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BACHARELADO EM TEOLOGIA
São Leopoldo
2016
JOABE MARQUES DOS ANJOS
Trabalho de Metodologia
Exegética
Antigo Testamento
Bacharelado de Teologia
Faculdades EST
São Leopoldo
2016
SUMÁRIO
Introdução....................................................................................................... 5
1 O Rosto do Texto......................................................................................... 7
2 Lugar do Texto........................................................................................... 15
Referências .................................................................................................. 45
Apendice A ................................................................................................... 48
Apêndice B ................................................................................................... 51
Apêndice C................................................................................................... 54
Introdução
1 BRUEGGEMANN, Walter. An Introduction to the Old Testament. 2 ed. Kentucky: Westminster John
Knox Press, 2012. p. 256-258. Ver também: ASURMENDI, Jesus M. Amos y Oseas. Estella: Verbo
Divino, 1989, p. 11.
2GUTIÉRREZ, Carlos Mário Vasquez. Dito, Panfleto e Memória: uma abordagem de Amós 3-6. São
que são reunidas em unidades maiores de sentido, formando os panfletos. Para aprofundamento, ver:
GUTIÉRREZ, 2002, p. 169-176. Cf. SCHWANTES. Milton. Amós: meditações e estudos. Petrópolis;
São Leopoldo: Vozes; Sinodal, 1987, p. 85.
5 GUTIÉRREZ, 2002, pp. 120-168. Sobre a dificuldade de divisão em 5.1–6.14 ver: SCHWANTES,
1987, p. 83-84.
8
6 CARROL, Mark Daniel R. Contexts for Amos: Prophetic Poetics in Latin American Perspective.
Sheffield: JSOT Press, 1992. p. 240-272.
7 GUTIÉRREZ, 2002, p. 78.
8 WOLFF, Hans Walter. Joel and Amos – A Commentary on the Books of the Prophets Joel and Amos.
Philadelphia: Fortress Press, 1977. p. 92. Ver também: GUTIÉRREZ, 2002, p. 19.
9 GUTIÉRREZ, 2002, p. 79.
10 MAYS, James Luther. Amos: a commentary. Philadelphia: The Westminster press, 1969. p. 102-105.
11 WOLFF, 1977, p. 260.
9
oferendas”. Contudo, estas ligações, conforme Mays, podem ser a razão de ditos
separados terem sido colocados sequencialmente no arranjo do livro. 12 Desse modo,
é possível afirmar que os vv. 21-27 constituem uma unidade final, compostas, porém,
de duas partes. A primeira parte (vv. 21-24) tem uma estrutura poética, enquanto a
segunda (25-27) traz uma linguagem mais narrativa, de prosa.13 Além disso, enquanto
que nos vv. 21-24 o ataque de Amós é contra o culto oficial e autorizado, no v. 26 a
acusação é contra a idolatria, portanto, outro contexto. 14 Wolff também acentua as
diferentes partes que compõem estes versículos; na verdade, segundo o autor, 5. 21-
24 constitui o oráculo mais antigo, estando junto com ele o v. 27; enquanto 5. 25-26,
bem como 22a15 seriam adições posteriores.16
A conclusão a que chegamos, portanto, é a de que os vv. 21-27 constituem
um conjunto literário. O tema que perpassa esses versículos é da mediação do culto.
Os vv. 21-24, porém, estão mais próximos da mensagem de Amós, enquanto 25-27
são, provavelmente, uma releitura pós-exílica em que a denúncia da idolatria
ressurge. Assim, podemos delimitar os vv. 21-24 como uma unidade que está
relacionada com o contexto dos sacrifícios, enquanto 25-27 constituem uma releitura
e atualização da mensagem profética.17
188.
15 Ver seção 1.3.
16 WOLFF, 1977, p. 260.
17 GUTIÉRREZ, 2002, p.86.
10
sempre em primeira pessoa. Por fim, a linguagem poética utilizada nessa perícope
confere-lhe unidade.
No entanto, há uma aparente tensão entre os vv. 21-23 e o v. 24. Enquanto
que o primeiro bloco trata-se de uma crítica ao culto de Israel, o v. 24 muda a temática
bruscamente para o tema da justiça. Há de considerar, porém, que essa aparente
diferença temática não distoa da anterior. Na verdade ela conecta as duas partes –
por isso inicia com a conjunção (ְֹ )וpara indicar continuidade de pensamento – e, de
alguma forma, ela serve como justificativa para o desprezo de Javé em relação às
práticas cúlticas de Israel,sendo usado como uma forte conclusão em forma de
antítese em relaçõ às declarações negativas sobre a adoração prestada pelo povo18.
Aqui há uma questão para ser aprofundada na análise do conteúdo.
18 SMITH, Gary V. Comentário do Antigo Testamento: Amós. São Paulo: Cultura Cristã, 2008. p. 264.
19 ANDERSEN; FREEDMAN, 1989, p.523.
11
visam o fim do rei e do Estado (Amós, Isaías, Jeremias, etc.)38 Este último grupo,
chamado de profetas literários, podem ser divididos em três grupos, conforme seus
períodos históricos: 1) Os profetas do século VIII (760-700 a. C.): Amós; Oséias;
Isaías; Miquéias; Jonas. 2) Os profetas dos século VII e VI (640-587 a. C.): Sofonias;
Naum; jeremias; habacuque; Ezequiel. 3) Os profetas dos séculos VI e V (539-443 a.
C.): Ageu; Zacarias; Obadias; Daniel; Joel; Malaquias.39
A principal peculiaridade da literatura profética é o dito profético, ou o
oráculo.40 De fato, eles representam o principal fenômeno do nosso livro. No livro de
Amós estão reunidos vários ditos: pequenas unidades de sentido constiuídas de um
ou alguns poucos versículos que desginamos de perícope.41 Na verdade, segundo
Wolff, temos três tipos básicos de discursos em Amós: 1) a fórmula de mensageiro,
em que o comissionado de Javé fala em seu nome na primeira pessoa; 2) os discursos
de testemunho livre, que promove o contato com o ouvinte e introduz Javé na 3ª
pessoa – em casos particulares o discurso livre pode levar a uma fórmula de
mensageiro; 3) e os relatos de visões, em que não se pode dizer com certeza se é
retórico ou literário em sua origem.42 As fórmulas de mensageiro geralmente são
empregadas durante os discursos de juízo do profeta, e é justamente este gênero
literário que define nossa perícope.
Uma das formas literárias principais utilizadas por Amós são os discursos de
juízo: eles são quase que inteiramente poéticos e constituem a espinha dorsal do livro.
