Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
RESUMO: O trabalho que se seguirá terá como escopo tratar da concepção antropológica em
Platão. Para alcançarmos tal fim e de modo a não tecermos, tão intensamente, uma caricatura
do que aqui se objetiva, serão necessárias duas condições: a primeira consiste em realizar uma
breve rememoração dos conceitos de virtude e alma nos poetas épicos Homero e Hesíodo, nos
Mistérios Órficos, nos Jônios do séc. VI e na fundamental inflexão promovida por Sócrates; a
segunda visa a levar em consideração os diferentes períodos da escrita de Platão, sobretudo,
no que diz respeito à sua concepção de alma.
Considerações Iniciais
Para Homero (século IX ou VIII a.C.), considerado o criador da poesia épica, o maior e mais
antigo poeta grego a quem se atribui as obras-primas “Ilíada” e “Odisseia”, a virtude
(“ἀρετή”) era um atributo inerente à nobreza ou aristocracia, estava ligada às noções de
função, realização, capacitação, denotando a excelência de tudo o que é útil para algum ato ou
fim. Segundo Jaeguer (2013, p.23),
1
PLATÃO, Fedon, XLVIII.
O tema essencial da história da formação grega é antes o conceito de areté [...] como
expressão do mais alto ideal cavaleiresco unido a uma conduta cortês e distinta e ao
heroísmo guerreiro [...] É às concepções fundamentais da nobreza cavaleiresca que
remonta a sua raiz. Na sua forma mais pura, é no conceito de areté que se concentra
o ideal da educação dessa época.
Por outro lado, em Hesíodo, aedo que viveu em meados do séc. VIII a.C. na Beócia (região
central da Grécia) e é considerado o segundo pai da “παιδεία”, a “ἀρετή” passa a assumir
significado mais estritamente moral: deixa de ser um atributo inerente aos bem nascidos para
se transformar em uma conquista, resultado do esforço e do trabalho enobrecedor de qualquer
homem. Em Hesíodo, a seu modo, já é proposto a questão do ensino da virtude. De Hesíodo
aos sofistas (séc. V a.C.), esse tema estivera inserido na temática de poetas (Píndaro,
Simônides, Teógnis) que desenvolveram a poesia parenética, ou seja, de exortação moral.
Ainda segundo Jaeguer (2013, p.84),
E, ainda,
[...] mas essa é a marca dos mortais quando alguém morre. / Não mais tendões
seguram carnes e ossos, / mas a eles o ímpeto superior do fogo chamejante /
subjuga, e assim que a vida deixa os ossos brancos, / a alma, como um sonho,
esvoaça e voa embora” (HOMERO, Odisseia, XI, vv. 218 – 222).
Nos mistérios órficos, por sua vez, era o princípio superior (“δαίμων”), que se reencarnava
sucessivamente, atravessando o processo purificador que a conduziria às estrelas e a
reintegraria na harmonia universal. Contudo, ligada ao corpo, a alma só poderia manifestar-se
em sonhos, visões, transes etc.
2
CASORETTI, Ana M. Rev. A Origem da Alma: do Orfismo a Platão, 2011. Trabalho de Graduação
Interdisciplinar apresentado ao Curso de Filosofia da Universidade Presbiteriana Mackenzie como requisito
parcial à obtenção do título de Bacharel em Filosofia.
3
CÍCERO apud JAEGUER, 2013, p. 519.
Sócrates, considerado o fundador da filosofia moral, compreendia a “ψυχή” como a sede da
consciência normal e do caráter do homem, sendo aquela que no cotidiano se manifestava
através de palavras e ações, devendo receber o maior cuidado do homem, uma vez que
poderia ser dotada de conhecimento (“ἐπιστήμη”) ou ignorância (“ἄγνοια”), tornando-o,
respectivamente, bom (“άγαθόν”) ou mal (“κακόν”).
Visando a melhor compreensão da concepção socrática de alma, faz-se mister discorrer sobre
o seu entendido acerca da virtude. Sócrates, em um tempo de intensas mudanças na Atenas do
século V4, afirmou que a virtude era conhecimento e que, consequentemente, ninguém erra
deliberadamente5. Esse conhecimento de que fala Sócrates não é a “δόξα”, opiniões
geralmente infundadas, mas a “ἐπιστήμη”, ciência. Esta, por sua vez, não pode ser ensinada,
não constituindo um acúmulo de informações voltadas à obtenção de prestígios e riquezas
materiais, contudo, é o conhecimento de si mesmo, ou seja, a autoconsciência despertada e
mantida em permanente vigilância. Vejamos uma passagem da Apologia de Sócrates e, em
seguida, uma explicação da mesma:
Enquanto viver, não deixarei jamais de filosofar, de vos exortar a vós e de instruir
quem quer que eu encontre [...] E farei isso com os jovens e com os anciãos, com
todos, os que encontrar, [...] mas sobretudo com os homens desta cidade [Atenas]
[...] É que todos os meus passos se reduzem a andar por aí, persuadindo novos e
velhos a não se preocuparem nem tanto nem em primeiro lugar com o seu corpo e
com a sua fortuna, mas antes com a perfeição de sua alma (PLATÃO, Apologia de
Sócrates, Apud JAEGUER, 2013, p. 526-527).
