Você está na página 1de 57

FACULDADES EST

BACHARELADO EM TEOLOGIA

JOABE MARQUES DOS ANJOS

EXEGESE DE AMÓS 5.21-24

São Leopoldo
2016
JOABE MARQUES DOS ANJOS

EXEGESE DE AMÓS 5.21-24

Trabalho de Metodologia
Exegética
Antigo Testamento
Bacharelado de Teologia
Faculdades EST

Professor: Dr. Flávio Schmitt

São Leopoldo
2016
SUMÁRIO

Introdução....................................................................................................... 5

1 O Rosto do Texto......................................................................................... 7

1.1 A delimitação do texto: .......................................................................... 7

1.2 Unidade/Integridade: coesão e coerência do texto: .............................. 9

1.3 Estilo do Texto .................................................................................... 10

1.4 Gênero Literário: ................................................................................. 12

2 Lugar do Texto........................................................................................... 15

2.1 Autoria ................................................................................................. 15

2.2 Datação ............................................................................................... 20

2.3 Local ................................................................................................... 21

2.4 Destinatários ....................................................................................... 22

2.5 Época .................................................................................................. 22

3 Palavra – Coração do Texto ...................................................................... 31

3.1 Análise Semântica ............................................................................. 31

3.1.1 (‫ )ׂשנא‬/ Odiar.................................................................................. 31

3.1.2 (‫ )מאס‬/ Rejeitar.............................................................................. 32

3.1.3 (‫ )חַ ג‬/ Festas .................................................................................. 32

ֹ ) / Holocaustos - (‫ )מִ נְחָ ה‬/ Oferendas - (‫ )שֶׁ לֶׁם‬/ sacrifício de


3.1.4 (‫עלָה‬
comunhão .......................................................................................................... 33

3.1.5 (‫ )נֵבֶׁל‬/ Harpa.................................................................................. 34

3.1.6 (‫ )גלל‬/ Rolar ................................................................................... 35

3.1.7 (‫ )מִ שְ ָ ָּ֑פטֹּוצְדָ ָ ָ֖קה‬/ Direito e Justiça .................................................... 35

3.2 Recepção ............................................................................................ 36

3.4 Análise Teológica ................................................................................ 38


3.5 Tradução Final.................................................................................... 44

Referências .................................................................................................. 45

Apendice A ................................................................................................... 48

Apêndice B ................................................................................................... 51

Apêndice C................................................................................................... 54
Introdução

Esta exegese pretende analisar e interpretar o texto de Amós 5. 21-24. O texto


fala do ódio de Javé pelos cultos de Israel, terminando com um chamado ao
cumprimento do direito e da justiça. O desafio a nós imposto é imenso, tendo em vista
a grandiosidade de Amós na pesquisa bíblica, sua importância e atualidade, na qual
exegetas de grande porte se debruçaram e ainda o fazem.
Para a realização deste empreendimento, pretende-se seguir alguns passos.
Primeiramente, uma tradução provisória do texto. Em seguida, uma comparação
dessa tradução com outras já realizadas e uma análise do aparato crítico da BHS,
esses dois passos estarão disponíveis no apêndice.
No corpo da exegese, iniciaremos pelo “Rosto do Texto”, no qual
delimitaremos as dimensões da perícope, averiguaremos sua unidade literária, seu
estilo e estrutura e, por fim, identificaremos seu gênero literário. Logo após, iremos
para o “Lugar do Texto”, em que identificaremos a autoria, datação, local, destinatários
e época do texto. Por fim, nos ocuparemos com o “Coração do Texto”, a Palavra, em
que faremos uma análise semântica, uma análise da recepção do texto, terminando
com uma análise teológica do próprio texto.
Afinal, por qual motivo Javé estava tão descontente, ou melhor, enraivecido
com os cultos dos israelitas? Qual o cenário por trás da crítica exercida pelo profeta
Amós? A quem representava o profeta com sua severa denúncia? Estas e outras
perguntas tentarão ser respondidas no corpo desta exegese, algumas, entrementes,
ficaram sem respostas, trazendo apenas algumas respostas. No mais, poderá ser
apreciada toda a radicalidade do ministério profético de Amós e sua severa crítica
social, mostrando que adoração a Deus está intrinsicamente vinculada a uma vida que
preza pela justiça e pelo direito.
6
1 O Rosto do Texto

1.1 A delimitação do texto:

Inicialmente, faremos uma delimitação do contexto maior ao contexto menor.


Seguindo a delimitação de Brueggemann, podemos decompor o livro de Amós em
três grandes partes, além dos versículos introdutórios e conclusivos. Am 1,1-2
constitui o título do conjunto da obra. 1) 1,3–2,16: contém uma série de oráculos contra
as nações; 2) 3–6: oráculos destinados exclusivamente a Israel, relativos à injustiça,
ao luxo, à perversão dos tribunais, aos cultos etc.; 3) 7–9,10: a terceira parte trata das
visões e pequenos oráculos; 9, 11-15 traz a conclusão do livro.1
A nossa perícope insere-se dentro do segundo grande bloco que abrange os
capítulos 3 a 6. Nesse caso, esse bloco diferencia-se dos demais tanto no gênero
literário, quanto no tocante aos destinatários da mensagem.2 A unidade do bloco é
composta por vários ditos proféticos que nos aproximam do cotidiano da sociedade
israelita no século VIII a. C. São resultados de experiências sociais de grupos que
conservaram e transmitiram sua mensagem.3
Uma terceira divisão ainda é possível: a estruturação das unidades de sentido
que compõe os capítulos 3-6. Essa decomposição ocorre em duas partes, isto é,
primeiramente na decomposição das unidades maiores de sentido e posteriormente
nas unidades menores de sentido. Nesta perspectiva, Gutiérrez assinala quatro
unidades maiores: 1) Amós 3,1–4,3: um panfleto4 sobre a cidade de Samaria; 2) 4,4–
13: um panfleto sobre a fome, a peste e a guerra; 3) 5,1–17: um panfleto sobre a
justiça e o direito no portão; 4) 5,18–6,14: dois lamentos por Israel.5

1 BRUEGGEMANN, Walter. An Introduction to the Old Testament. 2 ed. Kentucky: Westminster John
Knox Press, 2012. p. 256-258. Ver também: ASURMENDI, Jesus M. Amos y Oseas. Estella: Verbo
Divino, 1989, p. 11.
2GUTIÉRREZ, Carlos Mário Vasquez. Dito, Panfleto e Memória: uma abordagem de Amós 3-6. São

Bernardo do Campo: 2002. p. 13. (Tese)


3 GUTIÉRREZ, 2002, p. 14.
4 O autor trabalha com os conceitos de ditos e panfletos. Ditos são as unidades menores de sentido

que são reunidas em unidades maiores de sentido, formando os panfletos. Para aprofundamento, ver:
GUTIÉRREZ, 2002, p. 169-176. Cf. SCHWANTES. Milton. Amós: meditações e estudos. Petrópolis;
São Leopoldo: Vozes; Sinodal, 1987, p. 85.
5 GUTIÉRREZ, 2002, pp. 120-168. Sobre a dificuldade de divisão em 5.1–6.14 ver: SCHWANTES,

1987, p. 83-84.
8

Depois desse processo de decomposição, chegamos à ultima etapa para a


delimitação precisa de nossa perícope em análise. Considerando a delimitação
anterior proposta por Gutiérrez, podemos ainda acrescentar mais uma divisão que
seria de Amós 5,18-27 e Amós 6, 1-14, as quais Carrol R. intitula “A ilusão da religião”
(5,18-27) e “A ilusão do poder” (6,1-14).6 Assim feito, é possível definir precisamente
a perícope anterior à nossa: os versículos 18-20.
O versículo 18 inicia os lamentos sobre Israel: os “ais”, tão importante na
mensagem profética. Essa unidade estende-se até 6,14 onde conclui com um “dito de
Javé, Deus dos exércitos”7, fórmula usada em outras partes do livro para indicar um
fechamento.8 Ainda assim, como já frisamos, é possível identificar subunidades que
contêm sentido completo, como é o caso de 18-20. Essa perícope difere do seu texto
anterior (5, 7-17) primeiramente por sua mudança de linguagem, especialmente pela
introdução do termo (ֹ‫ְהוה‬
ָָ֖ ‫“ )י֥ ֹוםֹי‬dia de Javé”, e conclama as pessoas a entoar um canto
de lamentação, canção fúnebre, um lamento pela morte. “Formalmente, o ‘ai’ vincula-
se com os que ‘sabem chorar’”; (cf. Amós 5,16).9 Interessante perceber como Amós
se utiliza de um tema fundamental para a fé judaica “o dia de Javé”, mas o faz de
modo oposto ao que a crença popular pensava acerca dele.10
Com essa precisa demarcação, temos tranquilidade para identificar o início de
nossa perícope: o v. 21. A partir desses versículos, falta a referência ao “dia de Javé”,
bem como a linguagem está mais diretamente vinculado ao ambiente cúltico, de festas
e sacrifícios, diferentemente da perícope anterior que, apesar de fazer alusão a
animais, não o faz em contexto sacrificial. Além disso, há uma mudança estilística em
relação à perícope anterior, bem como a troca para primeira pessoa, em que a fala
divina é mantida até o v. 27.11
Apesar disso, encontramos certa dificuldade para definir o término de nossa
perícope. Podemos relacionar, primeiramente, as semelhanças entre nossa perícope
(vv. 21-24) e os versículos que os sucedem (25-27). A fala divina em primeira pessoa
é mantida, bem como a linguagem cultual e o uso de termos como “sacrifícios,

6 CARROL, Mark Daniel R. Contexts for Amos: Prophetic Poetics in Latin American Perspective.
Sheffield: JSOT Press, 1992. p. 240-272.
7 GUTIÉRREZ, 2002, p. 78.
8 WOLFF, Hans Walter. Joel and Amos – A Commentary on the Books of the Prophets Joel and Amos.

Philadelphia: Fortress Press, 1977. p. 92. Ver também: GUTIÉRREZ, 2002, p. 19.
9 GUTIÉRREZ, 2002, p. 79.
10 MAYS, James Luther. Amos: a commentary. Philadelphia: The Westminster press, 1969. p. 102-105.
11 WOLFF, 1977, p. 260.
9

oferendas”. Contudo, estas ligações, conforme Mays, podem ser a razão de ditos
separados terem sido colocados sequencialmente no arranjo do livro. 12 Desse modo,
é possível afirmar que os vv. 21-27 constituem uma unidade final, compostas, porém,
de duas partes. A primeira parte (vv. 21-24) tem uma estrutura poética, enquanto a
segunda (25-27) traz uma linguagem mais narrativa, de prosa.13 Além disso, enquanto
que nos vv. 21-24 o ataque de Amós é contra o culto oficial e autorizado, no v. 26 a
acusação é contra a idolatria, portanto, outro contexto. 14 Wolff também acentua as
diferentes partes que compõem estes versículos; na verdade, segundo o autor, 5. 21-
24 constitui o oráculo mais antigo, estando junto com ele o v. 27; enquanto 5. 25-26,
bem como 22a15 seriam adições posteriores.16
A conclusão a que chegamos, portanto, é a de que os vv. 21-27 constituem
um conjunto literário. O tema que perpassa esses versículos é da mediação do culto.
Os vv. 21-24, porém, estão mais próximos da mensagem de Amós, enquanto 25-27
são, provavelmente, uma releitura pós-exílica em que a denúncia da idolatria
ressurge. Assim, podemos delimitar os vv. 21-24 como uma unidade que está
relacionada com o contexto dos sacrifícios, enquanto 25-27 constituem uma releitura
e atualização da mensagem profética.17

1.2 Unidade/Integridade: coesão e coerência do texto:

Além dos elementos que indicam o início e o término da perícope, existem


outros elementos dentro da própria perícope que nos indicam sua unidade literária.
Vários deles já foram apresentados no processo de delimitação. Um deles é o grupo
de palavras cujos significados estão de alguma forma relacionados por fazerem
referência a um tema e ambiente comum. Há, no texto, palavras do campo semântico
“culto”: festas, assembleias solenes, holocaustos, oferendas, sacrifício de comunhão,
cânticos, música, harpa. Outro elemento de coesão é a fala divina que permanece

12 MAYS, 1969, p. 110.


13ANDERSEN, Francis I; FREEDMAN, David Noel. Amos: a new translation with notes and
commentary. New York: Doubleday, 1989. p. 530.
14 PAUL, Shalom M. Amos: a comentary on the book of amos. Minneapolis: Fortress Press, 1991. p.

188.
15 Ver seção 1.3.
16 WOLFF, 1977, p. 260.
17 GUTIÉRREZ, 2002, p.86.
10

sempre em primeira pessoa. Por fim, a linguagem poética utilizada nessa perícope
confere-lhe unidade.
No entanto, há uma aparente tensão entre os vv. 21-23 e o v. 24. Enquanto
que o primeiro bloco trata-se de uma crítica ao culto de Israel, o v. 24 muda a temática
bruscamente para o tema da justiça. Há de considerar, porém, que essa aparente
diferença temática não distoa da anterior. Na verdade ela conecta as duas partes –
por isso inicia com a conjunção (ְֹ‫ )ו‬para indicar continuidade de pensamento – e, de
alguma forma, ela serve como justificativa para o desprezo de Javé em relação às
práticas cúlticas de Israel,sendo usado como uma forte conclusão em forma de
antítese em relaçõ às declarações negativas sobre a adoração prestada pelo povo18.
Aqui há uma questão para ser aprofundada na análise do conteúdo.

1.3 Estilo do Texto

A estruturação da perícope aqui apresentada segue como proposto por


Andersen e Freedman19 - mas com a nossa própria tradução – em que temos a
seguinte esquematização:

5.21a Odiei, repudiei vossas festas


21b e não aspirarei em vossas assembleias solenes.
22a Pois, se fizerdes subir até mim holocaustos
– e vossas oferendas –
não aceitarei
22b – e sacrifício de comunhão de vosso gado –
não olharei.
23a Afasta de diante de mim ruído dos teus cânticos
23b e música de tuas harpas não ouvirei.
24a E será enrolado como as águas o direito
24b e a justiça como uma corrente constante.

