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Mito e Filosofia

A filosofia nasceu realizando uma transformação gradual sobre os antigos mitos gregos ou nasceu por
uma ruptura radical com os mitos?

Mas, o que é um mito?

Um mito é uma narrativa sobre a origem de alguma coisa (origem dos astros, da Terra, dos homens,
das plantas, dos animais, do fogo, da água, dos ventos, do bem e do mal, da saúde e da doença, da
morte, dos instrumentos de trabalho, das raças, das guerras, do poder, etc.).

A palavra mito vem do grego , e deriva de dois verbos: do verbo (contar,


narrar, falar alguma coisa para os outros) e do verbo (conversar, contar, anunciar, nomear,
designar). Para os gregos, mito é um discurso pronunciado ou proferido para ouvintes que recebem
como verdadeira a narrativa, porque confiam naquele que narra; é uma narrativa feita em público,
baseada, portanto, na autoridade e confiabilidade da pessoa do narrador. E essa autoridade vem do
fato de que ele ou testemunhou diretamente o que está narrando ou recebeu a narrativa de quem
testemunhou os acontecimentos narrados.

Quem narra o mito? O poeta-rapsodo. Quem é ele? Por que tem autoridade? Acredita-se que o poeta
é um escolhido dos deuses, que lhe mostram os acontecimentos passados e permitem que ele veja a
origem de todos os seres e de todas as coisas para que possa transmiti-la aos ouvintes. Sua palavra -
o mito - é sagrada porque vem de uma revelação divina. O mito é, pois, incontestável e inquestionável.

Como o mito narra a origem do mundo e de tudo o que nele existe?

De três principais maneiras:

1. Encontrando o pai e a mãe das coisas e dos seres, isto é, tudo o que existe decorre de relações
sexuais entre forças divinas pessoais. Essas relações geram os demais deuses: os titãs (seres semi-
humanos e semi-divinos), os heróis (filhos de um deus com uma humana ou de uma deusa com um
humano), os humanos, os metais, as plantas, os animais, as qualidades, como quente-frio, seco-úmido,
claroescuro, bom-mau, justo-injusto, belo-feio, certo-errado, etc..

A narração da origem é, assim, uma genealogia, isto é, narrativa da geração dos seres, das coisas, das
qualidades, por outros seres, que são seus pais ou antepassados.

Tomemos um exemplo de narrativa mítica.

Observando que as pessoas apaixonadas estão sempre cheias de ansiedade e de plenitude, inventam
mil expedientes para estar com a pessoa amada ou para seduzi-la e também serem amadas, o mito
narra a origem do amor, isto é, o nascimento do deus Eros (que conhecemos mais com o nome de
Cupido), exemplo extraído do Banquete 203a, de Platão:

“Quando nasceu Afrodite, banqueteavam-se os deuses, e entre os demais se encontrava também o


filho de Prudência, Recurso. Depois que acabaram de jantar, veio para esmolar do festim a Pobreza, e
ficou na porta. Ora, Recurso, embriagado com o néctar – pois o vinho ainda não havia – penetrou o
jardim de Zeus e, pesado, adormeceu. Pobreza então, tramando em sua falta de recurso engendrar
um filho de Recurso, deita-se ao seu lado e pronto concebe o Amor. Eis por que ficou companheiro e
servo de Afrodite o Amor, gerado em seu natalício, ao mesmo tempo que por natureza amante do
belo, porque também Afrodite é bela. E por ser filho o Amor de Recurso e de Pobreza foi esta a
condição em que ele ficou. Primeiramente ele é sempre pobre, e longe está de ser delicado e belo,
como a maioria imagina, mas é duro, seco, descalço e sem lar, sempre por terra e sem forro,
deitando-se ao desabrigo, às portas e nos caminhos, porque tem a natureza da mãe, sempre
convivendo com a precisão. Segundo o pai, porém, ele é insidioso com o que é belo e bom, e corajoso,
decidido e enérgico, caçador terrível, sempre a tecer maquinações, ávido de sabedoria e cheio de
recursos, a filosofar por toda a vida, terrível mago, feiticeiro, sofista: e nem imortal é a sua natureza
nem mortal, e no mesmo dia ora ele germina e vive, quando enriquece; ora morre e de novo ressuscita,
graças à natureza do pai; e o que consegue sempre lhe escapa, de modo que nem empobrece o Amor
nem enriquece, assim como também está no meio da sabedoria e da ignorância. Eis com efeito o que se
dá”.

