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Concepção Antropológica em Platão

José de Sá Araújo Neto

RESUMO: O trabalho que se seguirá terá como escopo tratar da concepção antropológica em
Platão. Para alcançarmos tal fim e de modo a não tecermos, tão intensamente, uma caricatura
do que aqui se objetiva, serão necessárias duas condições: a primeira consiste em realizar uma
breve rememoração dos conceitos de virtude e alma nos poetas épicos Homero e Hesíodo, nos
Mistérios Órficos, nos Jônios do séc. VI e na fundamental inflexão promovida por Sócrates; a
segunda visa a levar em consideração os diferentes períodos da escrita de Platão, sobretudo,
no que diz respeito à sua concepção de alma.

Palavras-chave: Antropologia - Alma – Corpo – Dualidade.

Considerações Iniciais

A antropologia platônica, ao ser objeto de uma exposição, torna indispensável a abordagem


do dualismo - apresentado em diferentes formas ao longo dos períodos da escrita de Platão -
encontrado em seus diálogos, especialmente naqueles tidos como decorrentes de sua madura
produção literária. Por consequência, deve também ser o objetivo deste trabalho a elaboração
de uma síntese explicativa dos diversos conceitos de alma e virtude que estão na esteira do
pensamento mítico e filosófico até Platão, o qual, por sua vez, apresenta-os a partir de uma
nova perspectiva denominada por ele mesmo de “Segunda Navegação” 1. As concepções de
alma e virtude estão intrinsecamente relacionadas e, tanto ao longo da formação do homem
grego quanto no despontar e desenvolvimento da filosofia, apresentaram relevantes alterações
que influíram nos caminhos tomados pelo labor do pensamento helênico.

Para Homero (século IX ou VIII a.C.), considerado o criador da poesia épica, o maior e mais
antigo poeta grego a quem se atribui as obras-primas “Ilíada” e “Odisseia”, a virtude
(“ἀρετή”) era um atributo inerente à nobreza ou aristocracia, estava ligada às noções de
função, realização, capacitação, denotando a excelência de tudo o que é útil para algum ato ou
fim. Segundo Jaeguer (2013, p.23),

1
PLATÃO, Fedon, XLVIII.
O tema essencial da história da formação grega é antes o conceito de areté [...] como
expressão do mais alto ideal cavaleiresco unido a uma conduta cortês e distinta e ao
heroísmo guerreiro [...] É às concepções fundamentais da nobreza cavaleiresca que
remonta a sua raiz. Na sua forma mais pura, é no conceito de areté que se concentra
o ideal da educação dessa época.

A testemunha mais remoto da antiga cultura aristocrática helênica é Homero, se com


esse nome designamos as duas epopeias: a Ilíada e a Odisseia.

Por outro lado, em Hesíodo, aedo que viveu em meados do séc. VIII a.C. na Beócia (região
central da Grécia) e é considerado o segundo pai da “παιδεία”, a “ἀρετή” passa a assumir
significado mais estritamente moral: deixa de ser um atributo inerente aos bem nascidos para
se transformar em uma conquista, resultado do esforço e do trabalho enobrecedor de qualquer
homem. Em Hesíodo, a seu modo, já é proposto a questão do ensino da virtude. De Hesíodo
aos sofistas (séc. V a.C.), esse tema estivera inserido na temática de poetas (Píndaro,
Simônides, Teógnis) que desenvolveram a poesia parenética, ou seja, de exortação moral.
Ainda segundo Jaeguer (2013, p.84),

Os gregos colocaram ao lado de Homero, como seu segundo poeta, o beócio


Hesíodo. Nele se revela uma esfera social totalmente diversa do mundo e cultura dos
nobres [...] Homero acentua, com maior nitidez, que toda a educação tem o seu
ponto de partida na formação de um tipo humano nobre, o qual nasce do cultivo das
qualidades próprias dos senhores e dos heróis. Em Hesíodo revela-se a segunda
fonte de cultura: o valor do trabalho [...] o heroísmo não se manifesta só nas lutas
em campo aberto, entre os cavaleiros nobres e os seus adversários. Também a luta
silenciosa e tenaz dos trabalhadores com a terra dura e com os elementos tem o seu
heroísmo e exige disciplina, qualidades de valor eterno para a formação do homem.