18 SMITH, Gary V. Comentário do Antigo Testamento: Amós. São Paulo: Cultura Cristã, 2008. p. 264.
19 ANDERSEN; FREEDMAN, 1989, p.523.
11

Podemos subdividir essa perícope em duas partes: a primeira (21-22) contém


uma áspera denúncia, seguida de um apelo ao arrenpendimento, primeiramente num
aspecto negativo (“parem o que vocês estão fazendo”, v. 23) e também com um lado
construtivo (“alcance a justiça”, v. 24).20 Desse modo, percebemos que os versos 21-
22 constituem uma unidade poética com uma estrutura simétrica.21
Se analisarmos os versículos individualmente, identificamos no v. 21 um
paralelismo entre os substantivos e sufixos. O padrão verbal é balanceado por duas
formas do perfeito na primeira linha (odiei, repudiei) que correspondem ao imperfeito
negativo na linha paralela (não aspirarei)22. Estes verbos estão correspondidos com
dois complementos em paralelismo (“vossas festas” e “vossas assembleias
solenes”).23
No v. 22 encontramos um arranjo quiástico; precedendo e ocupando espaço
entre os versos há uma cláusula condicional (se fizerdes subir). Esta cláusula,
segundo Andersen e Freedman, tem ligação com o v. 25; ele antecipa a comparação
e o contraste entre as práticas de sacrifício em curso e as exercidas durante as
peregrinações no deserto.24 Carrol assinala uma quebra rítimica nos versos
exatamente no início do v. 22a, e que tem sido alvo de muitas especulações. Algumas
escolas tendem a eliminar esse verso, pois o considera uma adição posterior;25 e
teriam a intenção de tornar a lista de sacrifícios mais completa.26 Outros supõe que
tenha se perdido o complemento original, que seria algo como: “eu não receberei”. 27
Interessante é notar, no entanto, que, além disso, o número de itens rejeitados por
Javé equivalem a exatamente sete.28 É preciso considerar que o fato de haver
padrões interrompidos não significa que são, necessariamente, herança redacional ou
erro de algum escriba, mas pode ter um efeito literário proposital.29
Ainda assim, precisamos reconhecer que a partir de 22a temos um excelente
paralelismo, com substantivos emparelhados: (vossa oferendas) relacionado com

20 ANDERSEN; FREEDMAN, 1989, p.523.


21 ANDERSEN; FREEDMAN, 1989, p.523.
22 ANDERSEN; FREEDMAN, 1989, p.524.
23 GUTIÉRREZ, 2002, p.83.
24 ANDERSEN; FREEDMAN, 1989, p.524.
25 CARROL, 1992, p. 246.
26 MAYS, 1969, p. 106.
27 MAYS, 1969, p. 106.
28 CARROL, 1992, p. 246.
29 CARROL, 1992, p. 247.
12

(sacrifício de comunhão de vossos gados) seguidos de uma partícula negativa e por


um verbo no perfeito e na primeira pessoa (não aceitarei // não olharei). 30
Quanto aos versículos 23-24, em ambos temos um quiasmo:31
(verbo+complemento // complemento+verbo).32 No v. 23, os substantivos cânticos e
música estão relacionados, assim como os verbos afasta e não ouvirei. No v. 24, os
substantivos direito/justiça constituem o centro do quiasmo33. Nota-se que os termos
se correspondem: “água” = “corrente”, “direito” = “justiça”, enquanto o verbo “rolar”
rege as duas expressões.34
Concluímos, então, que os versos são construídos a partir de proposições
verbais (como destacados acima) e que estão posicionados de modo distinto entre os
dois primeiros versículos e os dois últimos. Os vv. 21 e 22 apresentam três versículos
principais e intercalam entre as posições dos verbos. Enquanto no v. 21 o verbo inicia
o versículo, no v. 22 o verbo está no final, ainda que tenha um verbo no início. Tal
construção configura-se num paralelismo, em que os versos apresentam a mesma
sequência e os mesmos signos.35
Já os versos dos vv. 23 e 24 invertem a sequência, constituindo um quiasmo,
ou seja, uma congruência reflexiva, em que os signos são os mesmos, mas a
sequência é invertida.36 Em todo caso, ambos fazem parte do mesmo recurso literário:
o paralelismo.37

1.4 Gênero Literário:

A nossa perícope está localizada dentro da tradição profética. Esta, possui


basicamente três ramificações: 1) profetas do templo e da corte (p. ex., Natã e Gade,
que estavam na corte com Davi); 2) profetas críticos – pré-literários, que se distanciam
da corte e do templo (Elias e Eliseu); 3) profetas radicais, da profecia literária, que

30 ANDERSEN; FREEDMAN, 1989, p.524.


31 ANDERSEN; FREEDMAN, 1989, p.524.
32 GUTIÉRREZ, 2002, p.84.
33 CARROL, 1992, p. 248.
34 GUTIÉRREZ, 2002, p.84.
35 SILVA, Cássio Murilo da; Metodologia de Exegese Bíblica. 3 ed. São Paulo: Paulinas, 2009. p. 305.
36 SILVA, 2009, p. 305.
37 SILVA, 2009, p. 303-310.
13

visam o fim do rei e do Estado (Amós, Isaías, Jeremias, etc.)38 Este último grupo,
chamado de profetas literários, podem ser divididos em três grupos, conforme seus
períodos históricos: 1) Os profetas do século VIII (760-700 a. C.): Amós; Oséias;
Isaías; Miquéias; Jonas. 2) Os profetas dos século VII e VI (640-587 a. C.): Sofonias;
Naum; jeremias; habacuque; Ezequiel. 3) Os profetas dos séculos VI e V (539-443 a.
C.): Ageu; Zacarias; Obadias; Daniel; Joel; Malaquias.39
A principal peculiaridade da literatura profética é o dito profético, ou o
oráculo.40 De fato, eles representam o principal fenômeno do nosso livro. No livro de
Amós estão reunidos vários ditos: pequenas unidades de sentido constiuídas de um
ou alguns poucos versículos que desginamos de perícope.41 Na verdade, segundo
Wolff, temos três tipos básicos de discursos em Amós: 1) a fórmula de mensageiro,
em que o comissionado de Javé fala em seu nome na primeira pessoa; 2) os discursos
de testemunho livre, que promove o contato com o ouvinte e introduz Javé na 3ª
pessoa – em casos particulares o discurso livre pode levar a uma fórmula de
mensageiro; 3) e os relatos de visões, em que não se pode dizer com certeza se é
retórico ou literário em sua origem.42 As fórmulas de mensageiro geralmente são
empregadas durante os discursos de juízo do profeta, e é justamente este gênero
literário que define nossa perícope.
Uma das formas literárias principais utilizadas por Amós são os discursos de
juízo: eles são quase que inteiramente poéticos e constituem a espinha dorsal do livro.
Normalmente são introduzidas por uma “fórmula de mensageiro” (Assim diz Javé) e
geralmente incluem uma acusação de pecado e um anúncio de punição; finalizam
com uma fórmula de conclusão (“disse Javé” ou “palavras de Jávé”).43 Cada elemento
do discurso de juízo desempenha uma função: 1) a fórmula de mensageiro confirma
que o oráculo é de Javé e que o profeta é divinamente comissionado; 2) a combinação
de acusação e anúncio comprova a justiça de Javé, que não ignora as iniquidades de

38 PETERLEVITZ, Luciano R.; Introdução ao profetismo. In: Revista Theos: Revista de Reflexão
Teológica da Faculdade Teológica Batista de Campinas. Campinas: 5ª Edição, V.4, n 1. ISSN: 1908-
0215. p. 7, 2008.
39 PETERLEVITZ, 2008, p. 7.
40 PETERLEVITZ, 2008, p. 7.
41 SCHWANTES, 1987, p. 87.
42 WOLFF, 1977. p. 91.
43 HUBBARD, David Allan. Joel e Amós: introdução e comentário. Trad. Márcio Loureiro. São Paulo:

Vida Nova, 1996. p. 116.


14

seu povo, mas também não os pune de modo arbitrário; 3) as fórmulas de conclusão
assinalam o final do discurso bem como sua origem divina.44
Aplicando tal estrutura à nossa perícope, de início não encontramos nenhuma
fórmula de mensageiro. No entanto, o sujeito da fala é javé, que discursa em primeira
pessoa. Desse modo, imediatamente a perícope traz a acusação e o anúncio de Javé,
que possui a seguinte estrutura: (21-23) avaliação de Javé do culto de Israel; (24) uma
conclusão chamando pelo direito e pela justiça.45 A fórmula de conclusão, porém, só
aparece no versículo 27. A razão disto, entrementes, tem a ver com o que já citamos
acima: o fato de que 21-27 constitui uma perícope final agrupada posteriormente. No
entanto, como assinala Wolff, apesar de que os versículos 25-26 ser adições da escola
deuteronomista, o v. 27 faz parte do dito original. 46 Por isso, Wolff sugere que 5.21-
24+27 – também 3.12; 5.4-5 – são ditos isolados que transmitem oráculos puros de
Javé. Não pode ser claramente determinado se um ou outro destes oráculos pode ter
sido introduzido somente através do trabalho redacional da escola de Amós. Sendo
assim, também deve-se contar com a possibilidade de que esta coleção pode ter sua
origem no próprio Amós.47
Se há certa dificuldade e algumas “brechas” permanecem abertas na
identificação do gênero, não se pode dizer o mesmo do Sitz im Lebem da perícope.
Evidentemente clara é a linguagem religiosa nela presente.48 Como já apontamos
acima, entre os versos 21-23 há várias palavras relacionadas ao culto hebreu. A
maioria dos termos importantes aponta exatamente para o gênero cultual,49 sendo
que a lista do que Deus odeia e despreza abarca a todas as atividades do culto. 50
Quanto ao v. 24 é preciso considerar que especialmente influentes são as formas
tradicionais derivadas da herança cultural de Amós, cuja proveniência devem-se
buscar naquela forma de sabedoria que foi cultivada dentro dos clãs. Muitas das
partes que são formadas por elementos individuais provêm do estoque dos provérbios
sapienciais que são incorporados nos oráculos proféticos.51 Ele é, portanto, uma
palavra de sabedoria já existente que é integrada ao dito profético.52

44 HUBBARD, 1996, p. 116-117.


45 MAYS, 1969, p. 6.
46 WOLFF, 1977, p. 112-113.
47 WOLFF, 1977, p. 107.
48 GUTIÉRREZ, 2002, p. 156.
49 WOLFF, 1977, p. 261.
50 ASURMENDI, p. 11.
51 WOLFF, 1977, p. 100.
52 GUTIÉRREZ, 2002, p. 156.
2 Lugar do Texto

2.1 Autoria

“As palavras de Amós...” (1.1) é a fórmula utilizada para dar início ao livro do
profeta que recebe seu nome. É claro que isto não significa que todo o livro de Amós
contenha simplesmente o relato “puro” do profeta sem nenhum tipo de intervenção
advinda de outras mãos. Neste sentido, tem sido pertinente os resultados das
pesquisas em atribuir tanto ao conjunto do livro em si quanto às sucessivas camadas
redacionais, a participação de escolas e comunidade, ou seja, construção coletiva.
Percebem-se grupos sociais na origem dos textos e conjuntos literários.53 Isto porque,
“antes de ser escrita, a profecia de Amós foi memória. Antes de ser memória, foi
fala.”54 E como tal, foi preservada por um grupo específico e seus ditos foram
agrupados, não de forma aleatória, mas intencional.55
Ainda assim, é evidente que quem fala é o profeta e por isso é fundamental
que se conheça o autor por trás de tais palavras. Deve-se ter em mente, porém, que
para a literatura profética, mais importante que o profeta são as palavras do profeta.
Por isso, mesmo no cabeçalho do livro (1.1) não são dadas muitas informações sobre
Amós, pois o que importa mesmo – no pensamento daqueles que preservaram os
ditos do profeta – é a mensagem, e não o mensageiro.56
Apesar das poucas informações fornecidas no texto bíblico sobre o profeta,
elas nos são extremamente úteis para a própria compreensão das palavras do profeta:
do lugar que fala e para que público fala. Cabe destacar de início, a importância que
carrega seu próprio nome: “o que leva uma carga”. Uma forma teofórica desse nome
é encontrada em 2Cr 17.16, que traduz-se por “o Senhor leva uma carga”.57 Sobre
este fato, Peterlevitz diz:

O sentido do nome talvez aluda à mensagem do livro, que, constituído-se


basicamente uma mensagem de juízo, defini-se como um fardo pesado a ser

53 SCHWANTES, 1987, p. 83.


54 SCHWANTES, 1987, p. 85.
55 GUTIÉRREZ, 2002, p. 12.
56 MAYS, 1969, p. 3.
57 ANDIÑACH, Pablo R. Introdução Hermenêutica ao Antigo Testamento. São Leopoldo: Sinodal;

Faculdades EST, 2015. p. 301.


16

transmitido ao povo de Israel. De fato, pregar uma mensagem de juízo divino


é um fardo, tanto para quem prega quanto para quem ouve. 58

Entrementes, o texto nos diz sua origem e época. Ele viveu na primeira
metade do século VIII a.C., durante os reinados de Jeroboão II em Israel e Uzias em
Judá, e era oriundo da cidade de Tecoa (1.1). Revela-nos também suas ocupações.
Era um pastor que cuidava de rebanhos (1.1), como também boieiro e cultivador de
sicômoros (7.14). É justamente a identificação de suas atividades a causa de
controvérsias entre diferentes exegetas sobre qual seria a real condição social do
profeta Amós. Ou seja, a partir de que grupo social Amós faz a sua denúncia?
Tradicionalmente, tem-se entendido que Amós teria vindo das classes sociais
mais baixas do antigo Israel. Afinal, ele era um simples pastor que cuidava de
rebanhos.59 Além disso, durante os quentes meses de verão, os pastores moviam
seus rebanhos para as elevações mais baixas, onde possivelmente Amós trabalhou
como cultivador de sicômoros em troca de direitos de pastoreio.60 Isto porque “os
sicômoros não crescem nas regiões altas de Tecoa, mas apenas nas baixadas do Mar
Morto e da planície litorânea”.61 Segundo Wright,

A atividade de Amós não era só o colhimento das frutas. Pois o hebraico


boles, da raiz bls, alude não somente ao coletar das frutas dos sicômoros,
mas, com maior probabilidade, indica um ato de escoriação, um arranhão nas
frutas com a unha ou com um pedacinho de metal, antes do amadurecimento,
visando a adocicar a fruta. Essa não era uma atividade para pessoas da
classe média. Era um trabalho penoso. Para quem morava em Técoa,
deslocamentos periódicos eram exigidos em direção à região dos
sicômoros.62

À primeira vista, Amós parece ser um homem de “status” humilde. Pastor e


trabalhador de pomares migrante, era contado entre as classes pobres e exploradas
da sociedade, um membro daquelas camadas mais baixas da sociedade, em nome
das quais falava. No entanto, desde a década de 1950, muitos estudiosos têm
argumentado exatamente o oposto: que Amós teria pertencido aos escalões
superiores da sociedade israelita. Ao designar de Amós como um “pastor”, o texto

58 PETERLEVITZ, Luciano R. Amós: o profeta, o contexto e o texto. In: Revista Theos: Revista de
Reflexão Teológica da Faculdade Teológica Batista de Campinas. Campinas: 7ª Ed, V.6, n 1. ISSN:
1980-0215. p. 3. 2011.
59 DILLARD, Raymond B; LONGMAN, Tremper III. An Introduction to the Old Testament. 2Ed.

Michigan: Zondervan, 2009. p. 423.


60 DILLARD; LONGMAN, 2009, p. 423.
61 KISRT, Nelson. Amós: textos selecionados. São Leopoldo: Comissão de Publicações da Faculdade

de Teologia da IECLB, 1981. V. 1, p. 16-15.


62 WRIGHT apud PETERLEVITZ, 2011, p. 4.
17

bíblico (1.1) não usa o termo comumente utilizado para essa profissão (rô‘eμh), mas
sim um termo diferente (nôqeμd). Um cognato para este termo em ugarítico sugere
que Amós pode ter sido um criador em grande escala ou um tipo de corretor de
rebanhos. Outros estudiosos apelam a um cognato acadiano (nâqidu), que designa
um funcionário gerencial de nível médio na equipe de um templo mesopotâmico, e
sugerem que Amós supervisionou ou administrou os rebanhos pertencentes ao templo
em Jerusalém. Muito embora a existência desses rebanhos seja clara para os templos
da Mesopotâmia, não há indicações clara na Bíblia de que o templo de Jerusalém
investiu seus recursos em gados e fazendas.63 Além disso, o termo (nôqeμd) só
aparece aqui e em 2Rs 3.4, designando o rei Mesa de Moabe. Isto faz com que muitos
autores tratem Amós como um homem rico, ou ao menos como um pequeno
proprietário.64
Para muitos estudiosos, pois, Amós não era um simples fazendeiro ou
camponês, mas sim um membro daquelas classes sociais mais ricas contra as quais
ele entregava suas acusações. A designação do profeta como cultivador de sicômoros
é então descartada à luz do fato de que Amós 7. 10-17 é amplamente considerado
uma inserção secundária no livro. 65 Dillard e Logman, porém, destaca que não está
claro se Amós estava entre os membros ricos da sociedade israelita. Os argumentos
a partir de cognatos ugaríticos e acadianos requerem um salto de cultura, tempo e
geografia e podem não refletir o uso do termo (nôqeμd) em hebraico. Amós fala de
si mesmo como “cuidando do rebanho” (7.15), ou seja, como um pastor e não como
um rico corretor de gado. Os argumentos filológicos que atribuem algum outro
significado à frase “cultivador de sicômoros”, para o autor não são convincentes, nem
simplesmente excitam 7. 10-17 uma abordagem metodologicamente satisfatória. Por
isso Dillard e Longman compreendem que a abordagem tradicional ainda tem muito a
recomendar.66
Enquanto Dillard e Longman não pretendem dar uma solução para o
problema, podemos encontrar em outros autores uma tentativa de definir o embate,
mas certamente não há consenso. Schwantes, por exemplo, baseado em Amós, diz:

63 DILLARD; LONGMAN, 2009, p. 424.


64 SICRE, Jose Luis. Introducción al Profetismo Bíblico. Estella: Verbo Divino, 2011. p. 188. Ver tbm.
PETERLEVITZ, 2011, p. 3-4.
65 DILLARD; LONGMAN, 2009, p. 424.
66 DILLARD; LONGMAN, 2009, p. 424-425.
18

“A literatura profética nasce como memória dos pobres, em especial dos


camponeses.”67 Encontramos ainda falas que endossam tal perspectiva:

Toda a sua crítica e desprezo pelas regalias e o luxo típico do ambiente


urbano vão nos fazendo levantar a suspeita de que Amós teria sido um
homem de um meio social simples, tipicamente rural, pelo seu estilo
escriturístico com imagens tiradas da vida pastoril que nos indicam isto (3.4;
5.12).68

Ainda nessa linha,

A multiplicidade e periodicidade de ocupações levam-nos à seguinte


conclusão: Amós não era um homem de posses; ganhava seu pão por meio
de diversas ocupações penosas e sazonais. O profeta integrava a população
empobrecida pelos projetos expansionistas de Jeroboão II, e de Uzias no
Sul.69

De modo oposto, encontramos declarações como de Von Rad, quem diz: “o


próprio Amós provavelmente também exercia uma profissão honrada e dispunha de
meios suficientes de subsistência”.70 Nesta mesma linha:

É claro que ele teve uma vida agrícola, mas de modo algum ele era um
homem simples e aculturado. Como “criador de gado”, provavelmente
significa que ele era chefe de outros pastores, um homem importante e
respeitado em sua comunidade. [...] embora fosse um homem do campo, de
Tecoa, sua mensagem é rica e elegante, o que nos adverte que ele não deve
ser tomado como uma pessoa simples e aculturada. Nenhum profeta o
supera na combinação de pureza, clareza e versatilidade que caracterizam
sua linguagem.71

Tendo exposto tais argumentos, não é nossa intenção aqui definir qual seria
a melhor linha argumentativa. Nem nos cabe, de igual modo, algum de tipo de
posicionamento já que, invariavelmente, ele será decido muito mais por pressupostos
e preferências pessoais – consciente ou inconscientemente – do que pelas provas
incontestáveis apresentadas no texto bíblico. Além disso, a nossa suspeita é a de que,
qualquer que seja a posição social do profeta, esta não afeta em nada o conteúdo da
sua mensagem – ao menos não tanto quanto se supõe. Esta preocupação é
inteiramente contemporânea e certamente ela tem sua importância. Mas para o

67 SCWANTES, 1987, p. 86.


68 SILVA, Maria José da. O direito é torcido à porta porque a justiça se encontra deitada por terra:
Um estudo sobre o direito e a justiça na profecia de Amós, a partir de Amós 5, 10-13, 2014. p. 68.
(Dissertação)
69 PETERLEVITZ, p. 5.
70 RAD, Gerhard von. Teologia do Antigo Testamento. Trad. Francisco Catão, vols. 1 e 2. 2.ed. São

Paulo: ASTE; Targumim, 2006. p. 561.


71 MAYS, 1969, p. 3-6. (tradução nossa) Wolff também é de opinião que Amós não era exatamente

pobre. Ver: WOLFF, 1977, p. 90.


19

profeta e para o público que o ouve não importa quem fala, mas em nome de quem
ַ֣ ַ
fala. Por isso sua profecia começa com ( ‫הָֹאמרֹי ְהֹו ָה‬‫“ ) ֹ ֹּ֚כ‬assim diz o Senhor”. E da
ַ֛ ַ ֹ) “diz o Senhor”. Desse modo, a grande crítica social
mesma forma termina ( ֹ‫ָאמרֹי ְה ָו֥ה‬
feita por Amós, e que não é nada mais que o clamor do próprio Deus, pode ser tanto
uma crítica interna – se o considerarmos como detentor de certos privilégios, ainda
que é improvável que Amós tenha sido rico, no máximo alguém com condições um
pouco melhores que a maioria da população – como também ser a representação e o
empoderamento através do Espírito para dar voz aos silenciados e oprimidos.
De uma coisa, porém, nós temos alguma certeza. Seja pelo comércio de
animais ou pelo cultivo de sicômoros, certamente essas atividades o obrigavam a
fazer frequentes viagens.72 Em seu livro, como aponta Sicre, encontramos um homem
informado sobre determinados acontecimentos nos países vizinhos, que conhece a
situação social, política e religiosa de Israel, e aparece também como um homem
inteligente.73 Bem lembra Kirst, “é de se supor que Amós tenha sido um homem mais
ou menos viajado, com um horizonte mais amplo do que a sua vizinhança mais
direta”.74
Assim podemos traçar algumas conclusões, a partir de Harper, mas também
tendo algumas ressalvas necessárias. Harper pontua que quatro itens precisam ser
considerados: 1) o profeta tem sua própria confirmação. Ele não era um profeta por
profissão, não era um membro da sociedade profética. E por não se caracterizar dessa
forma, seu propósito e espírito são diferentes dos deles. 2) Sua real ocupação era
como “cultivador de sicômoros”. Tinha um emprego humilde, era um do povo. Esta
evidência não indica se ele era realmente um pobre ou se gozava de certo bem-estar.
3) Ele era um pastor (nôqeμd). Mas, como a palavra denota, não um mero pastor,
talvez um produtor de lã. Como tal, ele naturalmente fazia viagens de vez em quando,
e conhecia homens que iam e vinham de todas as partes do mundo. 4) Enquanto sua
linguagem é rica em falas figurativas oriundas de diferentes facetas da vida, nada é
mais aparente que a influência exercida em seus enunciados da vida e ocupação que
ele seguiu. Isto pode ser visto em 2.13; 3.4-12; 5.11,17,19; 6.12; 7.1,4; 8.1; 9.8. Mas
a influência de sua vida rústica e ocupação humilde não se limitaram aos símbolos e
figuras que encontramos expresso nesse pensamento. O pensamento em si nasceu

72 WOLFF, 1977, p. 90.


73 SICRE, 2011, p. 188.
74 KIRST, 1981, p. 17.
20

neste mesmo ambiente. O afastamento do homem da companhia humana, e sua


consequente falta de simpatia humana, pode explicar, pelo menos em parte, o porquê
da ausência em sua mensagem, como em Elias, de qualquer coisa que cheire a
ternura ou amor. É na solidão da vida de pastor que se obtém certamente a
capacidade de concentrar a atenção mesmo nos mínimos detalhes. Além disso, é aqui
que mais facilmente é treinado em tão simples poder de apreciar fatos e causas que,
aplicados aos grandes fenômenos do espírito e da história, constitui a forma mais
elevada de vida intelectual.75

2.2 Datação

Algumas informações contidas no próprio livro permitem-nos indicar, com


certa precisão, o período de atuação do profeta Amós no Reino do Norte. Voltando
novamente ao capítulo 1.1, temos o seguinte: “nos dias de Uzias, rei de Judá, e nos
dias de Jeroboão, filho de Joás, rei de Israel, dois anos antes do terremoto”. Jeroboão
II reinou em Israel entre 786 e 746 a. C., portanto a atividade profética de Amós deu-
se na metade do oitavo século. Uzias, rei em Judá, morreu em 742. Mas por ter se
tornado leproso, seu filho Jotão tornou-se regente desde cerca de 750. Se os
compositores do título consideraram a assunção de Jotão à regência no final do
reinado de Uzias, era opinião deles, então, que Amós apareceu em Israel antes disso.
Por isso alguns autores indicam que talvez a atuação do profeta deu-se
aproximadamente em 752 a. C.76
Uma outra informação importante ainda pode ser considerada. O título
também especifica precisamente o ano em que Amós inicia seu ministério “dois anos
antes do terremoto”. O terremoto ocorreu por volta de 76077 o que nos permite sugeri
essa data para a atuação de Amós: a quarta década do oitavo século. 78 Temos aqui,
pois, o profeta literário mais antigo que o Antigo Testamento conhece.79
O ano exato de atuação do profeta é discutível, mas podemos afirmar com
tranquilidade que seu ministério realizou-se num curto espaço de tempo, certamente

75 HARPER, William Rainey. A Critical and Exegetical Commentary on Amos and Hosea. New York:
Charles Scribner’s Sons, 1905. p. CVI-CVII.
76 BRUEGGEMAN, 2012, p. 256.
77 “Segundo evidências do próprio texto, é possível afirmar com certa certeza que a atuação de Amós

deu-se por volta de 760 a. C.” KIRST, 1981, p. 11-12.


78 MAYS, 1969, p. 1-2.
79 KIRST, 1981, p. 16.
21

não mais que dois anos, talvez meses, ou ainda menos, em contraste com a longa
atuação de Oséias. Por isso muitos estudiosos concordam com uma data entre 760 e
750 a. C.80

2.3 Local

O texto bíblico também nos diz a cidade de origem do profeta: “Tecoa” (1.1).
Essa é a única Tecoa denominada no Antigo Testamento; fica dez quilômetros ao sul
de Belém e dezesseis ao sul de Jerusalém. Está localizada na região montanhosa de
Judá, numa altitude de aproximadamente 850 metros. A intenção dos compositores
do texto em mencionar Tecoa, mais que indicar sua cidade natal, pretende salientar
sua origem rural.81

Portanto, ao procurar descobrir as influências na vida de Amós, teremos a


certeza de estar pisando em terreno firme se guardarmos em mente suas
atividades agrícolas (1.1; 7.14). Estaremos em terreno incerto se
enfatizarmos o fato de que “ele morou em lugares elevados e viveu tendo
diante de si horizontes bem amplos”, como se o contexto geográfico em si
tivesse dado uma contribuição significativa para a concepção de Amós acerca
da majestade e da soberania de Javé.82

Interessantemente, sua atividade profética não se dá em Tecoa, nem ao


menos no reino do Sul.83 Não se sabe ao certo em quantos lugares pregou, mas sabe-
se que sua atuação se restringiu ao Reino do Norte84. No Norte, entregou sua
mensagem em pelo menos duas localidades: em Samaria (3.3–4.3; 6.1-7) e em Betel
(7.10-17).85 Com isso, o profeta fez-se presente nos dois centros de poder do Reino
de Israel: na capital, Samaria; e no principal centro cultual, Betel, de onde foi expulso. 86
Estando em Betel, muitas das suas mensagens têm como público o mais importante
centro religioso de Israel para o festival de outono (2.8; 3.14; 4.4; 5.5; 5.21-27).87 Em

80 HUBBARD, 1996, p. 102.; ANDIÑACH, 2015, p. 300.


81 HUBBARD, 1996, p. 103-104.
82 SMITH apud HUBBARD, 1996, p. 104.
83 Apesar de que, recentemente, algumas escolas de interpretação sugerem que havia uma cidade de

mesmo nome no Reino do Norte, os argumentos não são muito convincentes. DILLARD; LONGMAN,
2009, p. 425. Outros ainda dizem que ele realmente viveu em Israel, tendo ido a Judá e Tecoa somente
após ter sido expulso de Betel. HARPER, 1905, p. CI.
84 ANDIÑACH, 2015, p. 301.
85 KIRST, 1981, p. 18;
86 SCHWANTES, 1987, p. 31.
87 MAYS, 1969, p.4; WOLFF, 1977. p. 90.
22

Samaria, menciona-se as mulheres nas ruas (4.1-3), os funcionários do palácio (3.9-


11, 12, 6.1-3), os comerciantes no mercado (8,4-8).88

2.4 Destinatários

A partir dos diversos dados apresentados acima, localizamos a pregação de


Amós estabelecida no reino do Norte tendo como pano de fundo o grande sucesso
econômico que acompanhou os reinados de Jeroboão e Uzias. 89 A mensagem de
Amós está especificamente voltada a uma classe rica, poderosa e profícua que se
desenvolvera em Samaria. Era o abuso da riqueza, do poder e dos privilégios dos
ricos em Samaria que formaram o foco de tantas partes da pregação de Amós. 90
Digno de nota é que, em contraste com os historiadores cujo interesse quase
exclusivo está no papel de liderança dos reis como determinante do bem-estar
nacional, Amós não diz praticamente nada sobre os monarcas de seu tempo. É
verdade, Amós é acusado de pronunciamentos sediciosos contra Jeroboão (7.11), e
sabemos que Amazias não estava fazendo coisas justas. Mas todos os oráculos
preservados e presentes neste livro são concernentes à opressão e corrupção nos
comércios e tribunais.91

2.5 Época

Para maior aprofundamento deste passo metodológico tentaremos fazer uma


abordagem dos contextos político, econômico, social e religioso da época em que a
profecia de Amós está situada. Para isto, cabe um resgate histórico das décadas
antecedentes e um aprofundamento, na medida do possível, no quadro geral da
sociedade daquela época.

88 MAYS, 1969, p.4; WOLFF, 1977, p. 90. A referência em 4.4 e 5.5 talvez indique que o profeta também
esteve em Gilgal, não é impossível tal fato. No entanto, não passa de suposição. Ver: KIRST, 1981, p.
18; também WOLFF, 1977, p. 90.
89 DILLARD; LONGMAN, 2009, p. 423. Sobre o contexto político, econômico e social daquela época

ver o passo seguinte 2.5.


90 DILLARD; LONGMAN, 2009, p. 423.
91 ANDERSEN; FREEDMAN, 1989, p. 20
23

Ao final do século IX e inícios do século VIII o cenário político mundial não era
favorável a Israel. Durante este período, do qual não se sabe muita coisa, 92 Israel
estava muito fraco. Sofreu investidas de diversos inimigos e perdeu muitos
territórios.93 Os arameus de Damasco oprimiram a Israel durante o reinado de Jeú e
de seu filho Jeoacaz. Esta situação culminou no sítio de Samaria pelos assírios, a
quem Israel passou a pagar tributos, com o rei Joás, mas tendo como benefício a
liberação das pressões dos arameus, vindo a recuperar alguns territórios na
Transjordânia.94 O oitavo século, pois, marca uma grande reviravolta que levou o
Estado de Israel e de Judá a um contínuo crescimento econômico e à prosperidade
desconhecidas desde a época de Salomão. Podem ser mencionadas duas causas
para tal feito: aos hábeis governantes que regeram ambos os Estados nesse período,
mas principalmente pelos felizes acontecimentos mundiais dos quais Israel foi grande
beneficiado.95
Entrementes,

A Assíria, que vinha perdendo sua hegemonia, se enfraqueceu tanto por


dissensões internas quanto por ameaças, principalmente por parte do
poderoso reino de Urartu, que se expandindo para leste e oeste, agora
igualava, senão excedia, em tamanho a própria Assíria. Estendendo seus
interesses ao norte da Síria, Urartu ganhou aliados entre os pequenos
Estados da região. Por volta da metade do século oitavo, a Assíria já parecia
ameaçada de desintegração. Na Síria, entretanto, Damasco, embora um
tanto recuperada de sua opressão às mãos da Assíria, foi durante a maior
parte deste período vítima de uma amarga – e visivelmente mal-sucedida –
rivalidade com Hamat, não estando, portanto, em condições de dominar
Israel.96

Sob este panorama, Jeroboão II no Norte e Uzias no Sul, levaram os territórios


de Israel e Judá a uma grande expansão que abarcava quase toda a terra mantida
durante o império de Davi e Salomão. Como consequência dos seus sucessos
militares e de expansão territorial (2 Rs 14. 25-28; 15; 2 Cr 26. 6-8), os dois reinos
acumularam grande riqueza e prosperidade desconhecida desde Salomão.97 Os dois

92 “Esta escasez de documentos veterotestamentarios relativos a la situación intraisraelítica de esta