Normalmente são introduzidas por uma “fórmula de mensageiro” (Assim diz Javé) e
geralmente incluem uma acusação de pecado e um anúncio de punição; finalizam
com uma fórmula de conclusão (“disse Javé” ou “palavras de Jávé”).43 Cada elemento
do discurso de juízo desempenha uma função: 1) a fórmula de mensageiro confirma
que o oráculo é de Javé e que o profeta é divinamente comissionado; 2) a combinação
de acusação e anúncio comprova a justiça de Javé, que não ignora as iniquidades de
38 PETERLEVITZ, Luciano R.; Introdução ao profetismo. In: Revista Theos: Revista de Reflexão
Teológica da Faculdade Teológica Batista de Campinas. Campinas: 5ª Edição, V.4, n 1. ISSN: 1908-
0215. p. 7, 2008.
39 PETERLEVITZ, 2008, p. 7.
40 PETERLEVITZ, 2008, p. 7.
41 SCHWANTES, 1987, p. 87.
42 WOLFF, 1977. p. 91.
43 HUBBARD, David Allan. Joel e Amós: introdução e comentário. Trad. Márcio Loureiro. São Paulo:
seu povo, mas também não os pune de modo arbitrário; 3) as fórmulas de conclusão
assinalam o final do discurso bem como sua origem divina.44
Aplicando tal estrutura à nossa perícope, de início não encontramos nenhuma
fórmula de mensageiro. No entanto, o sujeito da fala é javé, que discursa em primeira
pessoa. Desse modo, imediatamente a perícope traz a acusação e o anúncio de Javé,
que possui a seguinte estrutura: (21-23) avaliação de Javé do culto de Israel; (24) uma
conclusão chamando pelo direito e pela justiça.45 A fórmula de conclusão, porém, só
aparece no versículo 27. A razão disto, entrementes, tem a ver com o que já citamos
acima: o fato de que 21-27 constitui uma perícope final agrupada posteriormente. No
entanto, como assinala Wolff, apesar de que os versículos 25-26 ser adições da escola
deuteronomista, o v. 27 faz parte do dito original. 46 Por isso, Wolff sugere que 5.21-
24+27 – também 3.12; 5.4-5 – são ditos isolados que transmitem oráculos puros de
Javé. Não pode ser claramente determinado se um ou outro destes oráculos pode ter
sido introduzido somente através do trabalho redacional da escola de Amós. Sendo
assim, também deve-se contar com a possibilidade de que esta coleção pode ter sua
origem no próprio Amós.47
Se há certa dificuldade e algumas “brechas” permanecem abertas na
identificação do gênero, não se pode dizer o mesmo do Sitz im Lebem da perícope.
Evidentemente clara é a linguagem religiosa nela presente.48 Como já apontamos
acima, entre os versos 21-23 há várias palavras relacionadas ao culto hebreu. A
maioria dos termos importantes aponta exatamente para o gênero cultual,49 sendo
que a lista do que Deus odeia e despreza abarca a todas as atividades do culto. 50
Quanto ao v. 24 é preciso considerar que especialmente influentes são as formas
tradicionais derivadas da herança cultural de Amós, cuja proveniência devem-se
buscar naquela forma de sabedoria que foi cultivada dentro dos clãs. Muitas das
partes que são formadas por elementos individuais provêm do estoque dos provérbios
sapienciais que são incorporados nos oráculos proféticos.51 Ele é, portanto, uma
palavra de sabedoria já existente que é integrada ao dito profético.52
2.1 Autoria
“As palavras de Amós...” (1.1) é a fórmula utilizada para dar início ao livro do
profeta que recebe seu nome. É claro que isto não significa que todo o livro de Amós
contenha simplesmente o relato “puro” do profeta sem nenhum tipo de intervenção
advinda de outras mãos. Neste sentido, tem sido pertinente os resultados das
pesquisas em atribuir tanto ao conjunto do livro em si quanto às sucessivas camadas
redacionais, a participação de escolas e comunidade, ou seja, construção coletiva.
Percebem-se grupos sociais na origem dos textos e conjuntos literários.53 Isto porque,
“antes de ser escrita, a profecia de Amós foi memória. Antes de ser memória, foi
fala.”54 E como tal, foi preservada por um grupo específico e seus ditos foram
agrupados, não de forma aleatória, mas intencional.55
Ainda assim, é evidente que quem fala é o profeta e por isso é fundamental
que se conheça o autor por trás de tais palavras. Deve-se ter em mente, porém, que
para a literatura profética, mais importante que o profeta são as palavras do profeta.
Por isso, mesmo no cabeçalho do livro (1.1) não são dadas muitas informações sobre
Amós, pois o que importa mesmo – no pensamento daqueles que preservaram os
ditos do profeta – é a mensagem, e não o mensageiro.56
Apesar das poucas informações fornecidas no texto bíblico sobre o profeta,
elas nos são extremamente úteis para a própria compreensão das palavras do profeta:
do lugar que fala e para que público fala. Cabe destacar de início, a importância que
carrega seu próprio nome: “o que leva uma carga”. Uma forma teofórica desse nome
é encontrada em 2Cr 17.16, que traduz-se por “o Senhor leva uma carga”.57 Sobre
este fato, Peterlevitz diz:
Entrementes, o texto nos diz sua origem e época. Ele viveu na primeira
metade do século VIII a.C., durante os reinados de Jeroboão II em Israel e Uzias em
Judá, e era oriundo da cidade de Tecoa (1.1). Revela-nos também suas ocupações.
Era um pastor que cuidava de rebanhos (1.1), como também boieiro e cultivador de
sicômoros (7.14). É justamente a identificação de suas atividades a causa de
controvérsias entre diferentes exegetas sobre qual seria a real condição social do
profeta Amós. Ou seja, a partir de que grupo social Amós faz a sua denúncia?
Tradicionalmente, tem-se entendido que Amós teria vindo das classes sociais
mais baixas do antigo Israel. Afinal, ele era um simples pastor que cuidava de
rebanhos.59 Além disso, durante os quentes meses de verão, os pastores moviam
seus rebanhos para as elevações mais baixas, onde possivelmente Amós trabalhou
como cultivador de sicômoros em troca de direitos de pastoreio.60 Isto porque “os
sicômoros não crescem nas regiões altas de Tecoa, mas apenas nas baixadas do Mar
Morto e da planície litorânea”.61 Segundo Wright,
58 PETERLEVITZ, Luciano R. Amós: o profeta, o contexto e o texto. In: Revista Theos: Revista de
Reflexão Teológica da Faculdade Teológica Batista de Campinas. Campinas: 7ª Ed, V.6, n 1. ISSN:
1980-0215. p. 3. 2011.