No tocante ao emprego do termo “ψυχή”, em Homero, essa terminologia queria fazer-se


entender como uma espécie de fantasma, que poderia ser reconhecido por pessoas e que podia
se desprender provisoriamente do corpo, durante o sono, ou definitivamente, por ocasião da
morte. Para bem ilustrar isso, vejamos duas passagens de alguns versos homéricos:

[...] aproximou-se a alma [“ψυχή”] do desgraçado do Pátroclo / em tudo semelhante


ao próprio, na altura, nos belos olhos / e na voz, e roupas iguais vestia no corpo. /
Parou acima da cabeça de Aquiles e lhe dirigiu o discurso: / “Dormes e de mim
esqueceste, Aquiles? / quando vivia, não me ignoravas; morto, sim. / enterra-me
bem rápido: que eu cruze os portões do Hades” (HOMERO, Ilíada, XXIII, vv. 65 –
71).

E, ainda,

[...] mas essa é a marca dos mortais quando alguém morre. / Não mais tendões
seguram carnes e ossos, / mas a eles o ímpeto superior do fogo chamejante /
subjuga, e assim que a vida deixa os ossos brancos, / a alma, como um sonho,
esvoaça e voa embora” (HOMERO, Odisseia, XI, vv. 218 – 222).
Nos mistérios órficos, por sua vez, era o princípio superior (“δαίμων”), que se reencarnava
sucessivamente, atravessando o processo purificador que a conduziria às estrelas e a
reintegraria na harmonia universal. Contudo, ligada ao corpo, a alma só poderia manifestar-se
em sonhos, visões, transes etc.

Esses rituais [os órficos] de purificação se baseavam na crença da imortalidade da


alma, sendo que a ascensão seria conseguida após muitas reencarnações ou
transmigrações, e a finalidade ritualística era justamente purificar a alma do iniciado
[nos mistérios órficos] para acelerar sua libertação da “roda dos nascimentos”
[retornando para os Campos Elíseos]2.

Na compreensão do homem grego clássico, adepto da religião do Estado, e para os primeiros


filósofos do século VII e VI a.C.- chamados por Aristóteles (séc. IV), na Metafísica, de
Filósofos da Natureza e mais conhecidos pela nomenclatura moderna inaugurada pelo
helenista alemão Hermann Diels-Kranz, Pré-socráticos - a natureza e o homem formavam
uma mesma realidade, ou em outras palavras, o homem era visto como uma extensão da
natureza e ambos partiam, eram sustentados e convergiam para o mesmo Princípio Primeiro
de todas as coisas (“ἀρχή”). Nesse quadro, a alma era entendida apenas como uma parte do
todo, ou seja, uma porção do “πνεῦμα ἄπειρον” que habitava o corpo (Anaxímenes de
Mileto); ou porção de fogo a aquecer e a animar o corpo até que afinal retornasse à unidade
do Fogo – Razão, o “λόγος” universal (Heráclito de Éfeso).

Sócrates: a alma como essência do homem

Nessa marcha do pensamento grego, alcançamos aquele que é considerado um divisor de


águas na história da filosofia antiga, ou seja, Sócrates (Atenas, 469 a.C. - 399 a.C.). Acerca
dele, diz-nos Cícero que desceu a filosofia do céu e instalou-a nas cidades e nas moradas dos
homens3. Sócrates, segundo Lima Vaz (2014, p.38),

[...] representa, na história das concepções filosóficas do homem no Ocidente, a


inflexão decisiva que orienta até hoje o pensamento antropológico [...] nada
escreveu, como é sabido. Mas o tema constante de sua meditação [...] gira em torno
do que é propriamente “humano” ou “das coisas humanas”.

2
CASORETTI, Ana M. Rev. A Origem da Alma: do Orfismo a Platão, 2011. Trabalho de Graduação
Interdisciplinar apresentado ao Curso de Filosofia da Universidade Presbiteriana Mackenzie como requisito
parcial à obtenção do título de Bacharel em Filosofia.
3
CÍCERO apud JAEGUER, 2013, p. 519.
Sócrates, considerado o fundador da filosofia moral, compreendia a “ψυχή” como a sede da
consciência normal e do caráter do homem, sendo aquela que no cotidiano se manifestava
através de palavras e ações, devendo receber o maior cuidado do homem, uma vez que
poderia ser dotada de conhecimento (“ἐπιστήμη”) ou ignorância (“ἄγνοια”), tornando-o,
respectivamente, bom (“άγαθόν”) ou mal (“κακόν”).

