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Já que o gosto pelo gracejo é muito difundido e que a maioria das pessoas encontra nas
facécias e zombarias mais prazer que o devido, acontece que se cria para os bufões, porque
divertem, a reputação de gente inteligente. ( ... ) O homem de tato tem como característica
2
ARISTÓTELES, "Ética de Nicômaco" Livro IV, capítulo VIII, em Revista de Teatro, jan/fev,1971,p.22
3
Esta informação foi retirada da monografia A Personagem-tipo: Tradição e representação na Revista de Walter Pinto
por Nanci de Freitas como parte do projeto de pesquisa Teatro de Revista : Estado, política e cultura de Vistor H.
Adler.
4
PROPP, Vladímir PROPP., Ibid.cit.p. 85
5
Aurélio B.H.FERREIRA. ,Novo Dicionário AURÉILIO
Pela Arte Poética de Aristóteles não se sabe quem deu forma teatral à comédia,
quem introduziu as máscaras, o prólogo, o número de atores e outros componentes. Está dito que,
entre os atenienses, foi Crates o primeiro que abandonou a poesia jâmbica e inventou diálogos e
argumentos de caráter universal. A comédia versa sobre uma temática invertida da tragédia pela
imitação de homens inferiores e de suas ações torpes, cujo contexto é a vida cotidiana: "só quanto
àquela parte do torpe que é o ridículo, sendo o ridículo apenas um certo defeito inocente" 6 , a partir
a referência aos aspectos ridículos e viciosos do homem que conduzem à imagem de uma
personagem rebaixada e grotesca, cuja máscara disforme remete ao mito de origem do teatro e a
seus aspectos nada sublimes. A máscara feia, o conjunto de atitudes licenciosas e os disfarces em
figuras animalescas denunciam uma baixa corporeidade e uma ambigüidade que provocam o riso e
deflagram o prazer do povo pela sátira, pela zombaria e pela obscenidade.
Diz-se que duas forças centrais regiam as paixões dos gregos. O páthos, como uma
dessas forças, é o sofrimento reservado ao homem e configura um comportamento grave e digno
diante do inexorável desígnio do Destino. Através da consumação do páthos o homem exerce uma
ação no mundo ( práxis ). Esta seria uma força característica do trágico. A outra força é o sarcasmo
que desmascara as más intenções que levam os homens a cometer atos de falsa grandiosidade, que
impulsiona a comédia. Tanto uma quanto a outra expressam e provocam emoções, educando e
conscientizando ao mesmo tempo.
A composição da comédia é semelhante a da tragédia do ponto de vista de sua
estrutura original, mas modificada na linguagem, na cenografia e na mudança de ordem de algumas
partes tradicionais. A divisão do espetáculo em duas partes distintas forçou o deslocamento do
êxodo para o final da comédia, ficando as duas partes separadas pela parábase. A introdução da
parábase produz um efeito de corte na ilusão cênica que se transforma subitamente em realidade
grotesca e funciona como um divisor de águas, uma fenda que faz vir a tona a opinião ou a
advertência do próprio autor direcionada para o público, através da figura do corifeu e da atitude do
coro.
Sobre esta interrupção abrupta da ilusão e a passagem para uma realidade sem
máscaras, lemos no texto do Prof. Junito de Souza Brandão uma advertência : para se compreender
bem a comédia antiga e a diferença entre as duas partes é preciso aproximar o elemento religioso do
elemento satírico7 .
Para o Professor a função da parábase é provocar o estranhamento, além de servir de
conclusão provisória para a primeira parte, quando esta ficou separada do êxodo pela criação da
segunda, mas sobretudo para servir de marco entre as duas partes da Comédia Antiga : uma, que
6
ARISTÓTELES.Poética.tradução, prefácio e notas de Eudoro de Souza. p 109
7
ARISTÓFANES. As Rãs prefácio, tradução do grego e notas por Junito de Souza Brandão, RJ,1958. p. 3
provém dos ritos religiosos, apresenta uma ação completa e a outra, da farsa dórica, esclarece essa
ação de modo satírico, cru e, as vezes, violento.
A primeira, chamada de Agón ( o debate ), é composta pelos seguintes elementos: o
prólogo que visa aguçar a curiosidade dos espectadores através da exposição do problema a ser
debatido; o párodo que é a entrada do coro de forma tumultuada ( uma dança bem movimentada ) e
o agón, propriamente dito, que é uma batalha verbal entre o coro e o protagonista. Quando o debate
termina, com a vitória do protagonista, uma fala/cena de transição prepara a saída dos atores
deixando o coro sozinho. Nesse momento, os integrantes do coro interrompem a ação e arrancam
todos os disfarces da indumentária (máscaras, perucas, vestes cômicas, etc...), voltando-se para os
espectadores e executando a parábase.
