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A cidade e o morro: as origens da filosofia e do samba

Paulo Henrique Fernandes Silveira


para Renata Humaire

1- Autóctone e estrangeiro; 2- Transcendente e imanente;


3- Desterritorialização e reterritorialização; 4- Identidade e diferença;
Conclusão; Referências.

A língua é minha pátria


e eu não tenho pátria, tenho mátria
e quero frátria
(Caetano Veloso)

1 – Autóctone e estrangeiro

Não é difícil vislumbrar relações entre a filosofia e o samba. Os sambas narram,


fundamentalmente, as alegrias e as tristezas dos seus compositores, das suas famílias e
das suas comunidades. Muitos sambas tratam de temas comuns à filosofia, tais como:
a solidão; a saudade; o amor; a rivalidade; a injustiça e a liberdade. Para Olgária Matos,
encontra-se nas canções brasileiras uma filosofia moral: “Esta se constitui na tradição da
‘medicina da alma’ e ‘consolo da filosofia’, pois ela se quer ciência da vida feliz. Se é
preciso pensar bem (filosofar), é para viver melhor” (2009, p. 107).
Em alguns sambas, a filosofia figura como tema central. No samba “Filosofia”,
André Filho e Noel Rosa percebem que ela os auxilia a permanecer indiferentes àqueles
que lhes dirigem injúrias. 1
Quando Noel veio a falecer, Cartola dedicou-lhe o samba
“A Vila emudeceu”, no qual se refere ao parceiro e amigo como “o rei da filosofia”.
Em “Filosofia do samba”, Candeia sustenta que para cantar bem um samba é preciso
enfrentar as ambiguidades do mundo, como só o fazem aqueles que conhecem sua
filosofia. Retomando essa ideia, em “Mora na filosofia”, Arnaldo Passos e Monsueto
falam de uma mulher que rima amor e dor. O conflito dos sentimentos, atestam Baden
Powell e Vinicius de Moraes em “Samba da benção”, inspira a composição dos sambas:
“Mas pra fazer um samba com beleza/ É preciso um bocado de tristeza/ É preciso um
bocado de tristeza/ Senão, não se faz um samba não”. Em “Desde que o samba é assim”,

1
A internet compartilha as letras e as melodias dos principais sambas do último século. Para o estudo das
canções do Noel Rosa, por exemplo, há o trabalho do Toninho Camargos, Luiz Henrique de Faria e
Regina Coelho: “Noel Rosa – 100 canções para o centenário” (noelrosacentenario.wordpress.com).
2

Caetano Veloso aponta para uma saída: “Mas alguma coisa acontece/ No quando agora
em mim/ Cantando eu mando a tristeza embora.”
As origens e as condições da criatividade são temas que podem aproximar a
filosofia e o samba. Nos seus textos de juventude, preocupado em entender as criações
artísticas e filosóficas da Grécia Antiga, Nietzsche reconhece a importância do oriente
nas pesquisas dos filósofos pré-socráticos: “Nada há de mais absurdo do que atribuir
aos gregos uma cultura autóctone; pelo contrário, assinalaram a cultura viva de todos
os outros povos e, se chegaram tão longe, foi porque souberam continuar a arremessar a
lança onde um outro povo a tinha deixado” (2009, p. 17). 2 Os gregos foram admiráveis
na arte de aprender, afirma o filósofo no mesmo texto, gerando frutos e incorporando
em suas vidas a cultura dos seus vizinhos. Numa anotação de caderno, Nietzsche sugere
que os filósofos pré-socráticos foram, de alguma maneira, estrangeiros despatriados
(1990, Inverno de 1872-1873, 23 [23], p. 293).
Não se pode duvidar que o samba cresceu e amadureceu no Rio de Janeiro,
porém, ele nasceu, de fato, na Bahia. Segundo Roberto Moura, após a abolição, milhares
de baianos tentaram a sorte na então capital do país: “Os primeiros que conseguem uma
situação na capital, um lugar para morar e cultuar os orixás e uma forma de trabalho,
não hesitam em fornecer comida aos que vão chegando, o que permitiu um fluxo
migratório até a passagem do século, garantindo uma forte presença dos baianos no Rio
de Janeiro” (1995, p. 87). Os baianos trouxeram para a capital seus cultos, suas festas e
o samba. Todavia, como bem analisa Hermano Vianna, foi na combinação de ritmos,
de tipos humanos e de classes sociais que se delineou o samba carioca (2010, p. 35).
Em seus começos, a filosofia e o samba dialogaram com as mais diversas formas
de pensamento. No entanto, resistindo à ameaça de serem esquecidos, filósofos e
sambistas, como quem defende sua pátria, inventaram o que Nietzsche chamou de
“unidade de estilo”. Para Deleuze, “o estilo é uma variação na língua, uma modulação e
uma tensão de toda a linguagem em direção a um fora” (2008, p. 176). O estilo liberta
uma língua estrangeira que existe na língua materna (DELEUZE, 2004, p. 128). Ao que

