A introdução da obra foi feita por Henrique L. Alves, afirmando que
Oscar D’ Ambrosio recriou um universo mítico para melhor compreender o próprio mito ou herói encarnado em Mário de Andrade, examinando toda a fixação do itinerário do anti-herói mitificado ou do herói mitificado. A abordagem realizada por Mário durante toda a sua obra, principalmente com relação aos símbolos, cria confrontos enérgicos de delimitações. Macunaíma é marcado por uma perenidade e uma densidade emocional (retratando um status social), em um painel mais vigoroso, com elementos trágicos e selvagens. Ela significou um grande marco contra uma cultura importada europeia, determinando o sentido brasileiro na universalidade de sua obra. Oscar propõe uma leitura “sob uma ótica que privilegia o mito do nascimento do herói”, a inscrevendo em uma tradição de obras nacionalistas com símbolos próprios do Brasil. Ele também traz uma ênfase ao desenvolvimento épico ao longo da história, ao mesmo tempo que Macunaíma busca por uma identidade própria para o país. Esse percurso foi significativo para mostrar a riqueza das obras épicas, detectando os mitos, dialogando com os símbolos e propondo uma leitura mais compreensiva destas obras. Assim, chegamos à conclusão de que Macunaíma é um livro elaborado na base do artesanato, constituindo-se de uma “colcha de retalhos” e vivendo entre a louvação e a crítica, descrito pelo próprio Mário de Andrade como algo cuja função é de “trazer o problema, pros que me leem, como uma realidade permanente”.
Introdução: O mítico, o simbólico e o épico em Macunaíma
“Somente há chave que dê o sentido do símbolo para quem compreende
a simbólica mítica”. Essa frase de Raoul Berteaux abre o capitulo de introdução da obra, representando todas as ricas relações existentes entre a crítica literária e o estudo da mitologia, principalmente em uma obra da magnitude de Macunaíma. Primeiramente, o termo mito reúne aspectos mais densos, que vão muito além de um simples relato de um acontecimento primordial ocorrido sob a intervenção de seres sobrenaturais (união entre a cosmogênese e a antropogênese). Os mitos trabalham na esfera do inconsciente coletivo, que é idêntico em todos os indivíduos e acaba estratificando as experiencias milenares da humanidade. É exatamente desse inconsciente que provem o termo dos arquétipos. Enquanto estes representam personagens universais, os símbolos vinculam-se a culturas específicas, e significam o “encaixe” de um objeto dividido em duas partes. A magia desses símbolos consiste na percepção e no desenvolvimento da capacidade analítica individual de observar uma manifestação artística e de perceber que ela representa muito mais do que aparenta. Para desvendá-los, é preciso reconhecer as relações de um texto com as fontes culturais do que ele se alimenta. Seguindo uma outra frase de Berteaux, com relação ao estudo da mitologia e dos símbolos, “Somente há via que conduza ao sentido sagrado do símbolo para quem vive a simbólica iniciática”. E é sob esse prisma que os símbolos serão elucidados em Macunaíma, através do seu desprendimento das garras familiares para amadurecer e enfrentar futuros desafios. O herói criado por Mário de Andrade pertence a uma longa tradição das obras universais destinadas a celebrar as características mais representativas de um povo ou de uma nação. Macunaíma encarna todas as diversas facetas da cultura brasileira, simbolizando um fio condutor de uma narrativa que se alimenta de tradições indígenas, africanas e europeias, mas também