" ... se suprimirmos o êxodo, com que se fecha a comédia, e colocarmos a parábase,
perceberemos que esta é um divisor de águas na Comédia Antiga. Parábase, em termos de
teatro significa uma suspensão da ação e uma chamada dos espectadores à realidade, isto é,
uma sátira que o poeta-cidadão faz contra os cidadãos, responsáveis política, social e
religiosamente pela pólis."8
8
BRANDÃO,Junito de Souza. O Teatro Grego: Tragédia e Comédia, p. 102
9
BRANDÃO ,Junito de Souza BRANDÃO, Teatro Grego: tragédia e comédia, p.101
À atuação do coro soma-se a composição coreográfica como elemento estético de
grande importância para a obtenção de efeitos de corte. Paul Bourcier no seu História da Dança no
Ocidente10 analisa a dança do coro na comédia, a cordax tão sensual e lasciva que ninguém
poderia executá-la fora do teatro sob pena de prisão, por atentar contra a moral pública como
uma composição específica composta por vinte e quatro membros organizados em quatro filas de
seis ou em seis filas de quatro. A forma de entrada variava de acordo com os temas da comédia: os
giros para A Paz, o avanço para o combate em Lisístrata, etc. Na parábase a composição
coreográfica é suspensa e desestruturada, liberando a marcação da ação para interpelar o público.
No êxodo o coro fazia uma procissão báquica e burlesca com movimentos acrobáticos. A cordax era
mais movimentada do que a dança na tragédia e caracterizava-se por ondulações dos quadris, que
podiam lembrar a dança do ventre, pelo tronco envergado para frente e por saltos. Na segunda parte
da comédia, a " revista ", o coro era mais satírico, composto por cinco filas de três transformava-se
pouco a pouco em farsa. Sua dança chamava-se sikinnis. Para o autor, a passagem da dança sagrada,
da mania loucura sagrada das mênades dançada em ritmo frenético e movimentos arrebatados:
gritos, saltos com as pernas esticadas ou não, flexão dos joelhos, torso, pescoço e cabeça jogados
para trás num gesto típico ( "o revirar que tritura as nucas" segundo observação de Píndaro ), braços
estendidos em oposição, passos corridos e escorregados para a bufonaria satírica, bastante
ousada, passando pela liturgia agrária, pela festa cívica e pela peça de teatro, completa o circuito de
erosão do sagrado, segundo a hipótese de seu estudo histórico sobre as transformações da dança e a
trajetória de sua representação no ocidente.
Para exemplificar a ação do coro na parábase e a intenção do texto em que fala o
autor, vamos à comédia As Nuvens encenada nas Grandes Dionísias de 423 a.C., em plena guerra do
Peloponeso. Nesta parábase, Aristófanes explica as causas da sua derrota, pois nesse concurso sua
comédia ficou em terceiro e último lugar, e critica os espectadores "inteligentes e normalmente
criteriosos" por terem preferido as peças grosseiras de seus dois adversários Cratino e Amípsias11.
Parábase
CORIFEU Espectadores, por Dioniso que me criou, dir-vos-ei francamente a
verdade. Assim, possa eu vencer este concurso e ser considerado hábil, porque tendo- vos na
conta de espectadores inteligentes e, sendo esta a melhor de minhas comédias, eu quis que vós
fosseis os primeiros a provar novamente a obra que mais trabalho me dera. retirei-me depois
da luta, injustamente derrotado por êmulos vulgares. eis o que recrimino, a vós que sois cultos,
por causa de quem tanto trabalho tivera.
( ... ) Eu, poeta de gabarito, não uso orgulhosamente cabelos compridos, nem tento
enganar-vos, levando à cena duas ou três vezes os mesmos temas, mas sempre vos trago
criações novas, produtos de minha arte, em nada parecidas umas com as outras, mas todas
10
BOURCIER, Paul. História da Dança no Ocidente. SP: Martins Fontes, 1987. p. 31
11
BRANDÃO, Junito de Souza, na Apresentação da tradução de As Nuvens. RJ. Grifo, 1976,p. 17
engenhosas. Lancei de ventre no chão o todo-poderoso Cleão, mas não tive coragem de pisá-lo
novamente quando caído. ( ... )
PRIMEIRO SEMICORO ( ... ) Dizem que as resoluções erradas são próprias desta
cidade, mas que os deuses convertem em acertos os erros cometidos por vós. Facilmente
poderemos ensinar-vos como tirar proveito deste erro : se conseguirdes convencer essa gaivota
voraz, Cleão, de corrupção e de roubo e lhe puserdes em seguida o pescoço na golilha,
novamente, segundo a antigo hábito, qualquer erro cometido se converterá em proveito para a
cidade. ( ... ) "12
Do mesmo modo que aparece, a parábase termina e a representação segue seu curso
com a entrada dos personagens Sócrates e Estrepsíades de volta à cena, dando início a um
verdadeiro desfile de situações, onde se discute e se censura a prática sofista que ensinou que "o
justo e o injusto têm o mesmo peso e medida". Daí para adiante aparecem personagens como o
Argumento Justo, o Argumento Injusto, o coro das Nuvens, entre outros. São freqüentes os
personagens alegóricos que representam um conjunto impessoal como uma idéia, uma instituição,
um mal ou um acontecimento. Na comédia A Paz, por exemplo, temos personagens como A
Guerra, A Paz, A Desordem como na revista de ano O Rio de Janeiro de 1877, de Artur Azevedo
encontramos A Política, O Boato, A Ilustríssima, entre outros. Alegorias gregas e alegorias
brasileiras refletindo-se no espelho não-realista do universo "carnavalizado" do palco cômico para
estimular a inteligência do espectador que deve decifrá-las e com isso adquirir conhecimento.
