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ISSN nº 2526-8031 Vol. 1, n. 2, Mai-Ago.

2017

A PERSPECTIVA DIALÉTICA E PEDAGÓGICA NA OBRA KIRIKU E A


FEITICEIRA

The dialectical and pedagogical perspective in the work Kiriku and the
sorceress

La perspectiva dialéctica y pedagógica en la obra Kiriku y la hechicera

João Nunes da Silva1, 2

RESUMO
O objetivo central deste artigo é identificar aspectos na obra Kiriku e a feiticeira (Michel
Ocelot, 1998) que favorecem na compreensão da cultura africana, especialmente no que diz
respeito à desconstrução de estereótipos e preconceitos. A análise se baseia em trechos do
filme no intuito de identificar aspectos centrais que favorecem uma leitura crítica do
mundo, como a desconstrução do mito do herói Ocidental que costumamos ver no cinema
para a massa. Na obra analisada encontramos elementos fundamentais para a
compreensão do universo mítico e cultural relacionado aos povos africanos e suas formas
de enfrentamento dos problemas vivenciados, como o preconceito e o racismo, ao longo
do tempo, que remetem a desconstrução de estigmas e de estereótipos propulsores do
racismo, do preconceito e da discriminação.

PALAVRAS-CHAVE: Kiriku e a feiticeira; cultura africana; cultura.

1
Doutorado em Comunicação e cultura contemporâneas (UFBA). Mestrado em Sociologia (UFPB). Licenciatura
e bacharelado em Ciências Sociais (UFPB). Pós-graduação em metodologias e linguagens em EAD. Professor
Adjunto I da UFT – Miracema. Experiência em gestão de projetos de pesquisa e extensão, com atuação em
cinema e educação, roteiro e direção de documentários. Experiência em EAD e produção de material didático.
E-mail: jnunes7@gmail.com.
2
Endereço de contato do autor (por correio): Universidade Federal do Tocantins. Campus Miracema. Avenida
Lourdes Solino s/n°, Setor Universitário, CEP: 77.650-000, Miracema/TO, Brasil.

Aturá Revista Pan-Amazônica de Comunicação, Palmas, v. 1, n. 2, p. 219-241, mai-ago. 2017


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ABSTRACT
This article is about ideology, construction of stereotypes and forms of fight against
prejudice and racism from the film work: Kiriku and the Sorceress(Michel Ocelot, 1988). The
central objective is to identify aspects in the work Kiriku and the Sorceress that favor the
understanding of African culture, especially with regard to the deconstruction of
stereotypes and prejudice. The analyses is based on excerpts from the film in order to
identify central aspects that favor a critical reading of the world, like the deconstruction of
the myth of the western hero we usually see in the commercial cinema. In the analyzed
work we find fundamental elements for the understanding of the mythical and cultural
universe related to the african peoples and their ways of coping with the problems
experienced, such as prejudice and racism, over time, which refer to deconstruction of
stigmas and stereotypes of racism, prejudice and discrimination.

KEYWORDS: Kiriku and the sorceress; African culture; culture.

RESUMEN
Este artículo trata de ideología, construcción de estereotipos y formas de enfrentamiento al
prejuicio y al racismo a partir de una obra fímica: Kiriku y la hechicera (Michel Ocelot, 1998).
El objetivo central es identificar aspectos en la obra Kiriku y la hechicera que favorecen en
la comprensión de la cultura africana, especialmente en lo que se refiere a la
deconstrucción de estereotipos y prejuicios. El análisis se basa en fragmentos de la película
con el fin de identificar aspectos centrales que favorecen una lectura crítica del mundo,
como la deconstrucción del mito del héroe occidental que solemos ver en el cine para la
masa. En la obra analizada encontramos elementos fundamentales para la comprensión del
universo mítico y cultural relacionado a los pueblos africanos y sus formas de
enfrentamiento de los problemas vivenciados, como el prejuicio y el racismo, a lo largo del
tiempo, que remiten la deconstrucción de estigmas y estereotipos propulsores El racismo,
el prejuicio y la discriminación.

PALABRAS CLAVE: Kiriku y la hechicera; La cultura africana; la cultura

Recebido em: 12.07.2017. Aceito em: 25.08.2017. Publicado em: 30.08.2017.

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Introdução Este artigo se propõe apresentar


A obra cinematográfica Kiriku e a aspectos centrais da obra Kiriku e a
feiticieira, uma produção franco-belga, feiticeira com vistas a contribuir para a
dirigida por Michel Ocelot (1998), uma discussão e a reflexão sobre a importância
animação com 74 minutos. Apresenta do uso de filmes dessa natureza na escola
elementos importantes que possibilitam e demais ambientes para auxiliar nos
um olhar crítico sobre a vida e a processos educacionais e, principalmente
sociedade, e, de modo mais especifico, no sentido de desconstruir preconceitos e
sobre a desconstrução de preconceitos, estereótipos construídos pelas elites
estigmas e estereótipos tão presentes colonizadoras e que ainda hoje estão
ainda em nossa sociedade. presentes em nosso meio de forma velada
Em vez de legitimar os padrões legitimando o racismo e a discriminação.
ocidentais, como faz o cinema comercial, A seguir são destacados aspectos
o filme sobre o pequeno herói negro importantes que se encontram em Kiriku
lança um olhar sobre a vida simples de e a feiticeira os quais permitem um olhar
um povo que vivia subjugado por uma pedagógico e critico sobre a cultura
feiticeira má (BENJAMIN, 1994; CHARNEY; africana e suas formas de enfrentamento
SCHWARTZ, 2001). Na obra Kiriku e a ao racismo e estratégias de sua
feiticiera temos a oportunidade de legitimação propagados pela cultura
conhecer aspectos centrais do povo ocidental.
africano: sua histria, suas crenças, seu
modo de vida, o papel da mulher como Da análise
protagonista no cotidiano da Para a análise foram levados em
comunidade, a naturalidade da vida dos consideração na obra Kiriku e a feiticeira,
aldeões, a beleza da natureza, os cantos e uma animação realizada em co-produção
ritos, entre outros aspectos. França e Bélgica, dirigida por Michel
Ocelot, de 1998, aspectos centrais que