59 DILLARD, Raymond B; LONGMAN, Tremper III. An Introduction to the Old Testament. 2Ed.
bíblico (1.1) não usa o termo comumente utilizado para essa profissão (rô‘eμh), mas
sim um termo diferente (nôqeμd). Um cognato para este termo em ugarítico sugere
que Amós pode ter sido um criador em grande escala ou um tipo de corretor de
rebanhos. Outros estudiosos apelam a um cognato acadiano (nâqidu), que designa
um funcionário gerencial de nível médio na equipe de um templo mesopotâmico, e
sugerem que Amós supervisionou ou administrou os rebanhos pertencentes ao templo
em Jerusalém. Muito embora a existência desses rebanhos seja clara para os templos
da Mesopotâmia, não há indicações clara na Bíblia de que o templo de Jerusalém
investiu seus recursos em gados e fazendas.63 Além disso, o termo (nôqeμd) só
aparece aqui e em 2Rs 3.4, designando o rei Mesa de Moabe. Isto faz com que muitos
autores tratem Amós como um homem rico, ou ao menos como um pequeno
proprietário.64
Para muitos estudiosos, pois, Amós não era um simples fazendeiro ou
camponês, mas sim um membro daquelas classes sociais mais ricas contra as quais
ele entregava suas acusações. A designação do profeta como cultivador de sicômoros
é então descartada à luz do fato de que Amós 7. 10-17 é amplamente considerado
uma inserção secundária no livro. 65 Dillard e Logman, porém, destaca que não está
claro se Amós estava entre os membros ricos da sociedade israelita. Os argumentos
a partir de cognatos ugaríticos e acadianos requerem um salto de cultura, tempo e
geografia e podem não refletir o uso do termo (nôqeμd) em hebraico. Amós fala de
si mesmo como “cuidando do rebanho” (7.15), ou seja, como um pastor e não como
um rico corretor de gado. Os argumentos filológicos que atribuem algum outro
significado à frase “cultivador de sicômoros”, para o autor não são convincentes, nem
simplesmente excitam 7. 10-17 uma abordagem metodologicamente satisfatória. Por
isso Dillard e Longman compreendem que a abordagem tradicional ainda tem muito a
recomendar.66
Enquanto Dillard e Longman não pretendem dar uma solução para o
problema, podemos encontrar em outros autores uma tentativa de definir o embate,
mas certamente não há consenso. Schwantes, por exemplo, baseado em Amós, diz:
É claro que ele teve uma vida agrícola, mas de modo algum ele era um
homem simples e aculturado. Como “criador de gado”, provavelmente
significa que ele era chefe de outros pastores, um homem importante e
respeitado em sua comunidade. [...] embora fosse um homem do campo, de
Tecoa, sua mensagem é rica e elegante, o que nos adverte que ele não deve
ser tomado como uma pessoa simples e aculturada. Nenhum profeta o
supera na combinação de pureza, clareza e versatilidade que caracterizam
sua linguagem.71
Tendo exposto tais argumentos, não é nossa intenção aqui definir qual seria
a melhor linha argumentativa. Nem nos cabe, de igual modo, algum de tipo de
posicionamento já que, invariavelmente, ele será decido muito mais por pressupostos
e preferências pessoais – consciente ou inconscientemente – do que pelas provas
incontestáveis apresentadas no texto bíblico. Além disso, a nossa suspeita é a de que,
qualquer que seja a posição social do profeta, esta não afeta em nada o conteúdo da
sua mensagem – ao menos não tanto quanto se supõe. Esta preocupação é
inteiramente contemporânea e certamente ela tem sua importância. Mas para o
profeta e para o público que o ouve não importa quem fala, mas em nome de quem
ַ֣ ַ
fala. Por isso sua profecia começa com ( הָֹאמרֹי ְהֹו ָה“ ) ֹ ֹּ֚כassim diz o Senhor”. E da
ַ֛ ַ ֹ) “diz o Senhor”. Desse modo, a grande crítica social
mesma forma termina ( ָֹאמרֹי ְה ָו֥ה
feita por Amós, e que não é nada mais que o clamor do próprio Deus, pode ser tanto
uma crítica interna – se o considerarmos como detentor de certos privilégios, ainda
que é improvável que Amós tenha sido rico, no máximo alguém com condições um
pouco melhores que a maioria da população – como também ser a representação e o
empoderamento através do Espírito para dar voz aos silenciados e oprimidos.
De uma coisa, porém, nós temos alguma certeza. Seja pelo comércio de
animais ou pelo cultivo de sicômoros, certamente essas atividades o obrigavam a
fazer frequentes viagens.72 Em seu livro, como aponta Sicre, encontramos um homem
informado sobre determinados acontecimentos nos países vizinhos, que conhece a
situação social, política e religiosa de Israel, e aparece também como um homem
inteligente.73 Bem lembra Kirst, “é de se supor que Amós tenha sido um homem mais
ou menos viajado, com um horizonte mais amplo do que a sua vizinhança mais
direta”.74
Assim podemos traçar algumas conclusões, a partir de Harper, mas também
tendo algumas ressalvas necessárias. Harper pontua que quatro itens precisam ser
considerados: 1) o profeta tem sua própria confirmação. Ele não era um profeta por
profissão, não era um membro da sociedade profética. E por não se caracterizar dessa
forma, seu propósito e espírito são diferentes dos deles. 2) Sua real ocupação era
como “cultivador de sicômoros”. Tinha um emprego humilde, era um do povo. Esta
evidência não indica se ele era realmente um pobre ou se gozava de certo bem-estar.
3) Ele era um pastor (nôqeμd). Mas, como a palavra denota, não um mero pastor,
talvez um produtor de lã. Como tal, ele naturalmente fazia viagens de vez em quando,
e conhecia homens que iam e vinham de todas as partes do mundo. 4) Enquanto sua
linguagem é rica em falas figurativas oriundas de diferentes facetas da vida, nada é
mais aparente que a influência exercida em seus enunciados da vida e ocupação que
ele seguiu. Isto pode ser visto em 2.13; 3.4-12; 5.11,17,19; 6.12; 7.1,4; 8.1; 9.8. Mas
a influência de sua vida rústica e ocupação humilde não se limitaram aos símbolos e
figuras que encontramos expresso nesse pensamento. O pensamento em si nasceu
2.2 Datação
75 HARPER, William Rainey. A Critical and Exegetical Commentary on Amos and Hosea. New York:
Charles Scribner’s Sons, 1905. p. CVI-CVII.
76 BRUEGGEMAN, 2012, p. 256.
77 “Segundo evidências do próprio texto, é possível afirmar com certa certeza que a atuação de Amós
não mais que dois anos, talvez meses, ou ainda menos, em contraste com a longa
atuação de Oséias. Por isso muitos estudiosos concordam com uma data entre 760 e
750 a. C.80
2.3 Local
O texto bíblico também nos diz a cidade de origem do profeta: “Tecoa” (1.1).
Essa é a única Tecoa denominada no Antigo Testamento; fica dez quilômetros ao sul
de Belém e dezesseis ao sul de Jerusalém. Está localizada na região montanhosa de
Judá, numa altitude de aproximadamente 850 metros. A intenção dos compositores
do texto em mencionar Tecoa, mais que indicar sua cidade natal, pretende salientar
sua origem rural.81
mesmo nome no Reino do Norte, os argumentos não são muito convincentes. DILLARD; LONGMAN,
2009, p. 425. Outros ainda dizem que ele realmente viveu em Israel, tendo ido a Judá e Tecoa somente
após ter sido expulso de Betel. HARPER, 1905, p. CI.
