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Graal grego

Igor Teles Feitoza

Santa Rosa de Lima, 14 de março de 2023.

"Minhas raízes estão no ar / minha casa é qualquer lugar / se depender de mim eu vou até o fim"
canta a banda de rock, Engenheiros do Hawaii.

Benedetto Croce condensou a definição de discurso poético em "expressão de impressões", de


modo que a música cantada pelo artista denuncia e apresenta o caldo cultural que o alimenta.

Fato histórico recente referente ao caldo cultural é o movimento de contracultura vivenciado no


mundo moderno que se difundiu sob o lema "sexo, drogas e rock n' roll". O esforço empregado
pelo movimento propunha libertar as pessoas de uma herança alegadamente arcaica e obsoleta,
que não mais o explicava. Nesse dado momento, o homem decidia cortar suas raízes e romper com
a tradição. Decidiu por-se liberto.

Liberdade para o homem moderno, entretanto, parece constrastar com liberdade para o povo
helênico (grego). Ao passo que para a modernidade liberdade faz referência a liberdade de
locomoção, transação econômica e outras escolhas de efeito imediato, para o clássico é tornar-se
culto.

Perceba que ser culto difere de ser erudito. Evidente que beber das fontes mais nobres das
expressões poéticas e obras artísticas como as músicas de Bach, Mozart, Beethoven, bem como a
literatura de Homero, Virgílio, Dante Aligueri, Machado de Assis, Otto Maria Carpeaux, Graciliano
Ramos, etc. lhe forneça subsídios culturais sólidos, ser um indivíduo culto trata-se de um ato mais
acessível e imediato. Ser culto é ter poder de atribuir sentido aos estímulos que lhe cercam. É a
habilidade de articular os dados e fatos, e então atribuir impressões coesas que partem de valores
e princípios, ou mesmo, de uma cosmovisão. Ser culto portanto é possuir um mapa de orientação.

Somente aquele que possui um mapa é de fato livre para existir e manifestar-se de maneira
consciente sem estar sujeito a modismos de época e grupos de pressão.

O tesouro insuperável (aqui poeticamente referido como "graal grego") que os helenos legaram à
humanidade é a consciência de que a educação deve refletir a ordenação cósmica e perfeição
divina, sendo portanto, a justificação e sentido de todo o esforço humano.

Cultura para indivíduo clássico não se trata de espetáculo, mas sim de cultivar elementos que
elevam a alma do ser individual e da comunidade.

Bem como o amor dos vínculos familiares e a herança cultural são elementos perenes e de
transcendência, assim é a religião. Religião, por sua vez, compreende um conjunto de significados
simbólicos que permitem atribuir sentido aos desafios do seu tempo. No período grego, a religião
era o que conhecemos hoje por mitologia. De imediato, podemos nos sentir tentados a interpretar
a mitologia grega como o folclore daquela época, e por engano imaginar que do mesmo modo que
temos a caipora e o saci-pererê, os helenos tinham Zeus, Athena, Poseidon, Morpheus, e etc.

A mitologia, porém, tratava-se de um maravilhoso recurso para transmissão oral de conhecimento


de um povo que era pedagógico por excelência. Sendo assim, a mitologia grega não deve ser
entendida como uma história de fantasia, mas sim como um conjunto articulado de modelos para
a compreensão do cosmos, da ordem universal, do logos, da lei primordial que age nas coisas e
rege todas as esferas do ser humano (pensamento, linguagem, ação e expressões artísticas).

O mito atua como as balizas fundacionais e normativas da organização civil.

O ideal de todo esse nobre e extraordinário esforço de produção cultural se realizava no conceito
de areté. Por falta de equivalente fiel na língua portuguesa, podemos entender areté como a união
de virtude moral, cordialidade e heroísmo, ou mesmo, pela ideia de manifestar o máximo de sua
vocação individual que contribui para a ordenação do cosmos. Exemplos de areté do homem são a
destreza, virilidade e força, ao passo que a areté da mulher são a beleza, a doçura e a
sensibilidade, e ainda comum aos dois, a honra.

Já o oposto da areté é a hibris. Hibris é a ação desordenada que fere a lei primordial de ordenação
do cosmos e perfeição divina, que termina por trazer infortúnio ao indivíduo pois o cosmos seguirá
seu curso de reordenar-se. Dentro da tragédia grega, Antígona de Sófocles, após uma sucessão de
infortúnios temos a seguinte passagem: "A desmedida empáfia nas palavras reverte em
desmedidos golpes contra os soberbos que, já na velhice, aprendem afinal prudência."

O graal grego é o ponto arquimédico necessário para sustentar e gestar a ciência, a filosofia e o
terreno fértil para o cristianismo. A preciosidade consiste em ensinar que uma cultura para ser
sadia deve manter suas raízes metafísicas religiosas que permita um vínculo entre o homem
imperfeito e a divindade perfeita.

Uma amostra do nível elevado que uma obra de arte alcança ao preservar essa herança está
presente no conto "A aposta" de Machado de Assis. Nesse conto, um banqueiro e um jurista
comparam as penitências de prisão perpétua e morte. O jurista defende a prisão perpétua como a
mais benevolente, o banqueiro então o oferece uma aposta que consiste em suportar quinze anos
de cárcere sem contato com outras pessoas, apenas é permitido contato com obras culturais, livros
e música, por exemplo. O jurista percorre sua odisséia espiritual dentro da prisão e os anos vão se
sucedendo. O clímax se dá nos momentos finais da aposta, com poucos minutos para completar o
prazo e receber o prêmio, o jurista abandona propositalmente a prova e entrega a seguinte carta:

"Em sã consciência e diante de Deus, que me vê, eu vos declaro que desprezo a liberdade, a vida, a
saúde, e tudo aquilo que nos seus livros é chamado de bens da vida. Durante quinze anos, estudei
atentamente a vida terrena... Os vossos livros deram-me sabedoria... E eu desprezo os vossos
livros, desprezo todos os bens terrenos e a sabedoria. Tudo é mesquinho, perecível, espectral e
ilusório, como a miragem. Podeis ser orgulhosos, sábios e belos, mas a morte vos apagará da face
da terra... Vós enlouquecestes e tomastes o caminho errado. Tomais a mentira pela verdade, e a
deformidade pela beleza... vós trocastes o céu pela terra..."
Cantara o mesmo artista do início em outro momento: "Pensei que era liberdade / mas, na
verdade, eram as grades da prisão".

Libertar-se da herança tradicional - família, religião e educação clássica perene - para guiar-se
apenas por um ideal de gozo permanente que se reduz a fugir da dor e buscar o prazer é uma
ilusão de felicidade e auto-engano. Sem que se desse conta, a sociedade substituíra a areté pela
hibris, a ética pela estética, a tradição transcendente pelo efêmero imanente e o sagrado pelo
profano.

"O demônio luta com Deus e o campo de batalha são os corações humanos" Fiódor Dostoiévski.

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