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Memória e novos patrimônios  | Cécile Tardy,  Vera Dodebei

Memoração e
patrimonialização
em três tempos:
mito, razão e
interação digital
Vera Dodebei
Résumé
Este capítulo discute os modos de transmissão do saber atrelados às
condições tecnológicas da sociedade, em que a produção de memórias se
daria a partir de três processos memoriais ou de memoração. O primeiro
encontra-se diretamente ligado à ideia de dissolução de memórias e pode
ser explicitado pela transmissão oral do conhecimento que não gera
registros memoriais. Nesse modo, as memórias são de natureza
processual, não cumulativa, e se dissolvem quando o grupo social as
incorpora e as transforma, cedendo espaço para a criação de novas
memórias. Como consequência, não há acúmulo, repetição, origem ou
autoria memorial, pois a memória é sempre um único produto, como o
exemplo da memória virtual de Henri Bergson.

O segundo modo de produção de memórias é da ordem da soma, da


adição, o que significa que a ideia de acumulação faz parte de sua
memoração. E, como é de todo impossível possuir a totalidade de
lembranças em nossa memória individual, a sociedade cria, com a ajuda
da técnica da escrita e dos suportes analógicos, as memórias artificiais
que são os objetos auxiliares da memória individual. Desse conceito de
acumulação nascem as angústias da perda, da falta, do erro e as
consequentes ações de proteção “patrimonial” de lembranças.

O terceiro modo de produção de memórias pauta-se por uma hibridação


dos anteriores, quer dizer, um misto de dissolução e acumulação, que
pode ser denominado provisoriamente de interação. Neste caso, foi
apropriada a ideia de metamorfose da interatividade, de Frederic
Kaplan, em que os objetos memoriais são interfaces privilegiadas de um
universo digital. Esse modo de produção de memória requer a interação
homem-máquina e incorpora às memórias artificiais a chamada
memória eletrônica. No ambiente on-line (virtual eletrônico), as
lembranças depositadas ou comunicadas, se, por um lado, se dissolvem
nos processos de reformatação e autoria coletiva, por outro lado, podem
ainda gerar acúmulo, pois as tecnologias atuais possibilitam a
reprodução da informação em várias mídias, garantindo a existência de
registros tanto analógicos quanto digitais.

A ideia de que vivemos ao mesmo tempo em, no mínimo, dois mundos –


um analógico e outro digital – leva a considerar que, em ambos, as
memórias e seus valores documentais e patrimoniais são construídos,
transitam, deixam rastros e se dissolvem. A noção de patrimônio
institucional é recente e, por seu caráter representacional, gera conflitos
com a natureza da memória, que é absolutamente virtual. A discussão
sobre a memória vir a ser patrimônio e o patrimônio necessitar do
processo memorial para se sustentar no tempo indicou o campo de
conhecimento denominado memória social como o mais apropriado para
colocar em diálogo questões teóricas, metodológicas e conceituais sobre
os valores documentais e patrimoniais dos objetos e o comportamento
das produções de subjetividade e objetividade em um espaço-tempo
mantido por redes eletrônicas de comunicação. A questão da memória
ainda não está em jogo, por ser de natureza virtual. Ao contrário da
noção de patrimônio, que, por ser de natureza representacional, está
atrelada ao documento e à sua reprodutibilidade.

Texte intégral
Os tempos da memória
1 Memória e patrimônio são dois temas que vêm ganhando
presença cada vez mais intensa nos meios de comunicação
contemporâneos. Dos livros e artigos científicos veiculados
em mídias tradicionais aos blogues construídos no espaço
ubíquo da web, estudos sobre memórias on-line e
patrimônio digital ganham destaque. No entanto, pouco tem
sido investigado empiricamente sobre criação, manutenção e
dissolução de registros de memórias e de bens patrimoniais
na web. Mais escassas ainda são as elaborações teóricas que
tratem especificamente das relações entre as práticas
memorialistas e patrimoniais e as mídias eletrônicas.