Portanto, o homem é uma realidade dual na qual o corpo é um instrumento para a felicidade
da alma, a verdadeira essência humana. O que nos pode ser bem esclarecido por um dos
diálogos de Platão considerado do seu período de escrita juvenil ou socrático, Alcibíades
Maior (128 d – 130 e)6:
Sócrates – [...] conhecer a si mesmo é uma coisa fácil e era talvez um homem qualquer aquele que, no Templo de
Delfos, consagrou aquele mote? Ou é, ao invés, uma coisa difícil e não para todos?
Alcibíades – A mim, Sócrates, amiúde pareceu ser coisa de todos, normalmente dificílima.
Sócrates – Mas, ó Alcibíades, fácil ou não, para nós é assim: se nos conhecermos, saberemos talvez também qual
é o cuidado que devemos ter com nós mesmos; se não nos conhecemos, jamais o saberemos.
Alcibíades – Assim é.
Sócrates – dize-me, pois, de que modo poder-se-ia encontrar o que é esse “si mesmo”
[...]
Sócrates – E não se serve o homem de todo o corpo?
Alcibíades – Certo.
Sócrates – Mas não dissemos que uma coisa é quem se serve de algo, outra coisa é aquilo de que ele se serve?
Alcibíades – Sim.
Sócrates – Uma coisa, portanto, é o homem, outra o seu corpo.
Alcibíades – Parece que sim.
Sócrates – Que é, pois, o homem?
Alcibíades – Não sei dizer.
Sócrates – Isso, porém, podes dizer, que ele é o que se serve do corpo.
Alcibíades – Sim.
Sócrates – E o que é o que se serve do corpo senão a alma?
Alcibíades – Não é outra coisa [...]
Sócrates – A alma, portanto, nos ordena conhecer quem nos admoesta: “conhece-te a ti mesmo”.
O caminho que fizemos até aqui pleiteou demonstrar que, no tocante à antropologia grega
antiga e clássica, a relação entre corpo e alma e o que cada um é para o outro se apresentam
como proeminentes para o entendimento do que trata ser o homem. Com isso, queremos
afirmar: o que mais tarde Aristóteles definirá como substância7 já em Sócrates começa a ser
gestado, e em Platão receberá ampliações e modificações relevantes. Contudo, é fundamental
já apreciar a diferença existente entre Platão e Aristóteles no que tange a forma como se
concebia a relação entre “σώμα - ψυχή”. Para o Mestre da Academia, essa interação era
acidental e, à medida que Platão se afasta de sua escrita juvenil, esta passa a ser marcada por
uma tensão, na qual a alma, pertencente ao Mundo Inteligível ou Transcendente (essência
humana), está mortificada enquanto estiver presa ao corpo, pertencente ao Mundo Sensível ou
Imanente, considerado como um peso que a prende longe de sua realização plena, que
consiste na contemplação da Ideia Suprema do Bem; já para o seu eminente e divergente
discípulo, fundador do Liceu, a relação entre alma e corpo se configura como o encontro de
6
Apud REALE, 2013, p. 97-98.
7
Aquilo que permanece imutável mesmo nas mudanças de suas afecções.
dois elementos substanciais, ou seja, a alma (estrutura inteligível e imanente) é a causa
formal, ou mais especificamente, a forma substancial (princípio formal de ser, mas ainda não
o ser) que imprime no corpo, causa material, ou mais especificamente, matéria prima
(princípio material de ser, mas ainda não o ser), a configuração fundamental do homem8
(resultante dessa união), ou, nas palavras de Lima Vaz ( 2014, p. 46), “como todo ser vivo, o
homem é um ser composto (syntheton) de Psyché e de Sôma. A psyché é, pois, a perfeição ou
ato (entelécheia) do corpo organizado, e essa é a sua definição”.