Na visão socrática, o “humano” só tem sentido e explicação se referido a um


princípio interior ou a uma dimensão de interioridade presente em cada homem e
que ele designou justamente com o antigo termo de “alma” (“ψυχή”), mas dando-lhe
uma significação essencialmente nova e propriamente socrática (Ibidem, 2014, p.
39).

Visando a melhor compreensão da concepção socrática de alma, faz-se mister discorrer sobre
o seu entendido acerca da virtude. Sócrates, em um tempo de intensas mudanças na Atenas do
século V4, afirmou que a virtude era conhecimento e que, consequentemente, ninguém erra
deliberadamente5. Esse conhecimento de que fala Sócrates não é a “δόξα”, opiniões
geralmente infundadas, mas a “ἐπιστήμη”, ciência. Esta, por sua vez, não pode ser ensinada,
não constituindo um acúmulo de informações voltadas à obtenção de prestígios e riquezas
materiais, contudo, é o conhecimento de si mesmo, ou seja, a autoconsciência despertada e
mantida em permanente vigilância. Vejamos uma passagem da Apologia de Sócrates e, em
seguida, uma explicação da mesma:

Enquanto viver, não deixarei jamais de filosofar, de vos exortar a vós e de instruir
quem quer que eu encontre [...] E farei isso com os jovens e com os anciãos, com
todos, os que encontrar, [...] mas sobretudo com os homens desta cidade [Atenas]
[...] É que todos os meus passos se reduzem a andar por aí, persuadindo novos e
velhos a não se preocuparem nem tanto nem em primeiro lugar com o seu corpo e
com a sua fortuna, mas antes com a perfeição de sua alma (PLATÃO, Apologia de
Sócrates, Apud JAEGUER, 2013, p. 526-527).

A “filosofia” que Sócrates aqui [em uma passagem da Apologia de Sócrates]


professa não um simples processo teórico de pensamento: é ao mesmo tempo uma
exortação e uma educação. A serviço desses objetivos estão ainda o exame e a
refutação socrática de todo o saber aparente e de toda a excelência (areté)
meramente imaginária [...] Sócrates exige que, em lugar de se preocupar com os
ganhos, o homem se preocupe com a alma (“ψυχής τεραπεία”) [...] De resto, nada se
diz para comprovar o superior valor da alma em comparação com os bens materiais
ou com o corpo [por ser algo evidente, não obstante os desvios humanos na prática]
(JAGUER (2013, p. 527).
4
Por exemplo, a intensa crítica tecida contra as estruturas aristocráticas e as mudanças conceituais
empreendias pelos sofistas: a virtude, ou excelência, independe da nobreza de sangue, mas está unicamente
relacionada ao conhecimento; os limites da Cidade-Estado tornam-se obsoletos para o espírito pan-helênico do
qual podem ser considerados os pioneiros; o conhecimento não é mais um privilégio, uma vez que poderia ser
acessível a todos que pudessem por ele pagar; o homem como ser cultural, ou seja, um ser de necessidade a
quem cabe suprir com a cultura o que lhe faltara por natureza etc.
5
Intelectualismo Socrático, ou seja, o conhecimento é a condição necessária e suficiente para a realização do
bem. Assim, o homem é vítima da sua própria ignorância: pensa fazer o bem quando, deveras, faz o mal.
A alma é a sede da “ἀρετή”, por meio da qual se pode medir qualitativamente o homem a
partir de sua vida interior ou interioridade, ou seja, o homem é bom ou mau, justo ou injusto,
de acordo com a opção de cuidado ou desconsideração da sua alma, já que é nela onde habita
a virtude. A felicidade, na perspectiva socrática, não seria dada nem pelos bens do corpo, nem
pelos externos, mas pelos bens da alma, isto é, pelo seu aperfeiçoamento mediante a virtude,
que é o autoconhecimento, o dar-se conta moralmente de si próprio.