se inserindo em uma tradição de obras nacionalistas. A seguir, o autor cita inúmeras outras obras que também representam essa caracterização; são elas: Gilgamesh (antiga Mesopotâmia), Livro dos Reis (Pérsia), a Ilíada, a Odisseia, a Teogonia, Os Trabalhos e os Dias e Argonautas (Grécia Clássica), Mahabharata e Ramayana (Índia), a Eneida (Roma), o Beowulf (Inglaterra), a Edda Antiga e a Edda Prosaica (Irlanda), o Cantar de Mio Cid (Espanha), a Narrativa da Campanha de Igor (Rússia), a Canção dos Nibelungos (Alemanha), A Canção de Rolando (França), o Halewala (Finlândia), a Divina Comédia (Itália), Os Lusíadas (Portugal) e O Bebedor de Vinho de Palmeira (Nigéria). Além de todas essas obras estrangeiras, existem muitas outras obras brasileiras que buscaram uma identidade para o país. Entre elas estão os poemas épicos De Gestis Mendi de Saa (José de Anchieta) e Prosopopeia (Bento Teixeira), o drama O Uraguai (Basílio de Gama), a lenda nacional O Caramuru (Frei Santa Rita Durão), o poema Vila Rica (Cláudio Manoel da Costa), o poema épico Confederação dos Tamoios (Gonçalves de Magalhães), o romance O Guarani (José de Alencar), as obras Ode a Dois de Julho e Navio Negreiro (Castro Alves) e as narrativas Os Sertões (Euclides da Cunha) e O Caçador de Esmeraldas (Olavo Bilac). Já no contexto modernista, o movimento se dividiu em duas correntes: a Primitivista (Oswald de Andrade, Raul Bopp) e a Nacionalista (Cassiano Ricardo, Menotti del Picchia). Enquanto a primeira buscava uma renovação estética inspirada por motivos primitivos da terra e da gente brasileira, a segunda desejava uma nacionalização da literatura através de tradições folclóricas, combatendo as inspirações europeias. Algumas das principais obras desse período foram o Manifesto Pau- Brasil (Oswald de Andrade), Raça (Guilherme de Almeida), Vamos Caçar Papagaios e Martim Cererê (Cassiano Ricardo), República dos Estados Unidos do Brasil (Menotti del Picchia) e Cobra Norato (Raul Bopp). Assim como todas essas obras, Macunaíma integra essa tentativa de recuperação de aspectos culturais nacionais. Após todas essas referências, o autor retoma os principais objetivos de sua obra: identificar os mitos, dialogar com os símbolos e permitir a leitura da obra como um texto épico.
Macunaíma: herói desmitificado ou anti-herói mitificado
Ao conceituarmos o vocábulo herói, oriundo do grego héros, ele significa
um homem divinizado, filho ou descendente de um deus, caracterizados por serem seres fora do comum, capazes de façanhas sobre-humanas que os aproximava dos deuses. Ele era o protagonista de narrativas modelares que o tornam cultuado pelas massas, e também são marcados por sua valentia, coragem e força. Já o termo anti-herói surgiu graças a uma progressiva humanização dos protagonistas dos enredos, onde os heróis passaram a ser substituídos por personagens cada vez mais humanos, sem características sublimes. Enquanto o herói praticava atos de grandeza, o anti-herói não possui um comportamento extremo. O primeiro eleva e amplifica as ações que pratica, enquanto o segundo as minimiza ou rebaixa. O herói também possuía outras características comuns: era descendente de ancestrais famosos, tem um nascimento precedido de muitas dificuldades, é exposto ao perigo, abandonado e salva por animais ou pessoas humildes. Além disso, ele parece estar protegido por forças superiores, abandona o lar humilde e acaba tendo um fim melancólico. Ele também realiza proezas inimagináveis, e sofre com um rito iniciático que representa uma passagem