2 De acordo com a proposta geral desta obra, o objetivo deste
capítulo é colocar em diálogo conceitos já consolidados nos
campos da memória e do patrimônio com aqueles inerentes
aos campos da computação, informação e comunicação. Dito
de outro modo, a intenção é a de verificar como conceitos
criados em ambiente analógico se comportam, se adaptam e
se transformam quando transpostos para o ambiente virtual.
É importante ressaltar que o ambiente virtual opera apenas
com números; portanto, quando os registros memoriais e
patrimoniais deixam o mundo analógico das sensibilidades
corporais transformam-se em representações numéricas que
potencialmente possuem significado.
3 Memória e patrimônio constituídos no ambiente virtual são
sempre mediados por objetos informacionais. Esses objetos
ou códigos numéricos se metamorfoseiam em imagens que
são seus substitutos. Todo este processo de “vestimenta” dos
códigos é feito por programas computacionais, construídos
em sua maioria para permitir que as pessoas se
comuniquem. A vestimenta dos códigos numéricos funciona
como nossa pele que nos confere identidade. Quer seja por
símbolos visuais criados para a escrita textual ou figurativa,
quer seja por símbolos sonoros, nos comunicamos
eletronicamente por números. Nossa epígrafe é uma equação
fractal que nos serve como exemplo da estrutura matemática
da informação1.
4 Durante quase vinte séculos, a cultura ocidental considerou
as dimensões tempo e espaço como atributos independentes
e, portanto, nos habituamos a pensar que os espaços são
fixos e que o tempo é linear, caracterizando o passado, o
presente e o futuro (Dodebei, 2000). Com a ciência
contemporânea, fomos obrigados a repensar esse estatuto do
tempo e do espaço e instados a buscar outras explicações que
dessem conta dessa nova “desordem” característica do
ambiente caótico no qual estamos imersos ao considerar o
mundo informacional em que vivemos. Identificamos que o
conceito de “acontecimento” desenvolvido pelos estoicos e
exemplificado por Deleuze (1974, p. 6) pode nos ser útil para
compreender a circularidade do tempo, como a seguir: “Só o
presente existe no tempo e reúne, absorve o passado e o
futuro, mas só o passado e o futuro insistem no tempo e
dividem ao infinito cada presente. Não três dimensões
sucessivas, mas duas leituras simultâneas do tempo”.
5 Essa concepção sobre o tempo e suas consequências para o
estatuto da memória eclode com o advento das redes
eletrônicas e do fenômeno da globalização, que vêm
atualizar o discurso sobre a circularidade do tempo e a
virtualidade do espaço, ao destacar o presente como única
possibilidade temporal, da mesma forma que pensado pelos
estoicos. O espaço virtual e o tempo real passam a fazer
parte da vida cotidiana das pessoas, evidenciando a função
da técnica midiática em nos manter no tempo presente e no
espaço ubíquo.
6 No entanto, a sensação de que estamos presos ao tempo
presente pode também ser ilusória, quer dizer, imaginamos
viver apenas o presente, mas, de fato, ele está sempre nos
escapando. As relações sociais representadas por redes que
se conectam a uma velocidade só possível pelo avanço da
tecnologia da comunicação e informação vêm nos revelando
que os tempos clássicos que configuravam a memória
(passado-presente-futuro) estão sendo percebidos de
maneira peculiar na atualidade. Ao contrário da
presentificação do tempo, podemos ter a sensação – como já
nos indicava Walter Benjamin (1985) sobre a perda da
experiência com o advento da informação – de que não
interessa vivenciar o presente em sua intensidade. Pois, hoje,
mais vale registrar, “clicar” o momento presente para
comunicá-lo e socializá-lo nas redes, resguardando assim o
que já passou, do que imergir na ação da qual se está
participando e retê-la na memória individual. Todos se
registram por suas câmeras fotográficas em tempo integral e
compartilham essas imagens com seus “amigos” e
“seguidores”. Quer parecer-nos, então, que a preocupação de
uma grande parcela das sociedades contemporâneas se
encontre mais fortemente ancorada no binômio passado-
futuro ao evitar a experiência do presente.
