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1 – Autóctone e estrangeiro
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A internet compartilha as letras e as melodias dos principais sambas do último século. Para o estudo das
canções do Noel Rosa, por exemplo, há o trabalho do Toninho Camargos, Luiz Henrique de Faria e
Regina Coelho: “Noel Rosa – 100 canções para o centenário” (noelrosacentenario.wordpress.com).
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Caetano Veloso aponta para uma saída: “Mas alguma coisa acontece/ No quando agora
em mim/ Cantando eu mando a tristeza embora.”
As origens e as condições da criatividade são temas que podem aproximar a
filosofia e o samba. Nos seus textos de juventude, preocupado em entender as criações
artísticas e filosóficas da Grécia Antiga, Nietzsche reconhece a importância do oriente
nas pesquisas dos filósofos pré-socráticos: “Nada há de mais absurdo do que atribuir
aos gregos uma cultura autóctone; pelo contrário, assinalaram a cultura viva de todos
os outros povos e, se chegaram tão longe, foi porque souberam continuar a arremessar a
lança onde um outro povo a tinha deixado” (2009, p. 17). 2 Os gregos foram admiráveis
na arte de aprender, afirma o filósofo no mesmo texto, gerando frutos e incorporando
em suas vidas a cultura dos seus vizinhos. Numa anotação de caderno, Nietzsche sugere
que os filósofos pré-socráticos foram, de alguma maneira, estrangeiros despatriados
(1990, Inverno de 1872-1873, 23 [23], p. 293).
Não se pode duvidar que o samba cresceu e amadureceu no Rio de Janeiro,
porém, ele nasceu, de fato, na Bahia. Segundo Roberto Moura, após a abolição, milhares
de baianos tentaram a sorte na então capital do país: “Os primeiros que conseguem uma
situação na capital, um lugar para morar e cultuar os orixás e uma forma de trabalho,
não hesitam em fornecer comida aos que vão chegando, o que permitiu um fluxo
migratório até a passagem do século, garantindo uma forte presença dos baianos no Rio
de Janeiro” (1995, p. 87). Os baianos trouxeram para a capital seus cultos, suas festas e
o samba. Todavia, como bem analisa Hermano Vianna, foi na combinação de ritmos,
de tipos humanos e de classes sociais que se delineou o samba carioca (2010, p. 35).
Em seus começos, a filosofia e o samba dialogaram com as mais diversas formas
de pensamento. No entanto, resistindo à ameaça de serem esquecidos, filósofos e
sambistas, como quem defende sua pátria, inventaram o que Nietzsche chamou de
“unidade de estilo”. Para Deleuze, “o estilo é uma variação na língua, uma modulação e
uma tensão de toda a linguagem em direção a um fora” (2008, p. 176). O estilo liberta
uma língua estrangeira que existe na língua materna (DELEUZE, 2004, p. 128). Ao que
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Na época de Nietzsche, as ideias de Johann Wilckelmann eram uma referência no estudo sobre os antigos.
Nas primeiras linhas do “Reflexão sobre a arte antiga”, Wilckelmann lança mão de imagens e de preceitos
autóctones para explicar a originalidade dos gregos: “O bom gosto, que mais e mais se expande no
mundo, começou a se formar, em primeiro lugar, em céu grego. De qualquer modo, todas as investigações
dos povos estrangeiros não chegaram à Grécia senão como uma primeira semente, e receberam uma
natureza e uma forma diferentes no país que, diz-se, Minerva destinara aos gregos como morada,
de preferência a todos os outros países, por ser aquele que produziria homens inteligentes, devido às
estações temperadas que ali encontrava” (1975, p. 39).
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tudo indica, tanto na filosofia quanto no samba, a criação demanda uma relação
inusitada entre a identidade e a diferença.
2 – Transcendente e imanente
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O milagre grego é uma expressão criada por Ernest Renan. Em “Oração na Acrópole”, Renan define seu
conceito: “Mas eis que ao lado do milagre judeu veio se impor, para mim, o milagre grego, algo que só
existiu uma vez, que jamais fora visto e que jamais voltará a se ver, mas cujo efeito durará eternamente,
refiro-me a um tipo de beleza eterna, sem qualquer mácula nacional ou local” (1893, p. 59-60).
No século vinte, vários helenistas seguem essa tese.
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dos Estados, inventa o agôn como regra de uma sociedade de ‘amigos’, a comunidade
dos homens livres enquanto rivais (cidadãos)” (1993, p. 17).