de transformação. Ele também é alguém que nasce para lutar sozinho, sempre preparado para os perigos que o cercam e física e espiritualmente superior aos homens. Tendo contato com a dor e o sofrimento, o herói passa a ver melhor o mundo que o cerca e o seu próprio interior. E, apesar de serem considerados “poços de virtude”, acabam representando exatamente o oposto disso. Muitos possuem um lado menos nobre e cometem erros antiéticos, que serão compensados na morte desse personagem, que muitas vezes é violenta, traumática e solitária. Assim, o herói sofre devido a atos cometidos pelo seu orgulho desmedido e insolência, e é por esse processo que ele acaba alcançando a maturidade. É a partir do seu conhecimento sobre suas qualidades e limitações, coroando um processo mítico que cada ser humano precisa realizar interiormente para tornar-se maduro e consciente de si mesmo, do que é e da razão de estar no mundo. Ao adotarmos Macunaíma como exemplo (a obra foi escrita em 1926 e publicada em 1928), é possível identificar um misto de inspiração coletiva e amplo estudo da mitologia indígena e do folclore nacional, além da atenta observação dos costumes e da língua cotidiana utilizada pelos brasileiros. O personagem foi inspirado em um ciclo de lendas indígenas, mas que foram distorcidos, modificados e misturados com crendices populares de origem europeia e africana. Com relação ao nome Macunaíma, sua etimologia provém de macu (“mau”) e ima (“sufixo aumentativo”). Ele era um ser prodigioso, mesmo representando um “grande mau”. Nasceu “no fundo do mato virgem e era preto retinto e filho do medo da noite”. Sua miscigenação racial é evidente, entre um índio tapanhuma e um preto, mas que, ao se casar com a rainha Ci, se tornou o Imperador do Mato Virgem. Ao longo da narrativa, o personagem acaba cumprindo o seu destino mítico e realizando a sua trajetória heroica. Apesar dessa categoria “nobre”, Macunaíma não se enquadra em muitas das características heroicas já citadas. Ele não é filho de um deus, e não pode ser considerado um homem extraordinário por seus feitos guerreiros, valor e magnanimidade. Entretanto, ele teve um nascimento incomum (não teve pai), foi marcado por uma profecia (Nagô previu sua inteligência), abandona o lar após a morte da mãe, tem um casamento sagrado com uma rainha, passa por um rito iniciático (transveste-se de mulher), tem uma volta ao lar e acaba morrendo solitário, mesmo se tornando um objeto de veneração no céu. Assim, ele é um personagem que de forma alguma apresenta os ideais elevados ou atributos morais que os distingam dos mortais. Ele é egoísta e quer levar vantagem em todas as ocasiões possíveis, não se preocupando em prejudicar quem quer que seja. Assim, ele se afasta de certos aspectos míticos comuns nos heróis, sendo um herói (apresenta características incomuns) desmitificado (próximo ao homem comum) ou um anti-herói (protagonista humanizado, com fraquezas físicas e morais) mitificado. Comum e extraordinário, Macunaíma cumpre com o seu destino. Ele é um autentico herói, um protagonista marcado pela junção de opostos e pelo elevado número de contradições que lhe são inerentes. Heroico e anti-heroico, mítico e comum, Macunaíma é um herói sem nenhum caráter, contraditório como todos nós e representante dos nossos desejos de espécie. Ele representa um ser humano ambulante e formado por um microcosmos de contradições, que apenas pode ser sublinhado pela arte e os arquétipos nela contidos, universos que Mário de Andrade dominava aos poucos.