2. Encontrando uma rivalidade ou uma aliança entre os deuses que faz surgir alguma coisa no mundo.
Nesse caso, o mito narra ou uma guerra entre forças divinas ou uma aliança entre elas para provocar
alguma coisa no mundo dos homens.

O poeta Homero, na Ilíada, epopéia que narra a guerra de Tróia, explica por que, em certas batalhas,
os troianos eram vitoriosos e, em outras, a vitória cabia aos gregos. Os deuses estavam divididos,
alguns a favor de um lado e outros a favor do outro. A cada vez, o rei dos deuses, Zeus, ficava com
um dos partidos, aliava-se com um grupo e fazia um dos lados - ou os troianos ou os gregos - vencer a
batalha.

A causa da guerra, aliás, foi uma rivalidade entre as deusas. Elas apareceram em sonho para o
príncipe troiano Páris, oferecendo a ele seus dons e ele escolheu a deusa do amor, Afrodite. As
outras deusas, enciumadas, o fizeram raptar a grega Helena, mulher do general grego Menelau, e isso
deu início à guerra entre os humanos.

O mito, narra a origem do mundo e de tudo que existe nele, e a terceira principal maneira de narração
mítica é:

3. Encontrando as recompensas ou os castigos que os deuses dão a quem lhes obedece ou a quem lhes
desobedece, respectivamente.

Como o mito narra, por exemplo, o uso do fogo pelos homens? Para os homens, o fogo é essencial, pois
com ele se diferenciam dos animais, porque tanto passam a cozinhar os alimentos, a iluminar caminhos
na noite, a se aquecer no inverno quanto podem fabricar instrumentos de metal para o trabalho e para
a guerra.

Um titã, Prometeu, mais amigo dos homens do que dos deuses, roubou uma centelha de fogo e a
trouxe de presente para os homens. Prometeu foi castigado (amarrado num rochedo para que as aves
de rapina, eternamente, devorassem seu fígado) e os homens também. Qual foi o castigo dos homens?

Os deuses fizeram uma mulher encantadora,

Pandora, a quem foi entregue uma caixa que conteria coisas maravilhosas, mas que nunca deveria ser
aberta. Pandora foi enviada aos humanos e, cheia de curiosidade e querendo dar a eles as maravilhas,
abriu a caixa. Dela saíram todas as desgraças, doenças, pestes, guerras e, sobretudo, a morte.
Explica-se, assim, a origem dos males do mundo.

Vemos, portanto, que o mito narra a origem das coisas por meio de lutas, alianças e relações sexuais
entre forças sobrenaturais que governam o mundo e o destino dos homens. Como os mitos sobre a
origem do mundo são genealogias, diz-se que são cosmogonias e theogonias.
A palavra gonia vem de duas palavras gregas: do verbo (engendrar, produzir, gerar, fazer
nascer e crescer) e do substantivo (nascimento, gênese, descendência, gênero,
espécie). Gonia, portanto, quer dizer: geração, nascimento a partir da concepção sexual e do
parto. Cosmos, por sua vez, quer dizer mundo ordenado e organizado. Assim, a cosmogonia é a
narrativa sobre o nascimento e a organização do mundo, a partir de forças geradoras (pai e mãe)
divinas.

Theogonia é uma palavra composta de gonia e , que, em grego, significa: as coisas divinas, os
seres divinos, os deuses. A theogonia é, portanto, a narrativa da origem dos deuses, a partir de seus
pais e antepassados.

A filosofia, ao nascer, é uma cosmologia, uma explicação racional sobre a origem do mundo e sobre as
causas das transformações e repetições das coisas; para isso, ela nasce de uma transformação
gradual dos mitos ou de uma ruptura radical com os mitos? Continua ou rompe com a cosmogonia e a
theogonia? Duas foram as respostas dadas pelos estudiosos.

A primeira delas foi dada nos fins do século XIX e começo do XX, quando reinava um grande otimismo
sobre os poderes científicos e capacidades técnicas do homem. Dizia-se, então, que a filosofia nasceu
por uma ruptura radical com os mitos, sendo a primeira explicação científica da realidade produzida
pelo Ocidente.