7 Não é por outra razão que a fotografia, por exemplo, é um
dos principais artefatos que têm um elevado poder de
evocação de lembranças. A técnica ou reprodutibilidade
técnica (analógica e digital) coloca, em frações de segundos,
a mesma imagem na caixa digital de centenas de milhares de
pessoas que estão conectadas em rede de comunicação
eletrônica. A tecnologia nos permite, assim, perceber o
tempo e o espaço de maneiras singulares. Pensamos que o
que acontece com a memória é algo semelhante à percepção
que temos do tempo. Se guardamos uma experiência vivida
em nossa memória pessoal, esta experiência é sempre da
ordem do presente, porque o estado ou a qualidade da
memória é o movimento, a constante atualização de
informações/lembranças. A virtualidade da memória,
conforme nos indica Bergson (1999), impõe-nos sempre o
presente e nos impossibilita identificar o passado. Quando
registros técnicos – representações de memórias
interiores/naturais – são criados, suas existências são
possibilitadas pela tecnologia disponível em determinado
tempo e espaço. Nesse sentido, as memórias externas,
artificiais, auxiliares ou exomemórias formadas por esses
registros podem ser consideradas materiais do passado.
8 Os registros técnicos, restos, rastros, traços ou vestígios
memoriais (designações que variam conforme o ponto de
vista teórico empregado) constituem, em sentido amplo, os
arquivos. Neste momento, importa compreender a influência
da técnica midiática na constituição das exomemórias, além
de compreender como essa influência transforma a própria
construção da memória. Deste ponto em diante, podemos
distinguir memória, sempre virtual, de registros memoriais,
que habitam as memórias externas/artificiais.
9 Os objetos, considerados como informações individuais,
podem ser representados por fotografias pessoais, filmes,
peças arqueológicas, museológicas, bibliográficas,
arquivísticas, ou mesmo peças imaginárias. As narrativas,
compreendidas sob uma perspectiva plural ou coletiva,
seriam representadas por exposições, mostras, textos
literários, entrevistas. Objetos e narrativas não são
mutuamente excludentes, o que poderá gerar o conflito já
amplamente discutido no campo da memória sobre sua
condição de subjetividade e coletividade. Quando o conceito
de lembrança é transposto do nível individual para o
coletivo, a operação feita é de natureza metafórica: memória
nacional, memória religiosa, memória literária. A memória
pode ser estudada então do ponto de vista individual, o que é
objeto principal das neurociências, e pode ser compreendida
do ponto de vista de uma construção social em que grupos
sociais criam um passado compartilhado com a ajuda do
contexto social, das mídias.
10 Os diferentes modos de “lembrar” correspondem a uma
grande disputa de opiniões no campo dos estudos sobre a
memória. Maurice Halbwachs (2004), ao opor história e
memória, leva-nos a compreender que a primeira diz
respeito apenas ao passado (morto) e a segunda reflete um
presente (vivo). Essa polaridade faz com que Pierre Nora
apresente “os lugares de memória” como uma possibilidade
(inter) mediada entre a história e a memória. Podemos
considerar que existem diferentes modos de lembrar a partir
das diversas culturas. Esse enfoque parte do pressuposto de
que o passado não está dado, mas, ao contrário, deve ser
continuamente construído e apresentado2.