A energia vital dos símbolos telúricos: as formigas, os cupons, a cobra e
o amuleto A origem dos quatro elementos básicos da natureza está ligada ao Bramanismo, religião Hindu baseada na crença em Brama, divindade considerada a criadora do universo. Ele se desenvolveu no primeiro milênio a.C., e criaram textos sagrados que contém as doutrinas secretas e místicas do Hinduísmo. Para os brâmanes, o conceito de homem seria o de uma unidade constituída de persona (matéria densa, água, ar e fogo), individualização (momento de crise e instabilidade) e indivíduo (dividido em mente, luz e alma). Entre todos os elementos, a terra é considerada o princípio passivo, correspondendo também ao mundo consciente e fixo. Em Macunaíma, Mário apresenta quatro símbolos que são fortemente vinculados à terra: as formigas, os cupins, a cobra e o amuleto. Todos estão marcados por uma energia vital forte e transformadora, e assumem um papel relevante na narrativa do herói. Quanto às formigas, elas adquiriram diversos valores simbólicos ao longo da história. Na mitologia latina, elas eram consideradas as deusas da agricultura e da colheita, sendo cultuadas como divindades. Na Índia, elas eram vistas como símbolo de pequenez, importância e dissolubilidade humanas. Já na modernidade, ela era vista como um símbolo de atividade industriosa, de vida organizada em sociedade e de previdência (aqui o autor cita a fábula A Cigarra e a Formiga, onde a formiga tinha uma visão egoísta). Além disso, na Bíblia, é recomendado ao homem que tenha o mesmo empenho pessoal no trabalho sistemático do que o esforço das formigas, marcadas por uma inteligência e uma previdência. No contexto da literatura brasileira, as formigas já haviam ganhado um grande destaque em uma outra obra clássica: O Triste Fim do Policarpo Quaresma. No livro, o protagonista enfrenta as formigas que insistem em detonar as suas colheitas, e mesmo com todas as tentativas de Quaresma, elas se mostram um adversário muito bem estruturado e resistente. Do mesmo modo em que elas invadem a despensa de Policarpo, elas também estão presentes em quase todos os capítulos de Macunaíma, agindo quer a favor quer contra ao herói. As formigas comparecem em diversas cenas importantes e sob diferentes denominações. As que receberam mais destaque foram a Cambgique e a saúva. Enquanto a primeira ajuda Maanape a ressuscitar o irmão, as segundas são consideradas um dos principais malefícios nacionais (Pouca saúde e muita saúva os males do Brasil são). Assim, mesmo com a importante ação da formiga Cambgique, salvando Macunaíma após recolher seu sangue e retorná-lo ao seu corpo, o lado maléfico delas predomina, graças a uma evidente referência aos constantes relatos de numerosos cronistas portugueses e cientistas europeus aos estragos feitos pelas formigas nas lavouras dos colonizadores. O dístico já citado, que predomina durante toda a obra, foi baseado em duas frases importantes: "ou o Brasil acaba com a saúva ou a saúva acaba com o Brasil" (naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire) e "o Brasil é um vasto hospital" (médico brasileiro Miguel Pereira). Ambas acabam encontrando uma ressonância em Macunaíma, que tem um grande conhecimento das espécies de formiga (que também possuem um duplo sentido) e contrai diversas doenças ao longo da narrativa. Outro elemento terreno da obra são os cupins, cuja simbologia está vinculada à destruição lenta e clandestina, além de impiedosa. Em Macunaíma, assim como as saúvas, eles aparecem no livro vinculados ao mal e à morte (o personagem tenta se utilizar da crença de que botar formiga cupim no chinelo de alguém levaria à morte do dono do calçado). O mesmo o corre com a cobra, que se distingue de todas as outras espécies de animais. A serpente é oposta e complementar ao homem, sendo uma criatura fria e malvada. Ela ganha destaque no capítulo IV, com a aparição da Boiúna Luna. A origem da Boiúna é explicada como uma jiboia que cresceu muito e trocou a floresta pelo rio, ou como um