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Paideia: A formação do homem grego (Parte I), de Werner Jaeger

listadelivros-doney.blogspot.com/2022/10/paideia-formacao-do-homem-grego-parte-i.html

Editora: WMF Martins Fontes

ISBN: 978-85-7326-410-4

Tradução: Artur M. Ferreira

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 1456

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Sinopse: Esta obra famosa de Werner Jaeger, um dos marcos da cultura do nosso tempo, é o
estudo mais profundo e completo sobre os ideais de educação da Grécia antiga. Jaeger
estudou a interação entre o processo histórico da formação do homem grego e o processo
espiritual através do qual os gregos chegaram a elaborar seu ideal de humanidade. A partir da
solução histórica e espiritual, foi possível chegar ao entendimento da criação educativa sem par
de onde se irradia a imorredoura influência dos gregos sobre todos os séculos.

Livro I

“Todo povo que atinge certo grau de desenvolvimento sente-se naturalmente inclinado
à prática da educação. Ela é o princípio por meio do qual a comunidade humana conserva e
transmite a sua peculiaridade física e espiritual. Com a mudança das coisas, mudam os
indivíduos; o tipo permanece o mesmo. Homens e animais, na sua qualidade de seres físicos,
consolidam a sua espécie pela procriação natural. Só o Homem, porém, consegue conservar e
propagar a sua forma de existência social e espiritual por meio das forças pelas quais a criou,
quer dizer, por meio da vontade consciente e da razão. O seu desenvolvimento ganha por elas
um certo jogo livre de que carece o resto dos seres vivos, se pusermos de parte a hipótese de
transformações pré-históricas das espécies e nos ativermos ao mundo da experiência dada.

Uma educação consciente pode até mudar a natureza física do Homem e suas
qualidades, elevando-lhe a capacidade a um nível superior. Mas o espírito humano conduz
progressivamente à descoberta de si próprio e cria, pelo conhecimento do mundo exterior e
interior, formas melhores de existência humana. A natureza do Homem, na sua dupla estrutura
corpórea e espiritual, cria condições especiais para a manutenção e transmissão da sua forma
particular e exige organizações físicas e espirituais, ao conjunto das quais damos o nome de
educação. Na educação, como o Homem a pratica, atua a mesma força vital, criadora e
plástica, que espontaneamente impele todas as espécies vivas à conservação e propagação do
seu tipo. É nela, porém, que essa força atinge o mais alto grau de intensidade, através do
esforço consciente do conhecimento e da vontade, dirigida para a consecução de um fim.”

“É altamente significativo que seja o velho Fênix, educador de Aquiles, o herói-protótipo


dos gregos, quem exprime esse ideal. Numa hora decisiva, Fênix recorda ao jovem o fim
para que foi educado:
“Para ambas as coisas: proferir palavras e realizar ações.””

“Para Homero e para o mundo da nobreza desse tempo, a negação da honra era, em
contrapartida, a maior tragédia humana. Os heróis tratavam-se mutuamente com respeito e
honra constantes. Assentava nisso toda a sua ordem social. A ânsia de honra era neles
simplesmente insaciável, sem que isso seja característica moral peculiar aos indivíduos como
tais. Era natural e indiscutível que os heróis maiores e os príncipes mais poderosos exigissem
uma honra cada vez mais alta. Ninguém receia, na Antiguidade, reclamar a honra devida a um
serviço prestado. A exigência de pagamento é para eles aspecto secundário e de modo
nenhum decisivo. O elogio e a reprovação (επã αινος e ψο¿γος) são a fonte da honra e da
desonra. Mas o elogio e a reprovação foram considerados pela ética filosófica dos tempos
seguintes o fato fundamental da vida social, pelo qual se manifesta a existência de uma medida
de valor na comunidade dos homens12. É difícil para o homem moderno imaginar a absoluta
exposição da consciência entre os gregos. Para eles não existe, efetivamente, nenhum conceito
como a nossa consciência pessoal. No entanto, o conhecimento de tal fato é o pressuposto
indispensável à difícil inteligência do conceito de honra e do seu significado na Antiguidade. A
ânsia de se distinguir e a aspiração à honra e à aprovação aparecem ao sentimento cristão
como vaidade pessoal pecaminosa; os gregos, porém, viram nisso a aspiração da pessoa ao
ideal e suprapessoal, onde começa o valor. De certo modo pode-se dizer que a areté heroica
só se aperfeiçoa com a morte física do herói. Ela reside no homem mortal, ou melhor, ela é o
próprio homem mortal; mas perpetua-se, mesmo depois da morte, na sua fama, isto é, na
imagem da sua areté, tal como o acompanhou e dirigiu na vida. Até os deuses reclamam a sua
honra e se comprazem no culto que lhes glorifica os feitos, castigando ciosamente qualquer
violação dessa honra. Os deuses de Homero são, por assim dizer, uma sociedade imortal de
nobres; e a essência da piedade e o culto grego exprimem-se no fato de honrar a divindade.
Ser piedoso quer dizer “honrar a divindade”. Honrar os Deuses e os homens pela sua areté é
próprio do Homem primitivo.”

12. ARISTÓTELES, Et. Nic., Γ I, 1109 b 30.

“Conta Platão que era opinião geral no seu tempo ter sido Homero o educador de toda
a Grécia1. Desde então, a sua influência estendeu-se muito além das fronteiras da Hélade. Nem
a apaixonada crítica filosófica de Platão conseguiu abalar o seu domínio, quando buscou limitar
o influxo e o valor pedagógico de toda a poesia. A concepção do poeta como educador do seu
povo – no sentido mais amplo e profundo da palavra – foi familiar aos gregos desde a sua
origem e manteve sempre a sua importância. Homero foi apenas o exemplo mais notável dessa
concepção geral e, por assim dizer, a sua manifestação clássica. Convém levarmos a sério, o
mais possível, essa concepção, e não restringirmos a nossa compreensão da poesia grega com
a substituição do juízo próprio dos gregos pelo dogma moderno da autonomia puramente
estética da arte. Embora esta caracterize certos tipos e períodos da arte e da poesia, não deriva
da poesia grega ou de seus grandes representantes, nem é possível aplicá-la a eles.