84 ANDIÑACH, 2015, p. 301.
85 KIRST, 1981, p. 18;
86 SCHWANTES, 1987, p. 31.
87 MAYS, 1969, p.4; WOLFF, 1977. p. 90.
22
2.4 Destinatários
2.5 Época
88 MAYS, 1969, p.4; WOLFF, 1977, p. 90. A referência em 4.4 e 5.5 talvez indique que o profeta também
esteve em Gilgal, não é impossível tal fato. No entanto, não passa de suposição. Ver: KIRST, 1981, p.
18; também WOLFF, 1977, p. 90.
89 DILLARD; LONGMAN, 2009, p. 423. Sobre o contexto político, econômico e social daquela época
Ao final do século IX e inícios do século VIII o cenário político mundial não era
favorável a Israel. Durante este período, do qual não se sabe muita coisa, 92 Israel
estava muito fraco. Sofreu investidas de diversos inimigos e perdeu muitos
territórios.93 Os arameus de Damasco oprimiram a Israel durante o reinado de Jeú e
de seu filho Jeoacaz. Esta situação culminou no sítio de Samaria pelos assírios, a
quem Israel passou a pagar tributos, com o rei Joás, mas tendo como benefício a
liberação das pressões dos arameus, vindo a recuperar alguns territórios na
Transjordânia.94 O oitavo século, pois, marca uma grande reviravolta que levou o
Estado de Israel e de Judá a um contínuo crescimento econômico e à prosperidade
desconhecidas desde a época de Salomão. Podem ser mencionadas duas causas
para tal feito: aos hábeis governantes que regeram ambos os Estados nesse período,
mas principalmente pelos felizes acontecimentos mundiais dos quais Israel foi grande
beneficiado.95
Entrementes,
98 PETERLEVITZ, 2011, p. 6.
99 DILLARD; LONGMAN, 2009, p. 423.
100 BRUEGGEMANN, 2012, p. 242.
101 SCHWANTES, 1987, p. 13.
102 BRIGHT, 1978, p. 345.
103 BRIGHT, 1987, p. 345.
104 “Sua força econômica demonstrava-se pelos progressos na agricultura, com produtos de exportação
pelo cultivo e fabricação do azeite de olivais e dos famosos vinhos e pelo impressionante crescimento
populacional, em razão dessa expansão agrícola ligada a uma economia externa pelas exportações,
havendo, inclusive, um crescimento com projetos de construção de obras públicas, com um sistema de
reserva de água e conjunto de estábulos ligados ao aparato militar.” DREHER apud SILVA, 2009, p.
62.
105 SICRE, 2011, p. 189; BRIGHT, 1978, p. 345.
106 BRIGHT, 1978, p. 346.
25
Abissalmente contraposto a isso, este belo quadro contrastava com outro não
muito bonito, apresentado, sobretudo, nos livros de Amós e Oséias.107
113 Este conceito colocava a renda básica tirada do proprietário no centro da construção teórica. O que
essa teoria não capta, segundo Kessler, é a dinâmica da sociedade de Israel e Judá, já que os textos
do AT mostram uma drástica mudança de uma sociedade relativamente igualitária para uma sociedade
marcada por relações de classes. KESSLER, 2009, p. 147.
114 O modo de produção tributário é designado por Marx de “modo de produção asiático”. Nesse
sistema, as instâncias políticas dispõem das propriedades reais para produção, regulado por uma
aplicação de tributos. É muito parecido ao modo de produção feudal, com a diferença de que neste
modelo a arrecadação do tributo apresenta-se como um direito, devido à apropriação dos meios de
produção pela instância do poder. HOUTART, François. Religião e Modos de Produção Pré-
Capitalistas. São Paulo: Paulinas, 1982. p. 18-21; 54-63.
115 SCHWANTES, 1987, p. 15-16. Schwantes acentua tais dados para que não se pense que os
impostos serviam apenas para sustentar a luxúria dos ricos – como algumas passagens em Amós
parecem deixar entender (3.12,14-15; 4.1; 5.11; 6.4-6) – o que muitas vezes foi interpretado desta
forma. “Dizia-se que o nosso profeta somente criticava a insaciável ganância dos ricos; restringia-se a
investir contra as pessoas luxurientas, não contra as estruturas de opressão que, a partir do Estado,
propiciavam ostentação”. Tal abordagem, segundo o autor, mostra-se insuficiente. SCHWANTES,
1987, p. 15-16. Sobre como funcionaria o modelo de produção tributarista: “Nesse modelo, os
camponeses possuíam os meios de produção (terra), mas entregavam obrigatoriamente significativas
parcelas da produção para o Estado. Na verdade, o Estado é a cidade-Estado, a organização que
coordena o projeto tributário. O Estado territorial nada mais é do que a coligação de várias cidades,
sendo estas constituídas (quase?) exclusivamente pela elite.” PETERLEVITZ, 2011, p. 7.
116 MARX apud KESSLER, 2009, p. 147.
27
públicas com o Estado, quanto à esfera das relações sociais e econômicas entre
israelitas em particular.124
Dito estas coisas, é preciso considerar, no entanto, que Amós não faz uma
análise social e científica, mas uma marcante polêmica. Com isso, não se deve tomar
sua narrativa como espelho da realidade em Israel na metade do século VIII, ao
mesmo tempo em que não deve ser desqualificada como mera fantasia.125 Assim,
cabe-nos olhar para o profeta, levando em consideração o contexto da época, e
atentarmos para alguns detalhes que são de suma importância. Não apenas para o
que o texto diz, mas também para o que ele não diz.
Interessantemente, por exemplo, não se falam em Amós do órfão e da viúva,
– personagens presentes em toda a Bíblia como representantes das pessoas pobres
– mas sim de pequenos camponeses de quem sempre se tem algo a tirar, levando,
por fim, à escravidão por dívidas.126 Desse modo, podemos notar que Amós não fala
da pobreza em si, mas de um tipo específico de pobreza, ou melhor, de
empobrecimento. Exatamente neste ponto está a novidade de Amós em relação aos
profetas que o antecedem. Em Amós não há apenas a constatação da existência da
pobreza, mas elas são colocadas numa relação de causalidade: “Os ricos são ricos
por causa de sua exploração dos pobres; os pobres são pobres porque são explorados
pelos ricos”.127
Estas informações permitem-nos concluir, pois, que o grande causador do
empobrecimento em Israel no século VIII é o sistema de créditos. Ele não é novo,
existe desde a época pré-estatal; a novidade é a passagem do endividamento
“normal” para o endividamento sem retorno.128 Deve-se clarificar, como bem
demonstra a crítica profética, que esse desenvolvimento não foi aceito sem
124 REIMER, Haroldo. Agentes y mecanismos de opresión y explotación en Amós. In: RIBLA: Revista
de Interpretación Bíblica Latinoamericana. Bíblia: 500 Años ¿Conquista o inclusión? V. 12. Quito:
Conselho Latinoamericano de Iglesias, 1992. p. 71-72.
