxergam uma promessa de amor intenso, pleno, inigualável. Essa miragem as
faz largar tudo o que é direito: a castidade, os laços do casamento, a amizade
aos próximos.... suas vítimas, seduzidas, abandonadas, têm destino
frequentemente trágico: o diabo desviou a sua alma, o inimigo matou-lhe a
esperança... (Ibidem, p.15)

Don Juan sacrifica as mulheres, visando ao poder em suas relações : “sacrificar as


mulheres à sua glória, pela glória dominar os homens.” (Ibidem, p.15).
O sedutor Don Juan está mais em evidência, pois pode usufruir mais livremente
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dos prazeres, das festas do que Luis XIV que estava “preso à liturgia da corte real”
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(IDEM, p, 19).

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Passemos agora para o demonismo de ambas as personagens no que toca a
questão política. Para Dom Juan a glória de dominar os homens demoniacamente toca a
questão política. Por meio de suas ações ele mostra a hipocrisia da sociedade em que
vive. Ele demascara os nobres e plebeus. Ele desnuda sua geração deixando a mostra sua
vergonha.
Segundo Renato Janine Ribeiro (RIBEIRO, 1988, p 16) “A sua dominação exerce-se
de forma teatral”. A palavra público pode ter dois sentido, o político significando o
coletivo, ou o teatral, com o significado de público, como pessoas que assistem um
espetáculo. Para Ribeiro, Don Juan converte o sentido de coletivo em teatral, onde suas
ações ganham o sentido de teatralização.
E teatralizando, ele pode mostrar as facetas da sociedade em que vive, onde o
dinheiro e a posição social falam mais alto do que os valores. Uma sociedade que
estabelece e burla as próprias leis.
Em Dom Juan o rei Luis que devia dar o exemplo de nobreza e da figura do
soberano que cumpre as leis e regras é o primeiro a viver das aparências. Fica evidente
que as aparências valem mais e que a máscara é mais aceitável do que um rosto limpo de
hipocrisia.
Jacques Wilhelm em sua obra Paris no tempo do Rei sol nos dá uma ampla visão
dos problemas sociais, políticos e urbanos pela qual Paris passava. Tudo isto era
amenizado através dos espetáculos teatrais, as grandes festas que o rei oferecia ao povo.
“ O povo se deleita com o espetáculo. Por esse meio prendemos seu espírito e seu
coração, algumas vezes mais firmemente do que com recompensas e favores” escreve
Luís XIV nas Instructions au dauphin.” ( WILHELM,1910, p. 155)
Em suma, tanto Dom Juan quanto Luís XIV eram conscientes da influência que
tinham sobre o outro. Porém, acabam sofrendo a danação, Dom Juan através da figura do
comendador de Pedra e o rei Sol através do domínio que as mulheres exerciam sobre
ele.
Podemos até mesmo ver a mulher como uma maneira de despistar a morte.
Estando próximo das belas a fera não poderia tocar o rei que tanto sofria com problemas
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de saúde.
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Revista de Letras Dom Alberto, v. 1, n. 3, jan./jul. 2013


Já Dom Juan não pode ser salvo pela proximidade com as mulheres. Suas ações
demoníacas contra elas os levam a encontrar a morte sem nenhuma chance de perdão e
de salvação. O Rei Luís XIV foi um Dom Juan em sua época, ressaltando aqui a
importância do mito e como ele pode ganhar diversas facetas em diversas épocas e
culturas. Dom Juan pode ser identificado em cada ser humano, estando presente em
cada imaginação, ganhando rosto, cor e luz em diferentes sociedades independente de
seus costumes e símbolos.

Referências

BURKE,Peter. A fabricação do rei: a construção da imagem pública de Luís XIV. Rio de


Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1994

BRUNEL,Pierre. Dicionário de mitos literários. Trad. Carlos Sussekind. 4. ed. Rio de


Janeiro: José Olympio, 2005.
CARVALHO, Bruno Berlendis de (org.). Antologia do vampiro literário.São Paulo:
Berlendis & Vertecchia, 2010.
DOM JUAN DE MARCO. Direção:Jeremy Leven. Produção: Francis Ford Coppola.EUA,
1995. Filme (1h37minutos)
DOM JUAN (De Molière) filme. Direção: Jacques Weber, 1998 (104 min.)
DOM JUAN OU LE FESTIN DE PIERRE (1965) .Marcel Bluwal. Disponível em:m
http://www.youtube.com/watch?v=RbDGdlcLJLU
ECO, Humberto. Apocalípticos e integrados. Trad. Pérola de Carvalho. São Paulo:
Perspectiv,2008.
JUNG, Carl G.O Homem e seus Símbolos.Trad. Maria Lúcia Pinho. 2. ed. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1964
MARQUISE. filme. Direção: Véra Belmont, 1997, Drama (122 min.)
MOLINA, Tirso. Dom Juan – O Burlador de Sevilha e o Convidado de
Pedra.Apresentação e Notas de Alex Cojorian; introdução de Mario M. González. –
Brasília: Círculo de Brasília Editora, I edição 2004.
MOLIÈRE, Dom Juan, ou Le festin de Pierre.Dispoível em: virtualbooks.com.br. Editora
Virtual Books online M&M Editores Ltda.
264

RIBEIRO, Renato Janine. A sedução e suas máscaras: ensaios sobre Don Juan/
organizador Renato Janine Ribeiro. – São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
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VATEL Um Banquete para o Rei. Filme. Direção: Roland Joffé, 2000 (1h59)
Revista de Letras Dom Alberto, v. 1, n. 3, jan./jul. 2013
WATT, Ian P. Mitos do individualismo moderno: Fausto, Dom Quixote, Dom Juan,
Robinson Crusoe. Trad. Mario Pontes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.

WILHELM, Jacques. Paris no tempo do Rei sol,1660-1715. Trad. Cássia R. da Silveira e


Denise Moreno Pegorim. São Paulo: Companhia das Letras,1988.

Artigo aceito em julho/2013

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