época hemos de lamentarla tanto más cuanto que ese siglo es precisamente el que precede a los
grandes «profetas escritores» Amós, Oseas, Isaías y Miqueas o incluso comprende el comienzo de su
actividad. Esto significa que las situaciones que esos profetas encontraron en Israel y Judá, que ellos
criticaron y que constituían propiamente el trasfondo de su mensaje, no se pueden seguir ni enjuiciar
diretamente a través de su desarrollo.” SIEGFRIED, Herrmann. Historia de Israel en la epoca del
Antiguo Testamento. 2ed. Salamanca: Sígueme, 1985, p. 285.
93 BRIGHT, John. História de Israel. São Paulo: Paulinas, 1978. p. 338-400.
94 ASURMENDI, 1989, p. 5; KIRST, 1981, p. 13-14.
95 BRIGHT, 1978, p. 341.
96 BRIGHT, 1978, 342.
97 DILLARD; LONGMAN, 2009, p. 423. BRIGHT, 1978, p. 345.
24

reinos (Israel e Judá) passaram a controlar novamente as rotas comerciais, da Fenícia


até a Arábia.98
Mas esse período de sucesso material e militar seria apenas um breve e
glorioso pôr-do-sol para os reinos israelitas: os assírios já estavam construindo seu
império no norte, e ambos os reinos logo cairiam sob seu domínio. A pregação de
Amós ocorre sob a ameaçadora sombra de uma invasão.99 A matéria contextual que
define esta literatura é a imponente realidade da hegemonia do império assírio que
ameaçava, por sua vez, o reino do norte de Israel e o reino do Sul de Judá.100
Enquanto isso, Israel e Judá mantinham o domínio de importantes rotas
comerciais, pois estava bem localizado quanto às rotas comerciais do antigo oriente 101
– para o sul e norte da Transjordânia; para o norte da Arábia, ao longo da planície
costeira e para o interior, vindo dos portos fenícios. Muito provavelmente, o comércio
do Mar Vermelho foi revitalizado, bem como houve um ressurgimento da indústria do
cobre em Arabá. Há a possibilidade de que também Tiro teria sido atraído pelas
negociações.102 Estes feitos comerciais resultou numa prosperidade tal qual não fora
vista a muito tempo.103
As descobertas arqueológicas demonstram que houve grandes progressos
nas indústrias têxteis e de tingimentos e aumentaram significativamente os recursos
agrícolas.104 Os edifícios eram esplêndidos e luxuosos. As construções e incrustações
de marfim de origem fenícia ou damascena, revelam que não era exagero de Amós
quando falava do luxo que vivia a classe alta de Israel, bem como em Judá. Em ambos
os países, a população alcançou o máximo crescimento no século oitavo. 105 Nesta
situação, o sentimento geral era de grande otimismo e confiança nas promessas de
Deus para o futuro.106

98 PETERLEVITZ, 2011, p. 6.
99 DILLARD; LONGMAN, 2009, p. 423.
100 BRUEGGEMANN, 2012, p. 242.
101 SCHWANTES, 1987, p. 13.
102 BRIGHT, 1978, p. 345.
103 BRIGHT, 1987, p. 345.
104 “Sua força econômica demonstrava-se pelos progressos na agricultura, com produtos de exportação

pelo cultivo e fabricação do azeite de olivais e dos famosos vinhos e pelo impressionante crescimento
populacional, em razão dessa expansão agrícola ligada a uma economia externa pelas exportações,
havendo, inclusive, um crescimento com projetos de construção de obras públicas, com um sistema de
reserva de água e conjunto de estábulos ligados ao aparato militar.” DREHER apud SILVA, 2009, p.
62.
105 SICRE, 2011, p. 189; BRIGHT, 1978, p. 345.
106 BRIGHT, 1978, p. 346.
25

Abissalmente contraposto a isso, este belo quadro contrastava com outro não
muito bonito, apresentado, sobretudo, nos livros de Amós e Oséias.107

Dos textos do livro de Amós depreende-se o quadro de uma sociedade


dividida em duas classes. Am 2,6-8 descreve uma série de “tipos sociais”,
que aparecem como vítimas de atores não diretamente nomeados. Estes
grupos aparecem novamente em 4,1; 5,10-12 e 8,4-6.108

Quais são as reais causas para a grande desigualdade presenciada neste


que foi um dos períodos de maior prosperidade de Israel? Para uma possível
resposta, precisamos de um breve resgate histórico da formação da monarquia e
da sociedade como um todo em Israel.
Quando a monarquia surgiu em Israel, as consequências imediatas – e esse
é um ponto importante – não se deram nas camadas inferiores, mas na bem situada
camada dos proprietários. Por isso, os membros nobres da sociedade rejeitam o
domínio monárquico, enquanto os periféricos o desejam.109 “A massa das famílias
camponesas autônomas pode esperar da monarquia pelo menos maior segurança
interna e externa, não tendo, portanto, motivos para a resistência.”110 Concomitante a
isso, mesmo com o estabelecimento da monarquia, elementos pré-estatais continuam
a existir. Famílias e clãs continuam a serem as unidades básicas da sociedade, ou
seja, permanecem autônomas e autossuficientes. Isso se mostra no fato de que o
Estado não intervém na economia, ao menos nas economias da população.111

Se tomarmos as informações sobre as atividades agrícolas junto com o


reinado, então talvez seja certo afirmar que no Israel e em Judá da época
monárquica havia relevantes posses reais que tinham a finalidade precípua
de abastecer tanto as fortalezas quanto a corte. No todo, contudo, não se tem
a impressão de que as posses do rei tenham interferido de modo fundamental
na vida econômica. Pois ao lado das posses do rei continuam a existir as
propriedades familiares. A posse do rei é organizada como “casa” (bayit),
tendo à frente o (‘asher) ‘al-habbayit. Este bayit real provavelmente era maior
do que a casa dos mais ricos da terra. Mas ao lado dele continuam a existir
as inúmeras “casas” das famílias israelitas e judaítas. A economia real
continua a ser a economia familiar, ou, dito de forma moderna, ela permanece
economia de repartição. Ela não se desenvolve para economia popular, de
forma a determinar a vida econômica de toda a terra. 112

107 BIGHT, 1978, p. 346.


108 KESSLER, Rainer. História Social do Antigo Israel. São Paulo: Paulinas, 2009. p. 140.
109 KESSLER, 2009, p. 97-98.
110 KESSLER, 2009, p. 99.
111 KESSLER, 2009, p. 100-101.
112 KESSLER, 2009, p. 115; p. 111-115.
26

A partir desta perspectiva, podem-se questionar alguns tipos de modelos


teóricos que tentam explicar o contexto social e econômico do Israel daquele século.
Osvald Loretz, por exemplo, introduz o conceito de capitalismo de rendimento.113 Na
América Latina, tendo em vista o momento histórico em que se desenvolveu esta
perspectiva, exegetas tenderam a enfatizar a importância do Estado e de seus
agentes nas denúncias dos profetas. Por isso, preferem classificar a economia o
antigo Israel como um sistema tributário.114 Segundo Schwantes, por exemplo, a
política expansionista de Jeroboão II e a dependência do comércio exterior, levaram
ao aumento do tributo que afetava principalmente as populações rurais que
constituíam a grande maioria da população. Estes tributos eram destinados à capital,
Samaria, para a automanutenção da classe-estado, para o financiamento da política
expansionista e a realização de projetos comerciais internacionais. 115 No entanto,
tanto o tributarismo quanto o modelo marxista por trás do conceito de “modo de
produção asiática” mostra-se estagnante, bem como o modelo de capitalismo de
rendimento. O próprio Marx não aplica esse modelo a Israel, pois pressupõe a
propriedade comunitária da terra por parte dos aldeãos, as quais devem recolher
tributos. Os “judeus”, nesse caso, assim como em Roma e na Grécia, tinham a
propriedade privada da terra como base da economia.116 Além disso, quase nada se
sabe sobre a administração de Jeroboão II, por isso não se pode dizer que encargos,
fiscais ou de outra espécie, o Estado impunha a seus cidadãos. O que se sabe é que

113 Este conceito colocava a renda básica tirada do proprietário no centro da construção teórica. O que
essa teoria não capta, segundo Kessler, é a dinâmica da sociedade de Israel e Judá, já que os textos
do AT mostram uma drástica mudança de uma sociedade relativamente igualitária para uma sociedade
marcada por relações de classes. KESSLER, 2009, p. 147.
114 O modo de produção tributário é designado por Marx de “modo de produção asiático”. Nesse

sistema, as instâncias políticas dispõem das propriedades reais para produção, regulado por uma
aplicação de tributos. É muito parecido ao modo de produção feudal, com a diferença de que neste
modelo a arrecadação do tributo apresenta-se como um direito, devido à apropriação dos meios de
produção pela instância do poder. HOUTART, François. Religião e Modos de Produção Pré-
Capitalistas. São Paulo: Paulinas, 1982. p. 18-21; 54-63.
115 SCHWANTES, 1987, p. 15-16. Schwantes acentua tais dados para que não se pense que os

impostos serviam apenas para sustentar a luxúria dos ricos – como algumas passagens em Amós
parecem deixar entender (3.12,14-15; 4.1; 5.11; 6.4-6) – o que muitas vezes foi interpretado desta
forma. “Dizia-se que o nosso profeta somente criticava a insaciável ganância dos ricos; restringia-se a
investir contra as pessoas luxurientas, não contra as estruturas de opressão que, a partir do Estado,
propiciavam ostentação”. Tal abordagem, segundo o autor, mostra-se insuficiente. SCHWANTES,
1987, p. 15-16. Sobre como funcionaria o modelo de produção tributarista: “Nesse modelo, os
camponeses possuíam os meios de produção (terra), mas entregavam obrigatoriamente significativas
parcelas da produção para o Estado. Na verdade, o Estado é a cidade-Estado, a organização que
coordena o projeto tributário. O Estado territorial nada mais é do que a coligação de várias cidades,
sendo estas constituídas (quase?) exclusivamente pela elite.” PETERLEVITZ, 2011, p. 7.
116 MARX apud KESSLER, 2009, p. 147.
27

a condição do cidadão humilde era desnecessariamente pesada, e que o Estado nada


ou pouco fazia para aliviar.117 Tendo este pano de fundo, Kippenberg descreveu Israel
como uma antiga sociedade de classes. Esta entende que no dinâmico processo de
transformação da sociedade tribal arcaica o “endividamento” recebe grande
importância. 118
A grande marca da sociedade israelita, conforme Amós, era a estridente
desigualdade entre os extremos de riqueza e pobreza. O pequeno lavrador era o mais
prejudicado. Diante de alguma calamidade ou seca e a consequente perda da colheita
ficavam sujeitos à execução da hipoteca e à evicção, isto quando não eram
submetidos ao trabalho escravo.119 O sistema, que em si já era perverso, conseguia
ficar ainda mais cruel por causa da ganância dos ricos que, sem nenhum pudor em
relação à situação de miserável dos pobres, para ampliar suas posses faziam uso de
práticas ilícitas como falsificar pesos e medidas e também vários subterfúgios legais
para alcançar tais fins (cf. Am 2.6ss; 5.11; 8.4-6). Estando o judiciário corrompido (Am
5.10-12), os pobres não tinham a quem recorrer: eram cada vez mais roubados e
desapropriados.120
É necessário enfatizar, entrementes, que o Estado não fica de maneira
alguma isento de participação no pecado social, a partir do modelo de antiga
sociedade de classe. A crítica social de Amós revela a estreita relação entre a elite e
a monarquia.121 Com a monarquia tudo foi mudado, já não havia mais uma
organização tribal sem distinções de classes. O Estado assumiu o controle e, com o
progresso do comércio, criou-se uma classe privilegiada que enfraqueceu os laços
tribais e sua solidariedade características.122 Na verdade, por si só, o estado já é um
fator que favorece o surgimento de uma sociedade de classes. Quando a monarquia
está consolidada, as antigas rivalidades com a elite tornam-se mútua cooperação. É
mais sábio para os poderosos aliar-se com o estado do que permanecer em oposição
a ele.123 Neste sentido, vale mencionar aqui o modo como o teólogo latino-americano
Haroldo Reimer trabalha com as duas teses, a princípio excludentes, como se ambas
fosse possível: as críticas do profeta Amós referem-se tanto ao âmbito das relações

117 BRIGHT, 1978, p. 347.


118 KESSLER, 2009, p. 147-148.
119 BRIGHT, 1978, p. 347.
120 BRIGHT, 1978, p. 347.
121 KESSLER, 2009, p. 127-128.
122 BRIGHT, 1978, p. 347-348.
123 KESSLER, 2009, p. 149
28

públicas com o Estado, quanto à esfera das relações sociais e econômicas entre
israelitas em particular.124
Dito estas coisas, é preciso considerar, no entanto, que Amós não faz uma
análise social e científica, mas uma marcante polêmica. Com isso, não se deve tomar
sua narrativa como espelho da realidade em Israel na metade do século VIII, ao
mesmo tempo em que não deve ser desqualificada como mera fantasia.125 Assim,
cabe-nos olhar para o profeta, levando em consideração o contexto da época, e
atentarmos para alguns detalhes que são de suma importância. Não apenas para o
que o texto diz, mas também para o que ele não diz.
Interessantemente, por exemplo, não se falam em Amós do órfão e da viúva,
– personagens presentes em toda a Bíblia como representantes das pessoas pobres
– mas sim de pequenos camponeses de quem sempre se tem algo a tirar, levando,
por fim, à escravidão por dívidas.126 Desse modo, podemos notar que Amós não fala
da pobreza em si, mas de um tipo específico de pobreza, ou melhor, de
empobrecimento. Exatamente neste ponto está a novidade de Amós em relação aos
profetas que o antecedem. Em Amós não há apenas a constatação da existência da
pobreza, mas elas são colocadas numa relação de causalidade: “Os ricos são ricos
por causa de sua exploração dos pobres; os pobres são pobres porque são explorados
pelos ricos”.127
Estas informações permitem-nos concluir, pois, que o grande causador do
empobrecimento em Israel no século VIII é o sistema de créditos. Ele não é novo,
existe desde a época pré-estatal; a novidade é a passagem do endividamento
“normal” para o endividamento sem retorno.128 Deve-se clarificar, como bem
demonstra a crítica profética, que esse desenvolvimento não foi aceito sem

124 REIMER, Haroldo. Agentes y mecanismos de opresión y explotación en Amós. In: RIBLA: Revista
de Interpretación Bíblica Latinoamericana. Bíblia: 500 Años ¿Conquista o inclusión? V. 12. Quito:
Conselho Latinoamericano de Iglesias, 1992. p. 71-72.
125 KESSLER, 2009, p. 141.
126 KESSLER, 2009, p. 141.
127 KESSLER, 2009, p. 141. A falta de menção ao órfão e à viúva é um forte argumento em favor do

modelo de antiga sociedade de classe, em detrimento do que se propõe a partir do tributarismo. Isto
porque, normalmente, os profetas recorrem ao rei que deveria ser o baluarte na defesa do órfão e da
viúva. Apesar das ligações com a elite, a monarquia não surge a partir dela, por isso o rei está
totalmente fora da contradição fundamental entre credores e devedores, logo então é eximido da crítica
de Amós. Outro fato importante é que aos reis era possível a intervenção social. Porém, mais influente
que qualquer intervenção monárquica, é a fixação por escrito do direito israelense. Esse processo tem
como pano de fundo a crise social da sociedade (Os 8.12; Is 10.1; Jr 8.8s). Ainda assim, a fixação do
direito por escrito não é pensável a partir do século VIII sem a monarquia. KESSLER, 2009, p. 151-
153.
128 KESSLER, 2009, p. 144-145.
29

resistências. É perfeitamente plausível que as pessoas atingidas pelo sobre-


endividamento não se resignavam a esse destino. Ainda assim, não existe nenhum
tipo de organização de resistência, nem os profetas eram líderes sociais-
revolucionários.129
Chegando ao fim deste passo exegético, cabe-nos agora tratar do papel da
religião em todo esse processo. Visto que a nossa perícope está inserida justamente
neste contexto, temos aqui algo de extrema importância. Neste sentido, há duas
perspectivas que podem ser trabalhadas, como está demonstrado abaixo.
Dentro da perspectiva de tributarismo, por exemplo, a religião pode
desempenhar um papel central na arrecadação de recursos. Segundo Schwantes,

[...] nas festas religiosas era entregue parte significativa do excedente


agrícola e nelas, simultaneamente, era criado um clima propício para a
produção cada vez maior de excedentes. A religião, suas festas e ritos,
incrementavam tanto a produção quanto a arrecadação tributária. Por isso é
plenamente compreensível que Amós, que experimenta esta prática desde
os camponeses, se oponha justamente à religião (Am 2.7; 4.4-5; 5.21-27; 8.1-
3; 9.1-4). Para ele, as idas ao templo ‘multiplicam as trangressões’, o que –
entre outras coisas – também significam que empobrecem e subjugam o
povo. Contudo, não parece que a classe-estado somente tenha recorrido à
religião para intensificar seu intuito de acúmulo.” 130