11 Com certeza, o legado de Maurice Halbwachs é indiscutível,
inicialmente por ter cunhado a expressão “memória
coletiva”, mas também por ter iniciado as discussões dos
“quadros sociais da memória” (1925) em que os conceitos de
memória individual e memória coletiva se apresentam em
disputa. Com seus estudos sobre as memórias familiares,
Halbwachs (2008) alimenta as posteriores discussões sobre
a história oral; com sua pesquisa sobre a memória de
comunidades religiosas, ele acentua os aspectos topográficos
da memória, antecipando, assim, a noção de “lugares de
memória”. (Nora, 1993)
12 Paul Ricoeur afirma que o objeto da memória é, certamente,
a lembrança (mnme = que); que a recordação (anamnesis =
como) é o processo de busca dessa lembrança; e que o
importante não é quem se lembra, mas o que é lembrado. Ao
suavizar o quem das preocupações com o estatuto da
memória, Ricoeur nos livra da tensão permanente entre
memória individual e memória coletiva. Vale ressaltar que
não é intenção do autor eliminar uma ou outra memória,
vinculada ou ao indivíduo, ou ao coletivo. Está claro, na
introdução de sua obra, que o caminho a percorrer vai do “o
quê?” ao “quem?” passando pelo “como?”, isto é, da
lembrança à memória refletida, passando pela
reminiscência. (Ricoeur, 2007, p. 24)
13 A memória pode ser também compreendida sob uma
dimensão cultural, o que a aproxima do contexto digital
contemporâneo, ao abarcar fronteiras de outras disciplinas
que têm o passado como material de estudo, como a história,
a arqueologia, as ciências da informação. Astrid Erll
apresenta uma genealogia e as ramificações dos estudos
sobre memória cultural que, na verdade, compõem a obra
organizada por ela e por Ansgar Nünning. Essa genealogia
representa o domínio dos estudos sobre a memória que,
embora remontem a Platão e Aristóteles, têm seu
desenvolvimento pleno no século xix, alcançando o boom
(Huyssen, 2000), ou a boulemie mémorielle (Nora, 1997)
nas últimas décadas do século xx. O conceito de Pierre Nora
(1993, p. 1-78) dos “lugares de memória”, por exemplo,
muito ajudou a consolidar a metáfora de uma memória
coletiva, assim como o conceito de memória cultural
(kulturelles Gedächtnis) defendido por Jan e Aleida Assman
(2008), que enfatizam a contribuição de Halbwachs sobre
seus estudos de comunidades cujas memórias pudessem
alcançar centenas de anos, o que representa uma forte
ligação com a cultura.
14 Sob a perspectiva da mediação memorial e patrimonial de
objetos/narrativas existentes em ambiente virtual, não
podemos deixar de considerar a ideia de “memória mediada”
proposta por Jose van Dijk (2007). O conceito procura
entrelaçar o social e o individual e enfrentar as modalidades
contemporâneas de estabelecimento de vínculos entre o
passado e o presente. O pressuposto de Dijk é que os
artefatos individuais estão inseridos em modos
(compartilhados socialmente) de registrar e rememorar o
passado. Tais modos estão, por sua vez, estreitamente
relacionados às mídias utilizadas. Fotografias ou imagens
em movimento do núcleo familiar evidenciam uma prática
compartilhada de viver o presente. Essa autora reconhece a
importância de Halbwachs para a fundamentação de um
campo de saber sobre a memória, porém propõe um modelo
teórico que transcende o pai fundador da sociologia da
memória. As obras de Henri Bergson e Gilles Deleuze (1999,
1988 e 1999) constituem-se em pontos importantes de sua
abordagem, que procura estabelecer relações com o campo
da psicologia cognitiva. A partir deste diálogo teórico emerge
um modelo que trata também da possibilidade criativa nos
registros da memória, mas que se propõe a uma investigação
de caráter cultural, ampliando as premissas de Bergson e
Deleuze. (Dijk, 2007, p. 127-129)
15 Para incluir todos os adjetivos impostos à memória,
entendemos que seu campo de estudos pode ser nomeado
“memória social”. Mas entendemos também que a memória
(quer seja coletiva, cultural ou social, mediada ou virtual) é
uma abstração do pensamento e uma metáfora da suposição
que fazemos de nossa memória individual. No máximo,
poderíamos afirmar que essas memórias são uma extensão
imaginada de nossa memória individual. (Dodebei, 2005, p.
27-39)
16 Posta essa questão, levantamos a seguinte hipótese: se os
modos de transmissão do saber estão atrelados às condições
tecnológicas da sociedade, a produção de memórias se daria
a partir de três processos memoriais ou de memoração. O
primeiro está diretamente ligado à ideia de dissolução de
memórias, que pode ser explicitado pela transmissão oral do
conhecimento que não gera registros memoriais. Neste
modo, as memórias são de natureza processual, não
cumulativa e se dissolvem quando o grupo social as
incorpora e as transforma, cedendo espaço para a criação de
novas memórias. Assim, não há acúmulo, repetição, origem
ou autoria memorial, pois a memória é sempre um único
produto, como o exemplo da memória virtual de Henri
Bergson (1999). O segundo modo de produção de memórias
é da ordem da soma, da adição, o que significa que a ideia de
acumulação faz parte de sua memoração. E, como é de todo
impossível possuir a totalidade de lembranças em nossa
memória individual, a sociedade cria, com a ajuda da técnica
da escrita e dos suportes analógicos, as memórias artificiais
que são os objetos auxiliares da memória individual. Deste
conceito de acumulação nascem as angústias da perda, da
falta, do erro e as consequentes ações de proteção
“patrimonial” de lembranças. O terceiro modo de produção
de memórias pauta-se por uma hibridação dos anteriores,
quer dizer, um misto de dissolução e acumulação, que
arriscaríamos denominar provisoriamente de interação.