A linguagem metafórica, que manifesta algo querendo dizer outro, está presente
como modalidade de representação alegórica, que apresenta um caráter de descontinuidade na
organização de imagens, com idéias cifradas que solicitam do receptor uma postura analítica para o
deciframento das mensagens.
A linguagem alegórica provoca uma experiência pedagógica, através da criação de
imagens que facilitam a apreensão de um conceito. No teatro, a alegoria funciona, também, como
um instrumento de fusão de culturas que reinterpreta os elementos de culturas diversas e integra-os
a uma perspectiva própria, totalizando uma síntese estratégica que dimensiona determinados fatos
ou personagens históricos em símbolos universais. Uma personificação de vícios e virtudes
associada à sátira e à crítica social resultante de uma técnica de montagem que coleciona imagens,
fragmentos e referências dissociadas.
" A alegoria é um constructo típico a uma sensibilidade que assimila o tempo como
coleção de momentos descontínuos, o espaço como coleção de objetos. Dessa idéia de
totalidade como coleção de objetos discretos fica eliminada a idéia de processo, de
organicidade. Salta a primeiro plano a opração de "retirar do contexto", "libertar da cadeia";
cada objeto sob o qual deposito o meu olhar torna-se disponível à contemplação insistente
que, esquecidas as relações, as continuidades, torna possível a "iluminação profana" pela qual
instauro um sentido inesperado e, em função dele, o objeto se "salva"." 13
idem, p. 45,46
12
XAVIER, Ismail. Alegoria, Modernidade, Nacionalismo. Em Doze questões sobre cultura e arte.
13
Col.Seminários.1984. p. 54
A comédia/revista fala por alegorias como se quisesse "desenhar o projeto estético-
ideológico " do gênero, fazendo uma proposição didática para que o espectador, distinguindo os
fatos, pudesse fazer sua própria avaliação crítica dos acontecimentos. Vide os personagens de O
Rio de Janeiro de 1877, por exemplo : a Política, o Boato, Zé Povinho, a Opinião, o coro de
Calamidades Brasileiras, entre outros.
Outro elemento importante da comédia e da revista é a caricatura viva. Intimamente
ligada às questões satíricas do teatro popular é tão antiga quanto as comédias gregas, desenvolveu-
se, também, na Commedia dell’Arte que se utilizou da crítica às personalidades influentes do
panorama social da época. Dela, herdamos as máscaras sociais dos zanni, do Dottore, do Capitão,
etc, que se tornaram presenças obrigatórias e que transcenderam à categoria dos personagens-fixos,
transformando-se em convenções. A caricatura viva encontrou seu lugar, definitivamente, na
revista, onde passou a ser uma das mais importantes convenções do gênero, cuja função consiste em
retratar ao vivo pessoas conhecidas da política, das artes, das letras ou da sociedade. Do mesmo
modo que os personagens-tipos do teatro popular, da nossa comédia de costumes e do panorama
político-social do país, resultaram numa outra convenção da revista de ano brasileira: a tipificação.
Na comédia ou na revista enquadram-se tanto o exagero do detalhe personalizado da caricatura
quanto a dimensão universal do personagem-tipo:
"os personagens, parecem marcados por particularidades bem nítidas, mas apresentam
contornos bastante elásticos e universais para que a platéia teatral possa reconhecer neles
elementos convencionais da revista."14
Em sendo preciso
Dançar o can-can,
Até que o sorriso
Do sol da manhã
Formoso desponte,
SÜSSEKIND Flora SÜSSEKIND, As Revistas de ano e a Invenção do Rio de Janeiro.Apud.Neyde
14
VENEZIANO,op.cit.p.121
Eu posso dançar
Sem me fatigar!”