ente nascido da união de uma mulher com um fantasma malvado. Mário centraliza o capítulo na figura da própria Boiúna (um filho desta, Cobra Morato, será abordado por Raul Bopp em um poema homônimo). Porém, não se encontrou nenhum registrei dessa lenda, o que nos leva a crer que foi uma criação ficcional do próprio autor (mesmo após o reaproveitamento de muitos mitos). No referido capítulo, a cascata Naipi conta que era uma índia virgem reservada a Capei, o Boiúna que dominava a sua tribo. Porém, ela se apaixona pelo guerreiro Titçatê, e ambos fogem com medo da vingança do réptil. A história comove Macunaíma, que enfrenta a Boiúna e consegue cortar a cabeça da Cobra Grande. Então, ela começa a perseguir o herói, até o momento em que ela sobe até os céus e se torna a lua, uma cabeça gorda, criada dentro dessa história criativa e lógica de Mário de Andrade. Assim, a cobra se tornou uma ligação entre os elementos telúricos (Terra) e celestes (ar). Além da Boiúna, outro elemento que propõe essa fusão é a muiraquitã. É um amuleto comum no rio baixo Amazonas, considerado um presente das guerreiras a certos índios. Macunaíma o recebe de Ci, antes de ela subir ao céu devida à perda do filho. Isso demonstra que o amuleto não poderia subir ao céu, permanecendo na terra ou na água ambos desvinculados do ar e de suas propriedades ascensionais e sagradas. Ao fim do livro, Macunaíma também perde a muiraquitã antes de subir aos céus, também representando que este último não poderia ascender ao plano divino. Assim, observa-se que as formigas, os cupins, a Boiúna e a muiraquitã apresentam diversos aspectos simbólicos relacionados ao elemento terra. Mário dá a todos eles um tom fantástico que permeia toda a narrativa e que lhe dá, como atributos, a atemporalidade, a vitalidade e o universalismo.
A divindade dos símbolos celestes: a estrela, a lua, o arco-íris e a
borboleta
O ar possui uma simbologia muito especial nas cosmogonias
tradicionais, sendo considerado um símbolo da espiritualização e da purificação. Ele está intimamente ligado a ideia de liberdade, sendo também um símbolo sensível da vida invisível. Na rapsódia de Mário de Andrade, Ci e Macunaíma transformam-se em estrelas após a morte. Esses episódios são baseados nas crenças populares que reforçam a tradição de que as pessoas de destaque na terra se tornam estrelas no céu. Aliados a essa ideia do céu, os elementos simbólicos que cercam a estrela têm sua origem no fato de ela ser uma fonte de luz. Seu poder de iluminar reforça as diferenças entre os símbolos celestes e espirituais aos terrenos e materiais, sempre imersos em trevas. Ela está estritamente ligada ao céu e evoca os mistérios do sono e da noite, simbolizando também o resplandecer pessoal de cada indivíduo. No capítulo III, Ci presenteia o herói com a muiraquitã e sobe ao céu por um cipó, transformando-se na estrela Beta da constelação do Centauro. Essa transformação de seres vinculados à terra em estrelas também é citada no capitulo XIII, onde Mário faz uma referência ao célebre compositor Carlos Gomes (“que fora músico muito célebre e agora era uma estrelinha no céu”), homenageando também o grande escritor José de Alencar, que trouxe aos seus textos o indígena brasileiro (que foi ignorado pelo realismo, parnasianismo e simbolismos nacionais). Por sinal, na tradição indígena, os heróis guerreiros valentes e as mulheres belas viravam estrelas (como é o caso de Macunaíma e Ci). Com relação às estrelas, Mário também trouxe a narrativa a lenda de Taina-Cã, uma belíssima estrela que na verdade era um índio forte e bonito, contado por Macunaíma a um papagaio. Depois disso, desprovido de Ci, da muiraquitã e de uma perna, o herói percebe que a sua jornada na terra chegou ao fim, e planta uma semente de cipó para alcançar o plano celestial. Assim, as diversas manifestações da estrela no texto de Mário de Andrade reforçam seu simbolismo como um elemento luminoso, portador de espiritualidade e superior às mazelas do mundo terreno. Outro