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Fruto da oralidade, forma tradicional do povo africano passar de geração a geração seus
conhecimentos, a literatura africana em língua portuguesa nasceu como uma espécie de
“grito ao mundo”, grito de um povo vitimado e abandonado pelo processo de colonização.
Nasceu também, como um meio de se reconstruir culturas que durante muito tempo
mantiveram-se desenraizadas, fragmentadas e coibidas pela lógica perversa da
hierarquização cultural, característica fundante do imperialismo europeu.
Para os povos africanos, a tradição das narrativas orais é muito importante. Por meio dos
mitos, das lendas, dos contos que passam de geração a geração, os costumes e valores
dessas culturas são transmitidos e reforçados. Quando as ex-colônias portuguesas
conquistam sua independência, torna-se necessário criar textos literários que "narrem" as
novas nações. É no repertório das narrativas orais e na história dos anos de opressão que
os escritores vão buscar os elementos essenciais para definir a identidade desses povos.
O marpingando lembranças
A cidade era governada pelas marés. E as marés eram mandadas por pássaros.
Assim se dizia, um passarito cinzento chamava a enchente. Outro, maior, de asas
brancas, convocava a baixa-mar. Me encantava essa crença, o poder de singelas
criaturinhas comandarem o imenso oceano. Eu, menino, não era guiado por relógio.
Vivia como essas aves que esperam as ondas. [...]
Agora, em meu sono, já não há paisagem sem mar. [...]
As pequenas canoas - os conchos e as almadias - vencem as águas lamacentas do
esquecimento. O Índico
ficou margem da minha alma. Nesse lago eu nasci. Nasci tanto que, agora, os meus
sonhos são anfíbios. O passado é um litoral onde tudo se converte em espuma. [...]
Sou moçambicano, filho de portugueses, nasci em pleno sistema colonial, combati
pela Independência, vivi mudanças radicais do socialismo ao capitalismo, da revolução à
guerra civil. Vim à luz num tempo de charneira, entre um mundo que nascia e outro que
morria. Entre uma pátria que nunca houve e outra que está nascendo. [...]
Cresci nesse ambiente de mestiçagem, escutando os velhos contadores de histórias. Eles
me traziam o encantamento de um momento sagrado. [...]
Eu queria saber quem eram os autores daquelas histórias e a resposta era sempre a
mesma: ninguém. Quem criara aqueles contos haviam sido os antepassados, e as histórias
ficavam como herança dos deuses. [...]
COUTO, Mia. "Águas do meu princípio." In: Pensatempos: textos de opinião. Lisboa:
Caminho, 2005. p. 147-151.
Neste trecho, Mia Couto explora a relação entre as narrativas orais e a construção da
identidade moçambicana. Ele descreve como a cidade era governada pelas marés, um
conceito transmitido por meio das narrativas orais. A crença de que os pássaros
controlavam as marés simboliza a conexão entre a natureza, os mitos e a vida cotidiana. Ao
mencionar que os antigos contadores de histórias eram fundamentais para sua formação,
Couto realça como as histórias transmitidas oralmente influenciaram sua visão de mundo e
identidade.
O escritor moçambicano aborda a reconstrução linguística de seus textos, ou como diz, de
sua escrita desarrumada, expressão que dá título à entrevista. Sobre a forte presença da
oralidade em sua obra, primeiramente ele declara que a oralidade o invade e desarruma a
escrita em tudo até o limite. O escritor esclarece que o desvio linguístico com relação à
norma portuguesa faz parte da oralidade de seu país, de onde ele nutre seu universo
ficcional. Ele se apercebe desses desvios como qualquer coisa que pode introduzir beleza
ou que interrogue aquilo familiar no universo moçambicano. Outra função dada ao uso da
linguagem oral é a de operar ao nível real, mostrando como as pessoas estão se
expressando. Há, portanto, para ele, uma fratura com relação à língua oficial que tem de ser
descoberta, tem de ser revelada, e os desvios linguísticos são sinais que podem mostrar
isso. Essa linguagem “despedaçada” espelha a dificuldade que as pessoas têm, quanto ao
português padrão, para expressarem o seu mundo.
Neste fragmento, Pepetela explora a ideia de que as narrativas orais são o fio condutor da
história de um povo após a independência. Ele questiona o que constitui a verdadeira
essência da vida naqueles tempos de independência e sugere que a vida estava nas
pequenas coisas, nas histórias transmitidas oralmente. O autor sugere que a coragem das
pessoas em sorrir em meio às adversidades é uma demonstração da força que as
narrativas orais e a tradição cultural conferem à sociedade.
Angola é composta por nove grandes grupos étnico-linguísticos, cuja rica diversidade se
manifesta na oralidade em diversas classes principais:
A imagem de um imenso tronco de árvore, do qual nascem novos galhos enquanto outros
morrem, é evocada para simbolizar o repertório de narrativas de uma cultura. Esses galhos
representam as elaborações e recriações da tradição oral e escrita de um povo. Nas
culturas predominantemente literárias, a oralidade desempenha um papel imenso na
construção da identidade cultural. A literatura oral, incluindo lendas, romances, contos,
provérbios, entre outros, compõe um repertório imenso que se renova de geração em
geração, alimentando o imaginário popular.
É destacado o contraste entre o mundo da escrita e dos livros e a realidade africana, onde o
analfabetismo persiste. Nos países africanos de língua portuguesa, o alto índice de
analfabetismo é uma herança do período colonial. Após a independência, países como
Angola e Moçambique enfrentaram anos de guerra civil que prejudicaram o sistema
educacional já incipiente. No entanto, mesmo em meio a essas dificuldades, a cultura e a
literatura continuam a ser partes importantes da vida das pessoas. A oralidade se torna uma
forma valiosa de construção de histórias.