Com a descoberta do plano suprafísico do ser, o mundo natural ou físico passa a ser entendido
como o resultado da ação de um Demiurgo (entidade divina pessoal pensante e operante) que,
usando as Formas ou Ideias (“ίδέα”) do Mundo Inteligível como princípios formais, isto é,
que imprimem formas determinadas, delimitou como que um substrato material ilimitado e
indeterminado (princípio de multiplicidade material), plasmando assim tudo o que há no
mundo sensível. Assim, o Demiurgo não é um deus criador, mas artífice, pois, ele nada criou,
mas moldou: as Ideias serviram como modelos (“παραδειγμα”) para delimitar um substrato
indeterminado e informe, moldando todas as coisas sensíveis e delimitadas. Do movimento
8
Monismo hilemórfico: todos os entes corpóreos são compostos de Forma e Matéria, respectivamente, causa
formal e causa material deles.
caótico e informe (“χάος”), sob o qual estava a multiplicidade material ilimitada, plasmou o
universo físico e ordenado (“κόσμος”). Do que foi dito, pode-se então perceber que a relação
dualista não é bem a característica entre os mundos sensível e inteligível, uma vez que este é a
verdadeira causa daquele, participando as coisas físicas daquela ideia que as originou e as
tornou cognoscíveis, até mesmo podemos afirmar: sem a original, cópia alguma existe ou tem
valor.
Por outro lado, a interação entre a alma e o corpo, justamente, deverá ser considerada sob o
ponto de vista da dualidade, porque “além de introduzir à componente metafísica, introduz-se
a componente religiosa do orfismo, que transforma a distinção entre alma (suprassensível) e o
corpo (sensível) numa oposição” (REALE et ANTISERI, 2017, p. 154). Por isso mesmo,
aquela concepção socrática, presente nos diálogos ditos da juventude, de que o corpo é um
instrumento decai e, em seu lugar, é erguida uma nova consideração: o corpo é, deveras, um
cárcere da alma, infligindo sobre ela castigos a fim de expiá-la de suas culpas. Desse modo, a
felicidade para o homem, haja vista ser ele essencialmente a alma, encontra-se em libertá-la
do corpo para, voltada inteiramente em si mesma e purificada de toda sorte de paixões e
males, ascender à contemplação do conhecimento mais elevado, o Bem em si. Para deixar
claro o que desejamos expor, vejamos um trecho do diálogo Fédon:
Nesse trecho do supracitado diálogo, fica claro, na concepção platônica, que o corpo é a raiz
de todos os males e que a alma, não está simplesmente ligada ao corpo, mas justamente
padece por estar presa a ele e, por consequência, não conseguir conhecer o “em si” das coisas,
isto é, a verdadeira realidade, as Ideias. A única possibilidade de libertação da alma é a morte
que, por ser a alma imortal, em nada a atinge negativamente, mas somente ao corpo. Contudo,
se o homem não se purificar dos vícios e não se exercitar nas virtudes, desligando-se
gradativamente dos prazeres e desejos materiais, sua alma, com a morte e após vagar por entre
os sepulcros, retornará a uma existência corporal não necessariamente humana, ou seja,
dependo do nível de purificação que já tenha alcançado, se reencarnará em um corpo mais ou
menos nobre. Esse ciclo ao qual está presa a alma até se purificar completamente,
tradicionalmente é denominado “metempsicose”, contudo, um termo mais apropriado do
ponto de vista linguístico seria, segundo alguns autores, “metassomatose”. É no diálogo Fédro
(ou Sobre a Beleza) que encontramos a causa de tudo isso: as almas, antes da culpa original
viviam junto aos deuses no mundo dos bem-aventurados e contemplavam as Ideias. Depois da
culpa, perderam suas asas e foram precipitadas nos corpos, esquecendo-se de tudo. Porém,
não obstante a fadiga, filosofando, isto é, por meio da dialética, a alma poderá recordar as
coisas que há tempo viu e, desprendendo-se de vez do corpo, alçará voo e retornará à
contemplação da perseidade da verdadeira realidade, o Mundo das Ideias. A influência órfico-
pitagórica, certamente, agora pode ser percebida com clareza.
A fuga do corpo e a fuga do mundo são o caminho para a purificação da alma. Por um lado, a
alma deve fugir das paixões oferecidas constantemente pela vileza do corpo e, por isso
mesmo, o verdadeiro filósofo, como ficou bem claro no trecho do diálogo acima, deseja a
morte e, ainda mais, a filosofia é um exercício para a morte, uma vez que o conhecimento do
verdadeiro e justo, em sua plenitude e pureza, só será possível com a separação da alma
imortal do corpo, raiz dos males. De outra forma, pode-se dizer que a filosofia é o exercício
para a vida verdadeira, na qual a alma, recolhida em si e por si mesma, livre de todo
empecilho imposto pelo corpo, associar-se-á inteiramente ao inteligível. Quanto à fuga do
mundo, significa tornar-se semelhante ao deus, ou seja, justo e santo, para que a alma retorne
ao convívio do divino. E, como a alma se purifica (ou se converte) conhecendo por meio de
um “catártico esforço”,
[...] os dois paradoxos possuem significado idêntico: fugir do corpo quer dizer fugir
do mal do corpo mediante a virtude e conhecimento; fugir do mundo quer dizer fugir
do mal do mundo, sempre mediante a virtude e conhecimento; seguir virtude e
conhecimento quer dizer tornar-se semelhante a Deus, que [...] é “medida” de todas
as coisas.