Sob outra perspectiva, Bright acentua a decadência religiosa que segue à


própria desintegração social. Apesar dos templos permanecerem cheios e ricos,
abraçava em seus seios cultos pagãos. Até mesmo a religião oficial do Estado tinha
absorvido ritos de origem pagã, dando ao culto, inclusive, a função pagã de aplacar a
divindade com rituais e sacrifícios para assegurar a paz do status quo.131 O espírito
geral era de otimismo. As benesses de Javé eram constantemente lembradas.
Conquanto eles cumprissem os rituais cultuais, a aliança de Javé para com eles
permaneceria intacta.132
De certo modo, é provável que a “prostituição” religiosa seja comum nesse
período. Aparentemente, em Israel, houve uma “caananização” do Culto a Javé. Um
exame dos óstracos de Samaria desse período fornece um número de nomes
compostos por Baal equivalente a quase metade dos nomes compostos por javé. A
religião prosperava no país, mas era totalmente dissociada da realidade. Os rituais

129 KESSLER, 2009, p. 149-150.


130 SCHWANTES, 2009, p. 16. Ver também: PETERLEVITZ, 2011, p. 7
131 BRIGHT, 1978, p. 348-349.
132 BRIGHT, 1978, p. 350.
30

eram bem elaborados, mas eram acompanhadas de prostituição cultual e orgias


oriundas dos cultos de fertilidade das nações à volta de Israel.133
Apesar disto, não encontramos em Amós algum tipo de crítica religiosa
baseada em idolatria – a não ser em textos deuteronomistas – ou associação do culto
a Javé com outras práticas pagãs. Do mesmo modo, como discutido acima, a tese do
tributarismo não parece refletir o que realmente ocorria, apesar de, é claro, os tributos
fazerem parte do sistema opressivo daquele período – há que se lembrar do reinado
de Salomão –, mas não é a principal causa do empobrecimento e nem faz parte da
crítica de Amós – não claramente pelo menos. Mas nem tudo são incertezas, uma
constatação é possível, as acusações de Amós seguem duas direções: vão contra o
desprezo pelo direito estabelecido por Deus e a falsa segurança religiosa. Parece,
portanto, que a religião demonstrava muito mais a hipocrisia dos israelitas que viviam
em contradição à vontade de Deus, mas tentando alcançar seu favor através de seus
rituais religiosos.

133
BRUCE, F. F. Comentário Bíblico NVI: Antigo e Novo Testamento. São Paulo, Vida, 2008. p. 1240-
1241.
3 Palavra – Coração do Texto

3.1 Análise Semântica

3.1.1 (‫ )ׂשנא‬/ Odiar

O verbo (‫ )ׂשנא‬que traduzimos por “odiar” aparece diversas vezes no Antigo


Testamento134. Em sua grande maioria, ela diz respeito tão somente a sentimentos
humanos, mas algumas vezes, como em nosso texto, ele faz referência ao próprio
Deus. Essa indicação do ódio como um sentimento divino está presente
exclusivamente em Deuteronômio (Dt 12.31; 16.22), na literatura poética (Sl 5.6;
11.15; 45.7; Pr 6.16) e na literatura profética (Is 1.14; 61.8; Jr 44.4; Os 9.15; Am 5.21;
6.8; Zc 8.17; Ml 1.3; 2.16). Em Deuteronômio o ódio de Javé está vinculado à questão
cúltica: Deus odeia a infidelidade de Israel (idolatria) e também o fazer imagens. Nos
escritos sapienciais, o ódio de Javé está mais estreitamente vinculado à moral: Deus
odeia os que praticam a maldade, a violência, a impiedade, a perversidade etc. Nos
escritos proféticos, encontramos nos profetas do séc. VIII o ódio de Javé voltado para
os cultos em Israel, tanto Amós quanto Isaías atentam para tal fato; em Isaías 1.14, o
motivo do ódio é a falta de justiça nas relações sociais, enquanto em Oséias é a
infidelidade do povo para com javé. Em Jeremias, que profetiza entre os séculos VII e
VI, o ódio de Javé também faz referência à infidelidade de Israel. Em Zacarias e
Malaquias, séculos VI e V, retorna o tema da moral, da violência. Em resumo,
podemos inferir, a partir das ocorrências do verbo “odiar” em relação a Deus, que o
ódio de Javé se dar por dois motivos: questões referentes à moralidade – violência,
mentira, maldade etc. – e aos cultos realizados em Israel, principalmente no contexto
de idolatria, mas também de injustiça social (Is 1.14).
Geralmente, no Antigo Testamento, ódio tem a ver com animosidade, má
vontade e aversão que os seres humanos têm por seus semelhantes. Expressa
também uma atitude emocional diante de pessoas e coisas que são combatidas,
desprezadas, e com as quais não se deseja ter relacionamento, é o oposto de amor.135

134 Cerca de 164 vezes. Cf. JENNI, Ernst; WESTERMANN, Claus. Diccionario Teologico Manual del
Antiguo Testamento. (Tomo II) Madrid: Cristiandad, 1985. p. 1050.
135 HARRIS, R. Laird; ARCHER, Gleason L. Jr.; WALTKE, Bruce K. (org.). Dicionário internacional

de teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova,1998. p. 1484.


32

Neste sentido, no âmbito semântico, abarca tanto o odiar “intensamente” como a mera
antipatia, ou preferência de algo em detrimento de outrem.136

3.1.2 (‫ )מאס‬/ Rejeitar

O verbo que vem logo em seguida é “rejeitar/repudiar/desprezar” (‫ – )מאס‬do


qual não nos ateremos estatisticamente. No Antigo Testamento, ele faz referência ao
desprezo que os seres humanos têm pela Lei do Senhor, sua Palavra, Aliança e
estatutos. Do mesmo modo eles são rejeitados por Deus e recebem seu desprezo. 137
De nosso interesse, são os textos em que Javé aparece como o sujeito da rejeição,
como em nossa perícope, que somam no Antigo Testamento 29 vezes, sendo 12
vezes em textos proféticos (Is 54.6; Jr 2.37; 6.19,30; 7.29; 14.19; 31.37; 33.24,26; Os
4.6; 9.17; Am 5.21). Nestes casos em que Deus é o sujeito da rejeição é mais
apropriado que se traduza por “rejeitar”, pois traz à evidência que o objeto da rejeição
de Javé, seja rei, povo, ou uma pessoa em particular, é um eleito de Javé. Deus não
rejeita aquele que antes tenha elegido. No entanto, quando falamos dos profetas pré-
exílicos, o tema da eleição é descartado, por isso eles podem falar tranquilamente de
rejeição. Em Amós, por exemplo, a eleição de Israel é um tanto problemática, pois a
rejeição por ele anunciada tem muito mais a ver com o desprezo e repúdio de Javé
por suas festas, do que pela ab-rogação da eleição.138 Tem por intenção, pois, dar
intensidade ao verbo “odiar”.

3.1.3 (‫ )חַ ג‬/ Festas

O substantivo (‫ )חַ ג‬que traduzimos por “festas” aparece muitíssimas vezes


durante o Antigo Testamento, sendo 62 vezes como substantivo e 18 vezes como
verbo.139 Primeiramente, aparece como simples Festa ao Senhor, ainda em território
egípcio (Ex 10.9; 12.14; 13.6; 32.5; tb. Lv 23.39; 23.41; Nm 25.12), passa a ganhar

136 JENNI; WESTERMANN, 1985, p. 1050-1051. Ver também VANGEMEREN, Willem A. (org.). Novo
Dicionário Internacional de Teologia e Exegese do Antigo Testamento. São Paulo: Cultura Cristã,
2011 (c). V 3, p. 1249-1250.
137 HARRIS; ARCHER; WALTKE, 1998, p. 804.
138 JENNI, Ernst; WESTERMANN, Claus. Diccionario Teologico Manual del Antiguo Testamento.

(Tomo I) Madrid: Cristiandad, 1978. p. 1220-1212.


139 VANGEMEREN, Willem A. (org.). Novo Dicionário Internacional de Teologia e Exegese do

Antigo Testamento. São Paulo: Cultura Cristã, 2011 (b). V 2, p. 20.


33

nomeações específicas, sendo três as principais: Festa dos Pães Ázimos, Festa das
Semanas e Festa dos Tabernáculos (Ex 23.15; 34.18; Lv 23.6; 23.34; Nm 28.17; Dt
16.10; 16.13; 16.16; 31.10; 1Rs 8.65; 2Cr 7.8,9,13; 30,21; 35.17; Es 3.4; 6.22; Ez
45.21; Zc 14.16,18,29).
O termo faz referência às três festas israelitas anuais: Festa dos
Tabernáculos, Festa dos Pães Ázimos/Páscoa e Festa das Semanas/Primícias, que
exigiam uma peregrinação ao templo.140 Nestas festas, todos os homens eram
obrigados a participar e lhes era proibido ir de mãos vazias, 141 mas deveriam ir com
sacrifício próprio para cada festa em particular.142 Curiosamente, as festas anuais
correspondiam, de inúmeras formas, ao ano agrícola: “a páscoa, com a colheita da
produção de cevada; a Festa das Semanas, com a primeira festa de trigos do verão;
e a Festa dos Tabernáculos, com a festa de outono, quando as famílias acampavam
em barracas, no final da colheita.”143 Em síntese, pode-se concluir que quando se fala
em “festas” no Antigo Testamento, em geral se fala das festas religiosas, feitas para
a adoração de Javé. Algumas delas, assim como a da nossa perícope, não identificam
claramente a que festa se refere, o que pode indicar a totalidade das celebrações,
tendo em vista a própria relação paralelística com (‫“ )עֲ צ ָָרה‬assembleias solenes”.

3.1.4 (‫ )עלָה‬/ Holocaustos - (‫ )מִ נְחָ ה‬/ Oferendas - (‫ )שֶׁ לֶׁם‬/ sacrifício de comunhão

A partir do versículo 22 temos uma série de sacrifícios mencionados. O


primeiro deles é (‫“ )עלָה‬holocaustos” que aparece cerca de 274 vezes no Antigo
Testamento tendo este sentido. Esta é seguida por (‫“ )מִ נְחָ ה‬oferendas”. Ainda temos
(‫ )שֶׁ לֶׁם‬que aparece como sacrifício de comunhão em 1Rs 9.25 – juntamente com
holocaustos – e sacrifício de louvor em Sl 50.14.
Os versículos 22 e 23 trazem uma série de atividades que justamente eram
realizadas nestas festividades. Em suma, louvores e sacrifícios. Seria interessante
uma análise mais inteirada de cada um dos termos, mas isto não é fundamental para
a interpretação da perícope de modo que traremos apenas algumas informações

140 VANGEMEREN, 2011 (b), p. 20.


141 “Não aparecerás diante de mim com as mãos vazias” Ex 23.15; 34.20.
142 BUCKLAND, A. R. Dicionário bíblico universal. 2. ed. Rio de Janeiro: Livros Evangélicos, 1957.

p. 306. VANGEMEREN, 2011 (b), p. 20.


143 VANGEMEREN, 2011 (b), p. 20.
34

pontuais e relevantes. Três tipos de sacrifícios são mencionados no versículo 22 144:


(‫“ )עלָה‬holocaustos”145, (‫“ )מִ נְחָ ה‬oferendas”146 e (‫“ )שֶׁ לֶׁם‬sacrifício de comunhão”.147 Na
Lei, estes sacrifícios são apresentados como um conjunto. Os holocaustos, ou ofertas
queimadas, tinham o propósito de doação: homenagem ou ações de graças, ou então
expiar o pecado.148 As oferendas, ou ofertas de manjares, também tinham o sentido
de doação, mas que denota um presente dado a fim de obter ou reter boa vontade. 149
Os sacrifícios de comunhão, ou ofertas pacíficas, tinham caráter expiatório, mas
também de ações de graças ou de votos.150 Em comum – e isto nos interessa
muitíssimo – é o fato de que essas ofertas, apesar de seu caráter expiatório, são
ofertas voluntárias; diferentes das ofertas obrigatórias pela culpa (‫ )אָ שֵ ם‬e pelo pecado
(‫)חַ טָ את‬. No sacrifício (‫ )אָ שֵ ם‬lembra-se dos pecados contra o próximo; no sacrifício
(‫ )חַ טָ את‬lembra-se os pecados contra Deus.151 Curiosamente, Amós não os menciona
em sua lista.

3.1.5 (‫ )נֵבֶׁל‬/ Harpa

O substantivo (‫ )נֵבֶׁל‬que traduzimos por harpa, também pode ser traduzido por
instrumentos de corda. No Antigo Testamento, das diversas vezes em que ele
aparece, normalmente traduz-se por harpas (1 Sm 10.5; 2Sm 6.5; 10.12; 1Cr 13.8;
15.16,28; 16.5; 25.1,6; 2Cr 5.12; 9.12; 20.28; 29.25; Ne 12.27; Sl 33.2; Sl 57.8; Sl
71.22; 81.2; 92.4; 108.3; 144.9; 150.3; Is 5.12), às vezes por violas/alaúdes/liras (1Cr
15.20; Is 14.11; Am 6.5). Em Am 5.23, por exemplo, é traduzido de diversas formas:
violas, liras, instrumentos, harpas. Apesar da prevalência da tradução por “harpas”, é

144 Sobre os sacrifícios na religião judaica, os diferentes termos e funções, suas origens e
desenvolvimentos, ritos e regulamentos, tipos e significados, cf. DOUGLAS, J. D. Novo Dicionário da
Bíblia. 3 ed. São Paulo: Vida Nova, 2006. p. 1192-1201.
145 Ele aparece juntamente com o verbo (‫“ )עלה‬subir”, pois sua fumaça sobe ou ascende até Deus.

Apesar de não constituir o grupo de sacrifícios pelo pecado, ele possuía certo caráter expiatório.
HARRIS; ARCHER; WALTKE, 1998, p. 1116-1118. Ver Também. VANGEMEREN, 2011(c), p. 405-
414.
146 A ideia básica do termo parece designar um presente. No caso, oferendas ao Senhor, geralmente

ofertas de cereais. VANGEMEREN, 2011 (b), p. 977-987.


147 O objetivo básico desse sacrifício era a expiação, ele indica um tipo de compensação pelo dano

causado. O rito desse sacrifício sugere uma reconciliação entre as partes envolvidas. VANGEMEREN,
Willem A. (org.). Novo Dicionário Internacional de Teologia e Exegese do Antigo Testamento. São
Paulo: Cultura Cristã, 2011 (d). V 4, p. 134.
148 HARRIS; ARCHER; WALTKE, 1998, p. 1117.
149 DOUGLAS, 2006, p. 1198.
150 DOUGLAS, 2006, p. 1198-1199.
151 DOUGLAS, 2006, p. 1199.
35

mais evidente que a crítica do profeta não tem em vista um instrumento em si, mas
todo o rito cúltico, consequentemente tudo que envolva música.

3.1.6 (‫ )גלל‬/ Rolar

O versículo 24 inicia com o verbo (‫ – )גלל‬traduzimos por “será enrolado”. Este


aparece 16 vezes no Antigo Testamento, tendo algumas nuances diferentes. Em Gn
29.10, ele aparece no ato de remover a pedra: rolar. Aparece também com sentidos
metafóricos: retribuição, confiança (Is. 34.4; Sl 37.5 etc.).