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remetem o espectador a refletir sobre a espectador está ali adentrando a aldeia. A


organização social, política, econômica, subjetiva segue, enquanto se permite ver
cultural e religiosa expressos no estilo de e ouvir algumas galinhas e crianças; elas
vida das pessoas da comunidade retratada riem e correm para o centro da aldeia.
(a aldeia do Kiriku), a estética, as crenças e Logo se adentra numa das casas da aldeia
mitos, a posição da mulher e dos anciãos, onde se encontra uma mulher negra em
o personagem central Kiriku e sua relação trabalho de parto; ela se encontra num
com as crianças, com sua mãe, com canto da sala tem os cabelos trançados e
destaque para suas falas e os seios a mostra; veste apenas uma saia
questionamentos e sua maneira de azul e alisa uma enorme barriga. Enquanto
enfrentar os perigos e as dificuldades no isso se ouve uma voz de criança que diz:
cotidiano da aldeia a qual pertence. “Mãe quero nasce”r. A mãe escuta, alisa a
A animação Kiriku e a feiticeira barriga mais uma vez e responde: uma
apresenta inicialmente sons de batuques criança que fala na barriga de sua mãe
de tambor, enquanto surgem os primeiros pode nascer sozinha (01’:00” a 01’:46”).
créditos; em seguida temos imagem de Aos poucos vai surgindo entre as
uma aldeia na qual é mostrada em pernas da mãe uma criança rastejando; ela
destaque uma grande árvore no lado para, depois fica sentada de frente para
direito da tela, árvore essa típica da África, sua genitora, olha para o próprio umbigo,
que lembra algumas raízes como se retira sozinha o cordão umbilical e em
tivessem nascidas de modo inverso; isto é, seguida fala: eu me chamo Kiriku. A
é como se a raiz substituísse as folhas. criança pede que a mãe lhe dê um banho.
Logo á esquerda se nota; um conjunto de A mãe responde que uma criança que
cabanas em formas de cones distribuídas nasce sozinha também pode tomar banho
de forma simétrica. A cena segue com um sozinha (01’:51” a 02’:29”) . O garoto se
movimento de câmera subjetiva, dirige para uma bacia cheia de água e
produzindo a sensação de que o toma o seu primeiro banho alegremente,

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deixando escapar água da bacia, fato que africanos conforme podemos ver na aldeia
leva a mãe a alertá-lo para que não gaste do pequeno Kiriku.
muita água, pois, Karabá, a feiticeira, Temos, portanto, uma mulher
secou toda a água da aldeia. negra com os seios a mostra, uma criança
Essas imagens revelam a chegada que anda, fala, rir e toma banho sozinha.
do garoto africano de nome Kiriku ao A criança é minúscula, bastante alegre e
mundo; logo se percebe algo incomum; atenta para tudo que está a sua volta, de
um menino que nasce sozinho, rir, fala e modo que não deixa de mostrar
ainda toma banho sem a ajuda de preocupação com a fala da mãe sobre o
ninguém. As imagens são acompanhadas que fez a feiticeira em relação á água da
por uma música suave, com a fonte que atendia toda a aldeia.
predominância de instrumentos de cordas Nessas cenas se percebe
e batuques de tambor. A música remete o nitidamente elementos que remetem à
expectador a um mundo bucólico, típico desconstrução de padrões e de
das aldeias. Expressa, dessa forma, a preconceitos. Se não é normal na
naturalidade da vida, a harmonia com a sociedade ocidental ver mulheres de seios
natureza e sua simplicidade. nus em seu cotidiano, em Kiriku e a
Chama-nos a atenção a feiticeira temos exatamente essa
simplicidade da aldeia e de seus demonstração de uma cultura aldeã,
moradores; também não deixa de ser assim como durante muitos anos
curioso o fato de a mulher exibir encontrávamos os nossos índios
naturalmente seus seios. Para a nossa brasileiros; hoje isso é possível em poucas
cultura ocidental isso é algo estranho e aldeias, devido à influência do branco.
até mesmo imoral; quer dizer, isso no Com o avanço da sociedade industrial,
olhar preconceituoso por parte de quem marcada pela racionalidade e pelo
não conhece os costumes dos povos consumismo, o que era natural passou a
ser visto como algo estranho,

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pecaminoso, conforme a moral cristã torna o herói da aldeia. Além disso, não é
instituída com o processo civilizatório. por demais lembrar que se trata de um
Temos aí a imposição de uma cultura herói negro, algo raro quando se trata de
sobre várias outras. Em conseqüência mostrar heróis na nossa sociedade
disso, há uma padronização, uma marcada pelo consumo, pelo preconceito
tentativa de homogeneização das e pelo racismo. E, ainda mais, o menino
culturas, de modo que só é considerado Kiriku é muito pequeno para ser um herói,
decente aquilo que for determinado pela considerando os padrões estabelecidos na
moral instituída pelos chamados sociedade ocidental; mas é exatamente o
civilizados. oposto do herói que costumamos ver
O filme, com isso, apresenta diariamente na TV e no cinema que a
elementos que contribuem para animação de Michel Ocelot proporciona
desconstruir o estereótipo criado pelos ao espectador.
colonizadores de que a moral correta é O menino Kiriku nasce num mundo
aquela trazida pelos costumes cristãos bastante complexo, não pelo fato de ter
para os colonizados. sido numa aldeia africana, mas
Esse início da animação já principalmente por nascer numa condição
evidencia a proposta pedagógica quanto hostil, considerando as dificuldades
ao comportamento e a cultura dos povos naturais e culturais que terá pela frente.
africanos. Mas, há outros aspectos As naturais ele resolve com primor,
importantes que remetem à inclusive ao nascer já se dá conta do que
desconstrução de estereótipos, aspectos terá que fazer; nasce falando, andando e
esses que estão presentes em vários com uma capacidade de questionamento
momentos. Vejamos alguns: invejável; sim, Kiriku já questiona nos
O garoto Kiriku, uma criatura primeiros momentos de sua vida; quer
minúscula, é exatamente o protagonista saber inclusive por que a feiticeira é tão
da história. Ele é inteligente, corajoso e se má, tendo em vista que ao perguntar por

