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Apresentação: Recriação do universo mítico

A introdução da obra foi feita por Henrique L. Alves, afirmando que


Oscar D’ Ambrosio recriou um universo mítico para melhor compreender o
próprio mito ou herói encarnado em Mário de Andrade, examinando toda a
fixação do itinerário do anti-herói mitificado ou do herói mitificado.
A abordagem realizada por Mário durante toda a sua obra,
principalmente com relação aos símbolos, cria confrontos enérgicos de
delimitações. Macunaíma é marcado por uma perenidade e uma densidade
emocional (retratando um status social), em um painel mais vigoroso, com
elementos trágicos e selvagens. Ela significou um grande marco contra uma
cultura importada europeia, determinando o sentido brasileiro na universalidade
de sua obra.
Oscar propõe uma leitura “sob uma ótica que privilegia o mito do
nascimento do herói”, a inscrevendo em uma tradição de obras nacionalistas
com símbolos próprios do Brasil. Ele também traz uma ênfase ao
desenvolvimento épico ao longo da história, ao mesmo tempo que Macunaíma
busca por uma identidade própria para o país. Esse percurso foi significativo
para mostrar a riqueza das obras épicas, detectando os mitos, dialogando com
os símbolos e propondo uma leitura mais compreensiva destas obras.
Assim, chegamos à conclusão de que Macunaíma é um livro elaborado
na base do artesanato, constituindo-se de uma “colcha de retalhos” e vivendo
entre a louvação e a crítica, descrito pelo próprio Mário de Andrade como algo
cuja função é de “trazer o problema, pros que me leem, como uma realidade
permanente”.

Introdução: O mítico, o simbólico e o épico em Macunaíma

“Somente há chave que dê o sentido do símbolo para quem compreende


a simbólica mítica”. Essa frase de Raoul Berteaux abre o capitulo de introdução
da obra, representando todas as ricas relações existentes entre a crítica
literária e o estudo da mitologia, principalmente em uma obra da magnitude de
Macunaíma.
Primeiramente, o termo mito reúne aspectos mais densos, que vão muito
além de um simples relato de um acontecimento primordial ocorrido sob a
intervenção de seres sobrenaturais (união entre a cosmogênese e a
antropogênese). Os mitos trabalham na esfera do inconsciente coletivo, que é
idêntico em todos os indivíduos e acaba estratificando as experiencias
milenares da humanidade.
É exatamente desse inconsciente que provem o termo dos arquétipos.
Enquanto estes representam personagens universais, os símbolos vinculam-se
a culturas específicas, e significam o “encaixe” de um objeto dividido em duas
partes. A magia desses símbolos consiste na percepção e no desenvolvimento
da capacidade analítica individual de observar uma manifestação artística e de
perceber que ela representa muito mais do que aparenta. Para desvendá-los, é
preciso reconhecer as relações de um texto com as fontes culturais do que ele
se alimenta.