Seguimos, neste caso, a ideia de metamorfose da
interatividade de Kaplan (2009) em que os objetos
memoriais são interfaces privilegiadas de um universo
digital. Este modo de produção de memória requer a
interação homem-máquina e incorpora às memórias
artificiais a chamada memória eletrônica. No ambiente on-
line (virtual eletrônico), as lembranças depositadas ou
comunicadas se, por um lado, se dissolvem nos processos de
reformatação e autoria coletiva, por outro lado, podem ainda
gerar acúmulo, pois as tecnologias atuais possibilitam a
reprodução da informação em várias mídias, garantindo a
existência de registros tanto analógicos quanto digitais.
17 Para demonstrar nossa hipótese, traçaremos uma síntese do
pensamento de autores que, direta ou indiretamente,
utilizam essa argumentação, ao analisar a criação e a
circulação de registros memoriais. Os meios de memória são
considerados discursos de natureza espaço-temporal já
clássicos na literatura historiográfica e das ciências sociais,
como indicado nas obras de Leroi-Gourhan (arqueólogo) e
Jack Goody (antropólogo social), citados por Jacques Le
Goff (historiador medievalista) em História e memória (Le
Goff, 2003), especialmente aqueles relacionados com a
oralidade e a escrita. Mas são ainda pouco discutidos no que
se refere ao estágio contemporâneo dos registros memoriais
em ambiente on-line, exceção feita para as análises de Pierre
Lévy (1993, 1998, 2003, 2005, 2007) e para alguns teóricos
(Lemos, 2007; Manovich, 2001, 2003, 2008; Kaplan, 2009)
que pesquisam os espaços híbridos que combinam
ambientes analógico e digital, ou as chamadas interfaces.
18 Segundo Le Goff, da Pré-História à Antiguidade, surge a
ideia de que a memória, no âmbito da cultura oral, é
eminentemente coletiva. A sociedade memorial é
representada por homens-memória que têm por função
transmitir os conhecimentos práticos, técnicos, de saber
profissional. A memória é narrativa, criativa e pauta-se pelos
interesses de uma construção generativa dos mitos de
origem e dos saberes técnico e mágico-religioso. Com o
desenvolvimento da técnica, a memória medieval encontra-
se em equilíbrio entre o oral e o escrito. A ideia de
reprodução mnemônica e de memória repetitiva se faz
presente com a criação de comemorações, monumentos e
documentos. O modo de pensar é alterado por esta
tecnologia midiática – a escrita – em que nomear é
conhecer, gerando nas sociedades novas aptidões
intelectuais. Intensifica-se, assim, a consciência do
esquecimento e, com ela, a instituição de meios de memória
representados por um aumento considerável na criação de
arquivos, bibliotecas e museus. Nesta fase, a memória está
em expansão; o sentido de acumulação é preponderante ao
da dissolução. A era da escrita faz surgir as memórias
artificiais, auxiliares, já que é impossível ter homens-
memória que absorvam individualmente toda a produção do
conhecimento registrado. A memória na idade
contemporânea é pouco discutida por Le Goff, que apenas
indica ser ela a mais complexa, por acomodar, de certo
modo, as características das anteriores com a estrutura dos
bancos de dados e da memória eletrônica (dos
computadores).