3.1.7 (‫ )מִ שְ ָ ָּ֑פטֹּוצְדָ ָ ָ֖קה‬/ Direito e Justiça

Ainda neste versículo temos uma dupla de palavras importantes e que


aparecem uma ao lado da outra 24 vezes no Antigo Testamento: (‫“ )מִ שְ ָ ָּ֑פטֹּוצְדָ ָ ָ֖קה‬direito
e justiça”. Primeiramente, fazem referência ao reinado de Davi, que reinou com justiça
e retidão, segundo os escritores bíblicos (2Sm 8.15; 1Cr 18.14), e ao reinado de seu
filho Salomão (1Rs 10.9; 2 Cr 9.8). Em Salmo 94.4 Deus é um rei justo que age com
equidade. Em Isaías 32.16 aparece o tema da restauração de Israel que se dará a
partir de um rei justo; em 33.5 é o próprio Senhor quem trará justiça sobre Sião,
resultando em salvação abundante; já em Is 59.14 é denunciada a torsão que tem
sido feita do direito e da justiça. Em Jeremias Deus é autor da justiça (9.24); o Senhor
conclama o povo a execer justiça para com o estrangeiro, o órfão e a viúva (22.3); o
reinado de Josias é lembrado como reino de justiça (22.15); e, por fim, a promessa de
um novo rei da linhagem de Davi que reinará como seu antecessor (23.5; 33.15). É
no livro do profeta Ezequiel que essa expressão aparece mais vezes; lá ela remete
muito mais à questão moral, refere-se à guarda dos estatutos (Ez 18.5,19, 21), ao
arrependimento e conversão por parte do ímpio (Ez 18.27; 33. 14,16,19). Por último,
a expressão aparece também em Am 5.7, em que o profeta – como em Is 59.14 –
denuncia a torsão do direito e da justiça, que prejudica principalmente o pobre.
No último versículo de nossa perícope, temos uma expressão marcante e que
é fundamental para a interpretação do texto (‫“ )מִ שְ ָ ָּ֑פט ֹּוצְדָ ָ ָ֖קה‬direito e justiça”. No
parágrafo acima identificamos os momentos em que elas aparecem juntas no Antigo
Testamento e os sentidos que são expressos. Aqui, faremos uma análise individual
36

dos conceitos. A primeira delas (‫ )מִ שְ ָ ָּ֑פט‬ocorre 425x no Antigo Testamento: 84x no
Pentateuco, 74x nos livros históricos, 47x nos livros sapiências e 144x nos livros
proféticos, sendo 27x nos profetas menores. Apesar da variedade de sentidos, tem
claramente conotações jurídicas. Seu uso mais comum ocorre na literatura profética,
diz respeito a uma quebra da justiça sofrida pelos israelitas nas mãos de seus líderes
corruptos, que trará o julgamento do Senhor contra o seu povo. 152 Já o conceito (‫)צְדָ ָ ָ֖קה‬
“justiça” denota o sentido de “retidão”,153 diferente do sentido moderno de “equidade
legal”. Quando se diz fazer justiça, p. ex. significa “declarar alguém reto” (cf. 2Sm 15.4;
Sl 82.3).154 Ela descreve, pois, três aspectos de relacionamentos pessoais: ético,
forense e teocrático.155 Nesse sentido, é possível perceber o alcance de significados
dessa expressão; de modo geral, indica uma conduta em relação a algum padrão de
comportamento aceito na comunidade, que também demanda o julgamento desse
comportamento; mesmo no contexto legal de comportamento forense, indica a
natureza auto-evidente do padrão assumido.156 Pela raiz, encontra-se no Antigo
Testamento cerca de 523x, sendo 157x como substantivo feminino. 157 Entre os
profetas, estatisticamente, os termos derivados da raiz (‫ק‬
ָֹ֖ ‫ )צד‬são menos frequentes
nesses livros do que se supõe.158

3.2 Recepção

Este passo exegético é importante para denotarmos como a nossa perícope


vem sendo interpretada ao longo do tempo. Neste momento, analisaremos quatro
diferentes perspectivas, considerado o tempo e a confissão denominacional. Neste
sentido, buscaremos ver a compreensão de Calvino, um dos grandes nomes da
reforma e excelente exegeta, bem como interpretações mais contemporâneas de
Nelson Kilpp (1982), Euler Westphal (2011) e os comentários da Bíblia de Estudo
Pentecostal.

152 VANGEMEREN, 2011 (b), p. 1140-1142.


153 Para um panorama das discussões e diversos posicionamentos acerca do conceito de (‫ )צְדָ ָ ָ֖קה‬ver.
JENNI; WESTERMANN 1985, p. 645-653.
154 Para ver os estágios de desenvolvimento do conceito: sentido físico, abstrato, perfeição, padrão

moral, punitiva, vindicação, redentivo, justificação, bondade, ver DOUGLAS, 2006, p. 743-745.
155 Para mais detalhes, ver HARRIS; ARCHER; WALTKE, 1998, p. 11261-1265.
156 VANGEMEREN, 2011 (c), p. 743-747.
157 JENNI; WESTERMANN, 1985, p. 644.
158 VANGEMEREN, 2011 (c), p. 759.
37

Na perspectiva de Calvino, o ódio e o repugno de Deus contra os cultos


israelitas dava-se por causa de suas impurezas e seus sacrifícios profanos. O profeta,
pois, acusava os israelitas de sua apostasia, porque se afastaram do ensino da lei,
erigindo para si um templo espúrio. Seu culto era condenado pois não era correto
oferecer sacrifícios que não no monte Sião. Deus, então, rejeitou todos os rituais por
meio dos quais os israelitas achavam que fossem apaziguá-lo. Calvino divide essa
perícope em duas partes: 21-23; 24. Contrariando algumas opiniões correntes em seu
tempo, Calvino não interpreta o versículo 24 como um juízo e punição de Deus sobre
Israel. Na verdade, diante da pergunta dos hipócritas: “Quê! Então nós perdemos toda
a nossa labuta, embora se empenhando em adorar a Deus?” Ao passo que o profeta
responde que se eles apenas produzissem justiça verdadeira, o curso deles ficaria
livre. É como se dissesse: “Somente cultuai a Deus em sinceridade e ele não vos
decepcionará; porque um galardão será guardado para vós; vossa justiça correrá para
baixo como um rio”.159
Nelson Kilpp, após tradução do texto e breve análise do contexto histórico
situa a crítica de Amós nesta perícope à acachapante injustiça social que imperava
no Reino do Norte. A sua crítica ao culto, pois, é parte de sua crítica social, jurídica e
política. Kilpp atenta, então, para a alarmante atualidade dos textos e da necessidade
de ser trabalhado em comunidade.160
Euler Westphal inicia sua abordagem trazendo algumas informações sobre o
profeta, inclusive a de que Amós seria um homem de posses. Acentua que a
mensagem de Amós fala contra a perversão do culto. A crítica não é contra o culto em
si, mas contra a grande dicotomia vivida em Israel: enquanto de um lado a
religiosidade é muito bem elaborada e formalmente correta, de outro lado vê-se uma
injustiça gritante, da qual os pobres são os grandes prejudicados. Em Amós, pois, a
culpa é medida no relacionamento com o próximo.161
No comentário a esta perícope na Bíblia de Estudo Pentecostal faz-se uma
rápida atualização do texto e o ódio de Javé aos ritos eclesiásticos é justificado pela
hipocrisia dos cristãos que, embora crentes, buscam os prazeres do mundo. Na

159 CALVINO, João. Os comentários de João Calvino sobre o profeta Amós. São Paulo:
Monergismo, 2009, p. 91-95.
160 Disponível em <http://www.luteranos.com.br/conteudo/amos-5-21-24>. Acesso em 25 de outubro de

2016.
161 Disponível em <http://www.luteranos.com.br/textos/amos-5-18-24>. Acesso em 25 de outubro de

2016.
38

verdade, o que Deus deseja é a adoração e o louvor somente dos que procuram viver
uma vida piedosa. A hipocrisia religiosa é abominação diante de Deus e trará
condenação especial aos que a praticam.162
Um outro fato merece ser mencionado. Apesar de não ser um uso exegético
e/ou homilético deste texto, é bastante interessante. Três vezes, Amós utiliza a frase
definidora "justiça e retidão" como a principal preocupação profética (Amós 5: 7, 24;
6:12, ver Gênesis 18:19). No segundo desses usos, o profeta profere o que se tornou
a convocação decisiva de toda fé profética: um uso característico desta frase é feito
por Martin Luther King Jr., uma cadência familiar de sua retórica mais tarde utilizada
em seu memorial em Montgomery. Este fraseamento de Amós tornou-se o ímpeto
para a fé profética e o terreno para a crítica profética de sistemas sociais que ignoram
e violam este comando mais elementar de Javé.163

3.4 Análise Teológica

Ao analisar o conteúdo propriamente dito de nossa perícope, identificamos


que esta não é a única passagem em que Amós investe contra a prática cultual; isto
também ocorre em 4.4-5 e 5.5-6. Entretanto, enquanto que em 4.4-5 as atividades do
santuário são sarcasticamente ridicularizadas e em 5.4-6 alerta à nação para não
buscar a Javé nos santuários tendo em vista sua iminente destruição, estes versículos
retratam vividamente a completa rejeição da divindade de todos os aspectos da
observância religiosa de Israel.164
Para facilitar a análise teológica da perícope, recorreremos à divisão de
capítulos do próprio texto. Assim sendo, diferente da análise das palavras, como feito
na análise semântica, atentaremos para o contexto das expressões e seu real
significado.
O versículo 21 traz a seguinte expressão: “Odiei, rejeitei vossas festas e não
aspirarei vossas assembleias solenes”. É importante observar que, especialmente
quando os verbos expressam um estado mental ou espiritual, o perfeito tem qualidade

162 Bíblia de Estudo Pentecostal. Almeida Revista e Corrigida. Rio de Janeiro: CPAD, 1995. p. 1304.
163 BRUEGGEMANN, 2012, p. 260.
164 CARROL, 1992, p. 245.
39

de um estado presente.165 Ou seja, o ódio e a rejeição de Javé das festividades


israelitas não são passados, mas demonstram uma ação contínua em que seria
melhor traduzido por “odeio, rejeito”. Além disso, em nenhum lugar encontram-se
imediatamente justapostas as declarações mais duras “odeio, rejeito”.166 O objeto do
ódio de javé são as festividades cultuais do povo de Israel. Como demonstramos na
análise semântica, apesar do termo “festas” normalmente designar as três principais
festas, aqui elas fazem referência a qualquer tipo de atividade cúltica, inclui todos os
tipos de festa realizados em Israel. Isto é demostrado também pelo uso de
“assembleias solenes”.
Estas (‫ )עֲ צ ָָרה‬podem-se referir a diferentes tipos de assembleias: ajuntamento
piedoso acompanhado de jejuns e súplicas (J11.14; 2.15), uma festividade geral entre
muitas outras (ls 1.13) e uma festa idólatra em honra de Baal (2Rs 10.20). É possível
que esses termos se referissem originalmente à última fase de uma festa ou
assembleia, não necessariamente religiosas.167 Não se deve levar em conta o “solene”
como se fosse algum tipo de reunião formal; ao contrário, as festas em Israel eram
cheias de barulho. Portanto, “assembleia solene” tem mais a ver com feriados oriundo
dos festivais do que com algum tipo de solenidade.168 Ligado às assembleias aparece
o verbo aspirar/cheirar (‫)רוח‬, referindo-se aos sacrifícios nela realizadas. O termo
significa literalmente “cheirar”. A fumaça que subia dos sacrifícios chegava às narinas
de Javé, como cheiro agradável ou desagradável169. Nesse caso, Javé revela o odor
fétido das celebrações israelitas. Em outras palavras, o que se quer dizer é que Javé
não se agrada do que tem sido praticado nas festividades de Israel. O motivo para tal
aversão de Javé não é explicitado. No entanto, isto não é qualquer coisa. O que se
está a dizer é que tudo o que é lembrado em tais festividades pelos israelitas: os
eventos salvífico de Deus, as promessas dispensadas sobre os patriarcas, a eleição
de Israel como povo de Deus; tudo isso é agora desprezado por Javé.170
No versículo 22 a lista do que é rejeitado por Javé é ampliada, e agora faz
referência justamente ao que se faz durante as festividades: “Pois, se fizerdes subir

165 WOLFF, 1977, p. 258-259.


166 WOLFF, 1977. p. 259.
167 VANGEMEREN, 2011 (c), p. 501.
168 HARPER, 1905, p. 134.
169 Andersen e Freedman, a partir disso, sugerem que (‫“ )עלָה‬holocausto” que aparece em 22a está

diretamente ligado a 21b, ao invés do restante do v. 22, como também faz alusão ao v.25. ANDERSEN;
FREEDMAN, 1989, p. 527.
170 KIRST, 1981, p. 164-165.
40

até mim holocaustos e vossas oferendas não aceitarei; e sacrifício de comunhão de


vossos gados não olharei”. O versículo começa com uma expressão condicional (‫)כִי‬
“pois”, indicando que ainda que o povo pense que Javé deseja mais sacrifício para
que aplaque a sua ira, estão redondamente enganados.171 Como discutimos em 1.3,
muitos exegetas o consideram uma adição posterior a parte final desse verso se
perdeu. Entretanto, concordamos com Paul quando diz que não há razão para rejeitar
as primeiras cinco palavras deste verso ou para assumi que uma parte se perdeu ao
final de 22a.172 Ainda assim, discordamos de Paul que, por aceitar (‫ )עלָה‬como

fazendo parte do dito original, entende que (‫ )מִ נְחָ ה‬fala especificamente de “ofertas
de cereais”.173
Na verdade, o termo (‫ )מִ נְחָ ה‬é usado como coletivo para representar todo tipo
de sacrifício. Desse modo, é a todos os sacrifícios a que Javé se refere quando diz
“eu não os aceitarei”.174 Não há razões para que Amós queira identificar
exclusivamente um tipo de sacrifício, deixando a entender que a crítica do profeta está
voltada para determinados aspectos do culto ou determinados sacrifícios. Assim como
estamos convencidos de que o v. 21 fala de todas as festividades, o v. 22 também
fala de todos os tipos de sacrifícios realizados nos cultos israelitas. Interessante,
porém, é o verbo que aparece após “oferendas”: ( ‫“ )ֹאֶׁ ְר ֶׁ ָּ֑צה‬aceitar”. Em contraste com
termos como “cheirar” (21b), “olhar” (22b) e “ouvir” (23b), o verbo “aceitar” é mais
frequentemente empregado como expressão oficial para designar a aceitação do
sacrifício. Quando um sacrifício não correspondia às prescrições do ritual, o sacerdote
falava em nome de Javé: “ele não será aceito” (Lv 19.7).175 É como se o profeta
estivesse a falar durante alguma celebração e, um momento antes do sacerdote
proferir as palavras de aceitação, Amós o interrompe proferindo a mensagem de Javé
de não aceitação de seus sacrifícios. Porém, em contraste ao rito comum, as palavras
de não aceitação do profeta, não tem a ver com o não seguimento dos rituais ou
alguma falha na liturgia. A rejeição de Javé é tão imperativa que mesmo os sacrifícios
de comunhão (‫ )שֶׁ לֶׁם‬são insuficientes para reatar a relação entre Javé e Israel.