A não separação entre a estética e a ética é característica do pensamento grego


primitivo. O procedimento de separá-las surge relativamente tarde. Para Platão, ainda, a
limitação do conteúdo de verdade da poesia homérica acarreta imediatamente uma diminuição
no seu valor. Foi a antiga retórica que fomentou pela primeira vez a consideração formal da
arte e foi o Cristianismo que, por fim, converteu a avaliação puramente estética da poesia em
atitude espiritual predominante. É que isso lhe possibilitava rejeitar, como errôneo e ímpio, a
maior parte do conteúdo ético e religioso dos antigos poetas e, ao mesmo tempo, aceitar a
forma clássica como instrumento de educação e fonte de prazer. A partir daí, a poesia
continuou a conjurar do seu mundo de sombras os deuses e heróis da “mitologia” pagã; mas
esse mundo passou a ser considerado como jogo irreal da pura fantasia artística. É fácil
contemplar Homero por essa acanhada perspectiva, mas assim impedimo-nos o acesso à
inteligência dos mitos e da poesia no seu genuíno sentido helênico. Repugna-nos naturalmente
ver a tardia poética filosófica do helenismo interpretar a educação em Homero como uma árida
e racionalista fabula docet ou, de acordo com o modelo dos sofistas, fazer da epopeia uma
enciclopédia de todas as artes e ciências. Mas essa quimera da escolástica não é senão a
degenerescência de um pensamento em si mesmo correto, o qual, como tudo quanto é belo e
verdadeiro, se torna grosseiro em mãos grosseiras. Por mais que esse utilitarismo repugne, com
razão, nosso sentido estético, não deixa de ser evidente que Homero, e com ele todos os
grandes poetas da Grécia, deve ser considerado, não como simples objeto da história formal da
literatura, mas como o primeiro e maior criador e modelador da humanidade grega.”

1. Platão, Rep., 606 E, pensa nos “adoradores de Homero”, que o enaltecem não só como fonte
de prazer artístico, mas também como guia da vida. Idêntica visão em XENÓFANES, frag. 9
Diehl.

“Existe e existiu sempre uma arte que prescinde dos problemas centrais do homem e
tem de ser compreendida apenas pela sua ideia formal. E mais: existe uma arte que despreza
os chamados assuntos elevados ou fica indiferente perante o conteúdo do seu objeto. É claro
que essa frivolidade artística deliberada tem por sua vez efeitos “éticos”, pois desmascara sem
nenhuma consideração os valores falsos e convencionais, e atua como uma crítica purificadora.
Mas só pode ser propriamente educativa uma poesia cujas raízes mergulhem nas camadas
mais profundas do ser humano e na qual viva um éthos, um anseio espiritual, uma imagem do
humano capaz de se tornar uma obrigação e um dever. A poesia grega nas suas formas mais
elevadas não nos dá apenas um fragmento qualquer da realidade; ela nos dá um trecho da
existência, escolhido e considerado em relação a um ideal determinado.

Por outro lado, os valores mais elevados ganham, em geral, por meio da expressão
artística, significado permanente e força emocional capaz de mover os homens. A arte tem um
poder ilimitado de conversão espiritual. É o que os gregos chamaram psykhagogía. Só ela
possui ao mesmo tempo a validade universal e a plenitude imediata e viva, que são as
condições mais importantes da ação educativa. Pela união dessas duas modalidades de ação
espiritual, ela supera ao mesmo tempo a vida real e a reflexão filosófica. A vida possui a
plenitude de sentido, mas as suas experiências carecem de valor universal. Sofrem demais a
interferência dos sucessos acidentais para que a sua impressão possa alcançar sempre o grau
máximo de profundidade. A filosofia e a reflexão atingem a universalidade e penetram na
essência das coisas. Mas atuam somente naqueles cujos pensamentos chegam a adquirir a
intensidade de uma vivência pessoal. Daqui resulta que a poesia tem vantagem sobre qualquer
ensino intelectual e verdade racional, assim como sobre as meras experiências acidentais da
vida do indivíduo. É mais filosófica que a vida real (se nos é lícito ampliar o sentido de uma
conhecida frase de Aristóteles), mas é, ao mesmo tempo, pela concentração de sua realidade
espiritual, mais vital que o conhecimento filosófico.

Essas considerações não são, de modo nenhum, válidas para a poesia de todas as
épocas, nem sequer, sem exceção, para a dos gregos. Tampouco se limitam a esta. Mas
aplicam-se a ela mais que a nenhuma outra, pois dela derivam, quanto ao fundamental.”

“O mito serve sempre de instância normativa para a qual apela o orador. Há no seu
âmago alguma coisa que tem validade universal. Não tem caráter meramente fictício,
embora originalmente seja, sem dúvida alguma, o sedimento de acontecimentos
históricos que alcançaram a imortalidade através de uma longa tradição e da
interpretação enaltecedora da fantasia criadora da posteridade.”