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seus pais e pelos homens da família sua desenvolverem; não se descobre nada
mãe responde que todos foram sem a curiosidade e muitos menos sem se
aprisionados pela feiticeira Karabá. usar a capacidade da razão para analisar,
Em vários momentos do filme o refletir e interpretar as coisas com as quais
personagem Kiriku evidencia essa nos defrontamos. A educação não pode
capacidade questionadora; ele pergunta a prescindir dessa capacidade de
todas as pessoas que encontra por que a problematizar; ou melhor, levantar
feiticeira é tão malvada; pergunta ao seu questionamentos sobre as coisas com
tio que vai combater a feiticeira, ao ancião vistas a entender o seu funcionamento e
da aldeia, as mulheres da aldeia e até buscar soluções diante dos problemas,
mesmo a própria feiticeira. desafios e dificuldades.
As respostas que recebe de todas Questionar faz parte da vida do ser
as pessoas questionadas não satisfazem a humano e por isso essa capacidade não
curiosidade do menino. deve ser ignorada ou reprimida; é preciso
Temos, então, uma capacidade saber sobre as coisas, o que só se faz
fundamental do ser humano, questionando e buscando entender. Essa
especialmente em seus primeiros anos de é uma condição fundamental do ser no
vida que é buscar saber o que?, por que? mundo; significa procurar o
Quem? Qual e como? Questionar é uma conhecimento. Essa busca se dá por meio
condição natural do ser humano, do diálogo, um traço característico do
especialmente quando é criança. Essa personagem Kiriku.
capacidade deve ser sempre considerada O diálogo favorece na evolução do
em todas as fases de nossas vidas, pois, pensamento, conforme entendia o filósofo
ninguém nasce sabendo tudo e, em toda Platão, para quem o conhecimento estava
a vida, estamos sempre aprendendo. nas idéias, quer dizer, no sujeito e não na
Essa capacidade de questionar é o aparência sensível. Nessa perspectiva, se
que faz o ser humano e a sociedade se faz necessário buscar aquilo que está além

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da aparência, o que é indispensável na confluência com a tese gera a síntese.


Filosofia. Tal concepção evoluiu para o Significa que a própria história constitui
que conhecemos hoje como dialética, um num processo dialético gerador de outros
modo de conceber o conhecimento a processos. Essa concepção dialética
partir da contradição e do conflito implica principalmente no
inerentes ao fenômeno. Dois pensadores questionamento com vistas a
se destacaram com essa concepção, Hegel compreensão e quiçá, na busca da
e Karl Marx. solução dos problemas.
Para Hegel o processo de evolução A perspectiva dialética nos
do pensamento se dá através do diálogo e possibilita uma leitura crítica do filme
da contraposição de idéias, assim se tem a Kiriku e a feiticeira de modo que
dialética hegeliana e que depois foi destacaremos alguns aspectos presentes
ressignificada pelo pensador alemão Marx. nessa obra cuja leitura servirá para
Na compreensão de Marx a dialética analisar e contextualizar a educação e seu
corresponde ao pensamento e a realidade papel na sociedade hoje. De modo
ao mesmo tempo, de modo que a especifico, consideraremos as cenas do
realidade também é contraditória. Marx se filme que permitem identificar nelas
diferencia de seu mestre Hegel ao elementos que contribuem para combater
impingir na dialética a perspectiva o preconceito, os estereótipos e as várias
materialista e não idealista formas de discriminação. Por último, será
A abordagem dialética pode ser destacada a importância do filme Kiriku e
compreendida como uma circularidade a feiticeira para a análise da prática
que se dá por meio da conjunção entre pedagógica no que se refere à
três elementos, são eles: Tese, Antítese e desconstrução de estereótipos
Síntese. Toda tese carrega consigo seu relacionados ao negro na sociedade.
elemento contraditório ou oposto que dá Destacaremos, portanto, da
origem a antítese. Esta, por sua vez em seguinte forma: as situações vivenciadas