171 SMITH, 2008, p. 270.


172 PAUL, 1991, p. 190. Ver também. CARROL, 1992, p. 247.
173 PAUL, 1991, p. 190.
174 WOLFF, 1977, p. 263; MAYS, 1969, p. 107; KIRST, 1981, p. 167.
175 WOLFF, 1977, p. 263.
41

É justamente aqui que aparece um fato não observado por muitos exegetas.
Quando Amós fala dos sacrifícios de comunhão, ele menciona que tipo de animais
são oferecidos nestes sacrifícios. O termo usado é (‫ )מְ ִריא‬que traduzimos
simplesmente por gados. Mas não se fala aqui de qualquer tipo de gado, mas de
animais cevados; ou seja, animais gordos. Este elemento é fundamental para a
compressão da profecia de Amós contra os cultos em Israel. Neste momento, como
em outras passagens, Amós tece uma crítica aos ricos de seu país, que esbanjam
sua fartura, sem se importar com os necessitados da terra.176
Até aqui, a crítica profética dirigiu-se às festas (21) e aos sacrifícios (22).
Agora, no v. 23, é o momento de outro elemento fundamental numa celebração: os
cânticos. “Afasta de diante de mim o ruído dos teus cânticos e música de tuas harpas
não ouvirei”. Apesar de que os substantivos no singular contrastam com os dos vv.
21-22 que estão no plural, não há necessidade de adequação como propõe a BHS.177
Os cânticos são descritos como (‫)הָ מֹון‬, isto é., barulho. No AT é empregado
em relação ao barulho das ondas do mar ou dos soldados no acampamento.178 Para
Javé, os cânticos entoados nas celebrações israelitas são como um amontoado de
ruídos dos quais nada se pode ouvir nem deleitar-se neles. Desse modo, os itens
listados de 21 a 23, formam um conjunto de setes coisas rejeitadas por javé nos cultos
de Israel. Um conjunto de negação representando um repúdio completo e
abrangente.179
Ainda assim, a negação apresentada nesses versículos não indica total
rejeição por parte de javé. Amós se utiliza aqui de um recurso chamado “negação
dialética”, no qual determinado aspecto – aqui, adoração – é fortemente negado a fim
de dar ênfase a outro; nesse caso, à justiça. Javé rejeita os sacrifícios de Israel porque
eles são oferecidos em substituição ao cumprimento dos mandamentos do pacto.180
Em fechamento a esta perícope e à indicação de rejeição de Javé o v. 24 traz:
“E será enrolado como as águas o direito; e a justiça como uma corrente constante”.
Em termos puramente quantitativos o v 24 é o meio da unidade (5.7-6.14) definido
pelas palavras "direito" e "justiça".181 Apesar de iniciar com um vav, que normalmente

176 Ver. KIRST, 1981, p. 168.


177 ANDERSEN; FREEDMAN, 1989, p. 528. Cf a análise do aparato crítico no apêndice ?
178 KIRST, 1981, p. 169.
179 PAUL, 1991, p. 192.
180 BROWN, Raymond; FITZMYER, Joseph; MURPHY, Roland. Novo Comentário Bíblico São

jerônimo: Antigo Testamento. São Paulo: Academia Cristã; Paulus, 2007. 446.
181 ANDERSEN; FREEDMN, 1989, p. 528.
42

indica continuação – como fizemos na tradução provisória – o vav de ( ‫ ) ֹוְי ִגַ ֥ל‬é
copulativo e deve ser entendido no sentido adverso de 21-23: “em vez disso” ou
“antes”.182
Desse modo, a forma jussiva do verbo (‫ )גלל‬é anexado ao verso precedente
por meio de um vav-copulativo. Muitas vezes o v. 24 foi considerado como o início da
ameaça de julgamento, mas esse elemento deveria ter sido introduzido por meio de
uma forma consecutiva perfeita. Também, se o v. 24 começasse a ameaça de
julgamento, então "direito" e "justiça" teriam de ser interpretados como referindo-se a
atos de Javé, o que nunca é o caso com estas palavras em outros lugares em Amós.
Se a interpretação jussiva da sentença puder ser assegurada, então a estrutura
adversativa usada por Amós em 23-24 recorda a justaposição sapiencial do sacrifício
e da oração com "direito e justiça".183 Além disso, o jussivo (‫)גלל‬, segundo Kirst,
expressa desejo, sendo melhor traduzido por: que role.184
Mays assegura também que, a interpretação do v. 24 como um anúncio de
juízo ao invés de instrução: o juízo de Javé e sua justa punição rolará sobre Israel
como um forte rio – não se mostra consistente. Amós usa consistentemente direito e
justiça como termos para as igualdades que deveriam estar presentes na ordem social
(6.12; 5.7.15), e este movimento de rejeição do sacrifício para um chamado a um tipo
de vida nestes termos ou em similares é encontrado em Is 1.10-17; Mq 6.6-8; Os 6.6.
Em Amós (‫ )מִ שְ ָ ָּ֑פט‬está especificamente associado com o tribunal nos portões e
significa o processo judicial e sua decisão pela qual a ordem correta é mantida nas
relações sociais, e especialmente a proteção dos fracos e pobres através da ajuda do
tribunal. (‫ )צְדָ ָ ָ֖קה‬é a justiça que pertence àqueles que cumprem as responsabilidades
que suas relações com os outros envolvem.185
A crítica de Amós, nesse caso, não está relacionada aos cultos em si, mas à
hipocrisia dos que celebram tais cultos. Enquanto muitos deles ignoram os
mandamentos de Javé, distorcendo o direito e a justiça, causando empobrecimento
em larga escala a camponeses e pequenos comerciantes, ainda assim, sem nenhum
pudor, acham que a simples celebração e o oferecer de alguns sacrifícios podem
deixá-los tranquilos perante Javé. Javé está naturalmente incluído na dimensão

182 KIRST, 1981, p. 170. Muito embora a gramática hebraica não conheça nenhum outro caso de uso
adversativo do imperfeito copulativo. JENNI; WESTERMANN, 1978, p. 661.
183 WOLFF,1977, p. 264.
184 KIRST, 1981, p. 170.
185 MAYS, 1969, p. 108.
43

destes termos porque são conceitos abrangentes que resumem o conteúdo de sua
vontade para Israel, mas sua execução pertence à esfera horizontal da sociedade. Em
efeito, o que Amós está dizendo é que a adoração do culto comunitário é inaceitável
porque Israel não vive como uma comunidade de javé.186
No v. 24, há um chamado a um retorno ao direito e à justiça. E para descrever
como deve ser essa renovação, Amós usa outra das metáforas extraídas de sua
familiaridade com o campo aberto. Direito e justiça devem rolar abaixo como as
enchentes após as chuvas de inverno, e persistir como esses poucos leitos cujos rios
ָ ֵ‫ )א‬carrega o significado básico
não secam durante a seca de verão.187 O adjetivo (‫יתן‬
de "fluir volumemente" e serve assim para distinguir o "córrego" (‫ )נַחַ ל‬que leva água
ao longo do ano, sem secar facilmente.188
Entretanto, diferente do que muitos pensam,189 o chamado ao direito e à
justiça não significa, necessariamente, uma promessa de absolvição da culpa de
Israel; isso não coadunaria com o sentimento do profeta nos seus ditos originais de
que não há mais esperanças para israel. O profeta não passa a contrastar o culto atual
com quaisquer propostas de reforma. O que ele está a dizer é que, o ritual em si, com
toda a sua parafernália e panóplia, simplesmente não pode substituir as ações morais
e éticas básicas dos seres humanos.190 Não há palavras de esperança, contudo. Em
5.24 (‫“ )מִ שְ ָ ָּ֑פטֹּוצְדָ ָ ָ֖קה‬justiça e direito” não são opcionais dentro da ordem moral de Javé
e, à luz da rebelião e do pecado no passado; no presente, nesta fase da história de
Israel, dentro dos ditos de Amós, nem mesmo se houvesse conformidade com a
vontade de Javé, a nação poderia salvar-se da ruína.191
Por isso, é preciso atentar para o que foi dito em 3.1 na delimitação do texto,
quando concluímos que, apesar de 5.21-24 ser um dito independente, ele constitui o
conjunto de 5. 21-27, e também 5.18–6.14, ou seja, contexto de declaração do juízo
de Javé sobre seu povo. Essa admoestação do v. 24, pois, não deve ser lida sem o v.
27 que termina dizendo: “Por isso, vos desterrarei para além de Damasco, diz o
SENHOR, cujo nome é Deus dos Exércitos.”192

186 MAYS ,1969, p. 108.


187 MAYS, 1969, p. 109.
188 WOLFF, 1977, p. 264.
189 HARPER, 1905, p. 136; SMITH, 2008, p. 271-272.
190 PAUL, 1991, p. 192.
191 CARROL, 1992, pp. 248-249.
192 Bíblia Sagrada. Almeida Revista e Atualizada. Bibleworks, version 10.
44

3.5 Tradução Final

A partir dos resultados obtidos nesta exegese, propomos a seguinte tradução


final:
v. 21 Odeio, rejeito as vossas festas e não me agradarei de vossas assembleias
solenes.
v. 22 Ainda que me ofereçam holocaustos e oferendas, não os aceitarei; e não
atentaterei ao sacrifício de comunhao de vossos gados.
v. 23 Afasta de mim o barulho dos vossos cânticos, e a música das tuas harpas não
ouvirei
v. 24. Em vez disso, que o direito role como as águas do mar, e a justiça como um
leito que nunca seca.
Referências

ANDERSEN, Francis I.; FREEDMAN, David Noel. Amos: a new translation with
notes and commentary. New York: Doubleday, 1989.

ANDIÑACH, Pablo R. Introdução Hermenêutica ao Antigo Testamento. São


Leopoldo: Sinodal; Faculdades EST, 2015.

ARCHER, Gleason L. Jr HARRIS, R. Laird;.; WALTKE, Bruce K. (org.). Dicionário


internacional de teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova,1998.

ASURMENDI, Jesus M. Amos y Oseas. Estella: Verbo Divino, 1989.

BibleWorks for Windows, version 10.

Bíblia de Estudo Pentecostal. Almeida Revista e Corrigida. Rio de Janeiro: CPAD,


1995.

Bíblia Sagrada. Almeida Revista e Atualizada. Bibleworks, version 10.

BRIGHT, John. História de Israel. São Paulo: Paulinas, 1978.

BROWN, Raymond; FITZMYER, Joseph; MURPHY, Roland. Novo Comentário


Bíblico São jerônimo: Antigo Testamento. São Paulo: Academia Cristã; Paulus,
2007.

BRUCE, F. F. Comentário Bíblico NVI: Antigo e Novo Testamento. São Paulo,


Vida, 2008.

BRUEGGEMANN, Walter. An Introduction to the Old Testament. 2 Ed. Kentucky:


Westminster John Knox Press, 2012.

CALVINO, João. Os comentários de João Calvino sobre o profeta Amós. São


Paulo: Monergismo, 2009.

CARROL, Mark Daniel R. Contexts for Amos: Prophetic Poetics in Latin American
Perspective. Sheffield: JSOT Press, 1992.

DILLARD, Raymond B; LONGMAN, Tremper III. An Introduction to the Old


Testament. 2 Ed. Michigan: Zondervan, 2009.

DOUGLAS, J. D. Novo Dicionário da Bíblia. 3 ed. São Paulo: Vida Nova, 2006.

DREHER, Carlos. Subsídios para a Elaboração de uma Exegese no Antigo


Testamento. In: SOARES, Sebastião Armando Gameleira. Curso extensivo de
formação de biblistas: pistas para análise de textos. São Leopoldo: CEBI, 1998.

ELLIGER, Karl; RUDOLPH, Wilhelm. Biblia Hebraica Stuttgartensia. Editio


Funditus Renovata Stuttgart: Deutsche Bibelstiftung, 1967, 1977.
46

FRANCISCO, Edson de Faria. Manual da Bíblia Hebraica: Introdução ao Texto


Massorético. São Paulo: Vida Nova, 2003.

GUTIÉRREZ, Carlos Mário Vasquez. Dito, Panfleto e Memória: uma abordagem de


Amós 3-6. São Bernardo do Campo: 2002.

HARPER, William Rainey. A Critical and Exegetical Commentary on Amos and


Hosea. New York: Charles Scribner’s Sons, 1905.

HOUTART, François. Religião e Modos de Produção Pré-Capitalistas. São Paulo:


Paulinas, 1982.

HUBBARD, David Allan. Joel e Amós: introdução e comentário. Trad. Márcio


Loureiro. São Paulo: Vida Nova, 1996.

JENNI, Ernst; WESTERMANN, Claus. Diccionario Teologico Manual del Antiguo


Testamento. (Tomo I) Madrid: Cristiandad, 1978.

JENNI, Ernst; WESTERMANN, Claus. Diccionario Teologico Manual del Antiguo


Testamento. (Tomo II) Madrid: Cristiandad, 1985.

KESSLER, Rainer. História Social do Antigo Israel. São Paulo: Paulinas, 2009.

KISRT, Nelson. Amós: textos selecionados. São Leopoldo: Comissão de


Publicações da Faculdade de Teologia da IECLB, 1981.

KRÜGER, René; CROATTO, J.Severino. Métodos Exegéticos. Buenos Aires:


EDUCAB, 1993.

MAYS, James Luther. Amos: a commentary. Philadelphia: The Westminster press,


1969.

PAUL, Shalom M. Amos: a comentary on the book of amos. Minneapolis: Fortress


Press, 1991.

PETERLEVITZ, Luciano R.; Introdução ao profetismo. In: Revista Theos: Revista


de Reflexão Teológica da Faculdade Teológica Batista de Campinas. Campinas:
5ª Edição, V.4 - Nº1 - Junho de 2008. ISSN: 1908-0215.

PETERLEVITZ, Luciano R. Amós: o profeta, o contexto e o texto. In: Revista Theos:


Revista de Reflexão Teológica da Faculdade Teológica Batista de Campinas.
Campinas: 7ª Edição, V.6 - Nº1 - Julho de 2011. ISSN: 1980-0215.

RAD, Gerhard von. Teologia do Antigo Testamento. Trad. Francisco Catão, vols. 1
e 2. 2.ed. totalmente revisada. São Paulo: ASTE; Targumim, 2006.

REIMER, Haroldo. Agentes y mecanismos de opresión y explotación en Amós. In:


RIBLA: Revista de Interpretación Bíblica Latinoamericana. Bíblia: 500 Años
¿Conquista o inclusión? V. 12. Quito: Conselho Latinoamericano de Iglesias, 1992.
47

SCHWANTES. Milton. Amós: meditações e estudos. Petrópolis; São Leopoldo:


Vozes; Sinodal, 1987.

SICRE, Jose Luis. Introducción al Profetismo Bíblico. Estella: Verbo Divino, 2011.

SIEGFRIED, Herrmann. Historia de Israel en la epoca del Antiguo Testamento.


2ed. Salamanca: Sígueme, 1985.

SILVA, Cássio Murilo da; Metodologia de Exegese Bíblica. São Paulo: Paulinas, 3
ed., 2009.

SILVA, Maria José da. O direito é torcido à porta porque a justiça se encontra
deitada por terra: Um estudo sobre o direito e a justiça na profecia de Amós, a partir
de Amós 5, 10-13, 2014.

SMITH, Gary V. Comentário do Antigo Testamento: Amós. São Paulo: Cultura


Cristã, 2008.

VANGEMEREN, Willem A. (org.). Novo Dicionário Internacional de Teologia e


Exegese do Antigo Testamento. São Paulo: Cultura Cristã, 2011 (a). V. 1.

VANGEMEREN, Willem A. (org.). Novo Dicionário Internacional de Teologia e


Exegese do Antigo Testamento. São Paulo: Cultura Cristã, 2011 (b). V. 2.

VANGEMEREN, Willem A. (org.). Novo Dicionário Internacional de Teologia e


Exegese do Antigo Testamento. São Paulo: Cultura Cristã, 2011 (c). V. 3.

VANGEMEREN, Willem A. (org.). Novo Dicionário Internacional de Teologia e


Exegese do Antigo Testamento. São Paulo: Cultura Cristã, 2011 (d). V. 4.

WOLFF, Hans Walter. Joel and Amos – A Commentary on the Books of the
Prophets Joel and Amos. Philadelphia: Fortress Press, 1977.
48

APÊNDICE A: Tradução provisória

Versículo 21
‫אָֹאריחַ ֹבְעַ צ ְֹֽרתֵ ֶׁיכֹֽם׃‬
ָ֖ ִ ‫ֵיכםֹו ְ֥ל‬ ָּ֑ ֶׁ ‫ׂשָ נֵ ֥אתִ יֹמָ ַ ָ֖אסְ תִ יֹחַ ג‬
ֹ‫ֹׂשָ נֵ ֥אתִ י‬ ‫ֹמָ ַ ָ֖אסְ תִ י‬ ָּ֑ ֶׁ ‫ֹחַ ג‬
‫ֵיכם‬ ‫ֹו ְ֥לא‬ ַֹֹ‫ָאריח‬ ָ֖ ִ ֹ ‫ֹבְעַ צ ְֹֽרתֵ ֶׁיכֹֽם׃‬
Verbo Qal Verbo Qal Substantivo; Partícula Verbo Hif’il Substantivo,
perfeito – perfeito – masculino; conjutiva imperfeito – feminino,
1ª pessoa; 1ª pessoa, plural; + 1ª pessoa, plural,
comum; comum; construto. – partícula comum, construto. –
singular. singular. Sufixo 2ª negativa. singular. Sufixo. 2ª
pessoa, pessoa,
masculino, masculino,
plural. plural.
‫ׂשנא‬ ‫מאס‬ ֹֹֹ‫חַ ג‬+ֹ‫ֶׁ ָּ֑כם‬ ְ ‫ֹֹו‬+‫לא‬ ‫רוח‬ ְֹ + ‫עֲ צ ָָרה‬+ ‫ֹ ֶׁכֹֽם‬
‫ב‬

Odiei Rejeitar/Re vossas e não aspirarei/chei vossas


pudiei/despr festas/procis rarei (cheiro assembleias
ezei sões agradável ou festivas/solenes
desagradável .
)
Odiei, rejeitei vossas festas e não aspirarei (o cheiro desagradável) em vossas
assembleias solenes.