19 Para Jack Goody, as principais mudanças na estrutura social
surgem a partir de três fatores principais. O primeiro foi o
desenvolvimento de formas intensivas de agricultura que
permitiram a acumulação de superávit – o superávit
explicava muitos aspectos da prática cultural, do casamento
aos funerais, assim como a grande divisão entre as
sociedades africanas e europeias. Segundo, as mudanças
sociais podem ser explicadas em termos da urbanização e do
crescimento das instituições burocráticas que modificaram
ou eliminaram formas tradicionais de organização social,
como a família ou a tribo, passando-se a identificar
civilização com “cultura da cidade”. E, em terceiro lugar,
Goody atribuiu grande peso às tecnologias da comunicação
como sendo instrumentos de mudança psicológica e social.
Ele associou a era da escrita com a tarefa de gerenciamento
do superávit. Em um importante artigo com Ian Watt
(Goody e Watt, 1963), o antropólogo social defende a tese de
que o desenvolvimento da ciência e da filosofia na Grécia
clássica foi fortemente influenciado pela invenção de um
sistema eficiente de escrita, ou seja, do alfabeto3.
20 Pode-se, assim, inferir que o sentido de acumulação de
qualquer tipo de bem social inicia-se com o seu excesso, em
termos econômicos, com o superávit. A representação desses
bens propiciada pelo sistema de escrita faz com que
tenhamos a sensação de poder acumular tudo que
produzimos, deixando-nos com a impressão de que aquilo
que nos escapa é esquecido ou perdido, o que aponta para
uma falha ou, no mínimo, uma situação indesejável. Somos
educados para não esquecer, o que é contrário ao
funcionamento de nossa memória individual, por exemplo.
O escritor Jorge Luís Borges (2000) e Viktor Mayer-
Schönberger (2007) nos dão bons exemplos dessa falácia de
tudo lembrar.
21 Borges, no conto Funes, o memorioso, nos indica que
lembrar todos os segundos de uma existência é impedir a
própria condição de existir, como observado por Irineu
Funes, “[...] o presente era quase intolerável de tão rico e tão
nítido [...] minha memória, senhor, é como o despejadouro
de lixos”. Mayer-Schönberger, ao discutir sobre a arte de
esquecer na era da computação ubíqua em seu preprint do
repositório da Harvard University, diz:
Como seres humanos, temos a capacidade de lembrar e de
esquecer. Durante milênios, esquecer foi fácil e lembrar foi
difícil. Em princípio, esqueceríamos. A tecnologia digital
inverteu essa condição. Hoje, com espaço de
armazenamento economicamente acessível, recuperação
fácil e acesso global, o ato de lembrar se tornou o padrão,
quer seja para o indivíduo, quer seja para a sociedade.
Armazenamos nossas fotografias digitais sejam elas boas ou
ruins – porque até escolher quais eliminar demanda tempo
demais, e mantemos versões diferentes dos documentos em
que trabalhamos, para o caso de necessitarmos de uma
delas. A Google salva cada busca realizada e milhares de
câmeras de vigilância registram nossos movimentos.
(Tradução livre da autora)

22 A obra de Pierre Lévy (2005, p. 123) sobre a cultura digital


nos apresenta também a mesma estrutura de pensamento
encontrada nos autores da história e da antropologia, ao
considerar que à dimensão do espaço/tempo soma-se a
dimensão da técnica. E que ambas podem ser
compreendidas, tal como o continuum de Halbwachs4, em
três polos do espírito: o da oralidade primária (mito), o da
escrita (teoria), e o da informática-mediática (simulação).
Esses polos não se configuram em eras porque transitam e
acontecem ao mesmo tempo, em graus diversos de
intensidade e de manifestação explícita.
23 Lévy, no quadro comparativo que traça para os três polos,
usa os atributos tempo, pragmática da comunicação,
memória social e formas de conhecimento. Mas, em nenhum
momento, o autor pressupõe o domínio de um polo sobre o
outro. Ao contrário, indica que o uso de determinado tipo de
tecnologia intelectual, seja o mito, a teoria ou a simulação,
coloca ênfase particular em certos valores, certas dimensões
da atividade cognitiva ou da imagem social do tempo, que se
tornam mais explicitamente tematizadas e ao redor das
quais se cristalizam formas culturais particulares. Ernst
Cassirer (2000, p. 19), por sua vez, ao analisar as conexões
entre língua e mito, considera também o espaço mítico não
como uma era, mas como um modo de ver, uma forma
simbólica que, embora irrompa com maior força nos tempos
mais antigos da história do pensamento, nunca desaparece
por inteiro. É esta a nossa intenção ao referirmo-nos ao
quadro de Lévy.