Seguindo uma outra frase de Berteaux, com relação ao estudo da
mitologia e dos símbolos, “Somente há via que conduza ao sentido sagrado do
símbolo para quem vive a simbólica iniciática”. E é sob esse prisma que os
símbolos serão elucidados em Macunaíma, através do seu desprendimento
das garras familiares para amadurecer e enfrentar futuros desafios.
O herói criado por Mário de Andrade pertence a uma longa tradição das
obras universais destinadas a celebrar as características mais representativas
de um povo ou de uma nação. Macunaíma encarna todas as diversas facetas
da cultura brasileira, simbolizando um fio condutor de uma narrativa que se
alimenta de tradições indígenas, africanas e europeias, mas também se
inserindo em uma tradição de obras nacionalistas.
A seguir, o autor cita inúmeras outras obras que também representam
essa caracterização; são elas: Gilgamesh (antiga Mesopotâmia), Livro dos Reis
(Pérsia), a Ilíada, a Odisseia, a Teogonia, Os Trabalhos e os Dias e Argonautas
(Grécia Clássica), Mahabharata e Ramayana (Índia), a Eneida (Roma), o
Beowulf (Inglaterra), a Edda Antiga e a Edda Prosaica (Irlanda), o Cantar de
Mio Cid (Espanha), a Narrativa da Campanha de Igor (Rússia), a Canção dos
Nibelungos (Alemanha), A Canção de Rolando (França), o Halewala
(Finlândia), a Divina Comédia (Itália), Os Lusíadas (Portugal) e O Bebedor de
Vinho de Palmeira (Nigéria).
Além de todas essas obras estrangeiras, existem muitas outras obras
brasileiras que buscaram uma identidade para o país. Entre elas estão os
poemas épicos De Gestis Mendi de Saa (José de Anchieta) e Prosopopeia
(Bento Teixeira), o drama O Uraguai (Basílio de Gama), a lenda nacional O
Caramuru (Frei Santa Rita Durão), o poema Vila Rica (Cláudio Manoel da
Costa), o poema épico Confederação dos Tamoios (Gonçalves de Magalhães),
o romance O Guarani (José de Alencar), as obras Ode a Dois de Julho e Navio
Negreiro (Castro Alves) e as narrativas Os Sertões (Euclides da Cunha) e O
Caçador de Esmeraldas (Olavo Bilac).
Já no contexto modernista, o movimento se dividiu em duas correntes: a
Primitivista (Oswald de Andrade, Raul Bopp) e a Nacionalista (Cassiano
Ricardo, Menotti del Picchia). Enquanto a primeira buscava uma renovação
estética inspirada por motivos primitivos da terra e da gente brasileira, a
segunda desejava uma nacionalização da literatura através de tradições
folclóricas, combatendo as inspirações europeias.
Algumas das principais obras desse período foram o Manifesto Pau-
Brasil (Oswald de Andrade), Raça (Guilherme de Almeida), Vamos Caçar
Papagaios e Martim Cererê (Cassiano Ricardo), República dos Estados Unidos
do Brasil (Menotti del Picchia) e Cobra Norato (Raul Bopp). Assim como todas
essas obras, Macunaíma integra essa tentativa de recuperação de aspectos
culturais nacionais.
Após todas essas referências, o autor retoma os principais objetivos de
sua obra: identificar os mitos, dialogar com os símbolos e permitir a leitura da
obra como um texto épico.