Portanto, o homem é uma realidade dual na qual o corpo é um instrumento para a felicidade
da alma, a verdadeira essência humana. O que nos pode ser bem esclarecido por um dos
diálogos de Platão considerado do seu período de escrita juvenil ou socrático, Alcibíades
Maior (128 d – 130 e)6:

Sócrates – [...] conhecer a si mesmo é uma coisa fácil e era talvez um homem qualquer aquele que, no Templo de
Delfos, consagrou aquele mote? Ou é, ao invés, uma coisa difícil e não para todos?
Alcibíades – A mim, Sócrates, amiúde pareceu ser coisa de todos, normalmente dificílima.
Sócrates – Mas, ó Alcibíades, fácil ou não, para nós é assim: se nos conhecermos, saberemos talvez também qual
é o cuidado que devemos ter com nós mesmos; se não nos conhecemos, jamais o saberemos.
Alcibíades – Assim é.
Sócrates – dize-me, pois, de que modo poder-se-ia encontrar o que é esse “si mesmo”
[...]
Sócrates – E não se serve o homem de todo o corpo?
Alcibíades – Certo.
Sócrates – Mas não dissemos que uma coisa é quem se serve de algo, outra coisa é aquilo de que ele se serve?
Alcibíades – Sim.
Sócrates – Uma coisa, portanto, é o homem, outra o seu corpo.
Alcibíades – Parece que sim.
Sócrates – Que é, pois, o homem?
Alcibíades – Não sei dizer.
Sócrates – Isso, porém, podes dizer, que ele é o que se serve do corpo.
Alcibíades – Sim.
Sócrates – E o que é o que se serve do corpo senão a alma?
Alcibíades – Não é outra coisa [...]
Sócrates – A alma, portanto, nos ordena conhecer quem nos admoesta: “conhece-te a ti mesmo”.

O caminho que fizemos até aqui pleiteou demonstrar que, no tocante à antropologia grega
antiga e clássica, a relação entre corpo e alma e o que cada um é para o outro se apresentam
como proeminentes para o entendimento do que trata ser o homem. Com isso, queremos
afirmar: o que mais tarde Aristóteles definirá como substância7 já em Sócrates começa a ser
gestado, e em Platão receberá ampliações e modificações relevantes. Contudo, é fundamental
já apreciar a diferença existente entre Platão e Aristóteles no que tange a forma como se
concebia a relação entre “σώμα - ψυχή”. Para o Mestre da Academia, essa interação era
acidental e, à medida que Platão se afasta de sua escrita juvenil, esta passa a ser marcada por
uma tensão, na qual a alma, pertencente ao Mundo Inteligível ou Transcendente (essência
humana), está mortificada enquanto estiver presa ao corpo, pertencente ao Mundo Sensível ou
Imanente, considerado como um peso que a prende longe de sua realização plena, que
consiste na contemplação da Ideia Suprema do Bem; já para o seu eminente e divergente
discípulo, fundador do Liceu, a relação entre alma e corpo se configura como o encontro de

6
Apud REALE, 2013, p. 97-98.
7
Aquilo que permanece imutável mesmo nas mudanças de suas afecções.
dois elementos substanciais, ou seja, a alma (estrutura inteligível e imanente) é a causa
formal, ou mais especificamente, a forma substancial (princípio formal de ser, mas ainda não
o ser) que imprime no corpo, causa material, ou mais especificamente, matéria prima
(princípio material de ser, mas ainda não o ser), a configuração fundamental do homem8
(resultante dessa união), ou, nas palavras de Lima Vaz ( 2014, p. 46), “como todo ser vivo, o
homem é um ser composto (syntheton) de Psyché e de Sôma. A psyché é, pois, a perfeição ou
ato (entelécheia) do corpo organizado, e essa é a sua definição”.