2
Na época de Nietzsche, as ideias de Johann Wilckelmann eram uma referência no estudo sobre os antigos.
Nas primeiras linhas do “Reflexão sobre a arte antiga”, Wilckelmann lança mão de imagens e de preceitos
autóctones para explicar a originalidade dos gregos: “O bom gosto, que mais e mais se expande no
mundo, começou a se formar, em primeiro lugar, em céu grego. De qualquer modo, todas as investigações
dos povos estrangeiros não chegaram à Grécia senão como uma primeira semente, e receberam uma
natureza e uma forma diferentes no país que, diz-se, Minerva destinara aos gregos como morada,
de preferência a todos os outros países, por ser aquele que produziria homens inteligentes, devido às
estações temperadas que ali encontrava” (1975, p. 39).
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tudo indica, tanto na filosofia quanto no samba, a criação demanda uma relação
inusitada entre a identidade e a diferença.

2 – Transcendente e imanente

No livro “As origens do pensamento grego”, Jean Pierre Vernant discorda da


tese de que algo inexplicável em termos da causalidade histórica, aquilo que ficou
conhecido como milagre grego, tenha provocado as transformações culturais da Grécia
Antiga (2002, p. 110).3 A revolução intelectual que precedeu a fundação das escolas
filosóficas, argumenta Vernant, é herdeira da racionalidade que aos poucos passou a
nortear os costumes e a organização das cidades (Ibidem). Para sustentar essa
interpretação, Vernant destaca a influência do debate político no encaminhamento que
os milésios e os outros filósofos pré-socráticos oferecem para a questão da ordem:

Com os milésios, pela primeira vez, a origem e a ordem do mundo tomam a


forma de um problema explicitamente colocado a que se deve dar uma
resposta sem mistério, ao nível da inteligência humana, susceptível de ser
exposta e debatida publicamente, diante do conjunto dos cidadãos, como as
outras questões da vida corrente (VERNANT, 2002, p. 114).

Sem temerem a rivalidade, o que os gregos entendiam por agôn, os filósofos


promoveram uma mudança fundamental na cultura do ocidente quando a determinação
da ordem deixa de ser uma atividade de um personagem divino ou excepcional, do sábio
que detém o poder de transmitir “uma verdade que vem do alto e que, mesmo
divulgada, não deixa de pertencer a um outro mundo, estranho à vida ordinária”
(Ibidem, p. 63). Essa abertura para a crítica e para a controvérsia passa a ser uma
característica comum dos pré-socráticos e das cidades democráticas: “Doravante,
a discussão, a argumentação, a polêmica tornam-se as regras do jogo intelectual, assim
como do jogo político” (Ibidem, p. 56). Enquanto pretendentes à sabedoria, afirmam
Deleuze e Guattari, os amigos e os amantes não existem sem rivais: “Se a filosofia tem
uma origem grega, como é certo dizê-lo, é porque a cidade, ao contrário dos impérios e