Macunaíma: herói desmitificado ou anti-herói mitificado

Ao conceituarmos o vocábulo herói, oriundo do grego héros, ele significa


um homem divinizado, filho ou descendente de um deus, caracterizados por
serem seres fora do comum, capazes de façanhas sobre-humanas que os
aproximava dos deuses. Ele era o protagonista de narrativas modelares que o
tornam cultuado pelas massas, e também são marcados por sua valentia,
coragem e força.
Já o termo anti-herói surgiu graças a uma progressiva humanização dos
protagonistas dos enredos, onde os heróis passaram a ser substituídos por
personagens cada vez mais humanos, sem características sublimes. Enquanto
o herói praticava atos de grandeza, o anti-herói não possui um comportamento
extremo. O primeiro eleva e amplifica as ações que pratica, enquanto o
segundo as minimiza ou rebaixa.
O herói também possuía outras características comuns: era
descendente de ancestrais famosos, tem um nascimento precedido de muitas
dificuldades, é exposto ao perigo, abandonado e salva por animais ou pessoas
humildes. Além disso, ele parece estar protegido por forças superiores,
abandona o lar humilde e acaba tendo um fim melancólico. Ele também realiza
proezas inimagináveis, e sofre com um rito iniciático que representa uma
passagem de transformação. Ele também é alguém que nasce para lutar
sozinho, sempre preparado para os perigos que o cercam e física e
espiritualmente superior aos homens.
Tendo contato com a dor e o sofrimento, o herói passa a ver melhor o
mundo que o cerca e o seu próprio interior. E, apesar de serem considerados
“poços de virtude”, acabam representando exatamente o oposto disso. Muitos
possuem um lado menos nobre e cometem erros antiéticos, que serão
compensados na morte desse personagem, que muitas vezes é violenta,
traumática e solitária.
Assim, o herói sofre devido a atos cometidos pelo seu orgulho
desmedido e insolência, e é por esse processo que ele acaba alcançando a
maturidade. É a partir do seu conhecimento sobre suas qualidades e
limitações, coroando um processo mítico que cada ser humano precisa realizar
interiormente para tornar-se maduro e consciente de si mesmo, do que é e da
razão de estar no mundo.
Ao adotarmos Macunaíma como exemplo (a obra foi escrita em 1926 e
publicada em 1928), é possível identificar um misto de inspiração coletiva e
amplo estudo da mitologia indígena e do folclore nacional, além da atenta
observação dos costumes e da língua cotidiana utilizada pelos brasileiros. O
personagem foi inspirado em um ciclo de lendas indígenas, mas que foram
distorcidos, modificados e misturados com crendices populares de origem
europeia e africana.
Com relação ao nome Macunaíma, sua etimologia provém de macu
(“mau”) e ima (“sufixo aumentativo”). Ele era um ser prodigioso, mesmo
representando um “grande mau”. Nasceu “no fundo do mato virgem e era preto
retinto e filho do medo da noite”. Sua miscigenação racial é evidente, entre um
índio tapanhuma e um preto, mas que, ao se casar com a rainha Ci, se tornou
o Imperador do Mato Virgem. Ao longo da narrativa, o personagem acaba
cumprindo o seu destino mítico e realizando a sua trajetória heroica.
Apesar dessa categoria “nobre”, Macunaíma não se enquadra em muitas
das características heroicas já citadas. Ele não é filho de um deus, e não pode
ser considerado um homem extraordinário por seus feitos guerreiros, valor e
magnanimidade. Entretanto, ele teve um nascimento incomum (não teve pai),
foi marcado por uma profecia (Nagô previu sua inteligência), abandona o lar
após a morte da mãe, tem um casamento sagrado com uma rainha, passa por
um rito iniciático (transveste-se de mulher), tem uma volta ao lar e acaba
morrendo solitário, mesmo se tornando um objeto de veneração no céu.
Assim, ele é um personagem que de forma alguma apresenta os ideais
elevados ou atributos morais que os distingam dos mortais. Ele é egoísta e
quer levar vantagem em todas as ocasiões possíveis, não se preocupando em
prejudicar quem quer que seja. Assim, ele se afasta de certos aspectos míticos
comuns nos heróis, sendo um herói (apresenta características incomuns)
desmitificado (próximo ao homem comum) ou um anti-herói (protagonista
humanizado, com fraquezas físicas e morais) mitificado. Comum e
extraordinário, Macunaíma cumpre com o seu destino.
Ele é um autentico herói, um protagonista marcado pela junção de
opostos e pelo elevado número de contradições que lhe são inerentes. Heroico
e anti-heroico, mítico e comum, Macunaíma é um herói sem nenhum caráter,
contraditório como todos nós e representante dos nossos desejos de espécie.
Ele representa um ser humano ambulante e formado por um microcosmos de
contradições, que apenas pode ser sublinhado pela arte e os arquétipos nela
contidos, universos que Mário de Andrade dominava aos poucos.

