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PÓS – GRADUAÇÃO PSICOLOGIA JUNGUIANA

USU – UNIVERSIDADE SANTA ÚRSULA

ERICK FURTADO COTRIM

ARQUÉTIPO DO TRICKSTER

Rio de Janeiro, 2024


Jung (2000,p.16), chamou de arquétipo - ‘’ tipos primordiais, imagens
universais que existem desde os tempos remotos ‘’. Desenvolvendo sobre este
pensamento de Jung, arquétipos são os elementos do inconsciente coletivo, o
inconsciente coletivo seria uma propagação psíquica que todo ser humano
recebe em sua criação. Não significa que ao nascer estejamos com tudo de
acordo, os arquétipos são possibilidades que existem no inconsciente coletivo,
são, portanto, potencialidades. Para Carl Gustav Jung uma camada do
inconsciente é pessoal e sobre essa, repousa uma camada mais profunda que
possui suas origens nas experiências do grupo social, ou seja, o arquétipo é uma
bagagem, comum a toda humanidade.

Jung define o arquétipo como um padrão de probabilidade de


comportamento, semelhante ao padrão de probabilidade dos cristais: Já
me perguntaram muitas vezes donde procede o arquétipo. É um dado
adquirido ou não? É-nos impossível responder diretamente esta
pergunta. Como diz a própria definição, os arquétipos são fatores e
temas que agrupam os elementos psíquicos em determinadas imagens
(que denominamos arquetípicas), mas de um modo que só pode ser
conhecido pelos seus efeitos. Os arquétipos são anteriores à
consciência e, provavelmente, são eles que formam as dominantes
estruturais da psique em geral, assemelhando-se ao sistema axial dos
cristais que existe em potência na águamãe, mas não diretamente
perceptível pela observação. (JUNG, 1999).

O arquétipo do trickster se faz presente em folclores e diversas mitologias,


com seu senso de humor, sua ironia e astúcia, possui muitas vezes uma face
caótica e distorce tudo aquilo que se imagina ser possível.

O termo ‘’trickster’’ originalmente, era um nome usado para nomear um


restrito número de ‘’heróis embusteiros’’ presentes em míticos grupos indígenas,
na literatura antropológica, uma pluralidade de personagens iguais, de que se
tem notícias em diversas culturas, trata-se de personalidades incomparáveis,
cada qual com feições próprias, animados por narrativas que os conduzem por
caminhos traiçoeiros. Com atitudes imprevisíveis, o trickster não se confunde,
com a figura de pícaro, posto que este último pratica a astúcia, movido por um
pragmatismo que não é característica do trickster (Candido, 1970, p. 71).

Há quem abrace o termo para nomear a figura do herói civilizador, que se
revela, ao mesmo tempo, portador de traços egoístas, a éticos e anti- sociais.
(Carroll, 1981). Outros, todavia, não exigem que o herói seja ‘’ moral e civilizador’’
para merecer o rótulo de trickster, basta que possua poderes sobrenaturais, e
que os empregue em aventuras marotas (Wescott, 1962). E também por fim,
aqueles que intitulam de trickster, todo e qualquer personagem velhaco e astuto,
não importando sua origem, as páginas dos textos literários, a fabulação dos
contos folclóricos, e até mesmo o universo dos quadrinhos e dos desenhos
animados (Abrams & Sutton – Smith, 1977). A trajetória do personagem é
pautada pela sucessão, de boas e más ações, beneficiando ou prejudicando os
homens, despertando-lhes, por consequência, sentimentos, de admiração e
respeito, por um lado e indignação e temor por outro.

Segundo Georges Balandier (1982, p. 25), o trickster (embusteiro,


ardiloso, astuto, desonesto, etc) recebe esta designação, em lembrança a uma
antiga, palavra francesa – triche (trichere = trapaça, furto, engano, falcatrua,
velhacaria) Laura Makarius (1969, p. 2) acrescenta que trickster significa “jouer
de tours” (pregador de peças) mas existindo uma dose de malandragem que
expressão francesa não consegue expressar.

Em diversos artigos e publicações, que ocupam do herói trickster,


apresentam diversidade interpretativa e conceitual, trazendo a pluralidade dos
personagens, portanto não há um consenso teórico, pois o mesmo se manifesta,
invariavelmente como um tipo ambíguo e contraditório.