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pelo personagem Kiriku, como: os enfrenta desafios e preconceitos, combate


desafios e confrontos; as atitudes do e se torna um herói.
Kiriku frente às situações e, por fim, o A partir dessas situações será feita
resultado do confronto entre situações e uma análise sob o prisma da dialética e da
atitudes do personagem central. Assim pedagogia de modo a levantar elementos
temos a situação que pode ser no sentido de favorecer uma leitura crítica
compreendida como tese, em seguida, as do filme Kiriku e a feiticeira destacando
atitudes do Kiriku frente às situações sua importância para desconstrução de
como a antítese e a conseqüência gerada preconceitos e distorções construídas na
pelo confronto entre situação e atitude sociedade em relação à cultura africana.
como a síntese.
Em outras palavras, podemos Kiriku e a realidade - inversão de
considerar a realidade vivida pelo papéis
personagem Kiriku como a tese, o O nascimento – a situação invertida
confronto, a partir da conduta do dos papeis; mãe está para dar a luz, mas, é
personagem, como a antítese e, por o filho quem pede para nascer e ele
último, o resultado do confronto como a mesmo toma todas as providencias para o
síntese. Entendendo dessa forma a obra seu nascimento; em seguida, a criança
fílmica Kiriku e a feiticeira, seguramente nascida, ela mesmo corta o cordão
podemos encontrar uma perspectiva umbilical que o ligava a mãe e pede para
pedagógica crítica da obra em questão. A ser lavada, mas a mãe responde que uma
seguir trataremos da perspectiva criança que nasce sozinha se lava sozinha
pedagógica e dialética no filme em (01’:51” a 02’:29”) (DUBOIS, 2004; SARLO,
questão destacando as situações através 2007).
da quais o menino kiriku conhece a Pode-se observar nessa passagem
realidade, levanta questionamentos, referente ao nascimento do menino Kiriku
uma situação dada que exige dele uma

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posição e, por sua vez uma atitude: se nascimento. Para tanto, uma das suas
enfrenta a situação e toma as rédeas da principais armas passa a ser a capacidade
vida ou se simplesmente se submete ao de questionar; vejamos uma dessas
acaso. Temos, portanto uma situação, isto situações.
é, uma realidade que exige um Kiriku pergunta pelos seus parentes
posicionamento do menino Kiriku. e a única resposta que recebe para todas
Na perspectiva dialética a realidade as perguntas é que Karabá a feiticeira os
é marcada pelo movimento e corresponde aprisionou; foi o que ocorreu quando
também a totalidade das coisas; tal perguntou onde estavam o seu pai e seus
realidade gera outra realidade a partir do tios. O menino faz várias perguntas e
momento em que dois elementos se diante da resposta não se acomoda, toma
contrapõem, ou seja, a situação dada e atitudes de busca e de enfrentamento
todas as contradições que ela carrega; com vistas a solucionar os problemas.
todavia, Marx entendia que o resultado da Já nos primeiros momentos de vida
relação entre a realidade e suas de Kiriku ele se dá conta de um problema
contradições não se dá por acaso, mas cruciante que envolve a todos na aldeia.
sim, a partir das forças presentes que Trata-se da feiticeira Karabá que domina a
favorecem a transformação, todos com “mão de ferro”. Ela aprisionou
principalmente da prática consciente do todos os homens, tomou todas as
sujeito perante o mundo. Ou seja, a riquezas dos aldeões, persegue, reprime e
transformação depende de uma ação e aterroriza a todos. A feiticeira é terrível e
não do acaso. mantém todas as pessoas sob o seu
O menino Kiriku corresponde a controle sem dó e sem piedade; ela secou
essa perspectiva na medida em que se toda a água da fonte que atendia toda a
confronta com a situação que exige dele comunidade e tornou todas as pessoas
uma atitude e, consciente disso, assume a em reféns dos seus caprichos.
direção do seu destino desde o

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Temos aí a situação de opressão


imposta a todos da comunidade, inclusive
a família de Kiriku. Diante dessa realidade Kiriku diante de preconceitos
o menino questiona por que a feiticeira é Kiriku é maltratado por algumas
má e não satisfeito com as respostas que mulheres da aldeia que diziam que ele
recebia buscava solução. Decidiu também fazia todos passar vergonha (DELEUZE,
combater a feiticeira. Assim a situação 2005). Na fala de uma das mulheres ela
dada, a realidade agora tem um novo fato evidencia ainda que o menino “vai trazer
que se opõe a ela: o menino Kiriku não desgraça para toda a aldeia”; a mãe do
aceita a realidade como está e resolve garoto revida afirmando que a desgraça
lutar para mudar. Ou seja, temos aí a tese paira sobre a aldeia há muito tempo e
e sua antítese e o que resultará desse Kiriku salvou o seu tio. “Mãe cega” -
confronto é a síntese. retruca a mulher dizendo que Kiriku é
Kiriku é o novo que enfrenta as muito pequeno prá salvar alguém. Nesse
adversidades sem medo; sua conduta momento o menino alerta as mulheres
questionadora e sua coragem em que os guardiões da feiticeira estão
enfrentar as barreiras e desafios são chegando. Eles vão fazer uma varredura
fundamentais para trazer uma nova nas casas para verificar se encontra
perspectiva para a sua aldeia; ele alguma pepita de ouro escondida (12:37 a
enfrentou diversas vezes a rejeição por 12:53).
parte até mesmo daqueles que deveriam A cena mostra uma situação que
o acolher; devido a sua postura seguramente é esperada quando se trata
questionadora e corajosa de enfrentar a de uma criança pequena vista pelos
feiticeira algumas pessoas da sua adultos; ou seja: as mulheres têm
comunidade viam nele um perigo, pois, convicção de que o menino jamais poderá
poderia provocar ainda mais a ira da salvar alguém, tendo em vista ser muito
feiticeira opressora. pequeno; é claro que não se espera que