A energia vital dos símbolos telúricos: as formigas, os cupons, a cobra e


o amuleto
A origem dos quatro elementos básicos da natureza está ligada ao
Bramanismo, religião Hindu baseada na crença em Brama, divindade
considerada a criadora do universo. Ele se desenvolveu no primeiro milênio
a.C., e criaram textos sagrados que contém as doutrinas secretas e místicas do
Hinduísmo.
Para os brâmanes, o conceito de homem seria o de uma unidade
constituída de persona (matéria densa, água, ar e fogo), individualização
(momento de crise e instabilidade) e indivíduo (dividido em mente, luz e alma).
Entre todos os elementos, a terra é considerada o princípio passivo,
correspondendo também ao mundo consciente e fixo.
Em Macunaíma, Mário apresenta quatro símbolos que são fortemente
vinculados à terra: as formigas, os cupins, a cobra e o amuleto. Todos estão
marcados por uma energia vital forte e transformadora, e assumem um papel
relevante na narrativa do herói.
Quanto às formigas, elas adquiriram diversos valores simbólicos ao
longo da história. Na mitologia latina, elas eram consideradas as deusas da
agricultura e da colheita, sendo cultuadas como divindades. Na Índia, elas
eram vistas como símbolo de pequenez, importância e dissolubilidade
humanas. Já na modernidade, ela era vista como um símbolo de atividade
industriosa, de vida organizada em sociedade e de previdência (aqui o autor
cita a fábula A Cigarra e a Formiga, onde a formiga tinha uma visão egoísta).
Além disso, na Bíblia, é recomendado ao homem que tenha o mesmo empenho
pessoal no trabalho sistemático do que o esforço das formigas, marcadas por
uma inteligência e uma previdência.
No contexto da literatura brasileira, as formigas já haviam ganhado um
grande destaque em uma outra obra clássica: O Triste Fim do Policarpo
Quaresma. No livro, o protagonista enfrenta as formigas que insistem em
detonar as suas colheitas, e mesmo com todas as tentativas de Quaresma,
elas se mostram um adversário muito bem estruturado e resistente. Do mesmo
modo em que elas invadem a despensa de Policarpo, elas também estão
presentes em quase todos os capítulos de Macunaíma, agindo quer a favor
quer contra ao herói.
As formigas comparecem em diversas cenas importantes e sob
diferentes denominações. As que receberam mais destaque foram a
Cambgique e a saúva. Enquanto a primeira ajuda Maanape a ressuscitar o
irmão, as segundas são consideradas um dos principais malefícios nacionais
(Pouca saúde e muita saúva os males do Brasil são).
Assim, mesmo com a importante ação da formiga Cambgique, salvando
Macunaíma após recolher seu sangue e retorná-lo ao seu corpo, o lado
maléfico delas predomina, graças a uma evidente referência aos constantes
relatos de numerosos cronistas portugueses e cientistas europeus aos estragos
feitos pelas formigas nas lavouras dos colonizadores.
O dístico já citado, que predomina durante toda a obra, foi baseado em