Em diversas mitologias, ele assume feições humanas ou então


antropomórficas, noutras, aparece como animal – corvo, raposa, coiote, etc. Em
diversas regiões da África, por exemplo, a hiena, lebre aparecem como suas
encarnações zoomórficas (Beidelman, 1980, Koepping, 1985). Beidelman, se
refere a sete figuras de tricksters, na literatura oral dos Kaguru africanos (quatro
do mundo animal, lebres, hienas, pássaros, e serpentes - três do domínio
humano) de qualquer forma, o trickster, desempenha ambos os papéis, de vilão
e herói, e diversas vezes exerce o papel de herói civilizador, isto é, aquele que
cria condições indispensáveis ao crescimento da sociedade humana. Seus feitos
positivos na maioria, se manifestam de maneira involuntária, já que seu
comportamento se orienta, em grande parte, por impulsos egoístas e
antissociais. É o caso, do Corvo, trickster dos índios da costa noroeste norte-
americana, tido como o maior responsável pelo acesso dos seres humanos a
água potável e aos peixes - benefício estes criados não por nobreza, mas
segundo a mitologia local, ela foi criada, pois em dado momento o Corvo, se
sentiu faminto e sedento (Boas, 1966, P 474).

Como a carta O louco do tarô, observa o mundo de cabeça para baixo,


em uma lógica invertida, sendo uma figura que transita entre o mundo dos
homens e o submundo, e transita por caminhos impossíveis, é um quebrador de
regras, sempre levando histórias impensadas em toda narrativa que participa.

É um personagem plural, de muitas facetas, podemos citar o Deus Loki


da mitologia nórdica, considerado o deus da trapaça, magia e mentira, tendo
assumido diversas formas em suas muitas histórias com a intenção de gerar
conflitos e intrigas em determinados contextos, mas sempre com a intenção de
proporcionar mudanças e chocar o público e criar uma conexão com o novo.

Possui uma linha de conduta, vivenciando seus desejos, atuando em suas


travessuras, e envolvendo-se em situações complicadas, mas às resolvendo,
não com força de um herói, mas sim com sua malandragem e sua astúcia. Por
isso em certas literaturas é conhecido como o anti-herói, longe de ser um
cavaleiro honrado.

"...o "trickster" continua a ser uma fonte de divertimento que se prolonga


através das civilizações, sendo reconhecível nas figuras carnavalescas de um
polichinelo e de um palhaço." (Jung, OC, Vol 9/1)

Ao analisarmos podemos observar diversos exemplos do arquétipo do


trickster em diversas mitologias, como Hemes na mitologia grega, Exu na
mitologia Yorubá, e Tote na mitologia egípcia, são deuses ligados ao
conhecimento, sabedoria, estradas, caminhos, encruzilhadas, viagens e
comunicação. Se falarmos na forma psicológica, o trickster é aquele que nos
coloca diante de nossas fronteiras egóicas e comunica os aspectos da sombra
psíquica, nos propondo um diálogo, possibilitando uma transcendência, ir além
de limites conhecidos pela consciência.

‘’ O trickster é a corporificação mítica da ambiguidade e ambivalência, da


dubiedade e da duplicidade, da contradição e do paradoxo’’ (Hyde, Lewis, p.17).

Quando passamos a sofrer por ansiedade e transtornos depressivos, a


primeira reação do ego é resolver e extinguir toda sensação tida como negativa,
como um herói busca derrotar todo seus oponentes. Mas se toda expressão
psíquica diz algo sobre a psique, o que os sintomas e dores estariam falando
possivelmente sobre nossa alma? Poderia ser uma armadilha do trickster?
Poderíamos dizer que sim, pois ele nos faz lembrar que existe necessidade de
tais expressões de desprazer, que diante da busca por resoluções, devemos nos
questionar, olhar para outros caminhos, adotar uma perspectiva mais humorada
e lúdica, para acolher a dor que sentimos para assim tomarmos um caminho
diferente, algo que somente essa ruptura proporciona, essa quebra ao
paradigma, algo que só o arquétipo do trickster é capaz de realizar.

Na presença de encruzilhadas psíquicas, esses movimentos do trickster,


estão no dia a dia, seja em um problema que nos faz atrasar para o dia de aula,
e tal atraso cria uma série de consequências, ou mesmo a chave que
esquecemos em cima da mesa e temos que voltar para casa se não ficamos
trancados, e na rua cruzamos com pessoas novas, vemos lugares jamais vistos,
isso tudo é a alma do mundo nos mostrando que não temos controle sobre a
vida, e que não podemos lidar com isso, diante das travessuras do trickster.