elemento celeste muito presente na obra é a lua. Suas características fundamentais são a privação de luz própria e a passagem por diversas fases e mudanças de forma, indicando renovação, transformação e crescimento. Ela incorpora os ritmos biológicos através de suas fases sucessivas e regulares, estando sempre associada à passagem da vida à morte e vice-versa. Além disso, ela também simboliza o princípio passivo fecundo, relacionado com a noite, o inconsciente, a imaginação, o psiquismo, o sonho, a receptividade e tudo o que é instável, transitório e influenciável. No capítulo IV, a lua ganha importância na obra através do mito da cabeça da Cobra Grande, que resolve ir para o céu e se torna um astro sem luz própria, condenado a refletir a luminosidade do Sol. A lenda sobre a origem da lua é de um mito caxinauá, que é mantida por Mário com a narração da perseguição da cabeça decepada a Macunaíma. Ela também é citada no capítulo XVII e, após rejeitar o herói graças ao seu fedor, recebe dele vários murros que darão origem a suas manchas escuras. Assim, ao contrário das estrelas (que são princípios ativos e locais de residências sagradas), a lua apresenta uma simbologia passiva. Nessa dualidade ativo/passivo, surge o símbolo do arco-íris, caminho entre a terra e o céu, considerado uma ponte entre o mundo telúrico e divino. Em Macunaíma, ele é apresentado através de uma referência breve, mas significativa dentro do processo mítico que transforma o personagem em herói. Ela ocorre no capitulo VI, em que Macunaíma, transvestido de mulher, pergunta-se “será mesmo que esse tal de Venceslau imagina que passei por debaixo de algum arco-da-velha para ter mudado a natureza?”. Assim, além de representar o rito iniciático passado pelo herói, esse episódio também retrata a crendice popular sobre a mudança de sexo de quem passa por debaixo do arco-íris (já registrada em “O Folclore Pernambucano”, de Pereira da Costa). Essa expressão reúne os termos arco (cinto) e as ideias relacionadas à velha (figura neutra vinculada aos fenômenos meteorológicos). O último símbolo apresentado pelo autor é a borboleta, que pode ser vista como a alma liberta do invólucro carnal. Devido a suas diversas metamorfoses, ela também corresponde ao ciclo da vida, com a infância, a maturidade, a velhice, o tumulo de onde sai a alma e a reencarnação. No capitulo XV, ela também possui uma conotação de alma pois, na fuga de Macunaíma do lobisomem Oibê, ele afirma que, do interior do cão, sai uma borboleta azul que “era a alva de homem presa no corpo de lobo”. Esse símbolo acentua a pureza, leveza e harmonia através do azul, que é vinculado ao equilíbrio.
Os enigmáticos símbolos da transformação: a fonte, o fogo, as adivinhas
e o curandeiro
Além da terra e do ar, a água e o fogo também desempenham funções
importantes em Macunaíma, através de elementos míticos como a fonte, o fogo, as adivinhas e o curandeiro. Todos eles ajudam a suscitar as múltiplas conotações que se desenvolvem no texto de Mário. Com relação à água, suas significações simbólicas vêm da fonte da vida, o meio de purificação e o centro de regeneração. Além de ter a função essencial de ritual de batismo, ela constitui um símbolo de fertilidade, pureza, sabedoria, graça e virtude. Ela também possui dois valores: a de ser descendente e celeste (relacionada à chuva e à fecundação) e telúrica e ascensional (brotando da terra em todo o seu esplendor). Além disso, a água também é representada como algo que precisa fluir de modo continuo, da nascente (parto) para o mar (morte), seguindo o lema de que “navegar é preciso”. Ao longo da narrativa, Macunaíma percorre e atravessa vários rios, mas o principal símbolo relacionado à água é a fonte, consideradas imagens da alma e origem da vida interna e espiritual (presente no capítulo V). Na obra, esse elemento é apresentado como uma cova cheia d’água que ficava num lugar bem no meio do rio, preenchida por uma água encantada por São Tomé, em sua peregrinação apostólica ocorrida antes