Você está na página 1de 1

“Do espírito das comemorações

Mas vós, musas, aos vossos das injúrias dos tempos segurais” - poema de Pessoa
Mesmo após cem anos de sua morte, o brilhante espírito liberal de Camões sobre
a sua amada pátria continuou sendo utilizado para criar uma guerra ideológica contra a
Monarquia e o seu conjunto de valores. Através de suas evocações, o autor trouxe a tona
o espirito nacional, e a exaltação dessa memória trouxe uma assimilação e uma
apropriação pelo presente do capital afetivo e ideológico que certas figuras do passado
representam.
Nem Camões e nem Os Lusíadas representam uma realidade intemporal e de
significação unívoca, por isso não devem ser deslocados para o período de expansão do
Oriente e da falsa eternidade de um mito moral, histórico e ideológico, que com nada
corresponde à ideologia apresentada pelo poeta.
Na obra camoniana, a antiga lusitana liberdade não era tão sintonizada com o
fervor popular, mas entronizava o espírito coletivo do autêntico amor da Pátria e a ideia
de Liberdade. Entretanto, em 1880, já no quarto centenário da obra de Camões, a
atmosfera portuguesa e o mundo já passaram por grandes mudanças, e a autentica
liberdade já se tornou uma oposição ao amor à pátria.
Apesar da epopeia se tratar de um genial manifesto (não sendo somente um
poema dedicado à exaltação da do amor pátrio), não é possível cobrir com o manto
camoniano uma perspectiva histórica e ideológica que mudou durante esses quatro
séculos.
Camões conseguiu guardar um mínimo de lucidez nesse patriotismo, tendo a
consciência dos problemas de sua nação, e trazendo um presente que já estava em crise
perante o dilema da vida pastoril e a politica imperialista. O que no poema aparece
como uma luz traumatizante para o futuro é a nossa imagem no conjunto dos outros
povos. Assim, o autor não confundiu a gesta ideal da Pátria com a sua realidade efetiva.
Camões não partilhou do clima de unanimismo forçado, e exaltou aspectos de
um mundo que era menos de heróis reais e mais de misérias e tristezas cotidianas. No
poema e através dele existem e subsistem problemas e contradições que estão em uma
relação profunda com o que nós somos, fomos ou desejamos ser. Comemorar Camões e
o seu poema é reexaminar com inteligência a mitologia cultural e ideológica de que o
poeta se tornou símbolo.
No mundo atual, não existem mais a boa consciência religiosa, cultural e
civilizacional ligados a Fé do Império, e o homem se tornou sensível à mudança dos
tempos e da fortuna. Mesmo assim, continua presente uma defesa daquela liberdade que
deve ser natural para o interesse coletivo, e que deve ser exaltada.
Assim, o poema goza de uma espécie de existência autônoma e intocável que
parece coloca-lo no espaço indiferente às nossas querelas e paixões culturais. Os
Lusíadas incorporaram-se à substancia cultural e espiritual da nossa existência, e vão
mudando de figura e significação sem perder o caráter de espelho da consciência
nacional. Cada poeta português remodelou essa imagem, trazendo-a de volta a uma
história presente, mas ainda “servindo” a Camões.

Você também pode gostar