duas frases importantes: "ou o Brasil acaba com a saúva ou a saúva acaba
com o Brasil" (naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire) e "o Brasil é um
vasto hospital" (médico brasileiro Miguel Pereira). Ambas acabam encontrando
uma ressonância em Macunaíma, que tem um grande conhecimento das
espécies de formiga (que também possuem um duplo sentido) e contrai
diversas doenças ao longo da narrativa.
Outro elemento terreno da obra são os cupins, cuja simbologia está
vinculada à destruição lenta e clandestina, além de impiedosa. Em Macunaíma,
assim como as saúvas, eles aparecem no livro vinculados ao mal e à morte (o
personagem tenta se utilizar da crença de que botar formiga cupim no chinelo
de alguém levaria à morte do dono do calçado). O mesmo o corre com a cobra,
que se distingue de todas as outras espécies de animais. A serpente é oposta
e complementar ao homem, sendo uma criatura fria e malvada. Ela ganha
destaque no capítulo IV, com a aparição da Boiúna Luna.
A origem da Boiúna é explicada como uma jiboia que cresceu muito e
trocou a floresta pelo rio, ou como um ente nascido da união de uma mulher
com um fantasma malvado. Mário centraliza o capítulo na figura da própria
Boiúna (um filho desta, Cobra Morato, será abordado por Raul Bopp em um
poema homônimo). Porém, não se encontrou nenhum registrei dessa lenda, o
que nos leva a crer que foi uma criação ficcional do próprio autor (mesmo após
o reaproveitamento de muitos mitos).
No referido capítulo, a cascata Naipi conta que era uma índia virgem
reservada a Capei, o Boiúna que dominava a sua tribo. Porém, ela se apaixona
pelo guerreiro Titçatê, e ambos fogem com medo da vingança do réptil. A
história comove Macunaíma, que enfrenta a Boiúna e consegue cortar a
cabeça da Cobra Grande. Então, ela começa a perseguir o herói, até o
momento em que ela sobe até os céus e se torna a lua, uma cabeça gorda,
criada dentro dessa história criativa e lógica de Mário de Andrade.
Assim, a cobra se tornou uma ligação entre os elementos telúricos
(Terra) e celestes (ar). Além da Boiúna, outro elemento que propõe essa fusão
é a muiraquitã. É um amuleto comum no rio baixo Amazonas, considerado um
presente das guerreiras a certos índios. Macunaíma o recebe de Ci, antes de
ela subir ao céu devida à perda do filho. Isso demonstra que o amuleto não
poderia subir ao céu, permanecendo na terra ou na água ambos desvinculados
do ar e de suas propriedades ascensionais e sagradas.
Ao fim do livro, Macunaíma também perde a muiraquitã antes de subir
aos céus, também representando que este último não poderia ascender ao
plano divino. Assim, observa-se que as formigas, os cupins, a Boiúna e a
muiraquitã apresentam diversos aspectos simbólicos relacionados ao elemento
terra. Mário dá a todos eles um tom fantástico que permeia toda a narrativa e
que lhe dá, como atributos, a atemporalidade, a vitalidade e o universalismo.