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uma criança seja a salvadora de alguma nos rio; Kiriku observa os garotos
situação; mas o caso de Kiriku é outra banhando-se e ao mesmo tempo
situação, ele tem a personalidade forte, é jogando água entre eles; sua mãe também
astuto, questiona as pessoas quando não se encontra no rio tirando água para levar
entende alguma coisa e enfrenta a para casa; enquanto ela pega a água fala
situação quando se vê necessário. para Kiriku que Karabá a feiticeira está de
É evidente que se trata de uma mau humor e teme que ela faça algum
licença poética no filme, todavia, o que mal às crianças. Diante desse alerta da
importa é a lição extraída dessa realidade mãe Kiriku avisa que fica para vigiar as
mostrada. Kiriku é uma criança sim, mas é crianças. Depois que a mãe sai ele se
diferente e sabe enfrentar as situações anima para entrar na água, pois, também
difíceis; mesmo sendo visto pelas pessoas quer se divertir com as outras crianças,
da aldeia como alguém que só vai trazer mas, logo uma delas avisa prá ele que ele
desgraça e que é incapaz de salvar não pode e diz:
alguém, logo podemos perceber que o - Vá embora, não estamos falando
menino ignora o que dizem sobre ele e com você.
em ato contínuo alerta as mulheres que os Uma das meninas que se encontra
guardiões estão chegando e podem ali com os garotos se dirige para Kiriku e
atacar a todos. Dessa forma o menino que chuta ele; Kiriku quase se afoga, enquanto
é visto como alguém que poderia trazer a as crianças riem dele. Em seguida ele vai
desgraça para aldeia demonstra para a beira do rio e fica muito triste e
exatamente o contrario; ou seja, ele ajuda desconcertado batendo as suas pequenas
a salvar do perigo iminente, algo que os mãos na água numa clara demonstração
adultos não foram capazes de perceber. de angústia, porém, fica alerta, como é de
Em outro momento, aos 15’: 48’ a sua característica; logo, percebe uma
17’:52”, Kiriku resolve brincar com os canoa indo ao encontro dos meninos sem
outros meninos que estão se divertindo que ninguém esteja controlando; as

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crianças que estão na água se animam ao esperando pegar a todos naquela canoa.
ver a canoa e uma delas fala para todos Diante desse ato heróico as crianças
subirem nela; diante da situação Kiriku reconhecem o Kiriku como um valente,
alerta que é perigoso subir na canoa; ele embora seja pequeno.
sabe que trata-se de mais uma armação Mais uma vez Kiriku é alvo de
da feiticeira, pois, uma canoa toda preconceito e até de agressão; ele não se
enfeitada não iria aparecer assim por intimida, continua alerta e até chega a
acaso alí; as crianças não querem saber do salvar os meninos do perigo armado pela
alerta de Kiriku; uma delas até chega a maldosa feiticeira.
dizer que ela não vai fazer nenhum mal, Nesse trecho no qual Kiriku salva as
pois, não é a feiticeira, é uma canoa. crianças do perigo, temos uma situação
Kiriku continua a alertar as crinças difícil encarada pelo pequeno herói com
na beira do rio para não subirem na destemor, astúcia e inteligência. Kiriku não
canoa. Enquanto isso o meninos sobem e se intimida com a situação de preconceito
ficam brincando e rindo. Logo a canoa cria por parte das crianças para com ele. Ele
vida e pega velocidade; as crianças que simplesmente se mantém numa posição
estão na canoa ficam desesperadas; madura, algo muito diferente dos
enquanto isso, Kiriku busca alguma forma meninos maiores que ali se encontram e
de salvar os meninos do perigo; ele sai que só tinham a intenção de brincar;
correndo, encontra uma faca grande que enquanto Kiriku é xingado, agredido e
uma das mulheres da aldeia havia deixado humilhado, logo ele responde com um
cair no chão e sai em desabalada carreira ato de heroísmo salvando as crianças do
ao encontro da canoa; pula nela e faz um perigo. Assim o nosso personagem sai de
buraco em sua base para que a canoa uma situação por cima; ele enfrenta com
pare; o que finalmente consegue e, dessa bravura o perigo, vence e ainda tem um
forma, livra as crianças do perigo, tendo reconhecimento do grupo que antes o
em vista que a feiticeira estava ansiosa ignorava. O resultado que consegue é,

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sem dúvida, devido a sua forma de se agredido e ignorado ele respondeu com
colocar perante uma situação inteligência, atenção e heroísmo. Sua
desconfortável ou de perigo e que postura se opôs totalmente a realidade
permite a ele dar a volta por cima e se sair que se apresentava. O pequeno herói
muito bem. sabia o que queria; ele sempre sabe o que
A lição que podemos tirar dessa quer, e por isso soube como agir na
parte em que Kiriku enfrenta várias adversidade; quando não se sabe o que
adversidades e salva as crianças são várias; quer dificilmente se consegue chegar a
primeiramente podemos citar sua atitude algum lugar seguro; ou melhor,
centrada e sua postura de coragem e dificilmente se consegue atingir algum
sabedoria diante das dificuldades. sucesso.
Aprendemos com a atitude desse herói Outro ponto que merece destaque
minúsculo que a mudança, ou seja, a é que, mais uma vez temos aí uma
transformação que queremos diante de situação na qual há uma inversão de
uma situação de adversidade não papeis: Kiriku como uma criança pequena
depende do acaso, nem de alguém, mas era a mais nova do grupo que ali se
daquele que se vê numa situação adversa, encontrava, era exatamente quem deveria
observa calmamente e age com precisão ser protegida pelos demais, uma vez que,
de modo a atingir seu objetivo. além dos outros garotos serem mais
O pensamento dialético nos velhos e maiores do que ele, também
proporciona uma visão ampla da pertenciam a mesma comunidade, de
realidade e, consequentemente, uma modo que se espera que por ser
atitude certa e coerente para a superação praticamente da mesma família e ser o
das adversidades. A situação enfrentada menor e mais novo do grupo ele deveria
por Kiriku exigia conhecimento e receber a proteção dos outros, mas
habilidade diante da realidade que se acontece exatamente o oposto, Kiriku é
apresentava; enquanto era humilhado, quem protege os mais velhos. Nesse

