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PÓS – GRADUAÇÃO PSICOLOGIA JUNGUIANA

USU – UNIVERSIDADE SANTA ÚRSULA

ERICK FURTADO COTRIM

O PROCESSO DE KATÁBASIS

Rio de Janeiro, 2024


O termo Katabasis foi normalmente utilizado na literatura antiga para anunciar
uma descida ao submundo, ou a morada dos mortos (DANTAS, CORNELL,2019). Ao
longo das histórias mitológicas, diversos heróis efetuaram essas descidas, em busca
de diferentes objetivos. Orfeu desceu ao Hades na tentativa de buscar seu amor,
Eurídice e Hércules desceu ao Hades para efetuar um de seus 12 trabalhos. Na
Odisséia, essa trajetória efetuada por Ulisses, se associou ao Nekyia, ou seja, o rito
no qual os espíritos, dos mortos, são chamados para revelar o futuro
(BRANDÃO,1987). No período medieval, e renascentista, a descida foi
correlacionada, ao inferno cristão, como a Divina Comédia, de Dante Alighieri,
descrevendo diversos planos, do inferno e também do paraíso (ALIGHIERI,2006).

Nomes como Emanuel Swedenborg e Wiliam Blake, também vivenciaram suas


descidas ao inferno através de visões e sonhos, escrevendo seus relatos em obras,
como O Céu e o inferno (SWEDENBORG,1987) e O Matrimônio do Céu e do inferno
(BLAKE,2004). Shamdasani (2014) propõe, que as experiencias vivenciadas por C.G.
Jung que ocorreram em 1913 e sua produção do Livro Vermelho, simbolizam uma
continuidade dessa tradição. Jung teria realizado sua katábasis, iniciada em um
momento de crise pessoal. Ao refletir, sobre o período vivenciado de 1913 a 1915,
‘’Jung descreveu, esses anos nos quais perseguiu ‘’ as imagens interiores’’ como a
época de maior importância em sua vida’’ (BAIR,2003, p.330) pois como o mesmo diz

Tudo o que fiz posteriormente em minha vida, está contido nessas


fantasias, preliminares, (...). Minhas buscas cientificas, foram o
meio e a única, possibilidade, de arrancar-me a esse caos de
imagens, (...). Procurei, transformar cuidadosamente, cada
imagem, cada conteúdo, compreendendo-os racionalmente na
medida, do possível e, principalmente, procurei realiza-los na vida
(JAFFÉ,2016, P.198).
A perspectiva simbólica junguiana, é considerada a ponte epistemológica, entre
os mundos material e imaterial (PENNA,2013, p. 140). Assim, o conceito de katábasis,
pode se associar, em termos simbólicos, à compreensão da existência de uma dupla
natureza no homem, que envolveria, por um lado uma dimensão material, e por outro
lado, uma dimensão espiritual. Baseado no contexto, as religiões, buscam trazer
respostas e rituais para lidar com essas questões, sobre a ultima realidade. A
passagem de uma realidade material para uma espiritual, consolidada pela morte,
representaria então, uma experiência, de katábasis, e anábasis.
O culto aos mortos vem sendo praticados desde a remota antiguidade, tanto
por necessidade higiênicas, como por respeito ao corpo, a pessoa falecida, e até pela
crença, de que os vivos reverenciassem os que já partiram, essa atenção e cuidado,
poderia atenuar suas más influências, sobre o mundo físico. A vivência religiosa nesse
possível contato com o outro, mundo, também pode ser compreendido, através do
conceito de numinoso, formulado por Rudolf Otto (2011), um conjunto de reações
emocionais que geram, tanto arrebatamento, como estranhamento. O estar próximo
de um nume, como descrito por Hesíodo (1995) em sua Teogonia, gera temor, e
fascínio, por um lado, assim como medo e terror. O numinoso é, portanto, ‘’um evento
tanto singular, que por sua profundidade foge a interpretação inteligente’’ (OTTO,2011,
p 97).

A reflexão sobre o destino, dos indivíduos que antecederam na passagem para


o outro lado da vida, sejam os que demonstram comportamentos de bondade,
coragem e sabedoria, ou aqueles que foram corruptos e cruéis, trouxe a crença em
lugares espaçosos, específicos para abrigar diferentes tipos humanos
desincorporados.