A segunda resposta foi dada a partir de meados do século XX, quando os estudos dos antropólogos e
dos historiadores mostraram a importância dos mitos na organização social e cultural das sociedades
e como os mitos estão profundamente entranhados nos modos de pensar e de sentir de uma
sociedade. Por isso, dizia-se que os gregos, como qualquer outro povo, acreditavam em seus mitos e
que a filosofia nasceu, vagarosa e gradualmente, do interior dos próprios mitos, como uma
racionalização deles.

Atualmente, consideram-se as duas respostas exageradas e afirma-se que a filosofia, percebendo as


contradições e limitações dos mitos, foi reformulando e racionalizando as narrativas míticas,
transformando-as numa outra coisa, numa explicação inteiramente nova e diferente.

Quais são as diferenças entre filosofia e mito?

Podemos apontar três como as mais importantes:

1. O mito pretendia narrar como as coisas eram ou tinham sido no passado imemorial, longínquo e
fabuloso, voltando-se para o que era antes que tudo existisse tal como existe no presente. A
filosofia, ao contrário, preocupa-se em explicar como e por que, no passado, no presente e no futuro
(isto é, na totalidade do tempo), as coisas são como são.

2. O mito narrava a origem através de genealogias e rivalidades ou alianças entre forças divinas
sobrenaturais e personalizadas, enquanto a filosofia, ao contrário, explica a produção natural das
coisas por elementos e causas naturais e impessoais. O mito falava em Urano, Ponto e Gaia; a filosofia
fala em céu, mar e terra. O mito narra a origem dos seres celestes (os astros), terrestres (plantas,
animais, homens) e marinhos pelos casamentos de Gaia com Urano e Ponto. A filosofia explica o
surgimento desses seres por composição, combinação e separação dos quatro elementos - úmido,
seco, quente e frio, ou água, terra, fogo e ar.

3. O mito não se importava com contradições, com o fabuloso e o incompreensível, não só porque
esses eram traços próprios da narrativa mítica, como também porque a confiança e a crença no mito
vinham da autoridade religiosa do narrador. A filosofia, ao contrário, não admite contradições,
fabulação e coisas incompreensíveis, mas exige que a explicação seja coerente, lógica e racional; além
disso, a autoridade da explicação não vem da pessoa do filósofo, mas da razão, que é a mesma em
todos os seres humanos.

MITO E LOGOS

Principais fatores que contribuíram para o surgimento da Filosofia na Grécia


- As viagens marítimas que contribuíram para a desmistificação do mundo.
- A invenção da moeda que possibilitou a capacidade de abstração através das trocas.
- A invenção da escrita silábica que exige um encadeamento de idéias, possibilitando assim uma
comunicação mais eficiente através da formulação de conceitos.
- A invenção do calendário que a partir do momento em que o homem pode calcular o tempo,
percebe que alguns eventos percebidos por ele, ocorrem naturalmente e não por intervenção de
deuses, assim como dizia o poeta-rapsodo.

- O surgimento da polis (cidade grega) como criação humana e não divina.

OS FILÓSOFOS PRÉ-SOCRÁTICOS
A denominação “filósofos pré-socráticos” é basicamente cronológica e designa os primeiros filósofos
que viveram antes de Sócrates (470-399 a.C.), chegando alguns dos últimos a serem seus
contemporâneos. Sócrates é tomado como um marco não só devido à sua influência e importância, mas
também por introduzir uma nova problemática na discussão filosófica, as questões ético-políticas, ou
seja, a problemática humana e social que praticamente ainda não havia sido discutida. A leitura,
interpretação e discussão da filosofia dos pré-socráticos envolve, para nós, uma grande dificuldade.
Suas obras se perderam na Antigüidade, e só as conhecemos por meios indiretos. Em alguns casos é
possível até que não tenha havido obra escrita, já que a tradição filosófica grega em seus primórdios
valorizava mais a linguagem falada do que a escrita. A filosofia era vista essencialmente como
discussão, debate, e não como texto escrito. Platão, por exemplo, faz Sócrates se manifestar nesse
sentido no Fédon.
Em muitos casos, certamente houve uma obra escrita, que conhecemos em parte, como por exemplo o
Poema de Parmênides, e o tratado Da Natureza de Heráclito. Essas obras não sobreviveram
integralmente; trata-se apenas de fragmentos permitindo no máximo uma reconstrução do
pensamento desses filósofos. São duas as principais fontes de que dispomos para o conhecimento dos
filósofos pré-socráticos: a doxografia e os fragmentos. A doxografia consiste em sínteses do
pensamento desses filósofos e comentários a eles, geralmente breves, por autores de períodos
posteriores, indo basicamente de Aristóteles (384-323 a.C.) a Simplício (século VI). Os fragmentos
são citações de passagens dos próprios filósofos pré-socráticos encontradas também em obras
posteriores. A diferença principal entre ambos é a seguinte: enquanto o fragmento nos dá as próprias
palavras do pensador, a doxografia apresenta seu pensamento nas palavras de outro.