O trickster segue sua própria lógica, jamais estabelecida pelas normas,


ele é o agente que quebra com a norma do meio, é um questionador. Um detalhe
importante é dizer que muitos personagens trickster são relatados como
homens.

"Todos os tricksters-padrão são masculinos. Há três razões relacionadas


para que isso aconteça. Primeiro, esses tricksters podem pertencer a
mitologias patriarcais [...]. Em segundo lugar, pode ser que haja um
problema com o próprio padrão; pode haver tricksters femininas que
foram simplesmente ignoradas. Por fim, pode ser que as histórias de
trickster articulem alguma distinção entre homens e mulheres, de forma
que até mesmo em um cenário matriarcal essa figura seria masculina."
(HYDE, Lewis, p. 479)

O trickster parece constituir situações que envolvem dimensões


universais da existência humana, mas isso só se concretiza, em contextos
socioculturais específicos, cada qual com a sua história. Assim os diferentes
tipos de trickster, também não poderiam de deixar de mostrar certas
peculiaridades próprias aos grupos sociais que lhe dão vida. O estudo dessas
figuras, exige no mínimo, o reconhecimento das diferenças existentes entre mito
e produção literária, e daquelas que opõe as sociedades igualitárias, às
formações sociais constituídas com as desigualdades.

Para que se aproxime figuras diferentes, mas também tão parecidas,


quanto Hermes e Exu, por exemplo, é necessário manter distância da sedução
das generalizações apressadas.

Não é nada fácil para um ocidental, aceitar combinações, de traços


antagônicos na feição de um único personagem. Nossa mentalidade sempre foi
maniqueísta, bondade e maldade não devem conviver no mesmo ser. Assim as
entidades devem ser más ou boas, deuses ou demônios. É certo que os
primeiros buscam seus contornos no perfil, dos segundos, e vice e versa.
Imagens parecidas, porém, inversas, demônios e deuses, não se devem
confundir no espelho de nossas figurações. Por isso talvez, os antropólogos, ao
tomarem conhecimento sobre o trickster, tenham partido o herói em personagens
diferentes, um mais brincalhão e benfazejo, convivendo com um segundo odioso
e pérfido. São bem conhecidas, a propósito, as tentativas, dos missionários, em
encontrar no panteão das entidades, indígenas, figuras que se prestassem a
representar as categorias do Bem e do Mal (Holanda, 1949). Sabe-se também
que o Eshu-Elegba, emigrando para o Brasil, assumiu, a identidade do próprio
demônio. (Bastide,1973, Trindade, 1979)

Se, como querem muitos autores, dizer que o trickster da sociedade


primitiva, é bom para ‘’pensar’’ sobre a natureza da sociedade humana, os
nossos trickster mais sagaz e experiente, nos obriga a fazer uma reflexão, sobre
o processo que nos conduziu da diferença à igualdade.

BIBLIOGRAFIA
ABRAMS, DAVID & SUTTON – SMITH, Brian. The development of the
trisckster in children’s narratives Journal of American folklore. 90 (355),
1977.

BALANDIER, Georges. O poder em cena. Brasilia, Editora da Universidade de


Brasília, 1982.

BASTIDE, roger. El prójimo e el estrano. Buenos Aires. Amorrortu Editores, 1973

CARROL, Michael. Levi-Strauss, Freud and the trisckstern – a new perspective


upon an old problem American ethnologist, 8 (2), 1981.

HOLANDA, Sergio Buarque de índios e mamelucos na expansão territorial


paulista. Anais do Museu Paulista, São Paulo, Imprensa Oficial do Estado, 1949.

HYDE, Lewis. A astúcia cria o mundo: trapaça, mito e arte. 1. Ed. RJ:
civilização brasileira, 2017.

JUNG , C. G. os arquétipos, e o inconsciente coletivo, 6. ed. Petrópolis,


Vozes, 2011.

MAKARIUS, Laura. Le mithe du trickster. Revue de l’Histoire des religions.


Paris. Presses Universitaires de France, 175 (1), 1969.

WESCOT, Joan. The sculpture and myths of eshu-egleba, the youruba


trisckster. Africa. London, 32 , 1962.

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