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sentido o personagem central criado no dialética é na verdade a realidade fruto do


filme Kiriku e a feiticeira se opõe à confronto entre situação e seu oposto a
realidade e, por isso, chama a atenção. partir da perspectiva do sujeito.
Diante dessa constatação, podemos Explicando: na situação na qual Kiriku se
considerar a atitude problematizadora encontrava diante do perigo iminente, no
que essa animação sobre um herói negro caso, a canoa com todas as suas cores e
e pequeno proporciona. O personagem beleza, enquanto era vista pelos outros
por si já tem uma característica meninos como uma canoa muito bonita,
questionadora, algo típico do pensamento era na verdade uma armadilha que os
dialético; ou seja, toda realidade não é levariam até a feiticeira malvada; e Kiriku
algo que deva ser encarado como percebeu claramente esse perigo,
necessariamente natural; até mesmo enquanto para os meninos era algo para
porque o conceito de realidade tem a ver se brincar.
com a relação do sujeito (ou sujeitos) com Temos nessa situação uma
o mundo, as coisas e com os outros. O coletividade, no caso, o grupo de meninos
que denominamos realidade só é que só queria brincar e que não se dava
realidade a partir da perspectiva conta do perigo e, portanto, a realidade
fenomenológica; significa da postura do que se mostrava para eles era uma falsa
sujeito diante do objeto e o modo como realidade, era a aparência e por trás da
ele apreende o objeto a partir do contexto aparência sempre há outra realidade,
no qual se encontra. como já lembrava o filósofo Platão em sua
Desse modo, se um acontecimento Alegoria da caverna.
se configura numa realidade para um Platão foi um dos primeiros a tratar
indivíduo ou vários, não significa que da dialética e do seu pensamento temos
todos os indivíduos vão assimilar ou muito que considerar; muito embora o
encarar da mesma forma. Por isso que o seu foco estivesse no plano da idéias. Mas
que chamamos de síntese na ótica foi também a partir das idéias que Hegel

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estruturou seu pensamento dialético e povo, seus descendentes e sua história,


que logo depois esse pensamento suas crenças, lutas e desafios.
dialético influenciou significativamente o Trata-se de uma maneira de
teórico Karl Marx no século XIX, desconstruir a ideologia predominante de
considerou basicamente grande parte da que o mais forte e verdadeiro é aquele
compreensão da dialética hegeliana, que manda que impõe seus interesses e
sendo que em vez de focar apenas na suas regras, inclusive suas crenças como a
perspectiva idealista Marx preferiu à mais perfeita. Em Kiriku a feiticeira
materialista; isto é, para ele a dialética representa esse poder e essa ideologia
relidade deve ser percebida a partir das que impõe a todos os habitantes da aldeia
condições históricas e materiais e sua as suas regras e seus interesses; mas, o
influência no sujeito; esse que, por sua vez garoto Kiriku se posiciona alheio a essas
interfere na realidade e pode transformá- regras e procura conhecer para
la. transformar. A postura do pequeno herói
O personagem Kiriku é retratado negro contrasta com a dos povos da
nessa perspectiva transformadora a partir aldeia, pois, a maioria se sente resignada
das condições estabelecidas; Kiriku com a situação de exploração na qual
representa a negação do super herói vive.
fabricado pela indústria cultural, conforme Embora reconheça que a feiticeira é
podemos perceber nos chamados filmes má e que submete a todos da
de massa ou comerciais; assim o menino comunidade uma vida de insegurança e
Kiriku confronta também com os padrões medo, boa parte das pessoas teme a
estabelecidos pela cultura dominada pelo feiticeira e sua ira. Mesmo tendo secado a
mercado; em vez disso, temos um água da fonte que atendia toda a
personagem criado a partir da realidade comunidade e tendo que entregar toda a
dos colonizados, dos povos africanos de sua riqueza produzida, as mulheres da
modo que já traz à discussão sobre esse aldeia não encontram forças para

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enfrentar a maldosa feiticeira. Quase dele ser pequeno e ousado, aos poucos as
todos os homens da aldeia foram pessoas vão reconhecendo seu valor.
aprisionados por Karabá, a feiticeira; Mas isso só aconteceu devido à
sobraram apenas um ancião e um tio do postura do novo menino. Na verdade, há
Kiriku; esse que ainda tem coragem de uma situação de ambivalência na
enfrentar a malvada, e as crianças, dentre comunidade em relação ao Kiriku, ao
elas o mais novo dos infantes, o Kiriku. A mesmo tempo em que reclamam dele,
postura desse menino é o fato novo que tentam ignora-lo e até xingam ele,
revoluciona aos poucos toda a aldeia. também reconhecem suas atitudes
As condições estabelecidas heróicas. Isso também é uma
favorecem a dominadora, a feiticeira, característica da dialética, tendo em vista
tendo em vista que grande parte das que todo fenômeno carrega consigo a sua
adversidades sofridas pelo povo da contradição e, em se tratando de
comunidade da qual faz parte o pequeno realidade e de pessoas, estas estão
herói, foi imposta por ela. Além do mais sempre em processo de mudança. Não há
ela impõe o terror, a vigilância constante e uma linearidade nas coisas, na vida, nas
o medo a todos. Na situação em que a pessoas e no mundo, como defendem os
comunidade de Kiriku se encontra não positivistas mais ortodoxos; há um
havia alternativa, até o momento em que processo contínuo de mudanças, uma
surge o pequeno garoto que traz ânimos circularidade e nesse processo o sujeito é
aos seus aldeões. Todos estavam responsável pela qualidade das mudanças
acomodados e não sabiam como reagir, que podem ocorrer.
até que a situação muda completamente A importância do questionamento para
com a chegada de Kiriku, embora em o conhecimento e para a tomada de
diversos momentos ele tenha sido alvo de ação consciente
preconceito até mesmo pelas pessoas da Na primeira situação em que o
sua comunidade, principalmente pelo fato personagem Kiriku se dá conta da