125 KESSLER, 2009, p. 141.
126 KESSLER, 2009, p. 141.
127 KESSLER, 2009, p. 141. A falta de menção ao órfão e à viúva é um forte argumento em favor do
modelo de antiga sociedade de classe, em detrimento do que se propõe a partir do tributarismo. Isto
porque, normalmente, os profetas recorrem ao rei que deveria ser o baluarte na defesa do órfão e da
viúva. Apesar das ligações com a elite, a monarquia não surge a partir dela, por isso o rei está
totalmente fora da contradição fundamental entre credores e devedores, logo então é eximido da crítica
de Amós. Outro fato importante é que aos reis era possível a intervenção social. Porém, mais influente
que qualquer intervenção monárquica, é a fixação por escrito do direito israelense. Esse processo tem
como pano de fundo a crise social da sociedade (Os 8.12; Is 10.1; Jr 8.8s). Ainda assim, a fixação do
direito por escrito não é pensável a partir do século VIII sem a monarquia. KESSLER, 2009, p. 151-
153.
128 KESSLER, 2009, p. 144-145.
29
133
BRUCE, F. F. Comentário Bíblico NVI: Antigo e Novo Testamento. São Paulo, Vida, 2008. p. 1240-
1241.
3 Palavra – Coração do Texto
134 Cerca de 164 vezes. Cf. JENNI, Ernst; WESTERMANN, Claus. Diccionario Teologico Manual del
Antiguo Testamento. (Tomo II) Madrid: Cristiandad, 1985. p. 1050.
135 HARRIS, R. Laird; ARCHER, Gleason L. Jr.; WALTKE, Bruce K. (org.). Dicionário internacional
Neste sentido, no âmbito semântico, abarca tanto o odiar “intensamente” como a mera
antipatia, ou preferência de algo em detrimento de outrem.136
136 JENNI; WESTERMANN, 1985, p. 1050-1051. Ver também VANGEMEREN, Willem A. (org.). Novo
Dicionário Internacional de Teologia e Exegese do Antigo Testamento. São Paulo: Cultura Cristã,
2011 (c). V 3, p. 1249-1250.
137 HARRIS; ARCHER; WALTKE, 1998, p. 804.
138 JENNI, Ernst; WESTERMANN, Claus. Diccionario Teologico Manual del Antiguo Testamento.
nomeações específicas, sendo três as principais: Festa dos Pães Ázimos, Festa das
Semanas e Festa dos Tabernáculos (Ex 23.15; 34.18; Lv 23.6; 23.34; Nm 28.17; Dt
16.10; 16.13; 16.16; 31.10; 1Rs 8.65; 2Cr 7.8,9,13; 30,21; 35.17; Es 3.4; 6.22; Ez
45.21; Zc 14.16,18,29).
O termo faz referência às três festas israelitas anuais: Festa dos
Tabernáculos, Festa dos Pães Ázimos/Páscoa e Festa das Semanas/Primícias, que
exigiam uma peregrinação ao templo.140 Nestas festas, todos os homens eram
obrigados a participar e lhes era proibido ir de mãos vazias, 141 mas deveriam ir com
sacrifício próprio para cada festa em particular.142 Curiosamente, as festas anuais
correspondiam, de inúmeras formas, ao ano agrícola: “a páscoa, com a colheita da
produção de cevada; a Festa das Semanas, com a primeira festa de trigos do verão;
e a Festa dos Tabernáculos, com a festa de outono, quando as famílias acampavam
em barracas, no final da colheita.”143 Em síntese, pode-se concluir que quando se fala
em “festas” no Antigo Testamento, em geral se fala das festas religiosas, feitas para
a adoração de Javé. Algumas delas, assim como a da nossa perícope, não identificam
claramente a que festa se refere, o que pode indicar a totalidade das celebrações,
tendo em vista a própria relação paralelística com (“ )עֲ צ ָָרהassembleias solenes”.
3.1.4 ( )עלָה/ Holocaustos - ( )מִ נְחָ ה/ Oferendas - ( )שֶׁ לֶׁם/ sacrifício de comunhão
O substantivo ( )נֵבֶׁלque traduzimos por harpa, também pode ser traduzido por
instrumentos de corda. No Antigo Testamento, das diversas vezes em que ele
aparece, normalmente traduz-se por harpas (1 Sm 10.5; 2Sm 6.5; 10.12; 1Cr 13.8;
15.16,28; 16.5; 25.1,6; 2Cr 5.12; 9.12; 20.28; 29.25; Ne 12.27; Sl 33.2; Sl 57.8; Sl
71.22; 81.2; 92.4; 108.3; 144.9; 150.3; Is 5.12), às vezes por violas/alaúdes/liras (1Cr
15.20; Is 14.11; Am 6.5). Em Am 5.23, por exemplo, é traduzido de diversas formas:
violas, liras, instrumentos, harpas. Apesar da prevalência da tradução por “harpas”, é
144 Sobre os sacrifícios na religião judaica, os diferentes termos e funções, suas origens e
desenvolvimentos, ritos e regulamentos, tipos e significados, cf. DOUGLAS, J. D. Novo Dicionário da
Bíblia. 3 ed. São Paulo: Vida Nova, 2006. p. 1192-1201.
145 Ele aparece juntamente com o verbo (“ )עלהsubir”, pois sua fumaça sobe ou ascende até Deus.
Apesar de não constituir o grupo de sacrifícios pelo pecado, ele possuía certo caráter expiatório.
HARRIS; ARCHER; WALTKE, 1998, p. 1116-1118. Ver Também. VANGEMEREN, 2011(c), p. 405-
414.
146 A ideia básica do termo parece designar um presente. No caso, oferendas ao Senhor, geralmente
causado. O rito desse sacrifício sugere uma reconciliação entre as partes envolvidas. VANGEMEREN,
Willem A. (org.). Novo Dicionário Internacional de Teologia e Exegese do Antigo Testamento. São
Paulo: Cultura Cristã, 2011 (d). V 4, p. 134.