“Ainda acima do emprego dos epítetos, campeia nas descrições épicas um tom
ponderativo, enobrecedor e transfigurante. Tudo quanto é baixo, desprezível e falho de
nobreza é suprimido do mundo épico. Já os antigos fizeram notar como Homero eleva àquela
esfera até as coisas mais insignificantes. Díon de Prusa, que não chegou a ter consciência clara
da profunda ligação do estilo enobrecedor com a essência da épica, contrapõe a Homero o
crítico Arquíloco e faz o reparo de que os homens precisam mais de crítica que de louvor para
a sua educação5. O seu juízo pouco nos interessa aqui, uma vez que exprime um ponto de vista
pessimista, oposto à antiga educação dos nobres e ao culto do exemplo. Veremos mais adiante
os seus pressupostos sociais. Mas dificilmente se pode descrever a natureza do estilo épico e a
sua tendência idealizante com mais acerto que o das palavras daquele retórico, cheio de fina
sensibilidade para as coisas formais. Homero – diz – tudo engrandeceu: animais e plantas, a
água e a terra, as armas e os cavalos. Podemos afirmar que não deixou nada sem elogio e sem
louvor. Mesmo Tersites, o único que ele difamou, denomina-o orador de voz clara. ”

5. DÍON de PRUSA, Or., XXXIII, 2.

“A nova finalidade artística da grande epopeia, ao introduzir um elevado número de


cenas dessa natureza e ligá-las a uma ação unitária, não consistia apenas em apresentar, como
anteriormente, quadros particulares de uma ação de conjunto que se supunha conhecida;
visava também pôr em relevo o valor de todos os heróis famosos. Por meio da ligação de
muitos heróis e figuras já parcialmente celebrados nos antigos cantos, o poeta pinta um quadro
grandioso: a guerra de Ílion, na sua totalidade. A sua obra mostra bem o que a guerra
representava para ele: era a luta prodigiosa de muitos heróis imortais, da mais sublime  areté – e
não apenas gregos. Os inimigos destes são igualmente um povo de heróis que lutam pela sua
pátria e pela sua liberdade. Lutar pela pátria é um bom augúrio: são palavras que Homero põe
na boca, não de um grego, mas do herói dos troianos, que tomba pela pátria e com isso atinge
uma tão viva qualidade humana. Os grandes heróis aqueus encarnam o tipo da mais alta
heroicidade. A pátria, a mulher e os filhos são motivos que atuam sobre eles com menos força.
Diz-se ocasionalmente que lutam para vingar o rapto de Helena. Há a intenção de negociar
diretamente com os troianos o regresso de Helena ao seu marido legal, e assim evitar o
derramamento de sangue, como parece aconselhar uma política razoável. Mas não se faz
nenhum uso importante dessa justificação. O que desperta a simpatia do poeta para com os
aqueus não é a justiça da sua causa, mas o resplendor imperecível do seu heroísmo.

Do fundo sangrento da peleja heroica destaca-se, na Ilíada, um destino individual de


pura tragédia humana: a vida heroica de Aquiles. A ação é para o poeta o laço íntimo pelo qual
ele junta numa unidade poética as cenas sucessivas da guerra. A Ilíada deve à trágica figura de
Aquiles o não ser para nós um venerável manuscrito do espírito guerreiro primitivo, mas sim
um monumento imortal para o reconhecimento da vida e da dor humanas. A grande epopeia
não representa apenas um progresso imenso na arte de compor um todo complexo e de
amplo traçado; significa também uma consideração mais profunda dos conteúdos íntimos da
vida e dos seus problemas, o que eleva a poesia heroica muito acima da sua esfera original e
outorga aos poetas uma posição espiritual completamente nova, uma função educadora no
mais alto sentido da palavra. Ele já não é um simples divulgador impessoal da glória do
passado e de suas façanhas. É um poeta no sentido pleno da palavra: intérprete e criador da
tradição.

Interpretação espiritual e criação são, no fundo, uma e a mesma coisa. Não é difícil de
compreender que a originalidade incontestavelmente superior da epopeia grega na
composição de um todo unitário brota da mesma raiz que a sua ação educadora: da mais alta
consciência espiritual dos problemas da vida. O interesse e o prazer cada vez maiores no
domínio de grandes massas temáticas – traço típico dos últimos graus de desenvolvimento dos
cantos épicos e que também se encontra em outros povos – não leva nestes necessariamente à
grande epopeia e, quando tal acontece, cai facilmente no perigo de degenerar em uma
narração novelesca, que desde o “ovo de Leda”, e começando na história do nascimento do
herói, desenrola-se através de uma fatigante série de contos tradicionais. O acontecer da
epopeia homérica, dramático e concentrado, sempre intuitivo e imagético, avançando in
medias res, procede apenas por traços justos e precisos. Em vez de uma história da guerra
troiana ou da vida inteira de Aquiles, apresenta apenas, com prodigiosa segurança, as grandes
crises, alguns momentos de significação representativa e da mais alta fecundidade poética, o
que permite concentrar e evocar, em breve espaço de tempo, dez anos de guerra com todos
os seus combates e vicissitudes, passadas, presentes e futuras. Já os críticos antigos se
admiraram dessa capacidade. Foi ela que fez de Homero, para Aristóteles e Horácio, não
apenas o clássico dentre os épicos, mas ainda o mais sublime modelo de força e mestria
poéticas. Prescinde do que é meramente histórico, corporifica os acontecimentos e deixa que
os problemas se desenvolvam pela força da sua íntima necessidade.”

“O mito é como um organismo: desenvolve-se, transforma-se e se renova sem cessar. É o


poeta que realiza essa transformação. Mas não a realiza em obediência a um simples
desejo arbitrário. O poeta estrutura uma nova forma de vida para o seu tempo e
interpreta o mito de acordo com as suas novas evidências interiores. O mito só se
mantém vivo por meio da contínua metamorfose da sua ideia. Mas a ideia nova é
transportada pelo veículo seguro do mito. Isso já é válido para a relação do poeta com a
tradição na epopeia homérica. Mas em Hesíodo torna-se ainda muito mais claro, visto
que nele a individualidade poética aparece de modo evidente, age com plena consciência
e serve-se de tradição mítica como de um instrumento para o próprio desígnio.”