mesmo do descobrimento do país. Mergulhando na água, Macunaíma se tornou loiro, branco e de olhos azuis. Ao tentarem a mesma coisa, seus irmãos também mergulharam, mas Jiguê ficou “da cor de bronze novo” e Maanape ficou com “as palmas da mão e as plantas do pé vermelhas”. Esse acontecimento já havia sido narrado em Contos Populares Nordestinos, de Lindolpho Gomes, e foi levemente modificado por Mário (ele apenas substituiu a fonte por uma pegada cheia de água feita por São Tomé). É interessante notar que esta pegada se encontra no meio do rio, local simbolicamente significativo graças a sua aproximação com os elementos sagrados e o universo profano e humano. Além disso, o próprio Macunaíma apresenta semelhanças com Sumé: poder de transformação, viagens fantásticas e apego por elementos concretos, características não muito comuns em seres divinos. Essa última característica nos aproxima de um universo regido pelo complexo oppositorum, aproximando o elevado do espírito à vil matéria. Assim como a água, o fogo também recebe esse processo semelhante na narrativa. Além de ser um elemento espiritualizado e divino, seu poder destruidor lhe dá uma conotação pejorativa, presente na simbologia que cerca o universo subterrâneo. Esse elemento está vinculado a crença comum de que a cauda de certos animais seja portadora de fogo. Em Macunaíma, no capítulo VIII, o sol aparece sob a forma de uma deusa, personificada na forma feminina, que simpatizou com o herói e pretendia que ele se casasse com uma de suas filhas. Porém, após a sem-vergonhice do protagonista, ela decide parar de esquentar a terra, e é amarrada por suas próprias filhas enquanto Macunaíma a agride com munhecaços, até sair dela um “fogaréu por detrás”. Essa atitude das filhas de Vei está ligada a sua passagem entre Graças (a beleza e o encanto, espalhando alegria) a Eríneas (deusas gregas da vingança e do castigo). Esse episódio também ilustra o universo de complexo oppositorum em que o livro se insere. Assim, o fogo não é um elemento de purificação ou iluminação, e não simboliza o conhecimento e a inteligência como na mitologia grega. Ele é apenas um elemento que sai do ânus de uma deusa solar contrariada, amarrada e agredida. Mário subtrai até mesmo o seu significado clássico, e ele deixa de representar a sabedoria para ser uma simples alusão jocosa. Com relação às adivinhas, há uma cerca ressonância clássica na obra, principalmente se comparada à história clássica de Édipo Rei. A solução de enigmas como condição para salvar a própria vida já estava presente no folclore universal, principalmente na esfinge vencida por Édipo. Fix era um monstro opressor, como um pesadelo que brota das forças primordiais do inconsciente, mas que foi derrotada a partir da argumentação lógica. Assim, ela foi tragada pelo abismo, descendo para as trevas de onde surgiu, retornando ao caos onde foi gerada, miticamente por monstros e psicanaliticamente pelos medos interiores. No capitulo IX, após ser perseguido pela velha Ceiuci e buscar abrigo no quarto de uma de suas filhas, Macunaíma se vê diante de uma série de enigmas propostos pela menina, que apenas o deixaria fugir se ele acertasse pelo menos uma das três adivinhas. Pensando sempre nas conotações sexuais dos enigmas, o herói não soube escapar dos jogos verbais da menina, mas mesmo assim é liberto (a filha foi expulsa de casa e se tornou um cometa). Apesar de ter uma representação da esfinge clássica na figura da velha, Mário cria uma subversão dos mitos clássicos na realidade do herói. Ele não consegue responder aos enigmas, não domina o elemento fogo e nem a sabedoria e, mesmo assim, acaba escapando ileso de todos os episódios, preservando a sua própria vida. Além das adivinhas, outro elemento em Macunaíma vinculado à questão sagrada é a presença do curandeiro, como uma espécie de xamã, um sacerdote magico que entra em transe, pratica adivinhação e presta cuidados médicos. Sua principal característica é a do seu poder de manter contato direto com