As almas dignas, ou seja, boas, eram enviadas para os jardins e destinos de


boa aventurança, por exemplo – na mitologia egípcia, havia o Sekhet-Aaru, ou campos
de junco, reservado aqueles que foram julgados por Osíris, na suméria, acreditava-se
na terra de Dilmún, seria uma espécie de éden, na Grécia antiga, os campos Elíseos,
e na Cristã, o paraíso é o Céu. Em contraste, os lugares mais sombrios e tenebrosos
são destinados ás almas dos homens de coração corrompido, nas partes mais
profundas da terra, dos quais não podem sair. É de se notar como os antigos, estavam
convencidos, de que justos e injustos não ocupariam o mesmo espaço depois da
morte (SERRANO, 1999).

Também em outras culturas, existe a crença de que os falecidos que


agonizaram e lutaram, possuíam conhecimentos adquiridos pela experiencia, e que
poderiam levar sabedoria, para aqueles que se aventurassem em seus reinos,
descendo ao submundo, mas nem todas as culturas concordavam com esse tipo de
visão. Um exemplo, os cultos órficos da Grécia antiga, acreditavam que a alma de um
homem comum, não se passava apenas de uma sombra, que se esqueceria de tudo
ao nascer, pois beberia as aguas do rio Lethê ( o rio mitológico do esquecimento dos
pecados e da vida passada), ao passo que o iniciado, nos ritos e nos conhecimentos
de Orfeu poderia se mover com mais segurança no outro mundo e, tendo acesso, à
fonte da memória, poderia guardar esclarecimentos para serem, utilizados em seu
nascimento futuro (BRANDÃO, 1987).

Heróis e Deuses importantes de histórias mitológicas, também seguiram sua jornada


de descida ao submundo, e retornar ao mundo dos vivos, que refletiam os ciclos da
natureza. Foi o caso de Perséfone e Dioniso, Rá e Osíris no Egito. Heróis como
Hércules, Teseu e Orfeu, realizaram katábasis com diferentes objetivos. No mundo
cristão, Lázaro e Cristo, desceram a mansão dos mortos. Já no universo
renascentista, Dante foi conduzido por Vírgilio ás diferentes, moradas das almas
(SERRANO, 1999).

Observar como são os ciclos naturais, o deslocamento das estações em


contínuo processo de morte, e o renascimento, associaram, a katábasis, a diversos,
cultos iniciáticos. Para Edmonds (2004, p.113) ‘’ a interpretação iniciática é atraente,
em primeiro lugar, devido à equação comum, da história, da katábasis com um
processo, de morte, e renascimento, ‘’. Afirmando com com essa visão, de Eliade, que
afirma que ‘’ a descida para o Hades significa, passar por uma morte iniciática, a
experiência, desse tipo estabelece, um novo modo, de ser ‘’ (1972, p.27). No processo
iniciático, o homem se integrava, à natureza, agindo sob seus ciclos, de renovação,
ao mesmo tempo, do ponto de vista da reflexão, era oferecido, a ele, a oportunidade,
de transformar, suas concepções, de mundo, e surgir como ‘’homem novo’’
(BRANDÃO,1987).

A porta de entrada ao Hades, era uma caverna, e já no início, se encontrava o


cão Cérbero. Era uma criatura feroz e enorme, que possuía três cabeças, ele impedia
a saída do mundo dos mortos, passada essa caverna, se encontrava as crianças que
morreram, e em um espaço próximo, habitavam as almas dos inocentes que foram
presos e mortos por falsas acusações, logo adiante, vagavam as almas dos suicidas,
em um espaço mais profundo da caverna, encontrava-se o bosque de mírtos, o lugar
destinado aos guerreiros. E a partir desse final, o caminho se dividia, um levava para
o palacete de Hades e o outro que se chegava aos elísios, e o terceiro se chamava
Tártaro, lugar onde se recebia terríveis punições, e existia a súplica, das almas
sofridas. Existia também, um tribunal do submundo, regida por três juízes, Minos, Ecos
e Radamanto, faziam os mortos passar pelo exame de seus atos, obrigando
criminosos a confessarem seus crimes (HÉSIODO,1995, SERRANO, 1999).