Antropologia Platônica: da prisão do corpo à verdadeira vida

Em uma exposição da antropologia em Platão, é imprescindível, como já fora supracitado,


diferenciar os três principais períodos da escrita platônica, uma vez que, mesmo os diálogos
apresentando uma estrutura interna coerente, entre eles é possível identificar diferenças
relativas às conclusões de seus argumentos. Aqueles diálogos ditos da maturidade são os que
tratam, sobretudo, da “Segunda Navegação”: a descoberta do mundo suprassensível
(Hiperurânio) como a verdadeira realidade e causa de tudo o que há no mundo das coisas
materiais, empíricas e sensíveis. Com essa nova empreitada, Platão faz retornar algumas
questões sobre novas perspectivas, entretanto, aqui nos interessa aquelas que dizem respeito à
visão antropológica do nosso filósofo, basilar para a formação da cultura ocidental. Podemos
ainda afirmar que Platão reuniu em seu pensamento as concepções órfico-pitagóricas e a
maiêutica socrática, dando, por exemplo, ao mito uma funcionalidade racional, ou em outras
palavras, “[...] Platão confia à força do mito, quando a razão tiver chegado aos limites
extremos das suas possibilidades, a tarefa de superar intuitivamente esses limites, elevando o
espírito a uma visão, ou pelo menos a uma tensão, que podemos dizer metarracional”
(REALE et ANTISERI, 2017, P.128).

Com a descoberta do plano suprafísico do ser, o mundo natural ou físico passa a ser entendido
como o resultado da ação de um Demiurgo (entidade divina pessoal pensante e operante) que,
usando as Formas ou Ideias (“ίδέα”) do Mundo Inteligível como princípios formais, isto é,
que imprimem formas determinadas, delimitou como que um substrato material ilimitado e
indeterminado (princípio de multiplicidade material), plasmando assim tudo o que há no
mundo sensível. Assim, o Demiurgo não é um deus criador, mas artífice, pois, ele nada criou,
mas moldou: as Ideias serviram como modelos (“παραδειγμα”) para delimitar um substrato
indeterminado e informe, moldando todas as coisas sensíveis e delimitadas. Do movimento

8
Monismo hilemórfico: todos os entes corpóreos são compostos de Forma e Matéria, respectivamente, causa
formal e causa material deles.
caótico e informe (“χάος”), sob o qual estava a multiplicidade material ilimitada, plasmou o
universo físico e ordenado (“κόσμος”). Do que foi dito, pode-se então perceber que a relação
dualista não é bem a característica entre os mundos sensível e inteligível, uma vez que este é a
verdadeira causa daquele, participando as coisas físicas daquela ideia que as originou e as
tornou cognoscíveis, até mesmo podemos afirmar: sem a original, cópia alguma existe ou tem
valor.

Por outro lado, a interação entre a alma e o corpo, justamente, deverá ser considerada sob o
ponto de vista da dualidade, porque “além de introduzir à componente metafísica, introduz-se
a componente religiosa do orfismo, que transforma a distinção entre alma (suprassensível) e o
corpo (sensível) numa oposição” (REALE et ANTISERI, 2017, p. 154). Por isso mesmo,
aquela concepção socrática, presente nos diálogos ditos da juventude, de que o corpo é um
instrumento decai e, em seu lugar, é erguida uma nova consideração: o corpo é, deveras, um
cárcere da alma, infligindo sobre ela castigos a fim de expiá-la de suas culpas. Desse modo, a
felicidade para o homem, haja vista ser ele essencialmente a alma, encontra-se em libertá-la
do corpo para, voltada inteiramente em si mesma e purificada de toda sorte de paixões e
males, ascender à contemplação do conhecimento mais elevado, o Bem em si. Para deixar
claro o que desejamos expor, vejamos um trecho do diálogo Fédon:

Sócrates – Na nossa opinião, a morte é alguma coisa?