3
O milagre grego é uma expressão criada por Ernest Renan. Em “Oração na Acrópole”, Renan define seu
conceito: “Mas eis que ao lado do milagre judeu veio se impor, para mim, o milagre grego, algo que só
existiu uma vez, que jamais fora visto e que jamais voltará a se ver, mas cujo efeito durará eternamente,
refiro-me a um tipo de beleza eterna, sem qualquer mácula nacional ou local” (1893, p. 59-60).
No século vinte, vários helenistas seguem essa tese.
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dos Estados, inventa o agôn como regra de uma sociedade de ‘amigos’, a comunidade
dos homens livres enquanto rivais (cidadãos)” (1993, p. 17).
No jogo intelectual ou no jogo político, explica Vernant, a rivalidade pressupõe
uma semelhança entre aqueles que se vêm unidos pela amizade: “O vínculo do homem
com o homem vai tomar assim, no esquema da cidade, a forma de uma relação
recíproca, reversível, substituindo as relações hierárquicas de submissão e de domínio”
(2002, p. 65). Segundo Nietzsche, a partir desse vínculo entre a rivalidade e a amizade,
os gregos concebem uma educação agônica, para a qual o desenvolvimento dos
indivíduos, antes de tudo, visa o bem de todos e da cidade (1996, p. 82).
Os pré-socráticos criaram inúmeras ordens para as cidades e para o mundo.
De uma maneira ou de outra, o pensamento oriental se fez presente nessas filosofias;
assim, encontram-se elementos do Zoroastro em Heráclito; dos indianos, nos eleatas;
dos egípcios, em Empédocles; dos judeus, em Anaxágoras e dos chineses, em Pitágoras
(NIETZSCHE, 2009, p. 17). Todavia, as ideias orientais, mesmo aquelas advindas da
religião, não ancoram nas cidades gregas como verdades transcendentes que devam ser
seguidas a todo custo. É em função do ambiente e do meio grego, garantem Deleuze e
Guattari, que o oriente estrangeiro é reterritorializado pela filosofia (1993, p. 116).
No horizonte das opiniões conflitantes, a ordem não se situa como transcendente à
cidade, mas, como imanente a si mesma:

Numa palavra, os primeiros filósofos são aqueles que instauram um plano de


imanência como um crivo estendido sobre o caos. Eles se opõem, neste
sentido, aos Sábios, que são personagens da religião, sacerdotes, porque
concebem a instauração de uma ordem sempre transcendente, imposta de fora
por um grande déspota ou por um deus superior aos outros (DELEUZE;
GUATTARI, 1993, p. 60).

A todo o momento, estamos sujeitos aos grilhões da transcendência. Nem


sempre eles se nos apresentam impostos por um déspota ou por um personagem divino.
Aceitar que uma ordem seja transcendente significa admitir que não a criamos e que não
nos cabe questioná-la. Essa ordem pode fazer parte de uma cultura, de uma sociedade,
de uma filosofia, etc. Por outro lado, as ordens imanentes, como parecem ser aquelas
que foram criadas pelos pré-socráticos, estão abertas para o questionamento dos amigos.
Mesmo assim, advertem Deleuze e Guattari, “cada vez que se interpreta a imanência
como imanente a Algo, pode-se estar certo que este Algo reintroduz o transcendente”
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(Ibidem, p. 63). Por exemplo, se, para ser um pitagórico, o filósofo for obrigado a seguir
essa ou aquela teoria, essa identidade passará a ser uma imposição transcendente.
Por aí se compreende a dificuldade de manter o espaço aberto para a rivalidade
e para a criatividade. Após um período de intenso debate filosófico nas cidades gregas,
“Sócrates tornou toda discussão impossível, tanto sob a forma curta de um agôn
de questões e respostas, quanto sob a forma longa de uma rivalidade de discursos”
(Ibidem, p. 42). Sua estratégia foi seduzir seus discípulos a se tornarem amigos dos seus
próprios conceitos. Em tais situações, quando não há mais a possibilidade de se retomar
o movimento das transformações, é necessário refundar a sociedade de amigos enquanto
pretendentes à sabedoria. Para Deleuze e Guattari, pode-se reinventar essa amizade
desterritorializando o território no qual ela deixou de existir (Ibidem, p. 113).