“Na poesia de Hesíodo consuma-se diante dos nossos olhos a formação independente
de uma classe popular, excluída até então de qualquer formação consciente. Serve-se das
vantagens oferecidas pela cultura das classes mais elevadas e das formas espirituais da poesia
palaciana; mas cria a própria forma e o seu éthos exclusivamente a partir das profundezas da
própria vida. Porque Homero não é só o poeta de uma classe, mas se eleva desde os
fundamentos de um ideal de classe até o nível humano e a amplidão geral do espírito, possui a
força capaz de orientar na sua cultura própria uma classe popular que vive em condições de
existência totalmente diversas, capaz de fazê-la achar o sentido específico da sua vida humana
e de ensiná-la a conformar-se com as suas leis internas. Isso é da maior importância. Mas é
ainda mais importante o fato de, por meio desse ato de autoformação espiritual, ela sair do seu
isolamento e fazer ouvir a sua voz na ágora dos povos gregos. Assim como a cultura
aristocrática adquire em Homero uma influência de tipo humano geral, com Hesíodo a
civilização camponesa sai dos acanhados limites da sua esfera social. Embora o conteúdo do
poema só possa ser compreendido pelos camponeses e só se aplique a eles e ao trabalho do
campo, os valores morais implícitos nessa concepção de vida tornam-se acessíveis ao mundo
inteiro. É claro que a concepção agrária da sociedade não deu o cunho definitivo à vida do
povo grego. A formação grega encontrou na pólis a sua forma mais característica e acabada. O
que contém da cultura do campo, ela passa, espiritualmente intacto, para um plano de fundo.
Importância igual ou maior tem o fato de o povo grego considerar definitivamente Hesíodo um
educador orientado para o ideal do trabalho e da estrita justiça e de ele, formado no ambiente
do campo, conservar o seu valor mesmo em contextos sociais completamente distintos.

É no intuito educativo de Hesíodo que está a verdadeira raiz da sua poesia. Não
depende do predomínio da forma épica nem da matéria como tal. Se considerarmos os
poemas didáticos de Hesíodo como uma simples aplicação mais ou menos original da
linguagem e formas poéticas dos rapsodos a um conteúdo que as gerações posteriores
consideravam “prosaico”, surgirão dúvidas sobre o caráter poético da obra. Os filólogos antigos
formularam dúvidas idênticas a respeito dos poemas didáticos posteriores 16. O próprio Hesíodo
encontrou justificação para a sua missão poética na vontade profética de se converter em
mestre do seu povo. Os seus contemporâneos contemplavam Homero com esses olhos, pois
não podiam imaginar forma mais elevada de influxo espiritual do que a dos poetas e rapsodos
homéricos. A missão educativa do poeta estava inseparavelmente ligada à forma da linguagem
épica tal qual era sentida sob o influxo de Homero. Quando Hesíodo recolheu a seu modo a
herança de Homero, definiu para a posteridade, transpondo os limites da mera poesia didática,
a essência da criação poética no sentido social, educador e construtivo. Essa força edificadora
brota, para além de qualquer instrução meramente prática ou moral, de uma vontade de
atingir a essência das coisas, vontade que nasce do mais profundo saber e que tudo renova. A
ameaça iminente de um estado social dominado pela dissensão e pela injustiça deu a Hesíodo
a visão dos fundamentos em que se apoiava a vida daquela sociedade e a de cada um dos seus
membros. Essa visão essencial que penetra o sentido simples e original da existência determina
a função do verdadeiro poeta. Para este não há assuntos prosaicos ou poéticos em si.
Hesíodo é o primeiro poeta grego que fala do seu ambiente em seu próprio nome.
Desse modo ergue-se acima da esfera épica, que apregoa a fama e interpreta as sagas, até a
realidade e as lutas atuais. Vê-se claramente no mito das cinco idades que ele considera o
mundo heroico da epopeia um passado ideal, ao qual contrapõe a presente idade de ferro. No
tempo de Hesíodo o poeta esforça-se por exercer uma influência direta na vida. Surge aqui
pela primeira vez uma pretensão a guia, que não se fundamenta numa ascendência
aristocrática nem numa função oficial reconhecida. Ressalta imediatamente a semelhança com
os profetas de Israel, já salientada de tempos antigos. No entanto, é com Hesíodo, o primeiro
dos poetas gregos a apresentar-se com a pretensão de falar publicamente à comunidade,
baseado na superioridade do seu conhecimento, que o helenismo se anuncia como uma época
nova na história da sociedade. É com Hesíodo que começa o domínio e o governo do espírito,
que põe o seu selo no mundo grego. É o “espírito” no sentido original, o autêntico spiritus, o
sopro dos deuses, que ele próprio descreve como verdadeira experiência religiosa e que por
inspiração pessoal recebe das musas, aos pés do Hélicon. São as próprias musas que explicam
a sua força inspiradora, quando Hesíodo as invoca, na qualidade de poeta: Na verdade
sabemos dizer mentiras que parecem verdades, mas também sabemos, se o quisermos, revelar
a verdade17. Assim se exprime no prefácio da Teogonia. No proêmio dos Erga, Hesíodo
também tem a intenção de revelar a verdade a seu irmão 18. Essa consciência de ensinar a
verdade é novidade em relação a Homero, e a ousadia de Hesíodo em usar a forma da
primeira pessoa deve ligar-se a ela de algum modo. É característica pessoal do poeta-profeta
grego querer guiar o Homem transviado para o caminho correto, por meio do conhecimento
mais profundo das conexões do mundo e da vida.”