A divindade dos símbolos celestes: a estrela, a lua, o arco-íris e a


borboleta

O ar possui uma simbologia muito especial nas cosmogonias


tradicionais, sendo considerado um símbolo da espiritualização e da
purificação. Ele está intimamente ligado a ideia de liberdade, sendo também
um símbolo sensível da vida invisível. Na rapsódia de Mário de Andrade, Ci e
Macunaíma transformam-se em estrelas após a morte. Esses episódios são
baseados nas crenças populares que reforçam a tradição de que as pessoas
de destaque na terra se tornam estrelas no céu.
Aliados a essa ideia do céu, os elementos simbólicos que cercam a
estrela têm sua origem no fato de ela ser uma fonte de luz. Seu poder de
iluminar reforça as diferenças entre os símbolos celestes e espirituais aos
terrenos e materiais, sempre imersos em trevas. Ela está estritamente ligada
ao céu e evoca os mistérios do sono e da noite, simbolizando também o
resplandecer pessoal de cada indivíduo.
No capítulo III, Ci presenteia o herói com a muiraquitã e sobe ao céu por
um cipó, transformando-se na estrela Beta da constelação do Centauro. Essa
transformação de seres vinculados à terra em estrelas também é citada no
capitulo XIII, onde Mário faz uma referência ao célebre compositor Carlos
Gomes (“que fora músico muito célebre e agora era uma estrelinha no céu”),
homenageando também o grande escritor José de Alencar, que trouxe aos
seus textos o indígena brasileiro (que foi ignorado pelo realismo, parnasianismo
e simbolismos nacionais). Por sinal, na tradição indígena, os heróis guerreiros
valentes e as mulheres belas viravam estrelas (como é o caso de Macunaíma e
Ci).
Com relação às estrelas, Mário também trouxe a narrativa a lenda de
Taina-Cã, uma belíssima estrela que na verdade era um índio forte e bonito,
contado por Macunaíma a um papagaio. Depois disso, desprovido de Ci, da
muiraquitã e de uma perna, o herói percebe que a sua jornada na terra chegou
ao fim, e planta uma semente de cipó para alcançar o plano celestial.
Assim, as diversas manifestações da estrela no texto de Mário de
Andrade reforçam seu simbolismo como um elemento luminoso, portador de
espiritualidade e superior às mazelas do mundo terreno.
Outro elemento celeste muito presente na obra é a lua. Suas
características fundamentais são a privação de luz própria e a passagem por
diversas fases e mudanças de forma, indicando renovação, transformação e
crescimento. Ela incorpora os ritmos biológicos através de suas fases
sucessivas e regulares, estando sempre associada à passagem da vida à
morte e vice-versa. Além disso, ela também simboliza o princípio passivo
fecundo, relacionado com a noite, o inconsciente, a imaginação, o psiquismo, o
sonho, a receptividade e tudo o que é instável, transitório e influenciável.
No capítulo IV, a lua ganha importância na obra através do mito da
cabeça da Cobra Grande, que resolve ir para o céu e se torna um astro sem luz
própria, condenado a refletir a luminosidade do Sol. A lenda sobre a origem da
lua é de um mito caxinauá, que é mantida por Mário com a narração da
perseguição da cabeça decepada a Macunaíma. Ela também é citada no
capítulo XVII e, após rejeitar o herói graças ao seu fedor, recebe dele vários
murros que darão origem a suas manchas escuras. Assim, ao contrário das
estrelas (que são princípios ativos e locais de residências sagradas), a lua
apresenta uma simbologia passiva.
Nessa dualidade ativo/passivo, surge o símbolo do arco-íris, caminho
entre a terra e o céu, considerado uma ponte entre o mundo telúrico e divino.
Em Macunaíma, ele é apresentado através de uma referência breve, mas
significativa dentro do processo mítico que transforma o personagem em herói.
Ela ocorre no capitulo VI, em que Macunaíma, transvestido de mulher,
pergunta-se “será mesmo que esse tal de Venceslau imagina que passei por
debaixo de algum arco-da-velha para ter mudado a natureza?”.
Assim, além de representar o rito iniciático passado pelo herói, esse
episódio também retrata a crendice popular sobre a mudança de sexo de quem
passa por debaixo do arco-íris (já registrada em “O Folclore Pernambucano”,
de Pereira da Costa). Essa expressão reúne os termos arco (cinto) e as ideias
relacionadas à velha (figura neutra vinculada aos fenômenos meteorológicos).
O último símbolo apresentado pelo autor é a borboleta, que pode ser
vista como a alma liberta do invólucro carnal. Devido a suas diversas
metamorfoses, ela também corresponde ao ciclo da vida, com a infância, a
maturidade, a velhice, o tumulo de onde sai a alma e a reencarnação.
No capitulo XV, ela também possui uma conotação de alma pois, na
fuga de Macunaíma do lobisomem Oibê, ele afirma que, do interior do cão, sai
uma borboleta azul que “era a alva de homem presa no corpo de lobo”. Esse
símbolo acentua a pureza, leveza e harmonia através do azul, que é vinculado
ao equilíbrio.