3 – Desterritorialização e reterritorialização

As experiências de desterritorialização e de reterritorialização podem nos


ajudar a compreender o surgimento do samba carioca. Para Laymert Garcia dos Santos,
a desterritorialização “é um processo que vai do território à terra e faz com que o
primeiro se abra a um alhures” (2013, p. 10). Diferente dos territórios que ela abarca,
a terra nos abre um horizonte de possibilidades, evocando, segundo Celso Favaretto,
a potência dos nossos desejos (2004, p. 178).
No Rio de Janeiro, o samba oriundo da Bahia encontra as condições para se
tornar uma representação da identidade nacional. Num depoimento gravado em 1969
no Museu da Imagem e do Som, Donga, um dos primeiros sambistas a fazer sucesso
no início século vinte, parece endossar essa interpretação: “O samba não nasceu
comigo. Ele já existia na Bahia, muito antes de eu nascer, mas foi aqui no Rio que ele se
estilizou” (citado por SANDRONI, 2001, p. 100).
Num estudo detalhado e aprofundado, Carlos Sandroni identifica nos romances
de José de Alencar e de Aluísio de Azevedo, as primeiras referências da literatura sobre
o samba. Em “Til”, romance de Alencar publicado em 1872, a história se passa numa
fazenda de São Paulo e o samba figura, exclusivamente, como uma manifestação
cultural dos escravos negros. Em “O Cortiço”, romance no qual Azevedo narra uma
história ambientada no Rio de Janeiro de 1880, o samba é retratado como uma música
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praticada por homens livres e pobres: negros, brancos e mulatos. No livro de Azevedo,
ao contrário do que ocorre naquele de Alencar, são as personagens principais que
cantam e dançam o samba:

Este papel mais essencial do samba no texto literário acompanha o


movimento que o conduziu da periferia ao centro da vida social: da roça à
cidade, das províncias à capital federal, dos negros ao povo; movimento que
se consumará na criação, entre 1917 e o início da década de 1930, do samba
urbano carioca (SANDRONI, 2001, p. 94).

Em 1917, ou melhor, em fins de 1916, Donga registra o samba “Pelo telefone”


na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Pela primeira vez, uma composição seria
inscrita no gênero “samba carnavalesco”. 4 Nascido no Rio de Janeiro, Donga era filho
da baiana “Tia Amélia, cantadora de modinha, que realizava na rua do Aragão grandes
reuniões de samba” (MOURA, 1995, p. 92). Por um tempo, muitos baianos residiram
nos bairros próximos ao cais do porto, onde a moradia era mais em conta; aos poucos,
no entanto, a urbanização começou a empurrá-los para bairros distantes. Essa
comunidade ficou conhecida como “Pequena África” do Rio de Janeiro. Uma casa na
Praça Onze de Junho, na Cidade Nova, a casa da Tia Ciata, tornou-se a capital dessa
comunidade e do samba que lá se fazia. Nas noitadas musicais na casa da Tia Ciata,
formaram-se grandes sambistas. Além do próprio Donga, surgiram, entre outros:
Caninha; Heitor dos Prazeres, João da Baiana, Pixinguinha e Sinhô. O samba “Pelo
telefone”, reclamaria Tia Ciata, não teria sido uma parceria, apenas, de Donga e de
Mauro de Almeida; ele seria, isso sim, uma criação de vários sambistas que
costumavam se reunir em sua casa (SANDRONI, 2001, p. 9). Curiosamente, a primeira
estrofe do “Pelo telefone” descreve uma festa de bambas:

O chefe da folia
Pelo telefone
Manda me avisar
Que com alegria
Não se questione
Para se brincar

No início da década de 1930, o samba começa a despontar nos morros da cidade,


em especial, nos morros do Estácio de Sá. Sem terem ligação direta com os sambistas

4
Travou-se uma polêmica a respeito do pioneirismo do samba “Pelo telefone”. Segundo Roberto Moura,
antes da sua gravação, Alfredo Carlos Brício gravou, em 1913, “Em casa de baiana” e Chico Baiano
gravou, em 1916, “A viola está magoada” (1995, p. 117). De qualquer maneira, sem sombra de dúvida,
“Pelo telefone” foi o primeiro samba a ganhar repercussão nacional.
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que frequentavam a casa da Tia Ciata, na Cidade Nova, e sem terem filiação baiana,
compositores como: Ismael Silva, Nilton Bastos, Bide e Brancura, trazem a público um
samba diferente. O samba que vem dos morros tem mais percussão; além do violão,
entram em cena novos instrumentos como a cuíca, o surdo, o pandeiro e o tamborim.
A maior parte dos músicos tem pouca instrução formal. Os sambas vindos do Estácio
destacam um personagem e um cenário que até então não tinham aparecido em outros
sambas: o malandro e o botequim. Em depoimento a Sérgio Cabral, o próprio Ismael
Silva explica a peculiaridade do samba que ele ajudou a criar:

Quando comecei, o samba não dava para os agrupamentos carnavalescos


andarem nas ruas, conforme a gente vê hoje em dia. O estilo (da Cidade
Nova) não dava para andar. Comecei a notar que havia essa coisa. O samba
era assim: tan tantan tan tantan. Não dava. Como é que o bloco ia andar
na rua assim? Aí, a gente começou a fazer um samba assim: bum bum
paticumbumprugurundum (CABRAL, 1996, p. 242).