No jogo intelectual ou no jogo político, explica Vernant, a rivalidade pressupõe
uma semelhança entre aqueles que se vêm unidos pela amizade: “O vínculo do homem
com o homem vai tomar assim, no esquema da cidade, a forma de uma relação
recíproca, reversível, substituindo as relações hierárquicas de submissão e de domínio”
(2002, p. 65). Segundo Nietzsche, a partir desse vínculo entre a rivalidade e a amizade,
os gregos concebem uma educação agônica, para a qual o desenvolvimento dos
indivíduos, antes de tudo, visa o bem de todos e da cidade (1996, p. 82).
Os pré-socráticos criaram inúmeras ordens para as cidades e para o mundo.
De uma maneira ou de outra, o pensamento oriental se fez presente nessas filosofias;
assim, encontram-se elementos do Zoroastro em Heráclito; dos indianos, nos eleatas;
dos egípcios, em Empédocles; dos judeus, em Anaxágoras e dos chineses, em Pitágoras
(NIETZSCHE, 2009, p. 17). Todavia, as ideias orientais, mesmo aquelas advindas da
religião, não ancoram nas cidades gregas como verdades transcendentes que devam ser
seguidas a todo custo. É em função do ambiente e do meio grego, garantem Deleuze e
Guattari, que o oriente estrangeiro é reterritorializado pela filosofia (1993, p. 116).
No horizonte das opiniões conflitantes, a ordem não se situa como transcendente à
cidade, mas, como imanente a si mesma:
(Ibidem, p. 63). Por exemplo, se, para ser um pitagórico, o filósofo for obrigado a seguir
essa ou aquela teoria, essa identidade passará a ser uma imposição transcendente.
Por aí se compreende a dificuldade de manter o espaço aberto para a rivalidade
e para a criatividade. Após um período de intenso debate filosófico nas cidades gregas,
“Sócrates tornou toda discussão impossível, tanto sob a forma curta de um agôn
de questões e respostas, quanto sob a forma longa de uma rivalidade de discursos”
(Ibidem, p. 42). Sua estratégia foi seduzir seus discípulos a se tornarem amigos dos seus
próprios conceitos. Em tais situações, quando não há mais a possibilidade de se retomar
o movimento das transformações, é necessário refundar a sociedade de amigos enquanto
pretendentes à sabedoria. Para Deleuze e Guattari, pode-se reinventar essa amizade
desterritorializando o território no qual ela deixou de existir (Ibidem, p. 113).
3 – Desterritorialização e reterritorialização
praticada por homens livres e pobres: negros, brancos e mulatos. No livro de Azevedo,
ao contrário do que ocorre naquele de Alencar, são as personagens principais que
cantam e dançam o samba:
O chefe da folia
Pelo telefone
Manda me avisar
Que com alegria
Não se questione
Para se brincar
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Travou-se uma polêmica a respeito do pioneirismo do samba “Pelo telefone”. Segundo Roberto Moura,
antes da sua gravação, Alfredo Carlos Brício gravou, em 1913, “Em casa de baiana” e Chico Baiano
gravou, em 1916, “A viola está magoada” (1995, p. 117). De qualquer maneira, sem sombra de dúvida,
“Pelo telefone” foi o primeiro samba a ganhar repercussão nacional.
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que frequentavam a casa da Tia Ciata, na Cidade Nova, e sem terem filiação baiana,
compositores como: Ismael Silva, Nilton Bastos, Bide e Brancura, trazem a público um
samba diferente. O samba que vem dos morros tem mais percussão; além do violão,
entram em cena novos instrumentos como a cuíca, o surdo, o pandeiro e o tamborim.
A maior parte dos músicos tem pouca instrução formal. Os sambas vindos do Estácio
destacam um personagem e um cenário que até então não tinham aparecido em outros
sambas: o malandro e o botequim. Em depoimento a Sérgio Cabral, o próprio Ismael
Silva explica a peculiaridade do samba que ele ajudou a criar:
Samba do morro
Não é samba
É batucada
É batucada
Lá na cidade
A escola é diferente
Só tira samba
Malandro que tem patente
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Naquele mesmo ano, Noel Rosa e Vadico responderiam a ofensiva dos rivais
com o samba “Feitio de oração”:
Ao analisar essa polêmica, José Fenerick insinua que o samba foi criado num
lugar geograficamente indefinido, ou ainda, no lugar nenhum onde fica o coração (2002,
p. 250). Talvez, a desterritorialização nos leve, na expressão cultivada por Homi Bhabha
(1998), para um entre-lugar: distante o suficiente para que possamos compreender
nosso lugar de origem e para que possamos antever o lugar para o qual o desejo nos
encaminha. Desterritorializado da Bahia, o samba não se tornou natural da Cidade Nova
ou dos morros do Estácio; nos versos de Noel Rosa, ao menos, ele se tornou natural de
qualquer lugar no qual as pessoas saibam suportar uma paixão.