Símias – Sim, certamente.
Sócrates – Não é outra coisa senão a separação da alma do corpo, não é? Estar morto é bem isto: de um lado,
separado da alma, o corpo isola-se em si mesmo; do outro, a alma, por sua vez, separada do corpo, é isolada em
si mesma? Ou a morte será outra coisa?
Símias – É isso mesmo.
[...]
Sócrates – E, agora, no que diz respeito propriamente à aquisição do conhecimento, o corpo, dize-me é ou não
um entrave, se nas nossas indagações pedirmos o seu concurso? [...]
Símias – Certamente.
[...]
Sócrates – [...] é esta a ideia enquanto tivermos o corpo, e nossa alma estiver confundida com essa coisa má, nós
[os filósofos] não possuiremos jamais suficientemente o objeto do nosso desejo. Ora, este objeto, dizemos, é a
verdade. E não são somente penas sem fim que o corpo suscita por motivo das necessidades da vida; há também
as moléstias. Amores, desejos, temores, imaginações de toda espécie, inumeráveis frivolidades, o corpo nos
ocupa de tal modo que por ele, como se diz, não nos chega mesmo, realmente, nenhum pensamento sensato, nem
um só!
[...] A posse de riquezas, eis com efeito a causa original de todas as guerras, e se somos levados à procura de
bens, é por causa do corpo, escravos submetidos ao seu serviço! E é ainda por causa de tudo isso que nos
ocupamos pouco da filosofia. Mas o pior de tudo é que, quando o corpo nos permite um pouco de tranquilidade,
para nos voltarmos para um objeto qualquer de reflexão, as nossas indagações são novamente postas em
desordem por este intruso, que nos atordoa, nos perturba e nos desconcerta, a ponto de nos tornar incapazes de
distinguir a verdade. Ao contrário, se quisermos saber alguma coisa em sua pureza, teremos que nos separar do
corpo e olhar com a alma em si mesma as coisas em si mesmas. É, então, ao que parece, que nos pertencerá
aquilo de que nos dizemos amantes: o pensamento. [...] Se, com efeito, é impossível, na união com o corpo,
conhecer algo com pureza, das duas uma: ou não nos é possível, de nenhuma maneira, adquirirmos o saber ou,
então, somente será possível quando estivermos mortos, pois será apenas nesse momento que a alma estará em si
mesma e por ela mesma, separada do corpo, e não antes.
Além disso, durante o tempo que a nossa vida possa durar, estaremos o mais perto do saber precisamente quando
tivermos o menos possível comércio ou sociedade com o corpo [...] Chegados à pureza, por termos sido
separados da demência do corpo, estaremos verossimilmente unidos a seres semelhantes a nós; e por nós,
somente por nós, conheceremos aquilo que é isento de impureza.

Nesse trecho do supracitado diálogo, fica claro, na concepção platônica, que o corpo é a raiz
de todos os males e que a alma, não está simplesmente ligada ao corpo, mas justamente
padece por estar presa a ele e, por consequência, não conseguir conhecer o “em si” das coisas,
isto é, a verdadeira realidade, as Ideias. A única possibilidade de libertação da alma é a morte
que, por ser a alma imortal, em nada a atinge negativamente, mas somente ao corpo. Contudo,
se o homem não se purificar dos vícios e não se exercitar nas virtudes, desligando-se
gradativamente dos prazeres e desejos materiais, sua alma, com a morte e após vagar por entre
os sepulcros, retornará a uma existência corporal não necessariamente humana, ou seja,
dependo do nível de purificação que já tenha alcançado, se reencarnará em um corpo mais ou
menos nobre. Esse ciclo ao qual está presa a alma até se purificar completamente,
tradicionalmente é denominado “metempsicose”, contudo, um termo mais apropriado do
ponto de vista linguístico seria, segundo alguns autores, “metassomatose”. É no diálogo Fédro
(ou Sobre a Beleza) que encontramos a causa de tudo isso: as almas, antes da culpa original
viviam junto aos deuses no mundo dos bem-aventurados e contemplavam as Ideias. Depois da
culpa, perderam suas asas e foram precipitadas nos corpos, esquecendo-se de tudo. Porém,
não obstante a fadiga, filosofando, isto é, por meio da dialética, a alma poderá recordar as
coisas que há tempo viu e, desprendendo-se de vez do corpo, alçará voo e retornará à
contemplação da perseidade da verdadeira realidade, o Mundo das Ideias. A influência órfico-
pitagórica, certamente, agora pode ser percebida com clareza.