148 HARRIS; ARCHER; WALTKE, 1998, p. 1117.
149 DOUGLAS, 2006, p. 1198.
150 DOUGLAS, 2006, p. 1198-1199.
151 DOUGLAS, 2006, p. 1199.
35
mais evidente que a crítica do profeta não tem em vista um instrumento em si, mas
todo o rito cúltico, consequentemente tudo que envolva música.
dos conceitos. A primeira delas ( )מִ שְ ָ ָּ֑פטocorre 425x no Antigo Testamento: 84x no
Pentateuco, 74x nos livros históricos, 47x nos livros sapiências e 144x nos livros
proféticos, sendo 27x nos profetas menores. Apesar da variedade de sentidos, tem
claramente conotações jurídicas. Seu uso mais comum ocorre na literatura profética,
diz respeito a uma quebra da justiça sofrida pelos israelitas nas mãos de seus líderes
corruptos, que trará o julgamento do Senhor contra o seu povo. 152 Já o conceito ()צְדָ ָ ָ֖קה
“justiça” denota o sentido de “retidão”,153 diferente do sentido moderno de “equidade
legal”. Quando se diz fazer justiça, p. ex. significa “declarar alguém reto” (cf. 2Sm 15.4;
Sl 82.3).154 Ela descreve, pois, três aspectos de relacionamentos pessoais: ético,
forense e teocrático.155 Nesse sentido, é possível perceber o alcance de significados
dessa expressão; de modo geral, indica uma conduta em relação a algum padrão de
comportamento aceito na comunidade, que também demanda o julgamento desse
comportamento; mesmo no contexto legal de comportamento forense, indica a
natureza auto-evidente do padrão assumido.156 Pela raiz, encontra-se no Antigo
Testamento cerca de 523x, sendo 157x como substantivo feminino. 157 Entre os
profetas, estatisticamente, os termos derivados da raiz (ק
ָֹ֖ )צדsão menos frequentes
nesses livros do que se supõe.158
3.2 Recepção
moral, punitiva, vindicação, redentivo, justificação, bondade, ver DOUGLAS, 2006, p. 743-745.
155 Para mais detalhes, ver HARRIS; ARCHER; WALTKE, 1998, p. 11261-1265.
156 VANGEMEREN, 2011 (c), p. 743-747.
157 JENNI; WESTERMANN, 1985, p. 644.
158 VANGEMEREN, 2011 (c), p. 759.
37
159 CALVINO, João. Os comentários de João Calvino sobre o profeta Amós. São Paulo:
Monergismo, 2009, p. 91-95.
160 Disponível em <http://www.luteranos.com.br/conteudo/amos-5-21-24>. Acesso em 25 de outubro de
2016.
161 Disponível em <http://www.luteranos.com.br/textos/amos-5-18-24>. Acesso em 25 de outubro de
2016.
38
verdade, o que Deus deseja é a adoração e o louvor somente dos que procuram viver
uma vida piedosa. A hipocrisia religiosa é abominação diante de Deus e trará
condenação especial aos que a praticam.162
Um outro fato merece ser mencionado. Apesar de não ser um uso exegético
e/ou homilético deste texto, é bastante interessante. Três vezes, Amós utiliza a frase
definidora "justiça e retidão" como a principal preocupação profética (Amós 5: 7, 24;
6:12, ver Gênesis 18:19). No segundo desses usos, o profeta profere o que se tornou
a convocação decisiva de toda fé profética: um uso característico desta frase é feito
por Martin Luther King Jr., uma cadência familiar de sua retórica mais tarde utilizada
em seu memorial em Montgomery. Este fraseamento de Amós tornou-se o ímpeto
para a fé profética e o terreno para a crítica profética de sistemas sociais que ignoram
e violam este comando mais elementar de Javé.163
162 Bíblia de Estudo Pentecostal. Almeida Revista e Corrigida. Rio de Janeiro: CPAD, 1995. p. 1304.
163 BRUEGGEMANN, 2012, p. 260.
164 CARROL, 1992, p. 245.
39
diretamente ligado a 21b, ao invés do restante do v. 22, como também faz alusão ao v.25. ANDERSEN;
FREEDMAN, 1989, p. 527.
170 KIRST, 1981, p. 164-165.
40
fazendo parte do dito original, entende que ( )מִ נְחָ הfala especificamente de “ofertas
de cereais”.173
Na verdade, o termo ( )מִ נְחָ הé usado como coletivo para representar todo tipo
de sacrifício. Desse modo, é a todos os sacrifícios a que Javé se refere quando diz
“eu não os aceitarei”.174 Não há razões para que Amós queira identificar
exclusivamente um tipo de sacrifício, deixando a entender que a crítica do profeta está
voltada para determinados aspectos do culto ou determinados sacrifícios. Assim como
estamos convencidos de que o v. 21 fala de todas as festividades, o v. 22 também
fala de todos os tipos de sacrifícios realizados nos cultos israelitas. Interessante,
porém, é o verbo que aparece após “oferendas”: ( “ )ֹאֶׁ ְר ֶׁ ָּ֑צהaceitar”. Em contraste com
termos como “cheirar” (21b), “olhar” (22b) e “ouvir” (23b), o verbo “aceitar” é mais
frequentemente empregado como expressão oficial para designar a aceitação do
sacrifício. Quando um sacrifício não correspondia às prescrições do ritual, o sacerdote
falava em nome de Javé: “ele não será aceito” (Lv 19.7).175 É como se o profeta
estivesse a falar durante alguma celebração e, um momento antes do sacerdote
proferir as palavras de aceitação, Amós o interrompe proferindo a mensagem de Javé
de não aceitação de seus sacrifícios. Porém, em contraste ao rito comum, as palavras
de não aceitação do profeta, não tem a ver com o não seguimento dos rituais ou
alguma falha na liturgia. A rejeição de Javé é tão imperativa que mesmo os sacrifícios
de comunhão ( )שֶׁ לֶׁםsão insuficientes para reatar a relação entre Javé e Israel.
É justamente aqui que aparece um fato não observado por muitos exegetas.
Quando Amós fala dos sacrifícios de comunhão, ele menciona que tipo de animais
são oferecidos nestes sacrifícios. O termo usado é ( )מְ ִריאque traduzimos
simplesmente por gados. Mas não se fala aqui de qualquer tipo de gado, mas de
animais cevados; ou seja, animais gordos. Este elemento é fundamental para a
compressão da profecia de Amós contra os cultos em Israel. Neste momento, como
em outras passagens, Amós tece uma crítica aos ricos de seu país, que esbanjam
sua fartura, sem se importar com os necessitados da terra.176
Até aqui, a crítica profética dirigiu-se às festas (21) e aos sacrifícios (22).
Agora, no v. 23, é o momento de outro elemento fundamental numa celebração: os
cânticos. “Afasta de diante de mim o ruído dos teus cânticos e música de tuas harpas
não ouvirei”. Apesar de que os substantivos no singular contrastam com os dos vv.