Em 1928, Ismael Silva participa da fundação, no Estácio, da primeira escola de


samba do Rio de Janeiro: a “Deixa Falar”. Por causa dessas dificuldades coreográficas,
o samba do Estácio se diferenciou ritmicamente do samba que era feito na Cidade Nova
(SANDRONI, 2001, p. 34). Em 1930, Francisco Alves e Mário Reis gravam o sucesso
“Se você jurar”, samba composto por Ismael Silva e Nilton Bastos. Já na primeira
estrofe do samba, somos apresentados ao malandro:

Se você jurar que me tem amor


Eu posso me regenerar
Mas se é para fingir mulher
A orgia assim não vou deixar

Em pouco tempo, esse estilo de samba conquista a preferência dos cariocas e se


espalha pelos morros da cidade. Temerosos de perderem a primazia, alguns sambistas
da Cidade Nova questionam a qualidade dos sambas feitos no morro. Assim, em 1933,
no samba “É batucada”, Caninha e Visconde de Pycohyba criticam:

Samba do morro
Não é samba
É batucada
É batucada
Lá na cidade
A escola é diferente
Só tira samba
Malandro que tem patente
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Naquele mesmo ano, Noel Rosa e Vadico responderiam a ofensiva dos rivais
com o samba “Feitio de oração”:

O samba na realidade não vem do morro


nem lá da cidade
E quem suportar uma paixão
Sentirá que o samba então
Nasce no coração

Ao analisar essa polêmica, José Fenerick insinua que o samba foi criado num
lugar geograficamente indefinido, ou ainda, no lugar nenhum onde fica o coração (2002,
p. 250). Talvez, a desterritorialização nos leve, na expressão cultivada por Homi Bhabha
(1998), para um entre-lugar: distante o suficiente para que possamos compreender
nosso lugar de origem e para que possamos antever o lugar para o qual o desejo nos
encaminha. Desterritorializado da Bahia, o samba não se tornou natural da Cidade Nova
ou dos morros do Estácio; nos versos de Noel Rosa, ao menos, ele se tornou natural de
qualquer lugar no qual as pessoas saibam suportar uma paixão.

4 – Identidade e diferença

Numa crítica severa aos filósofos e aos artistas da sua época, Nietzsche lamenta a
absoluta falta de estilo em suas criações: “tudo carece de originalidade, tudo é vacilante,
vestido com o robe-de-chambre do pensamento e da expressão, ou desagradavelmente
grandiloquente; além disso, sem a menor forma social verdadeira no seu fundamento”
(2011, p. 97). Preocupado, justamente, com a preservação da originalidade da música
popular brasileira, num artigo da década de 1940, Mário de Andrade, que além de
escritor e de músico, foi um importante folclorista, temia que o samba sofresse uma
aculturação por parte dos músicos burgueses que pouco ou nada se identificam com
o modo de vida dos verdadeiros sambistas, aqueles que moram nos morros e se formam
“na fraternidade das macumbas e dos cordões de carnaval” (1963, p. 322).
Assumindo o mesmo ponto de vista, na década de 1960, José Ramos Tinhorão
critica a sofisticação que, em diferentes períodos, artistas da classe média promoveram
na música brasileira visando atender às exigências do mercado internacional:
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Presos a essa contradição fundamental, que consiste em amoldarem-se a


padrões estrangeiros para ganhar universalidade, quando os estilos
internacionais pressupõem a média cultural dos países mais capazes de impor
suas matrizes, o que os artistas de estruturas econômicas fracas conseguem,
na melhor das hipóteses, é obter um produto que representa não mais a sua
cultura original, mas a dos centros cujos estilos foram levados a assimilar
(1969, p. 8).