Na descida feita pelos heróis ao submundo, Martinez (2000) faz uma


interessante distinção, entre os objetivos e as características, envolvidas. Ele destaca
três tipos de Katabasis, 1) Hybristike katabasis, presente nos mitos de Hércules e
Teseu, 2) a katábasis romântica de Orfeu, e a 3) katabasis necromante de Odisseu.

A primeira Katabasis é definida pela Hybris, uma expressão que significa, como
uma rebeldia a boa ordem, uma atitude que desconhece os limites, A katábasis de
Hércules, é encontrada em seu décimo primeiro trabalho, a busca pelo Cérbero a
mando do rei Euristeu. Diante do Deus Hades, Hércules lhe pede permissão para levar
a besta, ao que o Deus aceitou, desde que Hércules o dominasse sem usar qualquer
tipo de arma e sequer feri-lo. Neste mitologema, Brandão destaca

A respeito da katábasis de Hércules, sabe-se que esta configura, o supremo


rito iniciático, a morte simbólica, é a condição, indispensável para anábasis,
uma subida, uma escalada definitiva na busca do autoconhecimento, da
transformação, do que resta do homem velho no homem novo (1987, p.114).

Na perspectiva analítica, o encontro com essas criaturas monstruosas, diz


respeito a um reconhecimento de resíduos psíquicos, inibidores e sua superação, o
rompimento dos limites, que exige o esforço físico, nesse caso.

Na segunda Katábasis ( romântica) o amor se destaca como tema central do


mito, Orfeu era apaixonado por Eurídice, e a mesma foi morta através da picada de
uma cobra, Orfeu vem do grego (Orphnós) que significa obscuro, inicia sua trajetória
ao hades em busca de sua esposa falecida, depois de comover Hades e Perséfone
com sua melodia, Orfeu tem a permissão de voltar com sua amada, mas com uma
condição, não poderia olhar pra trás na volta pra casa, no caminho e vencido pela
dúvida, Orfeu olha, para ver se sua amada o seguia, e ela ficou petrificada e nunca
mais poderia retornar. A simbologia dessa katábasis , seria a necessidade do
desapego ao passado, pois o maior erro de Orfeu, foi ter olhado para trás, ter voltado
ao passado. Orfeu por tanto não estaria pronto, para o encontro harmônico com sua
anima, sendo só através da morte a sua libertação.

Para Martinez (2000), a katabasis é mais completa, é encontrada no mito de


Odisseu, chamado pelo autor de katabasis necromante, após a guerra de tróia,
Odisseu resolve enfrentar os Deuses, criando-se a hybris e portanto, iniciando sua
jornada de retorno ao lar. Portanto nesse processo, será despojado de seus bens e
perderá seus amigos e de sua tripulação, até seus sentimentos de orgulho serem
sacrificados no final. Sua descida ao reino dos mortos, representa a morte do homem
velho e rígido, para um nascimento de um homem esclarecido, que não é orientado
pelas glórias. No episódio de Nekya, Martinez (2000) identifica, uma necromancia,
Odisseu, deveria oferecer, o sangue dos animais, às almas dos mortos, em especial
Tirésias, o sábio. Traz uma consciência ampliada a Odisseu, pelo encontro, ganha
conhecimentos jamais vistos e assim o herói conecta sua jornada do passado,
presente e ainda consegue visualizar seu futuro.

Portanto, nesses três tipos de katábasis, podemos encontrar elementos


essenciais, da descida ao submundo, ou da busca pelo contato, com os espíritos e os
Numes.

Em 1937, Jung escreveu sobre numinoso como

Uma instancia ou efeito dinâmicos não causados por um ato arbitrário da


vontade. Pelo contrário, ele arrebata, e controla o sujeito humano, que é
sempre antes de sua vítima, que seu criador. O numinoso, indiferentemente
quanto a que causa possa ter, é uma experiencia, do sujeito, independente da
sua vontade, o numinoso, é tanto uma qualidade pertinente, a um objeto,
visível, como a influência, de uma presença invisível, que causa uma peculiar,
alteração da consciência. (CW 11, pag.6)

Na primeira katábasis, a vivencia do aspecto do terror, e a superação dos limites


estabelecidos pelo mundo físico. Na segunda, o desapegar da matéria, para um
encontro com os seres que partiram. E a terceira, a integração, da individualidade,
pelo esclarecimento pelo Numes do outro mundo.

Bibliografia
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