16. Anecdota Bekkeri, 733, 13.

17. Teóg., 27.

18. Erga, 10.

“A raiz da ética filosófica de Platão e Aristóteles na ética da velha pólis foi desconhecida


dos tempos posteriores, habituados a encará-la como a ética absoluta e intemporal.
Quando a Igreja cristã começou a estudá-la, achou estranho que Platão e Aristóteles
chamassem virtudes morais à fortaleza, e à justiça. Mas teve de conformar-se com esse
fato original da consciência moral dos gregos. Para uma geração alheia à comunidade
política e ao Estado, no sentido primitivo da palavra, e do ponto de vista de uma ética
meramente individual e religiosa, isso só era compreensível como paradoxo. Fizeram-se,
por isso, inúmeras teses sobre a questão de saber se a fortaleza é uma virtude e como é
que pode sê-lo. A aceitação consciente da antiga ética da pólis pela moral filosófica
posterior e a influência que por meio desta ela exerceu sobre o futuro são para nós um
processo perfeitamente natural da história do espírito. Nenhuma filosofia vive da pura
razão. É apenas a forma conceitual e sublimada da cultura e da civilização, tais como se
desenrolam na história. Em qualquer dos casos, isso é verdadeiro para a filosofia de
Platão e a de Aristóteles. Não podem ser compreendidas sem a cultura grega, nem a
cultura grega sem elas.”
“O pensamento e o sentimento do poeta grego permanecem sempre, mesmo dentro da
esfera do eu recentemente descoberta, submetidos de algum modo a uma norma e a um
dever-ser. Explicaremos isso com maior detalhe e rigor. Longamente impregnados
daquela ideia, não nos é fácil conceber com clareza e precisão o que Arquíloco e outros
poetas da sua espécie entenderam por individualidade. Não é por certo o sentimento
cristão e moderno do eu, da alma individual, cônscia do seu íntimo e próprio valor. Para
os gregos, o eu está em íntima e viva conexão com a totalidade do mundo circundante,
com a natureza e com a sociedade humana, nunca separado e solitário. As manifestações
da individualidade nunca são exclusivamente subjetivas. Seria preferível dizer que, numa
poesia como a de Arquíloco, o eu individual busca exprimir e representar em si próprio a
totalidade do mundo objetivo e suas leis. Não é pelo mero extravasamento da
subjetividade que o indivíduo grego alcança a liberdade e a amplidão de movimentos da
sua consciência, mas sim pela própria objetivação espiritual. E é na medida em que se
contrapõe a um mundo exterior, regido por leis próprias, que ele descobre
as suas próprias leis internas.”
“Da poesia jônica do século e meio posterior a Arquíloco, conserva-se o suficiente para
que se veja que trilha o mesmo caminho, embora nenhuma possua a importância
espiritual do seu grande iniciador. Os poetas subsequentes são sobretudo influenciados
pela forma reflexiva do iambo e da elegia de Arquíloco. Os iambos de Semônides de
Amorgos que se conservam são de caráter didático. O primeiro revela claramente a
imediata intenção educadora do gênero: Meu filho, Zeus tem na mão o fim de todas as
coisas e dispõe-nas como entende. O Homem não tem o mínimo conhecimento delas.
Seres de um só dia, como os animais no prado, vivemos ignorantes do modo que a
divindade usará para levar cada coisa a seu fim. Vivemos todos da esperança e da ilusão:
os seus desígnios, porém, nos são inacessíveis. A velhice, a crença, a morte no campo de
batalha ou sobre as ondas do mar atingem os homens, antes de eles terem conseguido o
que queriam. Outros ainda põem fim à vida pelo suicídio 32. O poeta lamenta-se, com
Hesíodo, de que nenhum infortúnio poupa o Homem 33. Cercam-no inúmeros espíritos
malignos, dores e penas sem conta. Se quisésseis escutar-me, não amaríamos a nossa
própria desventura – Hesíodo recorda a mesma coisa34 – nem nos atormentaríamos na
busca de dores fatais.

Perdeu-se a parte final desse poema. Mas, numa elegia que trata quase o mesmo tema
deste iambo, revela-se a exortação que Semônides dirigia aos homens 35. A base da sua cega
perseguição da desgraça está na desenfreada esperança de uma vida sem fim. Foi o homem de
Quio quem disse a coisa mais bela: a geração dos homens é como a das folhas. Acolhem,
todavia, nos ouvidos esse conselho, mas não o aceitam no seu coração. Todos guardam as
esperanças que nascem no coração dos jovens. Enquanto dura a flor dos anos, os mortais
andam de coração leve e traçam mil planos irrealizáveis. Ninguém pensa na velhice ou na
morte. E, enquanto têm saúde, não curam da enfermidade. Insensatos os que assim pensam e
não sabem que para os mortais é breve o tempo da juventude e da existência. Aprende tu isto
e, meditando no fim da vida, deixa a tua alma gozar um pouco de prazer. A juventude surge
aqui como fonte de todas as ilusões exageradas e de todos os empreendimentos desmedidos,
porque não tem presente a sabedoria de Homero, que recorda a brevidade da vida. Singular e
nova é a consequência tirada dessa afirmação pelo poeta: a exortação a gozar os prazeres da
vida enquanto é tempo. Isso não se encontra em Homero. É a solução de uma geração para a
qual as altas exigências dos tempos heroicos perderam muito da sua profunda seriedade e que
seleciona das doutrinas da Antiguidade o que melhor convém à própria concepção de vida.
Assim, a lamentação sobre a brevidade da vida humana. Essa intuição, transportada do mundo
dos mitos heroicos para o mundo mais humano em que o poeta vivia, deve ter gerado, em
lugar de um trágico heroísmo, uma sede abrasadora de viver.”

