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“Não podeis tocar uma flor sem pertubar uma estrela” (Bacon)
“Sonho, metafísica e poesia - tudo a um tempo”: assim T. Rundle Clark considera a mitologia
egípcia. E se o mito era a única via de expressão das idéias sobre o Cosmos e sobre o Humano,
nesses mais antigos estágios da humanidade, podemos entender porque as lendas e a religião
egípcias surgem-nos, hoje, como simples, absurdas ou tão profundas. É que não há necessidade
de coerência, de lógica, para os mitos.
No tocante a essa mitologia citada especificamente, sabe-se que funcionava como uma
linguagem. Daí, as ações surgirem alteradas, reaparecerem com outros protagonistas, até, sem
incorrer, isso, em trunfo do incoerente.
Verdade, também, que a linguagem sagrada fundamentou-se em certos princípios, ainda não
cabalmente entendidos pela modernidade histórica. Um dos conceitos mais comuns do
pensamento religioso do Antigo Egito, o da Alma, reconciliava a idéia de que “todo o poder
pertence a Deus” com o sentimento que os egípcios tinham da “multiplicidade do mundo”. O
que encontra fundamento no parecer de O. E. James, quando diz que “o estudo dos
testemunhos arqueológicos revelou que a religião pré-histórica concentrou-se e desenvolveu-
se em torno dos três fatos mais desconcertantes com que o homem primitivo teve de se
defrontar no decurso de sua vida cotidiana: o nascimento, a morte e a obtenção dos meios de
subsistência nas precárias condições em que vivia...”
Equívoco comum, do agora, é crer-se que toda a religião egípcia evidenciava um “culto da
morte”. Nos períodos turbulentos do desmoronamento do Antigo Reino, surge um escrito, o
Diálogo dos Angustiados, que precisa e exata o apego dos egípcios à vida. Trata-se do colóquio
entre o homem e a própria alma. A “atualidade” do mesmo dissolve tempo e espaço: “O homem
afirma que em tempos desesperados - em que a honestidade é caçoada, a honra espezinhada,
a ânsia desregrada, quando não se pode confiar mais nem no irmão - a morte é a única solução
desejada” - Federico A. Arborio Mella. E, nesse diálogo, a resposta da alma é: “A morte é sempre
o pior dos males, o corpo jazerá inerte num túmulo luxuoso até que se deteriore, mas também
o túmulo está destinado à ruína; nunca mais verá o Sol, não gozará mais da natureza. Escuta-
me, esquece a pena e passa um dia feliz”.
No passado nilótico houve, desde os inícios, a consciência de que havia um só Deus, do qual,
mesmo Osíris, ao surgir no panteão egípcio, era apenas uma forma parcial - como religião
primitiva, não admitia outra realidade que não Deus; portanto, todas as coisas são reflexos,
ainda que distorcidos, da divindade. O “deus despedaçado” - Osíris -, portanto, como um deus
masculino, constitui-se numa “especialização” da divindade maior, vez que esta transcende
valores tais como masculino e feminino. Para Antônio Carlos Fanjani, quando o mito define o
sexo de um deus, está “simplesmente ressaltando um dos aspectos da divindade, deixando o
outro oculto, latente”.
Através dos seus tratados médicos, fica evidenciado o conhecimento que os egípcios tinham,
de que os vasos sanguíneos nascem do coração, espalhando-se para todos os membros. Daí,
para eles, o coração ser o órgão do pensamento, a “sede da mente”. O órgão onde se inscrevem
carmicamente as ações dos indivíduos. Para esse povo antigo, era o coração que falava contra
as pessoas no Juízo - que é o julgamento de cada um. Portanto, o órgão do Amor, por excelência.
E é como símbolo do Amor que essa deusa egípcia se agiganta: pareceu, sempre, digna, ao
povo, pela sua dedicação conjugal, pela face de mãe ou como doadora de afeto genuíno.
No Papyrus de Turin, constatamos ser esta deusa a Mediadora entre o Celestial e o terreno.
Dela, foi dito: “Aquela que amou os deuses; Aquela que melhor amou o reino dos espíritos”.
Ocupava um lugar intermediário, na teogonia egípcia, tal como a própria terra de Khem, à época:
ponte entre o passado primordial e o futuro secular e materialista, entre o Sagrado e o profano.
Todas as experiências dos Mistérios, em linhas gerais, convertiam-se em duas vertentes, que
formavam a essência das revelações recebidas: naqueles chamados de Menores, ou Mistérios
de Ísis, os candidatos conheciam a alma humana e resolviam o mistério da morte. Nos graus
mais adiantados, os Maiores, ou Mistérios de Osíris, conheciam a Alma Divina: “Eram levados à
comunhão pessoal com o Criador”. Revelava-se-lhes, então, a autêntica história da Atlântida,
intimamente ligada à Queda do homem.
Há uma espécie de autobiografia, de Apuleio, escritor do século II, onde esse iniciado revela,
desses Mistérios, “o que pode ser revelado”.
Plutarco escreveu: “... devemos ouvir as histórias e fábulas e aceitá-las de quem as interpreta,
com espírito reverente e filosófico”.
O grego Platão testemunhou sobre esses Mistérios, assim: “Em consequência dessa divina
iniciação, convertemo-nos em espectadores de benditas visões singulares, inerentes à luz pura,
e nós mesmos nos purificamos e nos libertamos da roupagem que chamamos corpo, ao qual
estamos agora ligados como uma ostra à sua concha”.
Na tradição egípcia, “aquele que conhece o Nome tem o Poder”. Por isso, também, Ela, Ísis,
merece o cognome de Poderosa.
Tanto a religião como a magia egípcias tornaram-se inconcebíveis para o homem moderno,
quando ele perdeu a capacidade de pensar, em termos simbólicos, de estabelecer verdades em
uma linguagem análoga.
Certo é que, dadas manifestações do Uno ajudam mais que outras, num determinado período
histórico. Falam a uma época fixa e a uma necessidade específica desse instante. Segundo Artur
Versluis, isso foi - e, talvez, ainda o seja - o que se passou com a citada deusa egípcia.
Pausânias conta as histórias de dois homens que desejaram descobrir, por simples
curiosidade, os Mistérios da Deusa. Ambos castigados, ao fim das narrativas, o autor conclui:
“Não faz bem à humanidade ver os deuses em forma corporal”. E nós corroboramos sua
afirmativa, com a frase: “O Sagrado Conhecimento se protege a si mesmo”. Razão especial
porque devemos nos aproximarmos desses deuses antigos, com o máximo respeito e devoção.
Eles estiveram esquecidos há tanto tempo que, só gradual e humildemente, conseguiremos
ganhar-lhes outra vez a confiança.
Louvor e Serviço, pois, Àquela que de Si disse: “Eu sou tudo o que foi, é ou será, e jamais
houve alguém que tenha retirado meu véu”.
Edna Duarte Dantas é advogada, escritora, cantora, artista plática, teosofista e rosa-cruz ©
Copyright da revista ISIS, março de 1996 - by Sandro Fortunato
Fonte: http://www.tafalado.com.br/isis/anteriores/egito2.htm