Nesse ponto Machado Careca dançava de fato um can-can violento, mostrando suas
qualidades de cômico-completo.15
A comédia antiga, com o prólogo de apresentação, a parábase como uma cena de
platéia, o desfile de personagens grotescos, o comentário e a mediação executados por um
personagem que liga os quadros sucessivos do enrêdo, fixou procedimentos e convenções de um
gênero que aponta para o teatro de revista brasileiro, desde o tema à encenação. A revista
apresenta, a sucessão de cenas sem ligação entre si, a crítica sócio-política, as figuras mais
conhecidas da sociedade como caricaturas-vivas ridicularizadas, os problemas urbanos
reconhecidos pelo cidadão-platéia, os números de canto e dança, as cenas de platéia e o personagem
mediador e comentarista: o compère.
Ao desenrolarmos a história do teatro popular vemos que a comédia ática, o teatro
profano medieval, a Commedia dell’Arte do sec.XVI, chegando a França do séc.XVII com Molière
e Marivaux, até o sec XVIII, nos teatros de feira em Paris que se inaugurava definitivamente o
gênero revista. Esta evoluía como uma mistura de vaudeville e opereta e que se denominaria revue
de fin d’année. Da França, a revista chegou em Portugal em 1851.16 Ao longo desta trajetória, o que
prevalece é o ator-improvisador, como centro do espetáculo, na função de comentarista, de ligação
entre os quadros ou de narrador.
Se tomarmos como exemplo o texto da primeira revista de ano de Artur Azevedo
em parceria com Lino d'Assunção O Rio de Janeiro em 1877, a definição do gênero, através da
seguinte informação :
" comédia de costumes populares, satírica e burlesca de espetáculo, ornada de couplets e
coros, visualidades, transformações, em 3 atos, um prólogo e 18 quadros, pelos Senhores Artur
Azevedo e Lino d'Ássunção. Música de Gomes Cardim e outros " 17.
Esta revista (1877) foi a primeira tentativa de fixação do gênero no gosto do público
carioca do final do século passado, o que se deu de modo marcante com a estréia de O Mandarim,
escrita a quatro mãos com Moreira Sampaio, em 1884. Podemos ver, na sua apresentação, a
definição dos autores sobre o gênero e ao longo do texto constatar seu parentesco com a comédia
antiga de Aristófanes: assim como a ópera está para a tragédia, a comédia está para a ópera ligeira,
as revistas musicais burlescas e a comédia musical, principalmente quando esta se volta para a
sátira social ou política. No prólogo, o personagem Bedel que abre o espetáculo falando
diretamente à platéia :
15
RUIZ Roberto RUIZ, O Teatro de Revista no Brasil das origens à primeira guerra mundial, p.77 e78
16
VENEZIANO, Neyde NeydeVENEZIANO. ,Ibid, p.23
17
AZEVEDO, Artur.O Teatro de Artur Azevedo I, RJ: INACEN, 1983
PRÓLOGO
Gruta sombria
CENA I
BEDEL (espanejando algumas pedras soltas que se acham espalhadas pela cena )
Copla
Vós, que tendes, meus senhores
bem formadas, boas almas,
aos atores e autores
batei palmas, batei palmas.
De que nos deis uma vaia
livre-nos Deus e o Canhoto,
mas pra que a peça não caia,
basta cair-vos no gosto.
Hão de convir que é muito original esta idéia de encaixar o couplet final no
princípio: mas, como tenho os meus pressentimentos de que o ano de 1877, que
principia amanhã, há de andar tudo às avessas, assim faço. De mais é mau costume
pedir palmas no fim da peça; a gente as deve pedir no princípio, antes que o público
saiba o que vai ver...
( Escarra, tosse, assoa-se ) O teatro representa uma gruta agreste em um país
inteiramente desconhecido. Nesta gruta é que se costumam reunir, no dia 31 de
dezembro, as calamidades brasileiras, a fim de darem conta de seu trabalho durante o
ano, e predisporem-se para o vindouro. Cena I : apareço em O Bedel e digo: Agora é
que começa a revista. ( Põe-se de novo a espanar, noutro tom. ) Felizmente está
terminado o meu serviço. Não tardam aí as calamidades brasileiras. Encontrarão tudo
limpo. ( Música ) Sinto passos, são elas. "
(Cai o pano )
Prólogo, párodo, agón, parábase, revista e êxodo são partes que constituem a
comédia de Aristófanes, assim como, a linguagem popular, as peripécias cômicas, a crítica e o
comentário satíricos, os números de dança e de platéia e o perfil dos personagens-tipos, alegóricos e
caricaturais estão para o teatro de revista brasileiro da virada do século XIX para o XX.