32. SEMÔNIDES, frag. 1.

33. HESÍODO, Erga, 100.

34. HESÍODO, Erga, 58. Também recorda Hesíodo em 29, 10 (Erga, 40).

35. Frag. 29. A atribuição, por BERGK, do poema a Semônides de Amorgos – Estobeu
transmite-o como sendo de Simônides de Ceos – é um dos resultados mais seguros da crítica
filológica.

“Com frequência se debateu a questão de saber como foi possível à filosofia grega ter
começado com os problemas da natureza e não com os relativos ao Homem. A fim de se
tornar compreensível esse fato importante, procurou-se corrigir a história, fazendo derivar do
espírito da mística religiosa as concepções da mais antiga filosofia da natureza. Mas não é assim
que resolveremos o problema. Limitamo-nos a adiá-lo. Só ficará efetivamente resolvido se
reconhecermos que ele nasceu de um falso estreitamento do horizonte da chamada história da
filosofia. Se juntarmos à filosofia da natureza tudo o que a poesia jônica a partir de Arquíloco e
a poesia de Sólon trouxeram ao pensamento construtivo no campo religioso e ético-político,
ficará evidente que nos basta quebrar os limites que separam a prosa da poesia para obtermos
uma imagem completa da evolução do pensamento filosófico, na qual também está
compreendido o reino humano. A única diferença reside no fato de a concepção do Estado ser,
pela própria natureza, de caráter imediatamente prático, ao passo que a investigação da physis,
ou gênese, isto é, “origem”, é impulsionada pela “teoria”. O problema do Homem não foi
encarado pelos gregos, a princípio, do ponto de vista teórico. Mais tarde, no estudo dos
problemas do mundo externo, e particularmente da Medicina e da Matemática, é que se
descobriram intuições do tipo de uma tékhne exata, que serviram de modelo para a
investigação do Homem interior. Recordemos as palavras de Hegel: o rodeio é o caminho do
espírito. Enquanto a alma do Oriente, no seu anseio religioso, se afunda logo no abismo do
sentimento, sem ali encontrar, no entanto, um terreno firme, o espírito grego, formado na
legalidade do mundo exterior, cedo descobre também as leis internas da alma e chega à
concepção objetiva de um cosmo interior. Foi essa descoberta que, num momento crítico da
história grega, possibilitou, pela primeira vez, a estruturação de uma nova formação humana,
com fundamento no conhecimento filosófico, no sentido proposto por Platão. A prioridade da
filosofia da natureza sobre a filosofia do espírito tem um “sentido” histórico profundo, que se
torna extremamente claro quando visto à luz da história da educação. No fundo do
pensamento dos antigos jônios não há uma vontade consciente de educar. Porém, no meio da
decadência da concepção mítica do mundo e no caos gerado pela fermentação de uma nova
sociedade humana, encaram de um modo inteiramente novo o mais profundo problema da
vida, o problema do ser.

O que logo se evidencia na figura humana desses primeiros filósofos – que,


naturalmente, não deram a si próprios esse nome platônico – é a sua típica atitude espiritual:
devotamento incondicional ao conhecimento, estudo e aprofundamento do ser em si mesmo.
Essa atitude pareceu totalmente paradoxal com relação aos gregos posteriores, e mesmo aos
da época, mas suscitou ao mesmo tempo a sua mais alta admiração. A tranquila indiferença
daqueles investigadores pelas coisas que aos demais homens pareciam importantes, como o
dinheiro, as honras e até o lar e a família, a sua aparente cegueira com relação aos seus
próprios interesses e a sua indiferença perante as emoções da praça pública deram origem às
conhecidas anedotas sobre a atitude espiritual daqueles pensadores. Recolhidas principalmente
pela Academia platônica e pela Escola peripatética, foram propostas como exemplo e modelo
do βι¿ος θεωρητικο¿ς, considerado por Platão como a autêntica prâxis dos filósofos3. Nessas
anedotas, o filósofo é o grande extravagante, algo misterioso, digno, mas estimado, que se
ergue acima da sociedade dos homens ou dela se aparta deliberadamente para se consagrar
aos seus estudos. É ingênuo como uma criança, desajeitado e pouco prático, e está fora das
condições do espaço e do tempo. O sábio Tales, absorto na contemplação de um fenômeno
celeste qualquer, cai dentro de um poço, e a sua criada trácia faz pouco dele, por querer saber
as coisas do céu e não ver o que está sob os seus pés. Pitágoras, quando lhe perguntam para
que vive, responde: para contemplar o céu e as estrelas. Anaxágoras, acusado de não se
interessar pela família nem pela Pátria, aponta com a mão o céu e diz: eis a minha Pátria. É
comum a todos aquele incompreensível devotamento ao conhecimento do cosmo, à
“meteorologia”, como então se dizia num sentido mais vasto e mais profundo, isto é, à ciência
das coisas do alto. A conduta e as aspirações dos filósofos são desmedidas e extravagantes, no
sentir do povo, e é crença popular dos gregos que aqueles homens sutis e sonhadores são
infelizes porque são περιττο¿ς4. Isso é intraduzível, mas refere-se evidentemente à hybris, pois
o pensador ultrapassa os limites impostos ao espírito humano pela inveja dos deuses.”

3. Cf. o meu trabalho sobre a origem e o movimento circular do ideal filosófico da vida,
Sitz. Berl. Akad., 1928, pp. 390 ss.