Versículo 22
‫םֹלאֹאַ ִבֹֽיט׃‬ ָ֖ ֶׁ ֵ‫םֹלאֹאֶׁ ְר ֶׁ ָּ֑צהֹו ֶׁ ְ֥שלֶׁםֹמְ ִריא‬
֥ ‫יכ‬ ָ֖ ֶׁ ֵ‫לּו־ליֹע ַ֛לֹותֹּומִ נְחת‬
ַ֣ ‫יכ‬ ֥ ִ ֲ‫ִ ַ֣כיֹאִ ם־תַ ע‬
ֹ‫ֹ ִ ַ֣כי‬ ֥ ִ ֲ‫ֹאִ ם־תַ ע‬
‫לּו־לי‬ ‫ֹע ַ֛לֹות‬ ָ֖ ֶׁ ֵ‫ֹּומִ נְחת‬
ֹ‫יכם‬ ֹ‫ֹ ַ֣לא‬
partícula Partícula Substantivo, Partícula Partícula
conjuntiva conjuntiva + feminino, conjuntiva + negativa.
verbo Hif’il, plural. substantivo,
Imperfeito, 2ª feminino, plural,
pessoa, construto. –
masculino, sufixo, 2ª
plural + pessoa,
preposição – masculine,
sufixo 1ª plural.
pessoa, sing.
‫כִי‬ ‫אִ ם‬+‫עלה‬+‫ְֹל‬ ‫עלָה‬ ְ ‫ֹו‬+‫ֹמִ נְחָ ה‬+‫ֶׁ ָ֖כם‬ ‫ַ֣לא‬
Pois/que/porque/ se fizerdes holocaustos e vossas não
etc. subir para/até oferendas/ofertas/
mim sacrifícios
Pois, se fizerdes subir até mim holocaustos e vossas oferendas não

ֹ‫ֹאֶׁ ְר ֶׁ ָּ֑צה‬ ‫ֹו ֶׁ ְ֥שלֶׁם‬ ָ֖ ֶׁ ֵ‫ֹמְ ִריא‬


‫יכם‬ ֹ‫ֹ ַ֣לא‬ ֹ‫ֹאַ ִבֹֽיט׃‬
49

Verbo Qal Partícula Substantivo, Partícula Verbo Hif’il,


imperfeito. – 1ª conjuntiva + masculino, negativa imperfeito – 1ª
pessoa, comum Substantivo, plural, pessoa,
singular. masculino, construto – comum,
singular, sufixo, 2ª singular.
construto. pessoa,
masculino,
plural.
‫רצה‬ ְֹ ‫ֹו‬+‫שֶׁ לֶׁם‬ ֹ‫מְ ִריא‬+‫ֶׁ ָ֖כם‬ ‫ַ֣לא‬ ‫נבט‬
aceitarei e sacrifício de de vossos Não olharei.
comunhão gados
aceitarei; e sacrifício de comunhão de vossos gados não olharei.

Versículo 23
֥ ‫הָ ֵ ֥סרֹמֵ עָ ַ ָ֖ליֹהֲ ַ֣מֹוןֹשִ ֶׁ ָּ֑ריָךֹוְזִמְ ַ ֥רתֹנְב ֶׁ ָָ֖ל‬
‫יָךֹלאֹאֶׁ שְ ָמֹֽע׃‬
‫ֹהָ ֵ ֥סר‬ ‫ֹמֵ עָ ַ ָ֖לי‬ ‫ֹהֲ ַ֣מֹון‬ ‫ֹשִ ֶׁ ָּ֑ריָך‬ ‫ֹוְזִמְ ַ ֥רת‬
Verbo Hiphil, Preposição – Substantivo, Substantivo, Substantivo,
imperativo, sufixo, 1ª masculino, masculino, feminino,
masculino, pessoa, singular, plural, singular,
singular. comum, construto. construto. – construto.
singular. sufixo, 2ª
pessoa,
masculino,
singular.
‫סור‬ ֹ‫מִ ן‬+‫עַ ל‬+ֹ‫ַַ י‬ ‫הָ מֹון‬ ֹ‫שִ יר‬+‫ָך‬ ְ ‫ֹו‬+‫זִמְ ָרה‬
Afasta de sobre mim ruído/agitação/ de teus cantos e música/som
tumulto
Afasta de diante de mim (o) ruído dos teus cantos e música

‫ֹנְב ֶׁ ָָ֖ליָך‬ ֹ‫ֹ ַ֣לא‬ ‫ֹאֶׁ שְ ָמֹֽע׃‬


Substantivo, partícula Verbo Qal,
masculino, plural, negativa. imperfeito – 1ª
construto. – sufixo, pessoa,
2ª pessoa, comum,
masculino, singular.
singular.
ֹ‫נֵבֶׁל‬+‫ָך‬ ‫ַ֣לא‬ ‫שמע‬
de tuas não ouvirei.
harpas?/instrumento
de cordas
de tuas harpas não ouvirei.

Versículo 24
‫יתֹֽן׃‬ ָ ֵ‫וְי ִגַ ֥לֹכ ַ ַָ֖מי ִםֹמִ שְ ָ ָּ֑פטֹּוצְדָ ָ ָ֖קהֹכְנַ ֥חַ לֹא‬
ֹ‫ֹוְי ִגַ ֥ל‬ ָ֖ ַ ‫ֹכ‬
ֹ‫ַמי ִם‬ ָּ֑ ָ ְ‫ֹמִ ש‬
ֹ‫פט‬ ֹ‫ֹּוצְדָ ָ ָ֖קה‬ ֹ‫ֹכְנַ ֥חַ ל‬ ָ ֵ‫ֹא‬
‫יתֹֽן׃‬
50

Partícula Substantivo, Substantivo, Substantivo, Substantivo, Adjetivo,


conjuntiva masculino, masculino, feminino, masculino, masculino,
+ Verbo plural. singular. singular. singular. singular.
Nif’al,
imperfeito,
3ª pessoa,
masculino,
singular.
ְ ‫ֹֹו‬+‫גלל‬ ‫ ְֹכ‬+ ַֹ‫ ה‬+‫ֹמַ י ִם‬ ‫מִ שְ פָ ט‬ ‫ו‬+‫צְדָ קָ ה‬ ‫כ‬+‫נַחַ ל‬ ‫אֵ יתָ ן‬
E rolar- como as e justiça/ como uma constante/
se/será águas direito/justiça/ inocência/ corrente/riacho firme/
rolado sentença honestidade/ permanente/
arbitral direito perene
E será enrolado como as águas (o) direito; e (a) justiça como uma corrente constante.

V. 21 - Odiei, repudiei vossas festas e não aspirarei (o cheiro desagradável) em vossas


assembleias solenes.
V. 22 - Pois, se fizerdes subir até mim holocaustos e vossas oferendas não aceitarei;
e sacrifício de comunhão de vossos gados não olharei.
V. 23 - Afasta de diante de mim (o) ruído dos teus cânticos e música de tuas harpas
não ouvirei.
V. 24 - E será enrolado como as águas (o) direito; e (a) justiça como uma corrente
constante.
51

APÊNDICE B: Comparação de Traduções

Tradução Literal NVI ACF NTLH


21 Odiei, “Eu odeio e Odeio, desprezo O Senhor diz ao
repudiei vossas desprezo as suas as vossas festas, Seu povo:
festas e não festas religiosas; e as vossas - Eu odeio, eu
aspirarei (o não suporto as assembléias detesto as suas
cheiro suas assembleias solenes não me festas religiosas;
desagradável) solenes.” exalarão não tolero as
em vossas bom cheiro. suas reuniões
assembleias solenes.
solenes.

Marcadamente acentuada é a preferência em todas as versões consultas


por traduzir os dois primeiros versículos, que no hebraico são do tronco Qal e do
tempo perfeito, pelo presente em português, sendo que a tradução equivalente mais
comum é do pretérito perfeito em português, como demonstrada na tradução literal.
Diferente das outras versões e com uma frase inteira que não consta no
original é a versão da NTLH. A expressão: “O Senhor diz ao seu povo” que, a
princípio, não causa nenhuma mudança de sentido ao texto, já que ele tem caráter
profético e de fala divina, impõe à tradução um aspecto totalmente dissonante ao
texto original que não apresenta necessidade de dizer que as palavras agora ditas
são palavras do próprio Deus.
É importante destacar a preferência das versões consultadas pela tradução
da palavra “ ִֹ‫ֹ"מָ ַ ָ֖אסְ ת‬por “desprezo/detesto”. A meu ver, perde-se um peso semântico
muito grande, já que, em consonância com “odeio” o repúdio traz o sentido de
separação matrimonial, característica da linguagem profética ao referir-se à relação
de Javé com seu povo.
Um quarto ponto digno de nota é que tanto a NVI quanto a NTLH ignoram o
sentido sacrifical das assembleias/reuniões solenes. Ao traduzir ָ֖ ִ ” por
“ַֹ‫ָאריח‬
suporto/tolero não expressa o sentido olfático presente o texto original e que faz
52

referência ao mau cheiro das ofertas perante o Senhor. A ACF traduz melhor essa
frase deixando claro este sentido.

Tradução Literal NVI ACF NTLH


22. Pois, se Mesmo que vocês E ainda que me Não aceito
fizerdes subir até me tragam ofereçais animais que são
mim holocaustos e holocaustos e holocaustos, queimados em
vossas oferendas ofertas de cereal, ofertas de sacrifício, nem as
não expiarei; e isso não me alimentos, não me ofertas de cereais,
sacrifício de agradará. Mesmo agradarei delas; nem os animais
comunhão de que me tragam a nem atentarei para gordos que vocês
vossos gados não melhor oferta de as ofertas pacíficas oferecem como
olharei. comunhão, não de vossos animais sacrifício de paz.
darei a menor gordos.
atenção a elas.

Todas as versões consultadas ignoram o sentido expiatório do sacrifício e


colocam como uma simples questão de agradar a Deus ou não, quando, na verdade,
ao falar que não expiará os sacrifícios tem um sentido muito mais profundo do que
apenas dizer que não se agrada deles ou que não os aceita.
A tradução da NTLH não deixa muito claro o que está em questão na frase.
Ao dizer: “Não aceito animais que são queimados em sacrifício”, dá a entender que
o sacrifício em si é uma prática reprovável por Deus, quando sabemos que não o é.
A tradução, pois, ignora que os sacrifícios não são suficientes para agradar a Deus,
mas fazem parte do ritual cúltico judaico.

Tradução Literal NVI ACF NTLH


23. Afasta de Afastem de mim o Afasta de mim o Parem com o
diante de mim (o) som de das suas estrépito dos teus barulho das suas
ruído dos cantos canções e a cânticos; porque canções religiosas;
teu e música de música das suas não ouvirei as não quero mais
harpas tua não liras. melodias das tuas ouvir a música de
ouvirei. violas. harpas.
53

Apesar das diferentes escolhas, nas diferentes versões, por termos e


arranjo sintático, de modo geral todas apresentam o mesmo sentido semântico e de
conteúdo.

Tradução Literal NVI ACF NTLH


24. E será Em vez disso, Corra, porém, o Em vez disso,
enrolado como as corra a retidão juízo como as quero que haja
águas (o) direito; e como um rio, a águas, e a justiça tanta justiça como
(a) justiça como justiça como um como o ribeiro as águas de uma
uma corrente ribeiro perene. impetuoso. enchente e que a
constante. honestidade seja
como um rio que
não para de correr.

Todas as versões em português acrescentam uma partícula adversativa –


que não está presente no original – dando a ideia de que o se fala agora está em
oposição ao dito anteriormente. Além disso, a expressão corra/que haja não
apresentam nenhuma relação aparente com a expressão da TL “será enrolado”. É
preciso investigar mais profundamente o real sentido da expressão e os possíveis
motivos para as versões preferirem traduzir por “corra”.
A NVI e a ACF, apesar da diferente escolha dos termos e de não preservar
os tempos verbais do hebraico – isso para facilitar a compreensão do texto –
apresentam uma tradução coerente. Exceção é a última palavra escolhida pela ACF
“impetuoso” que não expressa o sentido original. Impetuoso é algo violento, já
ָ ֵ‫”א‬tem o sentido de constante e perene.
“‫יתֹֽן‬
Já a NTLH traz a expressão “águas de uma enchente” que não tem
nenhuma relação com o termo original. Além disso, ao invés de “justiça” traz a
palavra “honestidade” que, com toda certeza, tem uma conotação absolutamente
diferente de “justiça”, o que tira o peso e a dimensão da importância do texto.
54

APÊNDICE C: Crítica Textual

V. 22. a-a nonn add hab.


Segundo a BHS na frase:
֥ ִ ֲ‫(ֹ( ִ ַ֣כיֹאִ ם־תַ ע‬pois, se fizerdes subir para mim holocaustos)
(‫לּו־ליֹע ַ֛לֹות‬
vários (manuscritos) tem adições de palavras.

b exc fin stich.


Há, no entanto a exclusão de um verso completo após a palavra ‫ע ַ֛לֹות‬, (holocaustos)
segundo a BHS. É possível perceber uma quebra rítmica nos versos. Enquanto os
dois versos seguintes ( ֹ ‫םֹלאֹאֶׁ ְר ֶׁ ָּ֑צה‬ ָ֖ ֶׁ ֵ‫( ) ֹּומִ נְחת‬e vossas oferendas não expiarei); e
ַ֣ ‫יכ‬
( ‫םֹלאֹאַ ִבֹֽיט׃‬ ָ֖ ֶׁ ֵ‫( ֹ(ו ֶׁ ְ֥שלֶׁםֹמְ ִריא‬e sacrifício de comunhão de vossos gados não olharei),
֥ ‫יכ‬
terminam sempre com um verbo, o primeiro verso encerra bruscamente sem a
conclusão esperada.

c prp (‫)ו ְשַ לְמֵ י‬

Ainda no versículo 22, a BHS propõe uma mudança morfológica na palavra ( ‫ְשלֶׁם‬
֥ ֶׁ ‫)ֹו‬,
que é substantivo, masculino, singular, construto, mais a preposição ( ְֹ ‫( )ֹֹו‬e sacrifício

de comunhão); passando para (‫ )ו ְשַ לְמֵ י‬que muda do singular para o plural. Tal
proposta tem a ver, novamente, com a tentativa de harmonizar os versos presentes
no versículo, já que os dois substantivos principais dos primeiros versos estão no
ָ֖ ֶׁ ֵ‫( )ֹּומִ נְחת‬e vossas oferendas).
plural: ( ֹ‫( )ֹע ַ֛לֹות‬holocaustos); ( ֹ‫יכם‬

V. 23. – a prp ‫הָ סִִ֜ רו‬

No versículo 23 a BHS propõe uma outra alteração morfológica trocando (‫– ) ֹהָ ֵ ֥סר‬

verbo hiphil, imperativo, masculino, singular – por (‫ – )הָ סִִ֜ רו‬verbo hiphil, imperativo,
masculino, plural – indicando mais uma vez a tentativa de harmonização com o
restante do verso.

b prb l
55

Por fim, ainda no v. 23 a BHS indica que as palavras ( ֹ‫( ) ֹשִ ֶׁ ָּ֑ריָך‬de teu cânticos) e ( ֹ

‫((נְב ֶׁ ָָ֖ליָך‬de tua harpas) – ambas trazem uma discordância morfológica interna já que
são substantivo, masculino, plural, construto, mas trazem consigo um sufixo na 2ª
ֵ ִ‫ )ש‬e
pessoa do singular – provavelmente devem ser lidas respectivamente (‫יריכֶׁם‬

ֶֹׁ ‫ ) ֹנִ ְבלֵי‬mantendo, portanto, sua definição morfológica, mas adequando os sufixos
(‫כם‬
ao plural. Sendo traduzido por: (de vossos cânticos; de vossas harpas).

Você também pode gostar