1.1. Escola jônica


Caracteriza-se, sobretudo, pelo interesse pela physis, pelas teorias sobre a natureza.

TALES DE MILETO é considerado o primeiro filósofo e, embora conheçamos muito pouco sobre ele e
não subsista nenhum fragmento seu, foi desde a Antigüidade visto como o iniciador da visão de mundo
e do estilo de pensamento que passamos a entender como filosofia. Duas características são
fundamentais nesse sentido; em primeiro lugar, seu modo de explicar a realidade natural a partir dela
mesma, sem nenhuma referência ao sobrenatural ou ao misterioso, formulando a doutrina da água
como elemento primordial, princípio explicativo de todo o processo natural; e, em segundo lugar, o
caráter crítico de sua doutrina, admitindo e talvez mesmo estimulando que seus discípulos
desenvolvessem outros pontos de vista e adotassem outros princípios explicativos.

ANAXIMANDRO foi o principal discípulo e sucessor de Tales. Propôs, no entanto, o apeiron (o


ilimitado ou o indeterminado) como primeiro princípio, tendo sido talvez o primeiro a usar a noção de
arqué nesse sentido. Destacou-se por introduzir uma noção nova, que não se confunde com nenhum
dos elementos tradicionais, e que pode ser considerada um esforço na direção de uma explicação mais
abstrata ou genérica do real, uma primeira versão da noção de matéria.

ANAXÍMENES, provavelmente discípulo de Anaximandro, adotou por sua vez o ar (pneuma) como
arqué, uma vez que o ar é incorpóreo e se encontra em toda parte. Podemos ver nisso uma tentativa
de encontrar, em um elemento de caráter invisível e incorpóreo, uma explicação abstrata da realidade
física.

XENÓFANES, embora originário da Jônia, viajou pela Grécia e esteve no sul da Itália, sendo
considerado um precursor do pensamento dos eleatas, e talvez mestre de Parmênides. Escreveu em
estilo poético, atacando o antropomorfismo típico da tradição religiosa grega, e defendeu a idéia de
um deus único que, segundo alguns, se identifica com a própria natureza. Adota como elemento
primordial a terra, de onde se originariam todas as coisas. O pensamento de HERÁCLITO será
examinado em detalhe mais adiante em relação ao de Parmênides e à escola eleática.