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realidade com o nascimento cujo parto Kiriku, de pergunta em pergunta, reúne as


ele foi o próprio protagonista, temos informações necessárias, toma
nessa parte uma atitude de autonomia e conhecimento a cada passo sobre a
de afirmação da personalidade diante da realidade que envolvia a feiticeira, sua
realidade. relação com o povo da vila, sobre as
Kiriku nasce sem a ajuda de espertezas e fragilidades daquela que era
ninguém, escolhe o seu próprio nome, se considerada a mais perigosa e que
lava sozinho e já levanta os primeiros colocava todo o povo aos seus pés; dessa
questionamentos a partir do momento em forma Kiriku se prepara para enfrentar a
que se dá conta do mundo a sua volta. Já malvada feiticeira.
foi demonstrado que questionar é uma Os questionamentos levam Kiriku
característica central do Kiriku. Essa é sem ao conhecimento cada vez mais
dúvida uma das principais armas desse aprofundado, de modo que ele não se
personagem para conhecer e enfrentar os contentava com as simples respostas e até
desafios que ele encontra encontra pela com o que as pessoas diziam sobre ele;
frente. ele tinha convicção do que queria e
Perguntar é da natureza do ser tomou as medidas necessárias para saber
humano e é a principal forma de se saber como enfrentar a feiticeira e sua maldade.
sobre as coisas; quando as respostas não Kiriku, a partir dos seus
são suficientes surge a partir daí a questionamentos, fica sabendo que a
necessidade de buscar outras formas de feiticeira até pode se apresentar como
aprofundamento tais como a pesquisa, a uma grande malvada, só que ela não é
reflexão, a contextualização e a uma bruxa poderosa quanto pensam e
interpretação. Foi dessa forma que os nem tão forte; ela utiliza da ideologia
grandes estudiosos das diferentes áreas quando domina a partir da imposição do
conseguiram realizar grandes descobertas medo e do terror e deixa as pessoas
e é também dessa forma que o pequeno pensarem que ela tem poder suficiente

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quando na verdade ela se mostra muito dificuldades e superá-las. Isso qualquer


mais um blefe; por exemplo: as pessoas um pode ser se não se apega apenas ao
da aldeia pensavam que ela tinha comodismo e ao medo.
engolido os homens, quando de fato isso Fica, portanto, a lição dos
não acontecia, ela apenas aprisionava; questionamentos do menino Kiriku para a
também pensavam que ela quem tinha nossa vida, principalmente quando se
secado a fonte com o seu poder, mas a trata de educação; é pela educação livre e
fonte havia secado porque tinha um pela dedicação para buscar conhecimento
animal enorme que bebia toda a água; o que se aprende.
animal tinha entrado no local da fonte
ainda quando era pequeno. Kiriku enfrenta desafios e preconceitos,
A conversa de Kiriku com o sábio combate e se torna um herói.
avô demonstra a importância de se buscar Já foram demonstradas
o conhecimento por meio do anteriormente situações em que Kiriku
questionamento e do diálogo. Ao final da enfrenta preconceitos quando foi xingado
conversa o pequeno menino reuniu por algumas mulheres da aldeia e quando
elementos suficientes para saber que a as crianças o ignoravam por ser pequeno.
força de pessoas como a malvada Essas situações o menino Kiriku enfrentou
feiticeira está exatamente no com tranqüilidade e venceu
desconhecimento das outras, no demonstrando que o preconceito por ele
comodismo e na desunião. Mas, foi pelo ser pequeno não o impediu de ele fazer o
questionamento e pela força de vontade que acreditava e inclusive enfrentar o
para aprender que Kiriku se tornou um perigo. Agora trataremos dos momentos
verdadeiro herói; todavia, ele também não em que Kiriku combate, vence e se torna
tinha nada de especial, a não ser a um herói.
disposição para aprender e a clareza de Em vários momentos da animação
seus objetivos para enfrentar as Kiriku e a feiticeira, o pequeno

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personagem demonstra inteligência, Kiriku brincalhão é o melhor de nós,


Kiriku não é grande e tem seu valor e o
sagacidade, paciência e coragem. Quando seu maior tesouro é o coração de ouro,
esta no meu coração no seu coração,
defendeu as crianças da canoa encantada Kiriku é pequeno e é nosso amigo, Kiriku
não e grande e é o melhor
isso ficou evidente. Antes, porém ele tinha
sido discriminado pelos meninos e
A letra da música reflete o
respondeu defendendo-os do perigo. Há
contraste evidente entre uma pequena
outro momento em que Kiriku defende as
criança e o mundo dos adultos formado
crianças, dessa vez é de uma arvore
pelo padrão social de que tem que ser
encantada, também levada até aos
grande fisicamente para ser o melhor. Na
meninos pela feiticeira.
realidade Kiriku desconstrói essa
19:35 a 20:40- A árvore da
percepção preconceituosa e mostra sua
feiticeira se fecha com as crianças e sai
inteligência e capacidade de vencer
correndo para a casa de karaba , Kiriku sai
mesmo pequeno. Quando sabemos o que
correndo para salva-las e pega uma faca
queremos buscamos o conhecimento para
com uma da mulheres da aldeia e corre
saber como as coisas funcionam e nos
até encontrar a árvore com as crianças.
tornamos capazes de enfrentar os
25:24 a 26:05- Kirku pega um
desafios e dificuldades à revelia daqueles
espeto que uma das mulheres da aldeia
que pensam o contrario; as regras e
estava esquentando no fogo e entra no
normas em geral são impostas pela
buraco de onde sai a água da fonte e fura
coletividade e nem sempre correspondem
o bicho que tinha tomado toda a água da
aos interesses de fato da maioria, embora
fonte; a água então desce na bica e a
tenha seu consenso em determinadas
mulher grita água, água voltou.
situações, como podemos perceber na
28: a 29:20 - Todos da aldeia
sociedade. O fato é que a normalidade é
festejam Kiriku por ter liberado a água da
imposta pela coletividade, isso é, pela
fonte, todos cantavam
maioria, todavia, é preciso consciência das
Kiriku não é grande e é bem valente,
Kiriku é pequeno mas é meu amigo, condições que se vive para enfrentar as