Esse processo de sofisticação só poderia ser realizado por uma camada da


sociedade capaz de importar referências da música estrangeira; em alguns casos,
pessoas com formação universitária. A classe média transformou a música brasileira:
acrescentando instrumentos, mudando ritmos, incorporando novos temas nas letras e
abdicando da própria língua, como fizeram, por exemplo, o grupo “8 Batutas”, cantando
em francês na década de 1920; Carmem Miranda, cantando em inglês nas décadas de
1920 e 1930 e Chico Buarque de Holanda, cantando em italiano na década de 1960
(TINHORÃO, 1969, p. 10). Segundo Tinhorão, herdeira direta desse processo, a bossa
nova tornou-se um produto musical completamente adaptado à indústria fonográfica
norte-americana; mas, a despeito do seu sucesso comercial, ao incorporar a influência
do jazz bebop e modificar a batida tradicional do samba, Tom Jobim e João Gilberto
criaram uma “pasta sonora, mole e informe” (1997, p. 51). No calor da hora, num texto
escrito entre 1965 e 1966, Caetano Veloso polemiza com Tinhorão:

Os sons que Antonio Carlos Jobim organizou com flautas, violinos, bateria,
contrabaixo, madeiras, metais e João Gilberto (canto e violão), isto é, a
organização sonora que lhe foi sugerida pelo entendimento do violão e do
canto de João Gilberto é, ao mesmo tempo, samba popular e música de
câmara, com muitos ensinamentos colhidos do jazz. (...) Todo conhecimento
técnico, adquirido onde quer que seja, está a serviço da recriação da forma
samba, do jogo rico que se faz com seus elementos, os sons distribuem-se
ritmicamente para reencontrar o gosto pelo gingado, o domínio do ritmo
complexo do samba, para, daí, atingir (como poucas vezes se conseguiu) seus
conteúdos: a malícia, uma certa nostalgia, o dengo (1977, p. 7-8).

No samba como na filosofia, não raro, a defesa de uma identidade cultural corre
o risco de se transformar numa imposição transcendente. No caso específico do samba,
argumenta Vianna: “Aquilo que era elogiado por ser aberto ao diferente, por abarcar o
diverso, passou a excluir a diversidade em nome de sua ortodoxia” (2010, p. 158).
Ao contrário do jogo intelectual e do jogo político da Grécia Antiga, que Vernant,
Deleuze e Guattari entendem como espaços abertos para o debate e para a rivalidade,
a imposição transcendente exclui o diferente. Mais ainda, ela impede o reconhecimento
do outro e de nós mesmos como amigos e pretendentes à sabedoria.
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O pensamento oriental e o samba, reterritorializados nas cidades gregas e nos


morros do Rio de Janeiro, tiveram liberdade para se deslocar por inúmeros estilos.
Segundo Deleuze, o estilo cava diferenças na própria linguagem, libera a vida lá onde
ela está aprisionada, cria desequilíbrios, heterogeneidades, linhas de fuga (2008, p. 176).
A importância e a riqueza da filosofia e do samba devem muito à diversidade de
posições e de estilos que gregos e cariocas conseguiram abraçar.

Conclusão

Por muitos caminhos a filosofia se depara com o samba. Alguns fragmentos dos
pré-socráticos lembram os versos poéticos dos sambistas, algumas reflexões presentes
nos sambas lembram as teses filosóficas. Na Grécia Antiga e no Rio de Janeiro do
século XX, a filosofia e o samba trataram das experiências de pessoas que estavam
começando algo novo. Não é um exagero afirmar, como faz Nietzsche, que os filósofos
pré-socráticos foram estrangeiros despatriados, afinal, eles se aventuraram a criar uma
ordem para o mundo, tal como um imigrante que precisa construir um lugar para viver.
Talvez, possamos afirmar o mesmo a respeito dos primeiros sambistas que ajudaram a
criar uma identidade cultural para cariocas e brasileiros.
Num fragmento enigmático, Heráclito, provavelmente, o filósofo pré-socrático
que Nietzsche mais admira, confessa estar procurando por ele mesmo. Para Heidegger,
essa procura só faz sentido para quem passou pela difícil experiência de perder-se num
território estrangeiro (2004). Salvo engano, ao sugerir um mergulho no caos capaz de
nos distanciar “um pouco das regras que nos governam”, Bento Prado Júnior pensa
numa experiência semelhante a essa (2006, p. 20). A filosofia e o samba criam coisas
belas a partir das experiências mais tristes, como faz Candeia em “Preciso me encontrar”:

Deixe-me ir
Preciso andar
Vou por aí a procurar
Rir pra não chorar
Se alguém por mim perguntar
Diga que eu só vou voltar
Depois que me encontrar
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Referências

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