21-22 que estão no plural, não há necessidade de adequação como propõe a BHS.177
Os cânticos são descritos como ()הָ מֹון, isto é., barulho. No AT é empregado
em relação ao barulho das ondas do mar ou dos soldados no acampamento.178 Para
Javé, os cânticos entoados nas celebrações israelitas são como um amontoado de
ruídos dos quais nada se pode ouvir nem deleitar-se neles. Desse modo, os itens
listados de 21 a 23, formam um conjunto de setes coisas rejeitadas por javé nos cultos
de Israel. Um conjunto de negação representando um repúdio completo e
abrangente.179
Ainda assim, a negação apresentada nesses versículos não indica total
rejeição por parte de javé. Amós se utiliza aqui de um recurso chamado “negação
dialética”, no qual determinado aspecto – aqui, adoração – é fortemente negado a fim
de dar ênfase a outro; nesse caso, à justiça. Javé rejeita os sacrifícios de Israel porque
eles são oferecidos em substituição ao cumprimento dos mandamentos do pacto.180
Em fechamento a esta perícope e à indicação de rejeição de Javé o v. 24 traz:
“E será enrolado como as águas o direito; e a justiça como uma corrente constante”.
Em termos puramente quantitativos o v 24 é o meio da unidade (5.7-6.14) definido
pelas palavras "direito" e "justiça".181 Apesar de iniciar com um vav, que normalmente
jerônimo: Antigo Testamento. São Paulo: Academia Cristã; Paulus, 2007. 446.
181 ANDERSEN; FREEDMN, 1989, p. 528.
42
indica continuação – como fizemos na tradução provisória – o vav de ( ) ֹוְי ִגַ ֥לé
copulativo e deve ser entendido no sentido adverso de 21-23: “em vez disso” ou
“antes”.182
Desse modo, a forma jussiva do verbo ( )גללé anexado ao verso precedente
por meio de um vav-copulativo. Muitas vezes o v. 24 foi considerado como o início da
ameaça de julgamento, mas esse elemento deveria ter sido introduzido por meio de
uma forma consecutiva perfeita. Também, se o v. 24 começasse a ameaça de
julgamento, então "direito" e "justiça" teriam de ser interpretados como referindo-se a
atos de Javé, o que nunca é o caso com estas palavras em outros lugares em Amós.
Se a interpretação jussiva da sentença puder ser assegurada, então a estrutura
adversativa usada por Amós em 23-24 recorda a justaposição sapiencial do sacrifício
e da oração com "direito e justiça".183 Além disso, o jussivo ()גלל, segundo Kirst,
expressa desejo, sendo melhor traduzido por: que role.184
Mays assegura também que, a interpretação do v. 24 como um anúncio de
juízo ao invés de instrução: o juízo de Javé e sua justa punição rolará sobre Israel
como um forte rio – não se mostra consistente. Amós usa consistentemente direito e
justiça como termos para as igualdades que deveriam estar presentes na ordem social
(6.12; 5.7.15), e este movimento de rejeição do sacrifício para um chamado a um tipo
de vida nestes termos ou em similares é encontrado em Is 1.10-17; Mq 6.6-8; Os 6.6.
Em Amós ( )מִ שְ ָ ָּ֑פטestá especificamente associado com o tribunal nos portões e
significa o processo judicial e sua decisão pela qual a ordem correta é mantida nas
relações sociais, e especialmente a proteção dos fracos e pobres através da ajuda do
tribunal. ( )צְדָ ָ ָ֖קהé a justiça que pertence àqueles que cumprem as responsabilidades
que suas relações com os outros envolvem.185
A crítica de Amós, nesse caso, não está relacionada aos cultos em si, mas à
hipocrisia dos que celebram tais cultos. Enquanto muitos deles ignoram os
mandamentos de Javé, distorcendo o direito e a justiça, causando empobrecimento
em larga escala a camponeses e pequenos comerciantes, ainda assim, sem nenhum
pudor, acham que a simples celebração e o oferecer de alguns sacrifícios podem
deixá-los tranquilos perante Javé. Javé está naturalmente incluído na dimensão
182 KIRST, 1981, p. 170. Muito embora a gramática hebraica não conheça nenhum outro caso de uso
adversativo do imperfeito copulativo. JENNI; WESTERMANN, 1978, p. 661.
183 WOLFF,1977, p. 264.
184 KIRST, 1981, p. 170.
185 MAYS, 1969, p. 108.
43
destes termos porque são conceitos abrangentes que resumem o conteúdo de sua
vontade para Israel, mas sua execução pertence à esfera horizontal da sociedade. Em
efeito, o que Amós está dizendo é que a adoração do culto comunitário é inaceitável
porque Israel não vive como uma comunidade de javé.186
No v. 24, há um chamado a um retorno ao direito e à justiça. E para descrever
como deve ser essa renovação, Amós usa outra das metáforas extraídas de sua
familiaridade com o campo aberto. Direito e justiça devem rolar abaixo como as
enchentes após as chuvas de inverno, e persistir como esses poucos leitos cujos rios
ָ ֵ )אcarrega o significado básico
não secam durante a seca de verão.187 O adjetivo (יתן
de "fluir volumemente" e serve assim para distinguir o "córrego" ( )נַחַ לque leva água
ao longo do ano, sem secar facilmente.188
Entretanto, diferente do que muitos pensam,189 o chamado ao direito e à
justiça não significa, necessariamente, uma promessa de absolvição da culpa de
Israel; isso não coadunaria com o sentimento do profeta nos seus ditos originais de
que não há mais esperanças para israel. O profeta não passa a contrastar o culto atual
com quaisquer propostas de reforma. O que ele está a dizer é que, o ritual em si, com
toda a sua parafernália e panóplia, simplesmente não pode substituir as ações morais
e éticas básicas dos seres humanos.190 Não há palavras de esperança, contudo. Em
5.24 (“ )מִ שְ ָ ָּ֑פטֹּוצְדָ ָ ָ֖קהjustiça e direito” não são opcionais dentro da ordem moral de Javé
e, à luz da rebelião e do pecado no passado; no presente, nesta fase da história de
Israel, dentro dos ditos de Amós, nem mesmo se houvesse conformidade com a
vontade de Javé, a nação poderia salvar-se da ruína.191
Por isso, é preciso atentar para o que foi dito em 3.1 na delimitação do texto,
quando concluímos que, apesar de 5.21-24 ser um dito independente, ele constitui o
conjunto de 5. 21-27, e também 5.18–6.14, ou seja, contexto de declaração do juízo
de Javé sobre seu povo. Essa admoestação do v. 24, pois, não deve ser lida sem o v.
27 que termina dizendo: “Por isso, vos desterrarei para além de Damasco, diz o
SENHOR, cujo nome é Deus dos Exércitos.”192
ANDERSEN, Francis I.; FREEDMAN, David Noel. Amos: a new translation with
notes and commentary. New York: Doubleday, 1989.
CARROL, Mark Daniel R. Contexts for Amos: Prophetic Poetics in Latin American
Perspective. Sheffield: JSOT Press, 1992.
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KESSLER, Rainer. História Social do Antigo Israel. São Paulo: Paulinas, 2009.