24 Resta, nesta introdução, enfatizar que a questão patrimonial
– valor patrimonial atribuído a lembranças – é discutida
considerando-se cada um dos tempos memoriais propostos
por nossa hipótese. Nossa intenção é a de compreender as
relações entre memória e patrimônio, principalmente em
dois processos interligados: a memória em seu vir-a-ser
patrimônio e a memoração necessária a um patrimônio
instituído. Vale ressaltar que a periodização dos tempos da
memória é feita apenas para fins de análise do fenômeno,
pois compreendemos, assim como os autores citados
anteriormente, que os meios de memória ou técnicas
midiáticas que favorecem sua transmissão, manutenção e
dissolução podem ser concomitantes aos espaços-temporais
considerados, além de existirem em graus variáveis de
persistência.

Oralidade mítica e dissolução da memória:


patrimônio como herança
25 Vernant (2000) nos explica que um mito, pontualmente um
mito grego, é um relato. A maneira pela qual esses relatos se
constituíram, se transmitiram e se atualizam na memória
social pode ser compreendida pelos textos que só chegaram
a nós dispersos e fragmentados, à exceção das obras
literárias como a Ilíada e a Odisseia. À reunião dessas
tradições múltiplas deu-se o nome de mitologia grega. A
diferença entre o relato mítico e outros tipos de relatos, por
exemplo, o literário, o histórico, pode ser evidenciada sob
alguns aspectos. O primeiro deles diz respeito à autoria.
Segundo Vernant, o relato mítico não resulta da invenção
individual nem da fantasia criadora, mas da transmissão da
memória. Assim, o mito só vive se for contado, de geração
em geração, na vida cotidiana, e as condições de sua
sobrevivência são, exatamente, a memória, a oralidade, a
tradição. O segundo aspecto é relativo a sua integridade
informacional ou unicidade. O mito não está fixado numa
forma definitiva. Esta vai variar, sempre, em decorrência do
agente – o “contador de estórias”, o aedo – ou do processo –
a transmissão – a qual incorpora novas analogias e
abandona outras, tecendo-se, assim, um continuum formado
por lembranças e esquecimentos sempre atualizado na
memória coletiva. O mito sempre comporta variantes,
versões múltiplas que o narrador tem a sua disposição, e que
escolhe em função das circunstâncias, de seu público, de
suas preferências, podendo cortar, acrescentar e modificar o
que lhe parecer conveniente.
26 A terceira diferença do mito com relação a outros relatos
pode ser vista a partir da perspectiva do espaço/tempo. As
musas, filhas de Mnemosyne (memória), têm por tarefa a
apresentação da criação do mundo desde que ao Kháos
(Caos) se contrapôs Gaia. Gaia, ou a Terra, é nítida, firme e
estável, significando o oposto do Caos, embora tenha
emergido dele. E é nela que os deuses, os homens e os bichos
podem viver com segurança, iniciando-se, assim, a estória
das origens. No entanto, a origem do cosmos relatada pela
mitologia5 não deve ser vista em um quadro de sucessão no
tempo, como diz Vernant (1973, p. 71-112): “esta gênese do
mundo, cujo decurso narram as Musas, comporta o que vem
antes e depois, mas não se estende por uma duração
homogênea, por um tempo único. Ritmando este passado,
não há uma ‘cronologia’, mas ‘genealogia’”.
27 Quanto à experiência do que é espacial, a mitologia a
representa, além do próprio mito de origem (Caos – instável,
infinito, espaço em queda, e Gaia – estável, definida e fixa),
pela figura do casal Héstia, simbolizando o centro, e
Hermes, contrapondo esse centro com o movimento. Esses
polos, mais dinâmicos que opostos, ultrapassam em muito a
noção ordinária de espaço e movimento e exprimem o que
Vernant denomina de tensão que se observava na
representação arcaica do espaço: o espaço exige um centro,
um ponto fixo, com valor privilegiado, a partir do qual se
possam definir direções, todas diferentes qualitativamente; o
espaço, porém, se apresenta ao mesmo tempo como lugar do
movimento, o que implica uma possibilidade de transição e
de passagem de qualquer ponto a outro.