A fuga do corpo e a fuga do mundo são o caminho para a purificação da alma. Por um lado, a
alma deve fugir das paixões oferecidas constantemente pela vileza do corpo e, por isso
mesmo, o verdadeiro filósofo, como ficou bem claro no trecho do diálogo acima, deseja a
morte e, ainda mais, a filosofia é um exercício para a morte, uma vez que o conhecimento do
verdadeiro e justo, em sua plenitude e pureza, só será possível com a separação da alma
imortal do corpo, raiz dos males. De outra forma, pode-se dizer que a filosofia é o exercício
para a vida verdadeira, na qual a alma, recolhida em si e por si mesma, livre de todo
empecilho imposto pelo corpo, associar-se-á inteiramente ao inteligível. Quanto à fuga do
mundo, significa tornar-se semelhante ao deus, ou seja, justo e santo, para que a alma retorne
ao convívio do divino. E, como a alma se purifica (ou se converte) conhecendo por meio de
um “catártico esforço”,

[...] os dois paradoxos possuem significado idêntico: fugir do corpo quer dizer fugir
do mal do corpo mediante a virtude e conhecimento; fugir do mundo quer dizer fugir
do mal do mundo, sempre mediante a virtude e conhecimento; seguir virtude e
conhecimento quer dizer tornar-se semelhante a Deus, que [...] é “medida” de todas
as coisas.

Considerações Finais

O homem é essencialmente sua “ψυχή”, cuja relação com o corpo é caracterizada pela
depreciação de sua capacidade de conhecimento do verdadeiro e puro. Impelido pelo desejo
de conhecimento à contemplação do Bem em si, a alma se vê atormentada pelas fraquezas e
vícios do corpo, não podendo alçar voos e ir ao encontro do Supremo Conhecimento. A única
solução para ela, enquanto ainda encarcerada pela materialidade deprimente, é realizar uma
marcha ascensional, em que o homem passa da condição de amante da beleza dos corpos à
amante do belo nas almas, subindo degrau a degrau até alcançar o mais perfeito e puro
conhecimento, a contemplação da metaempírica Beleza em si (correlata à Ideia do Bem) e,
somente desse modo, tornar-se-á semelhante ao deus. Por contemplar o Bem em si e não uma
imagem dele, não será gerada em sua alma uma imagem da virtude, mas a virtude mesma, e
isso o tornará considerado pelos deuses como o imortal dentre os mortais, bem-aventurado.
Esse desejo pelo conhecimento que, por um lado, encontra um entrave no corpo, por outro
lado, encontra em “Ἔρως” (Amor ao Belo e, consequentemente, ao Bem) a sua forção
mediadora entre o mundo sensível e o Inteligível, dando asas à alma e elevando-a através dos
vários graus da Beleza, a começar pelo belo sensível, mas não permanecendo nele, uma vez
que é lançada para além dele como por um trampolim. O amor não é, então nem belo, nem
bom, mas sede de beleza e de bondade, outrossim não é um deus, nem tampouco um mortal,
mas um “δαίμων”, ou seja, um ente intermediário entre os deuses (portadores da sabedoria
plena) e os homens comuns (ignorantes e alienados pelas paixões). Filho de “Πενία”,
personificação da pobreza e carência e de “Πόρος”, personificação da riqueza e abundância,
tendo sido gerado no jardim de Zeus, onde os deuses estavam reunidos por ocasião dos
festejos em honra ao nascimento de Afrodite, “Ἔρως”, afirma Sócrates no diálogo Banquete,
deve ser filósofo. Com essa imagem, quer Platão significar que o filósofo não é aquele que
detém a sabedoria, nem tampouco é indiferente a ela, porém, é seu amante, buscando-a
intensamente e, ao encontra-la, escapa-lhe, tendo que ir mais além. Em outras palavras,
“Φιλοσοφία” (amor à Sabedoria) é “Φιλοκαλία” (amor ao Belo e ao Bom). O amor ao Belo e
ao Bem em si é a força ou tensão transcendente que excita a alma, levando-a à ascensão ao
plano metaempírico da realidade e a estar junto aos deuses. Portanto, podemos entender as
palavras do Padre Lima Vaz (2013, p. 44), “o tema da relação do homem com o divino que se
sobrepõe a todos os outros e permanece [...] como o motivo fundamental da antropologia
platônica”, da seguinte forma: homem tem saudade do absoluto, é um ser em constante tensão
ao transcendente.

Referências Bibliográficas

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Disponível em:
https://www.academia.edu/3538244/A_PSYKHÉ_EM_HOMERO_O_HOMEM_GREGO_E_
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