4 – Identidade e diferença
Numa crítica severa aos filósofos e aos artistas da sua época, Nietzsche lamenta a
absoluta falta de estilo em suas criações: “tudo carece de originalidade, tudo é vacilante,
vestido com o robe-de-chambre do pensamento e da expressão, ou desagradavelmente
grandiloquente; além disso, sem a menor forma social verdadeira no seu fundamento”
(2011, p. 97). Preocupado, justamente, com a preservação da originalidade da música
popular brasileira, num artigo da década de 1940, Mário de Andrade, que além de
escritor e de músico, foi um importante folclorista, temia que o samba sofresse uma
aculturação por parte dos músicos burgueses que pouco ou nada se identificam com
o modo de vida dos verdadeiros sambistas, aqueles que moram nos morros e se formam
“na fraternidade das macumbas e dos cordões de carnaval” (1963, p. 322).
Assumindo o mesmo ponto de vista, na década de 1960, José Ramos Tinhorão
critica a sofisticação que, em diferentes períodos, artistas da classe média promoveram
na música brasileira visando atender às exigências do mercado internacional:
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Os sons que Antonio Carlos Jobim organizou com flautas, violinos, bateria,
contrabaixo, madeiras, metais e João Gilberto (canto e violão), isto é, a
organização sonora que lhe foi sugerida pelo entendimento do violão e do
canto de João Gilberto é, ao mesmo tempo, samba popular e música de
câmara, com muitos ensinamentos colhidos do jazz. (...) Todo conhecimento
técnico, adquirido onde quer que seja, está a serviço da recriação da forma
samba, do jogo rico que se faz com seus elementos, os sons distribuem-se
ritmicamente para reencontrar o gosto pelo gingado, o domínio do ritmo
complexo do samba, para, daí, atingir (como poucas vezes se conseguiu) seus
conteúdos: a malícia, uma certa nostalgia, o dengo (1977, p. 7-8).
No samba como na filosofia, não raro, a defesa de uma identidade cultural corre
o risco de se transformar numa imposição transcendente. No caso específico do samba,
argumenta Vianna: “Aquilo que era elogiado por ser aberto ao diferente, por abarcar o
diverso, passou a excluir a diversidade em nome de sua ortodoxia” (2010, p. 158).
Ao contrário do jogo intelectual e do jogo político da Grécia Antiga, que Vernant,
Deleuze e Guattari entendem como espaços abertos para o debate e para a rivalidade,
a imposição transcendente exclui o diferente. Mais ainda, ela impede o reconhecimento
do outro e de nós mesmos como amigos e pretendentes à sabedoria.
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Conclusão
Por muitos caminhos a filosofia se depara com o samba. Alguns fragmentos dos
pré-socráticos lembram os versos poéticos dos sambistas, algumas reflexões presentes
nos sambas lembram as teses filosóficas. Na Grécia Antiga e no Rio de Janeiro do
século XX, a filosofia e o samba trataram das experiências de pessoas que estavam
começando algo novo. Não é um exagero afirmar, como faz Nietzsche, que os filósofos
pré-socráticos foram estrangeiros despatriados, afinal, eles se aventuraram a criar uma
ordem para o mundo, tal como um imigrante que precisa construir um lugar para viver.
Talvez, possamos afirmar o mesmo a respeito dos primeiros sambistas que ajudaram a
criar uma identidade cultural para cariocas e brasileiros.
Num fragmento enigmático, Heráclito, provavelmente, o filósofo pré-socrático
que Nietzsche mais admira, confessa estar procurando por ele mesmo. Para Heidegger,
essa procura só faz sentido para quem passou pela difícil experiência de perder-se num
território estrangeiro (2004). Salvo engano, ao sugerir um mergulho no caos capaz de
nos distanciar “um pouco das regras que nos governam”, Bento Prado Júnior pensa
numa experiência semelhante a essa (2006, p. 20). A filosofia e o samba criam coisas
belas a partir das experiências mais tristes, como faz Candeia em “Preciso me encontrar”:
Deixe-me ir
Preciso andar
Vou por aí a procurar
Rir pra não chorar
Se alguém por mim perguntar
Diga que eu só vou voltar
Depois que me encontrar
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Referências