Os enigmáticos símbolos da transformação: a fonte, o fogo, as adivinhas


e o curandeiro

Além da terra e do ar, a água e o fogo também desempenham funções


importantes em Macunaíma, através de elementos míticos como a fonte, o
fogo, as adivinhas e o curandeiro. Todos eles ajudam a suscitar as múltiplas
conotações que se desenvolvem no texto de Mário.
Com relação à água, suas significações simbólicas vêm da fonte da vida,
o meio de purificação e o centro de regeneração. Além de ter a função
essencial de ritual de batismo, ela constitui um símbolo de fertilidade, pureza,
sabedoria, graça e virtude. Ela também possui dois valores: a de ser
descendente e celeste (relacionada à chuva e à fecundação) e telúrica e
ascensional (brotando da terra em todo o seu esplendor).
Além disso, a água também é representada como algo que precisa fluir
de modo continuo, da nascente (parto) para o mar (morte), seguindo o lema de
que “navegar é preciso”. Ao longo da narrativa, Macunaíma percorre e
atravessa vários rios, mas o principal símbolo relacionado à água é a fonte,
consideradas imagens da alma e origem da vida interna e espiritual (presente
no capítulo V).
Na obra, esse elemento é apresentado como uma cova cheia d’água
que ficava num lugar bem no meio do rio, preenchida por uma água encantada
por São Tomé, em sua peregrinação apostólica ocorrida antes mesmo do
descobrimento do país. Mergulhando na água, Macunaíma se tornou loiro,
branco e de olhos azuis. Ao tentarem a mesma coisa, seus irmãos também
mergulharam, mas Jiguê ficou “da cor de bronze novo” e Maanape ficou com
“as palmas da mão e as plantas do pé vermelhas”. Esse acontecimento já
havia sido narrado em Contos Populares Nordestinos, de Lindolpho Gomes, e
foi levemente modificado por Mário (ele apenas substituiu a fonte por uma
pegada cheia de água feita por São Tomé).
É interessante notar que esta pegada se encontra no meio do rio, local
simbolicamente significativo graças a sua aproximação com os elementos
sagrados e o universo profano e humano. Além disso, o próprio Macunaíma
apresenta semelhanças com Sumé: poder de transformação, viagens
fantásticas e apego por elementos concretos, características não muito comuns
em seres divinos.
Essa última característica nos aproxima de um universo regido pelo
complexo oppositorum, aproximando o elevado do espírito à vil matéria. Assim
como a água, o fogo também recebe esse processo semelhante na narrativa.
Além de ser um elemento espiritualizado e divino, seu poder destruidor lhe dá
uma conotação pejorativa, presente na simbologia que cerca o universo
subterrâneo.
Esse elemento está vinculado a crença comum de que a cauda de
certos animais seja portadora de fogo. Em Macunaíma, no capítulo VIII, o sol
aparece sob a forma de uma deusa, personificada na forma feminina, que
simpatizou com o herói e pretendia que ele se casasse com uma de suas
filhas. Porém, após a sem-vergonhice do protagonista, ela decide parar de
esquentar a terra, e é amarrada por suas próprias filhas enquanto Macunaíma
a agride com munhecaços, até sair dela um “fogaréu por detrás”.
Essa atitude das filhas de Vei está ligada a sua passagem entre Graças
(a beleza e o encanto, espalhando alegria) a Eríneas (deusas gregas da
vingança e do castigo). Esse episódio também ilustra o universo de complexo
oppositorum em que o livro se insere.
Assim, o fogo não é um elemento de purificação ou iluminação, e não
simboliza o conhecimento e a inteligência como na mitologia grega. Ele é
apenas um elemento que sai do ânus de uma deusa solar contrariada,
amarrada e agredida. Mário subtrai até mesmo o seu significado clássico, e ele
deixa de representar a sabedoria para ser uma simples alusão jocosa.
Com relação às adivinhas, há uma cerca ressonância clássica na obra,
principalmente se comparada à história clássica de Édipo Rei. A solução de
enigmas como condição para salvar a própria vida já estava presente no
folclore universal, principalmente na esfinge vencida por Édipo. Fix era um
monstro opressor, como um pesadelo que brota das forças primordiais do
inconsciente, mas que foi derrotada a partir da argumentação lógica. Assim, ela
foi tragada pelo abismo, descendo para as trevas de onde surgiu, retornando
ao caos onde foi gerada, miticamente por monstros e psicanaliticamente pelos
medos interiores.
No capitulo IX, após ser perseguido pela velha Ceiuci e buscar abrigo no
quarto de uma de suas filhas, Macunaíma se vê diante de uma série de
enigmas propostos pela menina, que apenas o deixaria fugir se ele acertasse
pelo menos uma das três adivinhas. Pensando sempre nas conotações sexuais
dos enigmas, o herói não soube escapar dos jogos verbais da menina, mas