1.2. As escolas italianas


1.2.1. Pitágoras e o pitagorismo

PITÁGORAS, embora originário de Samos, na Jônia, emigrou para a Itália, segundo alguns devido a
problemas políticos, segundo outros após a invasão persa, fundando em Crotona sua escola de caráter
semi-religioso e iniciático. Representa nesse sentido uma transição do pensamento jônico para o da
escola italiana, mas também representa a permanência de elementos míticos e religiosos no
pensamento filosófico.
Trata-se de uma figura misteriosa e quase lendária, cercada de mistério devido talvez às próprias
características de sua escola. Especula-se sobre uma possível influência egípcia no pensamento
pitagórico, já que Pitágoras defende uma concepção de imortalidade e de transmigração
(metempsicose) da alma, embora essas crenças se encontrassem na tradição cultural da Trácia, no
norte da Grécia. A escola pitagórica constitui uma longa tradição na Antigüidade, subsistindo durante
praticamente dez séculos, encontrando-se ainda no período do helenismo pensadores vinculados a
essa tradição, os neop itagó ricos. Teve, no entanto, inúmeras ramificações, posteriormente
confundindo-se inclusive com o platonismo e o neoplatonismo, devido à influência do pitagorismo em
Platão. Uma das principais contribuições dos pitagóricos à filosofia e ao desenvolvimento da ciência
encontra-se na doutrina segundo a qual o número é o elemento básico explicativo da realidade,
podendo-se constatar uma proporção em todo o cosmo, o que explicaria a harmonia do real garantindo
o seu equilíbrio. Os pitagóricos tiveram grande importância, portanto, no desenvolvimento da
matemática grega, sobretudo na geometria. A teoria da harmonia musical reflete também a
concepção pitagórica de que há uma proporção ideal em todo o universo que se reflete na concepção
da escala musical. Isso resultaria dos sons emitidos pelos diversos segmentos das cordas da lira
quando estendidas, sendo que a combinação desses sons entre si pode ser tratada de forma
harmoniosa. Daí a música ter sido tratada, em toda a Antigüidade, como disciplina matemática. Essa
mesma concepção, que busca um princípio geométrico de proporção como representante da harmonia
cósmica, encontra-se na arquitetura grega, de linhas fortemente geométricas, na escultura do
período clássico em que o corpo humano é representado de acordo com princípios que estabelecem
uma proporção ideal entre a cabeça, o tronco e os membros, e até mesmo na ginástica e no culto ao
físico, em que o atleta deve moldar o seu corpo para tomá-lo harmonioso como uma escultura.
Essa concepção do número como elemento primordial reflete-se na tetractys, ou “grupo dos quatro”,
que consiste nos quatro primeiros algarismos (1, 2, 3, 4), que somam dez (10) e que podem ser
dispostos em forma triangular, simbolizando uma relação perfeita.

1.3.2. Monismo x mobilismo: Heráclito x Parmênides


Examinaremos agora as doutrinas de Heráclito e de Parmênides e seus seguidores em termos da
controvérsia entre monismo e mobilismo — marcante no séc. V a.C. e que pode ser tomada como uma
espécie de divisor de águas quanto ao sentido e à influência do pensamento dos pré-socráticos na
filosofia que se segue, sobretudo no pensamento de Platão. Embora haja dúvidas sobre quem, ou que
escola, constitui exatamente o alvo das críticas de Parmênides e dos eleatas, em geral supõe-se que
se referem a Heráclito, ou talvez aos mobilistas e pluralistas em um sentido amplo. Começaremos por
apresentar o pensamento de Heráclito de modo a permitir um confronto posterior com o pensamento
eleático.