4. Cf. ARISTÓTELES, Metaf., A 2, 983a 1.

“A resolução e a independência dessas críticas à concepção do mundo dominante são


perfeitamente paralelas à ousadia dos poetas jônicos em proclamarem livremente os seus
sentimentos e as suas ideias sobre a vida humana e o seu ambiente. São frutos do
desenvolvimento crescente da individualidade. O pensamento racional atua como material
explosivo já neste primeiro estágio. As mais antigas autoridades perdem o seu valor. Só é
verdade o que “eu” posso explicar por razões concludentes, aquilo que o “meu” pensamento
consegue justificar perante si próprio. Toda a literatura jônica, desde Hecateu e Heródoto,
criador da Geografia e da Etnologia e pai da História, até os médicos, em cujos escritos se
encontram os fundamentos da ciência médica durante vários séculos, está impregnada desse
espírito e usa nas suas críticas aquela forma pessoal característica. No entanto, realiza-se com o
aparecimento do eu racional a superação do individualismo mais rica de consequências: surge
o conceito de verdade, o novo conceito de uma validade universal no fluir dos fenômenos,
perante a qual se tem de curvar todo arbitrário.

O ponto de partida dos pensadores naturalistas do século VI era o problema da origem,


a physis, que deu o seu nome ao movimento espiritual e à forma de especulação que originou.
Isso se justifica, se temos presente o significado originário da palavra grega e não misturamos a
ele a moderna concepção da física. O seu interesse fundamental era, na realidade, o que na
nossa linguagem corrente denominamos metafísica. Era a ele que se subordinavam o
conhecimento e a observação física. É certo que foi do mesmo movimento que nasceu a
ciência racional da natureza. Mas a princípio estava envolta em especulação metafísica, e só
gradualmente se foi libertando dela. No conceito grego de physis estavam, inseparáveis, as
duas coisas: o problema da origem – que obriga o pensamento a ultrapassar os limites do que
é dado na experiência sensorial – e a compreensão, por meio da investigação empírica
( ι¸στορι¿η), do que deriva daquela origem e existe atualmente (ταì οÓντα). Era natural que a
tendência inata dos jônios – grandes exploradores e observadores – para a investigação levasse
as questões a um maior aprofundamento, no qual aparecem os problemas últimos. É natural
também que, uma vez colocado o problema da origem e essência do mundo, se desenvolvesse
progressivamente a necessidade de ampliar o conhecimento dos fatos e a explicação dos
fenômenos particulares. Pela proximidade do Egito e dos países do Oriente Próximo torna-se
mais que verossímil – confirmam-no as tradições mais autênticas – que o contato espiritual dos
jônios com as mais antigas civilizações daqueles povos não só tenha levado à adoção das
conquistas técnicas na agrimensura, na náutica e na observação do céu, mas tenha também
dirigido a atenção daquela raça de navegadores e comerciantes, de espírito vivo, para a
consideração dos problemas profundos que aqueles povos resolveram de maneira muito
diferente dos gregos, por meio de mitos referentes ao nascimento do mundo e às histórias dos
deuses.

Há, porém, algo de fundamentalmente novo na maneira como os gregos puseram a


serviço do seu problema último – da origem e essência das coisas – as observações empíricas
que receberam do Oriente e enriqueceram com as suas próprias, bem como no modo de
submeter ao pensamento teórico e causal o reino dos mitos, fundado na observação das
realidades aparentes do mundo sensível: os mitos sobre o nascimento do mundo. É nesse
momento que assistimos ao aparecimento da filosofia científica. É este, aliás, o feito histórico da
Grécia. É certo que foi só gradual a sua libertação dos mitos. Porém, o simples fato de ter sido
um movimento espiritual unitário, conduzido por uma série de personalidades independentes,
mas em íntima e recíproca ligação, já demonstra o seu caráter científico e racional. A conexão
do nascimento da filosofia naturalista com Mileto, a metrópole da cultura jônica, torna-se clara,
se notamos que os seus três primeiros pensadores – Tales, Anaximandro e Anaxímenes –
viveram no tempo da destruição de Mileto pelos Persas (início do século V). Tão evidente como
a súbita interrupção de um elevado florescimento espiritual de três gerações, pela irrupção
brutal de um destino histórico exterior, é a continuidade do trabalho de investigação e do tipo
espiritual dessa magnífica série de grandes homens, um pouco anacronicamente designados de
“escola milesiana”. O modo de propor e resolver os problemas segue, nos três, a mesma
direção. Abriram o caminho e forneceram os conceitos fundamentais à física grega de
Demócrito até Aristóteles.”

“A grande dificuldade do pensamento puro é obter qualquer conhecimento concreto do