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deitada por terra: Um estudo sobre o direito e a justiça na profecia de Amós, a partir
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WOLFF, Hans Walter. Joel and Amos – A Commentary on the Books of the
Prophets Joel and Amos. Philadelphia: Fortress Press, 1977.
48
Versículo 21
אָֹאריחַ ֹבְעַ צ ְֹֽרתֵ ֶׁיכֹֽם׃
ָ֖ ִ ֵיכםֹו ְ֥ל ָּ֑ ֶׁ ׂשָ נֵ ֥אתִ יֹמָ ַ ָ֖אסְ תִ יֹחַ ג
ֹֹׂשָ נֵ ֥אתִ י ֹמָ ַ ָ֖אסְ תִ י ָּ֑ ֶׁ ֹחַ ג
ֵיכם ֹו ְ֥לא ַָֹֹאריח ָ֖ ִ ֹ ֹבְעַ צ ְֹֽרתֵ ֶׁיכֹֽם׃
Verbo Qal Verbo Qal Substantivo; Partícula Verbo Hif’il Substantivo,
perfeito – perfeito – masculino; conjutiva imperfeito – feminino,
1ª pessoa; 1ª pessoa, plural; + 1ª pessoa, plural,
comum; comum; construto. – partícula comum, construto. –
singular. singular. Sufixo 2ª negativa. singular. Sufixo. 2ª
pessoa, pessoa,
masculino, masculino,
plural. plural.
ׂשנא מאס ֹֹֹחַ ג+ֶֹׁ ָּ֑כם ְ ֹֹו+לא רוח ְֹ + עֲ צ ָָרה+ ֹ ֶׁכֹֽם
ב
Versículo 22
םֹלאֹאַ ִבֹֽיט׃ ָ֖ ֶׁ ֵםֹלאֹאֶׁ ְר ֶׁ ָּ֑צהֹו ֶׁ ְ֥שלֶׁםֹמְ ִריא
֥ יכ ָ֖ ֶׁ ֵלּו־ליֹע ַ֛לֹותֹּומִ נְחת
ַ֣ יכ ֥ ִ ֲִ ַ֣כיֹאִ ם־תַ ע
ֹֹ ִ ַ֣כי ֥ ִ ֲֹאִ ם־תַ ע
לּו־לי ֹע ַ֛לֹות ָ֖ ֶׁ ֵֹּומִ נְחת
ֹיכם ֹֹ ַ֣לא
partícula Partícula Substantivo, Partícula Partícula
conjuntiva conjuntiva + feminino, conjuntiva + negativa.
verbo Hif’il, plural. substantivo,
Imperfeito, 2ª feminino, plural,
pessoa, construto. –
masculino, sufixo, 2ª
plural + pessoa,
preposição – masculine,
sufixo 1ª plural.
pessoa, sing.
כִי אִ ם+עלה+ְֹל עלָה ְ ֹו+ֹמִ נְחָ ה+ֶׁ ָ֖כם ַ֣לא
Pois/que/porque/ se fizerdes holocaustos e vossas não
etc. subir para/até oferendas/ofertas/
mim sacrifícios
Pois, se fizerdes subir até mim holocaustos e vossas oferendas não
Versículo 23
֥ הָ ֵ ֥סרֹמֵ עָ ַ ָ֖ליֹהֲ ַ֣מֹוןֹשִ ֶׁ ָּ֑ריָךֹוְזִמְ ַ ֥רתֹנְב ֶׁ ָָ֖ל
יָךֹלאֹאֶׁ שְ ָמֹֽע׃
ֹהָ ֵ ֥סר ֹמֵ עָ ַ ָ֖לי ֹהֲ ַ֣מֹון ֹשִ ֶׁ ָּ֑ריָך ֹוְזִמְ ַ ֥רת
Verbo Hiphil, Preposição – Substantivo, Substantivo, Substantivo,
imperativo, sufixo, 1ª masculino, masculino, feminino,
masculino, pessoa, singular, plural, singular,
singular. comum, construto. construto. – construto.
singular. sufixo, 2ª
pessoa,
masculino,
singular.
סור ֹמִ ן+עַ ל+ַַֹ י הָ מֹון ֹשִ יר+ָך ְ ֹו+זִמְ ָרה
Afasta de sobre mim ruído/agitação/ de teus cantos e música/som
tumulto
Afasta de diante de mim (o) ruído dos teus cantos e música
Versículo 24
יתֹֽן׃ ָ ֵוְי ִגַ ֥לֹכ ַ ַָ֖מי ִםֹמִ שְ ָ ָּ֑פטֹּוצְדָ ָ ָ֖קהֹכְנַ ֥חַ לֹא
ֹֹוְי ִגַ ֥ל ָ֖ ַ ֹכ
ַֹמי ִם ָּ֑ ָ ְֹמִ ש
ֹפט ֹֹּוצְדָ ָ ָ֖קה ֹֹכְנַ ֥חַ ל ָ ֵֹא
יתֹֽן׃
50
referência ao mau cheiro das ofertas perante o Senhor. A ACF traduz melhor essa
frase deixando claro este sentido.
Ainda no versículo 22, a BHS propõe uma mudança morfológica na palavra ( ְשלֶׁם
֥ ֶׁ )ֹו,
que é substantivo, masculino, singular, construto, mais a preposição ( ְֹ ( )ֹֹוe sacrifício
de comunhão); passando para ( )ו ְשַ לְמֵ יque muda do singular para o plural. Tal
proposta tem a ver, novamente, com a tentativa de harmonizar os versos presentes
no versículo, já que os dois substantivos principais dos primeiros versos estão no
ָ֖ ֶׁ ֵ( )ֹּומִ נְחתe vossas oferendas).
plural: ( ֹ( )ֹע ַ֛לֹותholocaustos); ( ֹיכם
No versículo 23 a BHS propõe uma outra alteração morfológica trocando (– ) ֹהָ ֵ ֥סר
verbo hiphil, imperativo, masculino, singular – por ( – )הָ סִִ֜ רוverbo hiphil, imperativo,
masculino, plural – indicando mais uma vez a tentativa de harmonização com o
restante do verso.
b prb l
55
Por fim, ainda no v. 23 a BHS indica que as palavras ( ֹ( ) ֹשִ ֶׁ ָּ֑ריָךde teu cânticos) e ( ֹ
((נְב ֶׁ ָָ֖ליָךde tua harpas) – ambas trazem uma discordância morfológica interna já que
são substantivo, masculino, plural, construto, mas trazem consigo um sufixo na 2ª
ֵ ִ )שe
pessoa do singular – provavelmente devem ser lidas respectivamente (יריכֶׁם
ֶֹׁ ) ֹנִ ְבלֵיmantendo, portanto, sua definição morfológica, mas adequando os sufixos
(כם
ao plural. Sendo traduzido por: (de vossos cânticos; de vossas harpas).