plantas, animais ou até mesmo pessoas mortas. Ele acaba sendo a somatória do curandeiro (praticante religioso de medicina), feiticeiro (trabalha com magia) e o sacerdote (líder religioso), sendo também um elo entre o concreto universo profano e a abstrata sacralidade dos deuses. No capitulo XII, Macunaíma está com sarampo, e os irmãos chamam o Bento-curandeiro para ajudá-lo. Este cura o herói “com alma de índio e água de pote”. Nesse mesmo capitulo, Macunaíma com uma pancada após tentar arrancar seus próprios testículos, e é Maanape, o feiticeiro da família, que o ressuscita na pensão. Assim, se as curas de Bento parecem ser mais por fruto da água mineral do que de seus poderes divinos, Maanape, que possui uma capacidade magica, não a utiliza somente para curas e para influencias fenômenos meteorológicos, também os utilizando para ganhar dinheiro ao profetizar o resultado do jogo do bicho. A seriedade do xamã passa a ter uma conotação jocosa e descomprometida nas mãos de Mário de Andrade, que os representa como um caráter bem brasileiro. Com tudo isso, é possível compreender a preocupação de Mário em tornar Macunaíma um amalgama das três principais culturas do Brasil: a índia, a branca e a negra. O herói sem nenhum caráter não domina o fogo (não é dotado de muita inteligência e conhecimento), nem a terra (é constantemente vencido pelas formigas) e nem o ar (rejeitado pela lua, não passando pelo arco- íris e não atingindo a pureza das borboletas) e muito menos a água (é derrotado pela uiara, que o deixou a beira da morte). Mesmo assim, ele pode ser considerado um herói no sentido psicanalítico, ao preencher certas carências e desejos humano. Outro aspecto importante da obra tem a ver com a constelação da Ursa Maior. Esta possui muitas significações culturais, mas Macunaíma só consegue se transformar nela com a ajuda do Pai do Mutum, que o recompensa por uma ação boa praticada na terra (ele o defendeu em frente a centenas de pessoas, contando sua verdadeira história). Entretanto, mesmo que tenha alcançado o céu, o herói não será eternamente lembrado, justamente por não conseguir dominar os quatro elementos. Mesmo em sua transformação na constelação, muitas pessoas ainda se referem a ela como Ursa Maior. O autor defende a substituição de seu nome por Macunaíma, como uma forma de concretizar o seu destino heroico e de homenagear Mário no centenário de seu nascimento (1994). O autor também reflete sobre o enquadramento na obra no termo rapsódia. Apesar de ser um termo respeitoso na música, ele adquiriu um sentido pejorativo na literatura, como uma obra construída a partir de fontes heterogêneas (no caso, com lendas afro-indígenas folclóricas), e que acaba sendo marginalizada, dificultando o acesso de novos leitores ao livro. O autor defende que Macunaíma devia ser chamado de romance, ao contar com requisitos básicos como a pluralidade da ação, de conflito, de domínio estilístico e de variedade de personagens, com muitos “engenhos de arte” na colagem dos episódios e na invenção de alguns. Ele pode ser considerado como um romance pitoresco, mas que é muito mais do que um mero produto das tradições populares. Do mesmo modo, ela não pode ser vista apenas dentro do contexto modernista, mas sob uma ótica mais abrangente. A própria busca pela muiraquitã representa muito mais do que parece: se trata de um trajeto percorrido com melancolia pelo personagem, em busca da esperança. A decepção do fim vira o escárnio, e a tragédia individual se transforma na epopeia universal que mantem a chama da esperança acesa. Para que a obra atinja um grau maior de conhecimento, “um passo pode ser dado por todos. Basta contar aos que nos cercam que a constelação chamada Ursa Maior é, na verdade, Macunaíma. Ao exercer essa função de rapsodos, talvez seja possível convencer o herói a agir como o Pai do Mutum, transformando todos os seus defensores em estrelas que viverão a brincar pelos caminhos do céu. Nesse momento, todos serão Macunaíma a usufruir a liberdade eterna”.