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regras cristalizadas como se fossem conforme foi destacado, que oferecem


eternas e que só convém para aqueles elementos para desconstrução do
que estão no domínio da situação. preconceito e do racismo ainda tão
Kiriku supera as regras presente em nossa sociedade baseada no
estabelecidas, por isso que se torna um individualismo, no consumo e na
herói, mesmo em vários momentos tendo padronização; além disso, prioriza os
sido alvo de preconceitos e de pequenos gestos, o cotidiano simples de
discriminação. uma aldeia africana.
Temos nesse aspecto mais uma Após destacar alguns aspectos do
lição da perspectiva dialética presente no filme do pequeno herói negro,
filme Kiriku e a feiticeira; o menino Kiriku percebemos que Kiriku e a feiticeira
é a antítese do que se apresenta, enfrenta remete o espectador a um olhar atento e
os desafios e todo o padrão estabelecido crítico sobre como a dominação que se
para superar e mostrar que somos estabelece sobre um povo quando os seus
capazes quando acreditamos no que habitantes por alguma razão se
queremos e quando não temos medo de acomodam e não têm a curiosidade para
questionar a estrutura vigente. Foi com questionar como determinadas situações
essa postura que Kiriku descobriu um jeito de injustiça são estabelecidas numa
de resolver a situação com a feiticeira que sociedade como se fosse um processo
tanto mal já tinha provocado ao seu povo. natural, quando na verdade se trata
simplesmente de interesses que se impõe
Considerações finais em razão de determinados contextos e
A obra Kiriku e a feiticeira ideias que favorecem aqueles que se
apresenta uma perspectiva crítica e mantém no poder.
pedagógica sobre a vida de um pequeno A perspectiva pedagógica no filme
herói negro de uma aldeia africana. Kirirku e a feiticeira está praticamente em
Encontramos vários aspectos do filme, toda a narrativa construída na obra no

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sentido de mostrar o valor das pequenas aldeia, até mesmo pelas outras crianças,
coisas que fazem parte do cotidiano; mas nem por isso o menino Kiriku se deu
assim encontramos na natureza, nas por vencido. Ele enfrentou com coragem
historias contadas pelos moradores, nas todos os desafios e dificuldades que
crenças, no sentimento de solidariedade, encontrou pela frente e,
dentre outros fatores demonstrados no consequentemente, superou tudo o que
filme os quais permitem ao espectador era empecilho e ainda resolveu o
refletir sobre os sentidos e significados problema central da aldeia, que era a
que fazem a vida de um povo, de uma malvada feiticeiraque mantinha todos os
coletividade. aldeões sob o seu jugo.
De modo mais preciso, o senso de São muitas as lições da obra Kiriku
questionamento, a curiosidade constante e a feiticeira; trata-se de uma obra
do herói minúsculo, como é o caso do particular que desconstrói o mito do herói
menino Kiriku, revelam a importância de criado pela sociedade moderna que
não se acomodar com as dificuldades, padronizou o que considera bom, belo e
mas sim de procurar conhecer as causas útil. O herói Kiriku é o oposto do herói
dos fenômenos para buscar a ação mais criado pela cultura ocidental que se baseia
viável para a solução dos problemas que no imaginário do colonizador, na ideia de
surgem e que desafiam um povo a superioridade, na brancura como ideia de
procurar os meios de enfrentamento das pureza e de beleza, na altura como
dificuldades e com isso descobrir suas modelo de beleza e de superioridade;
capacidades para encontrar a solução. tudo isso é desconstruído quando se tem
O menino Kiriku tinha tudo para se um herói minúsculo, negro e pobre, mas
manter acomodado, assim como era todo que em nenhum momento se deixou
o povo da aldeia em que vivia; ele era abalar-se. Temos, portanto em Kiriku e a
minúsculo, pobre, discriminado feiticeira a possibilidade de refletir sobre
constantemente, rejeitado pela maioria da os valores que estão presentes em nossa

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sociedade e que em geral foram impostos


por um grupo como forma de
manutenção da exploração e da
dominação.

Referências

BENJAMIN, Walter. Mágia e técnica, arte


e política: ensaios sobre literatura e
história da cultura. São Paulo: Brasilense,
1994.

CHARNEY, L. e SCHWARTZ, V. (org.). O


cinema e a invenção da vida moderna.
São Paulo: Cosac & Naify, 2001.

DELEUZE, Gilles. A imagem-tempo. São


Paulo: Brasiliense, 2005.

DUBOIS, Phillippe. Cinema, Video,


Godard. São Paulo: Cosac e Naif, 2004.

Kirikú e a Feiticeira (Kirikou et la


Sorcière. 1998). França / Bélgica /
Luxemburgo. Direção e Roteiro: Michel
Ocelot. Vozes/Cast. Gênero: Animação,
Aventura, Família. Duração: 74 minutos.

SARLO, Beatriz. Tempo passado. Cultura


da memória e guinada subjetiva. São
Paulo: Companhia das Letras: Belo
Horizonte: Ed. da UFMG, 2007.

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