HERÁCLITO DE ÉFESO, embora um dos pré-socráticos de quem mais chegaram fragmentos ate nós,
era conhecido já na Antigüidade como “o Obscuro”, devido à dificuldade de interpretação de seu
pensamento. Pode ser considerado, juntamente com os atomistas, como o principal representante do
mobilismo, isto é, da concepção segundo a qual a realidade natural se caracteriza pelo movimento,
todas as coisas estando em fluxo. Este seria o sentido básico da famosa frase atribuída a Heráclito:
“Panta rei” (Tudo passa).
Sua filosofia, tal como podemos reconstruí-la, é, entretanto, bem mais complexa do que isso. A noção
de logos desempenha papel central em seu pensamento, como princípio unificador do real e elemento
básico da racionalidade do cosmo. Segundo o famoso fragmento 50, “Dando ouvidos não a mim, mas ao
logos, é sábio concordar que todas as coisas são uma única coisa.” Assim, tudo é movimento, tudo está
em fluxo, mas a realidade possui uma unidade básica, uma unidade na pluralidade. Esta “unidade na
pluralidade” pode ser entendida também como a unidade dos opostos. Heráclito vê a realidade
marcada pelo conflito (pólemos) entre os opostos, conflito que todavia não possui um caráter
negativo, sendo a garantia do equilíbrio, através da equivalência e reunião dos opostos. Assim, dia e
noite, calor e frio, vida e morte são opostos que se complementam. A existência do movimento e da
pluralidade do real é parte de nossa experiência das coisas, e Heráclito parece ser um filósofo que
valoriza a experiência sensível. O fogo (pyr) é tomado como elemento primordial ou, pelo menos
enquanto chama, energia que queima e se autoconsome, simbolizando o caráter dinâmico da realidade.
O fragmento talvez mais famoso de Heráclito é o do rio: “Não podemos banhar-nos duas vezes no
mesmo rio, porque o rio não é mais o mesmo.” A tradição posterior teria acrescentado, “e nós também
não somos mais os mesmos”. Este fragmento sintetiza exatamente a idéia da realidade em fluxo,
simbolizada pelo rio que representa o movimento encontrado em todas as coisas, inclusive, no caso do
acréscimo, em nós. Alguns intérpretes chegam a ver nessa metáfora implicações para a questão do
conhecimento, a impossibilidade de banhar-se duas vezes no mesmo rio indicando a impossibilidade de
um acesso mais permanente ao real, já que este encontra-se em constante mudança. Tal concepção
levou alguns a interpretá-lo como relativista.
A tradição da história da filosofia inaugurada por Hegel viu em Heráclito o primeiro filósofo a
desenvolver um pensamento dialético, por valorizar a unidade dos opostos que se integram e não se
anulam, e por ver no conflito a causa do movimento no real. Isso caracterizaria uma espécie de
dialética da natureza, embora Heráclito, ele próprio, não empregue nos fragmentos que conhecemos o
termo “dialética”, aparentemente encontrado pela primeira vez apenas em Platão.
PARMÊNIDES e os eleatas são adversários dos mobilistas, defendendo uma posição que podemos
caracterizar como monista, ou seja, a doutrina da existência de uma realidade única. Parmênides
parece de fato o introdutor de uma das distinções mais básicas no pensamento filosófico, a distinção
entre realidade e aparência. Assim, o primeiro argumento contra o mobilismo consiste em aracterizar
o movimento apenas como aparente, como um aspecto superficial das coisas. Se, no entanto, formos
além de nossa experiência sensível, de nossa visão imediata das coisas, descobriremos, através do
pensamento, que a verdadeira realidade é única, imóvel, eterna, imutável, sem princípio, nem fim,
contínua e indivisível.
Por isso Parmênides afirma que o ser é esférico, a esfera representando o caráter pleno e perfeito
do real. Através do pensamento devemos buscar então a essência da realidade, aquilo que permanece
na mudança: só posso entender a mudança se há algo de essencial que permanece e me permite
identificar o objeto como o mesmo. Portanto, podemos dizer que o segundo argumento contra o
mobilismo é um argumento de caráter lógico, sustentando que a noção de movimento pressupõe a
noção de permanência como mais básica. Nesse sentido, o movimento não pode ser tomado como mais
básico, como primitivo, definidor do real. Em seu Poema, o mais extenso dos textos dos pré-
socráticos que chegaram até nós, Parmênides afirma precisamente que “o ser é, o não-ser não é”,
formulando assim uma versão inicial da lei da identidade, um princípio lógico-metafísico que consiste
em caracterizar a realidade em seu sentido mais profundo como algo de imutável; exclui assim o
movimento e a mudança como aquilo que não é, porque deixou de ser o que era, e não veio a ser ainda o
que será, e portanto não é nada; por isso apenas o permanente e imutável pode ser caracterizado
como o Ser. Parmênides afirma também que “é o mesmo o ser e o pensar”, o que significa que a
racionalidade do real e a razão humana são da mesma natureza, o que permite o homem pensar o ser.
Mas para poder pensar o ser, conhecê-lo, o homem deve seguir o caminho da Verdade, isto é, do
pensamento, da razão, e afastar-se do caminho da Opinião, formada por seus hábitos, percepções,
impressões sensíveis, que são ilusórias, imprecisas, mutáveis.
Esses dois fragmentos de seu Poema nos permitem entender em que sentido Parmênides é
considerado o pensador do Ser (o real em seu sentido mais abstrato, mais básico), aquele que de
certa forma inaugura a metafísica, exatamente este tipo de pensamento sobre o ser, opondo-se à
experiência concreta, sensível e imediata que temos comumente das coisas. Veremos mais adiante a
influência que a filosofia de Parmênides e sua crítica aos mobilistas terá sobre o pensamento de
Platão, que o colocará inclusive como personagem central de um de seus principais diálogos, o
Parmênides.