mesmo assim é liberto (a filha foi expulsa de casa e se tornou um cometa).
Apesar de ter uma representação da esfinge clássica na figura da velha,
Mário cria uma subversão dos mitos clássicos na realidade do herói. Ele não
consegue responder aos enigmas, não domina o elemento fogo e nem a
sabedoria e, mesmo assim, acaba escapando ileso de todos os episódios,
preservando a sua própria vida.
Além das adivinhas, outro elemento em Macunaíma vinculado à questão
sagrada é a presença do curandeiro, como uma espécie de xamã, um
sacerdote magico que entra em transe, pratica adivinhação e presta cuidados
médicos. Sua principal característica é a do seu poder de manter contato direto
com plantas, animais ou até mesmo pessoas mortas. Ele acaba sendo a
somatória do curandeiro (praticante religioso de medicina), feiticeiro (trabalha
com magia) e o sacerdote (líder religioso), sendo também um elo entre o
concreto universo profano e a abstrata sacralidade dos deuses.
No capitulo XII, Macunaíma está com sarampo, e os irmãos chamam o
Bento-curandeiro para ajudá-lo. Este cura o herói “com alma de índio e água de
pote”. Nesse mesmo capitulo, Macunaíma com uma pancada após tentar
arrancar seus próprios testículos, e é Maanape, o feiticeiro da família, que o
ressuscita na pensão.
Assim, se as curas de Bento parecem ser mais por fruto da água mineral
do que de seus poderes divinos, Maanape, que possui uma capacidade
magica, não a utiliza somente para curas e para influencias fenômenos
meteorológicos, também os utilizando para ganhar dinheiro ao profetizar o
resultado do jogo do bicho. A seriedade do xamã passa a ter uma conotação
jocosa e descomprometida nas mãos de Mário de Andrade, que os representa
como um caráter bem brasileiro.
Com tudo isso, é possível compreender a preocupação de Mário em
tornar Macunaíma um amalgama das três principais culturas do Brasil: a índia,
a branca e a negra. O herói sem nenhum caráter não domina o fogo (não é
dotado de muita inteligência e conhecimento), nem a terra (é constantemente
vencido pelas formigas) e nem o ar (rejeitado pela lua, não passando pelo arco-
íris e não atingindo a pureza das borboletas) e muito menos a água (é
derrotado pela uiara, que o deixou a beira da morte). Mesmo assim, ele pode
ser considerado um herói no sentido psicanalítico, ao preencher certas
carências e desejos humano.
Outro aspecto importante da obra tem a ver com a constelação da Ursa
Maior. Esta possui muitas significações culturais, mas Macunaíma só consegue
se transformar nela com a ajuda do Pai do Mutum, que o recompensa por uma
ação boa praticada na terra (ele o defendeu em frente a centenas de pessoas,
contando sua verdadeira história). Entretanto, mesmo que tenha alcançado o
céu, o herói não será eternamente lembrado, justamente por não conseguir
dominar os quatro elementos.
Mesmo em sua transformação na constelação, muitas pessoas ainda se
referem a ela como Ursa Maior. O autor defende a substituição de seu nome
por Macunaíma, como uma forma de concretizar o seu destino heroico e de
homenagear Mário no centenário de seu nascimento (1994).
O autor também reflete sobre o enquadramento na obra no termo
rapsódia. Apesar de ser um termo respeitoso na música, ele adquiriu um
sentido pejorativo na literatura, como uma obra construída a partir de fontes
heterogêneas (no caso, com lendas afro-indígenas folclóricas), e que acaba
sendo marginalizada, dificultando o acesso de novos leitores ao livro.
O autor defende que Macunaíma devia ser chamado de romance, ao
contar com requisitos básicos como a pluralidade da ação, de conflito, de
domínio estilístico e de variedade de personagens, com muitos “engenhos de
arte” na colagem dos episódios e na invenção de alguns. Ele pode ser
considerado como um romance pitoresco, mas que é muito mais do que um
mero produto das tradições populares. Do mesmo modo, ela não pode ser vista
apenas dentro do contexto modernista, mas sob uma ótica mais abrangente.
A própria busca pela muiraquitã representa muito mais do que parece:
se trata de um trajeto percorrido com melancolia pelo personagem, em busca
da esperança. A decepção do fim vira o escárnio, e a tragédia individual se
transforma na epopeia universal que mantem a chama da esperança acesa.
Para que a obra atinja um grau maior de conhecimento, “um passo pode
ser dado por todos. Basta contar aos que nos cercam que a constelação
chamada Ursa Maior é, na verdade, Macunaíma. Ao exercer essa função de
rapsodos, talvez seja possível convencer o herói a agir como o Pai do Mutum,
transformando todos os seus defensores em estrelas que viverão a brincar
pelos caminhos do céu. Nesse momento, todos serão Macunaíma a usufruir a
liberdade eterna”.

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