Considerações Finais
O homem é essencialmente sua “ψυχή”, cuja relação com o corpo é caracterizada pela
depreciação de sua capacidade de conhecimento do verdadeiro e puro. Impelido pelo desejo
de conhecimento à contemplação do Bem em si, a alma se vê atormentada pelas fraquezas e
vícios do corpo, não podendo alçar voos e ir ao encontro do Supremo Conhecimento. A única
solução para ela, enquanto ainda encarcerada pela materialidade deprimente, é realizar uma
marcha ascensional, em que o homem passa da condição de amante da beleza dos corpos à
amante do belo nas almas, subindo degrau a degrau até alcançar o mais perfeito e puro
conhecimento, a contemplação da metaempírica Beleza em si (correlata à Ideia do Bem) e,
somente desse modo, tornar-se-á semelhante ao deus. Por contemplar o Bem em si e não uma
imagem dele, não será gerada em sua alma uma imagem da virtude, mas a virtude mesma, e
isso o tornará considerado pelos deuses como o imortal dentre os mortais, bem-aventurado.
Esse desejo pelo conhecimento que, por um lado, encontra um entrave no corpo, por outro
lado, encontra em “Ἔρως” (Amor ao Belo e, consequentemente, ao Bem) a sua forção
mediadora entre o mundo sensível e o Inteligível, dando asas à alma e elevando-a através dos
vários graus da Beleza, a começar pelo belo sensível, mas não permanecendo nele, uma vez
que é lançada para além dele como por um trampolim. O amor não é, então nem belo, nem
bom, mas sede de beleza e de bondade, outrossim não é um deus, nem tampouco um mortal,
mas um “δαίμων”, ou seja, um ente intermediário entre os deuses (portadores da sabedoria
plena) e os homens comuns (ignorantes e alienados pelas paixões). Filho de “Πενία”,
personificação da pobreza e carência e de “Πόρος”, personificação da riqueza e abundância,
tendo sido gerado no jardim de Zeus, onde os deuses estavam reunidos por ocasião dos
festejos em honra ao nascimento de Afrodite, “Ἔρως”, afirma Sócrates no diálogo Banquete,
deve ser filósofo. Com essa imagem, quer Platão significar que o filósofo não é aquele que
detém a sabedoria, nem tampouco é indiferente a ela, porém, é seu amante, buscando-a
intensamente e, ao encontra-la, escapa-lhe, tendo que ir mais além. Em outras palavras,
“Φιλοσοφία” (amor à Sabedoria) é “Φιλοκαλία” (amor ao Belo e ao Bom). O amor ao Belo e
ao Bem em si é a força ou tensão transcendente que excita a alma, levando-a à ascensão ao
plano metaempírico da realidade e a estar junto aos deuses. Portanto, podemos entender as
palavras do Padre Lima Vaz (2013, p. 44), “o tema da relação do homem com o divino que se
sobrepõe a todos os outros e permanece [...] como o motivo fundamental da antropologia
platônica”, da seguinte forma: homem tem saudade do absoluto, é um ser em constante tensão
ao transcendente.
Referências Bibliográficas
HOMERO. Ilíada. Trad. Christian Werner. 1ª ed. São Paulo: Sesi-SP Editora e Ubu Editora,
2018.
HOMERO. Odisseia. Trad. Christian Werner. 1ª ed. São Paulo: Sesi-SP Editora e Ubu
Editora, 2018.
JAEGUER, Werner W. Paideia: a formação do homem grego. 6ª ed. São Paulo: WFM
Martins Fontes, 2013.
PLATÃO. Fédon. Trad. Miguel Ruas. 1ª ed. São Paulo: Marin Claret, 2003.
REALE, Giovanni. História da filosofia grega e Romana: Platão (Vol.III). 2ª ed. São Paulo:
Edições Loyola, 2014.
REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. Filosofia: Antiguidade e Idade Média (Vol. I). 1ª ed.
São Paulo: Paulus, 2017.
VAZ, Henrique C. de Lima. Antropologia Filosófica (Vol. I). 12ª ed. São Paulo: Editora
Loyola, 2014
SILVA, Bruna Moraes da. A Psykhé em Homero: o homem grego e a vida após a morte.
Disponível em:
https://www.academia.edu/3538244/A_PSYKHÉ_EM_HOMERO_O_HOMEM_GREGO_E_
A_VIDA_APÓS_A_MORTE. Acesso em: 29 de Out. 2019.