conteúdo do seu objeto. Nos fragmentos existentes da sua obra, Parmênides aparece-nos num
esforço de dedução de uma série de determinações precisas do seu novo conceito rigoroso do
Ser. Essas notas, que se destacam no caminho que conduz à investigação dirigida pelo
pensamento puro, ele chama de atributos ou características do Ser. O Ser é alheio ao devir, é
imutável e portanto imortal, total e único, inabalável, eterno, onipresente, uno, coerente,
indivisível, homogêneo, ilimitado e completo. É perfeitamente notório que todos os predicados
positivos e negativos atribuídos por Parmênides ao Ser derivam da contraposição à antiga
filosofia naturalista e foram obtidos graças à análise crítica e rigorosa dos pressupostos nela
implícitos. Não é este o lugar propício para expô-lo detalhadamente. Infelizmente, a
possibilidade de compreendermos Parmênides está limitada pelos lapsos do nosso
conhecimento das filosofias mais antigas. É indubitável que ele se refere constantemente a
Anaximandro. É provável que o pensamento pitagórico também tenha nas suas discussões um
papel muito importante. Mas a esse respeito só podemos fazer conjecturas. Não se pode tentar
aqui uma interpretação sistemática do esforço de Parmênides para obter uma concepção
global da filosofia da natureza, a partir do seu novo ponto de vista, nem analisar o
desenvolvimento das aporias com que o pensamento depara na prossecução coerente do seu
caminho. Debatem-se nelas os discípulos de Parmênides, entre os quais têm excepcional
importância Zenão e Melisso.
A descoberta do pensamento puro e da sua necessidade rigorosa surge em Parmênides
como a abertura de um novo “caminho”, mais, do único caminho praticável para chegar à
posse da verdade. A partir desse instante, a imagem da via reta (ο¸δο¿ς) da investigação
aparece constantemente. E, embora por enquanto não passe de uma imagem, já possui,
todavia, uma ressonância terminológica que, especialmente na oposição entre o caminho certo
e o errado, se aproxima do sentido do “método”. É aqui que tem raízes esse conceito científico
fundamental. Parmênides é o primeiro pensador que levanta conscientemente o problema do
método científico e o primeiro que distingue com clareza os dois caminhos principais que a
filosofia posterior há de seguir: a percepção e o pensamento. O que não conhecemos pela via
do pensamento é apenas “opinião dos homens”. Toda a salvação se baseia na substituição do
mundo da opinião pelo mundo da verdade. Parmênides considera essa conversão como algo
violento e difícil, mas grande e libertador. Põe na exposição do seu pensamento um ímpeto
grandioso e um páthos religioso que transcende os limites do lógico e lhe confere uma emoção
profundamente humana. É o espetáculo do Homem que luta por meio do pensamento e, pela
primeira vez, liberta-se das aparências sensíveis da realidade e descobre no espírito o órgão
para chegar à compreensão da totalidade e da unidade do Ser. Embora entravado e
perturbado por uma multiplicidade de problemas, revela-se nesse conhecimento uma força
fundamental de concepção do mundo e de formação humana, especificamente helênica. Em
tudo que Parmênides escreveu palpita a emocionante experiência dessa conversão da
investigação humana ao pensamento puro.

É isso que explica a estrutura da sua obra, dividida em duas partes rigidamente
constantes, uma consagrada à “verdade” e outra à “opinião”. Resolve também o velho
problema de compreender como se harmoniza a rígida lógica de Parmênides com o seu
sentimento de poeta. Dizer apenas que nessa época todos os temas podiam ser tratados em
versos homéricos ou hesiódicos é simplificar demais. Parmênides é poeta pelo entusiasmo com
que julga ser o portador de um novo tipo de conhecimento, por ele considerado, ao menos em
parte, a revelação da Verdade. É algo completamente diferente do procedimento ousado e
pessoal de Xenófanes. O poema de Parmênides está impregnado de uma altiva modéstia. E a
sua exigência é tanto mais rigorosa e inexorável quanto ele se reconhece um simples servo e
instrumento de uma força mais alta a que contempla com veneração. Encontra-se no proêmio
a confissão imorredoura dessa inspiração filosófica. Se atentarmos bem para isso, veremos que
a imagem do “homem sábio” que caminha para a verdade procede da esfera religiosa. O texto
está rasurado em alguns lugares decisivos, mas penso que poderia ser restituído ao sentido
original. O “homem sábio” é a pessoa consagrada aos mistérios da Verdade. Compreende-se
com esse símbolo o novo conhecimento do Ser. O caminho que o conduz “intacto” – afirmo –
ao seu fim, é o caminho da salvação 35. Essa tradução do mundo das representações na
linguagem dos mistérios, de importância crescente naquela época, tem o maior interesse para a
compreensão da consciência filosófica. Quando se afirma que Deus e o sentimento são
indiferentes para Parmênides em face das exigências do pensamento rigoroso, é necessário
acrescentar que este pensamento e a verdade por ele apreendida são interpretados por
Parmênides como algo religioso. Foi esse sentimento da sua elevada missão que o levou a nos
oferecer, no prólogo do seu poema, a primeira encarnação humana da figura do filósofo, o
“homem sábio” que as irmãs da luz guiam desde as sendas dos homens, pelo difícil caminho
que vai dar à mansão da verdade.”

35. Frag. 1, 3. Muitas vezes tem sido feita a observação de que o caminho da verdade
que conduz o homem sábio “através das cidades” (κατα¹ πα¿ντ’ αÓστη ϕε¿ρει
ει¹δο¿τα ϕωªτα) é uma imagem impossível, a conjetura de WILAMOWITZ κατα¹ τα¿ντα
τα¿τη¿ é pouco satisfatória; κατα¹ πα¿ντ’ α¹σινηª é a emenda que proponho, a qual, como
mais tarde verifiquei, já tinha sido encontrada por MEINECK.

“Mas o mundo que Píndaro tinha cantado e ao qual pertencia o seu coração entrara em
franca decadência. Parece ser uma lei na vida do espírito que, quando um tipo de
existência atinge o seu termo, encontre a força necessária para formular o seu ideal e
atingir o seu conhecimento mais profundo; como se da morte se destacasse o seu
aspecto imortal. Assim, a decadência da cultura nobre da Grécia produziu Píndaro; a da
cidade-Estado, Platão e Demóstenes; e a hierarquia da Igreja Medieval, no momento em
que ia transpor a linha do seu apogeu, produziu Dante.”

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FONTE: DONEY. Lista de Livros: Paideia: A formação do homem grego (Parte I), de Werner
Jaeger.Lista de Livros, 2022. Disponível em:
https://listadelivros-doney.blogspot.com/2022/10/paideia-formacao-do-homem-grego-parte-
i.html. Acesso em: 11 abr. 2023.

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