1.4. Sócrates e os sofistas


O pensamento de Sócrates é um marco na constituição de nossa tradição filosófica, e pode-se dizer
que inaugura a filosofia clássica rompendo com a preocupação quase que exclusivamente centrada na
formulação de doutrinas sobre a realidade natural que encontramos nos filósofos pré-socráticos. A
própria denominação “pré-socráticos” já reflete a importância da filosofia de Sócrates como um
divisor de águas. É nesse momento que a problemática ético-política passa ao primeiro plano da
discussão filosófica como questão urgente da sociedade grega, superando a questão da natureza como
temática central. Os sofistas são contemporâneos de Sócrates, seu principal adversário, assim como
o foram posteriormente Platão e Aristóteles.
Apesar disso, Sócrates e os sofistas compartilham, embora com visões diferentes e até mesmo
diametralmente opostas, o interesse fundamental pela problemática éticopolítica, pela questão do
homem enquanto cidadão da polis, que passa a se organizar politicamente no sistema que conhecemos
como democracia. O pensamento de Sócrates e dos sofistas deve ser entendido, portanto, tendo
como pano de fundo o contexto histórico e sociopolítico de sua época, pois tem um compromisso
bastante direto e explícito com essa realidade. Isso mostra uma proximidade maior entre Sócrates e
os sofistas do que entre Sócrates e os pré-socráticos.
Uma vez que o pensamento de Sócrates se desenvolve sobretudo em oposição ao dos sofistas e como
crítica à situação política de sua época – o que finalmente levará à sua condenação. É na Grécia dos
sécs. VI-IV a.C., que a filosofia começa a se definir como gênero cultural autônomo, com estilo
próprio e objetivos e princípios específicos. É necessário, portanto, procurar entender o surgimento
da filosofia como um fato cultural, como produto de um determinado contexto histórico e social. Esse
surgimento corresponde ao começo da estabilização da sociedade grega, com o desenvolvimento da
atividade comercial, com a consolidação das várias cidades-estados e com a organização da sociedade
ateniense, que finalmente assumirá a hegemonia através da liderança da liga de Delos (477 a.C.) Os
sofistas surgem no momento de passagem da tirania e da oligarquia para a democracia. São os
mestres de retórica e oratória, muitas vezes mestres itinerantes, que percorrem as cidades-estados
fornecendo seus ensinamentos, sua técnica, suas habilidades aos governantes e aos políticos em geral.
Embora sem formar uma escola ou grupo homogêneo, o que os caracteriza é muito mais uma prática ou
uma atitude comuns do que uma doutrina única. Há portanto uma paidéia, um ensinamento, uma
formação pela qual os sofistas foram responsáveis, consistindo basicamente numa determinada forma
de preparação do cidadão para a participação na vida política. Sua função nesse contexto foi
importantíssima e sua influência muito grande, o que se reflete na forte oposição que sofreram por
parte de Sócrates, Platão e Aristóteles. Os sofistas foram, portanto, filósofos e educadores, além
de mestres de retórica e de oratória, embora este papel lhes seja negado, por exemplo por Platão. É
difícil, por isso mesmo, termos uma avaliação mais concreta de sua função e mesmo de sua concepção
filosófica e pedagógica. Além de termos uma situação semelhante à dos pré-socráticos quanto aos
textos dos sofistas, isto é, tudo o que nos resta são fragmentos, citações, testemunhos, esta
dificuldade se agrava pelo fato de que, em grande parte, a maioria destas citações e testemunhos nos
chegaram através de seus principais adversários, Platão e Aristóteles, que pintaram um retrato
bastante negativo desses pensadores.
É o pensamento de Sócrates, entretanto, que marca o surgimento da filosofia clássica, desenvolvida
por Platão e Aristóteles, de certo modo seus herdeiros mais importantes. O julgamento e a morte de
Sócrates marcaram profundamente seus contemporâneos e muitos de seus discípulos e companheiros
escreveram relatos e testemunhos desse episódio, em que o filósofo confronta o Estado, em que suas
idéias se insurgem contra as práticas políticas da época, em que a necessidade de independência do
pensamento é explicitada e discutida pela primeira vez em nossa tradição.
Nossa interpretação do pensamento de Sócrates enfrenta por um lado uma dificuldade ainda maior
da que temos em relação aos pré-socráticos e as sofistas, já que Sócrates efetivamente nada
escreveu, valorizando sobretudo o debate e o ensinamento oral. A concepção filosófica de Sócrates
pode ser caracterizada como um método de análise conceitual. Isso pode ser ilustrado pela célebre
questão socrática “o que é...?”, – encontrada em todos esses diálogos –, através da qual se busca a
definição de uma determinada coisa, geralmente uma virtude ou qualidade moral.

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