28 A união de centro e movimento aliada à circularidade
temporal conduz à ideia de um só conceito: espaço/tempo.
E, tal como na mitologia, ele pode ser imaginado como uma
dimensão na qual, a partir da leitura do presente, celebram-
se os acontecimentos que transitam no passado e no futuro.
A função criativa do mito reside, exatamente, no fato de que
este pode ser interpretado à luz do quadro conceitual do
presente e, embora a oralidade mítica tenha cedido espaço
ao polo da escrita, suas características de relato singular
(autoria, forma e espaço/tempo) podem ser encontradas na
transmissão do conhecimento na atualidade e,
consequentemente, na configuração, também atual, da
memória social.
29 Se nos é fácil compreender a memória como um estado
sempre virtual, o mesmo não acontece com a noção de
patrimônio, que implica atributos de valor e a preservação
desses. No entanto, também é difícil desarticular a noção de
patrimônio de outras categorias de pensamento como as de
“cultura”, “tradição” e “herança”, como nos apresenta a
antropóloga Regina Abreu em seu artigo sobre a emergência
do patrimônio genético (2003, p. 30-45). Por essa razão, a
contribuição da antropologia é fundamental para a reflexão
da evolução ou das perspectivas de conceituação de
patrimônio tomado na distância espaço-temporal, conforme
a estrutura do discurso apresentado anteriormente sobre os
polos da transmissão do saber. Como funcionaria a ideia de
patrimônio no polo da oralidade mítica, mantendo-se os
seus atributos essenciais de perigo de desaparecimento do
bem valorizado e, portanto, de sua salvaguarda para o
futuro?
30 José Reginaldo Santos Gonçalves (2003, p. 21-29) nos diz
que a noção de patrimônio, do ponto de vista antropológico,
é milenar, que ela está presente nas sociedades tribais, no
mundo clássico e na Idade Média, embora a sistematização
dos estudos sobre o tema tenha se constituído em fins do
século xviii com a formação dos estados nacionais. O autor
mostra que, se o atributo de acumulação for desatrelado do
conceito de patrimônio, pode-se entender o patrimônio livre
do sentido de razão, o que nos permitiria transitar com essa
categoria em outros contextos socioculturais. Segundo o
antropólogo, existem muitas sociedades que absorvem o
conceito de patrimônio como herança de saberes, mas que
não veem na acumulação um sentido de evocação de
memória. Os objetos acumulados são de natureza utilitária e,
muitas vezes, quando há acumulação, esta é temporária e
visa à distribuição, ou mesmo à posterior destruição. Em
algumas sociedades, os objetos materiais não são
classificados separados de seus proprietários, pois são
simultaneamente de natureza econômica, jurídica, moral,
mágica, estética, psicológica, sendo, portanto, inseparáveis
de totalidades sociais e cósmicas que transcendem a
condição do indivíduo. A acumulação parece ser um atributo
que, nas sociedades de tradição oral, pode não pertencer ao
conceito de patrimônio.
31 Se não há acumulação de bens, não há perigo de perda, e não
há também necessidade de proteção ou de salvaguarda. Diz
ainda o antropólogo que, a exemplo do “mana melanésio”,
discute-se a presença ou a ausência do patrimônio, a
necessidade ou não de preservá-lo, porém não se discute a
sua existência. Esta categoria é um dado de nossa
consciência e de nossa linguagem; um pressuposto que
dirige nossos julgamentos e raciocínios. O patrimônio,
tomado como categoria de pensamento, coloca sua
existência na relação exercida pelo outro e, como seu
conceito está atrelado aos conceitos de cultura, a ideia de
patrimônio pode, no pensar antropológico, assumir diversos
contornos semânticos no tempo e no espaço. Isto nos facilita
pensar também o patrimônio como pertinente ao mundo
virtual, ao menos no sentido da transmissão digitalizada,
que é mais compartilhada e não visa, prioritariamente, à
acumulação, mas à socialização da informação.

Escrita, razão e expansão memorial:


patrimônio como documento
32 A característica dominante deste polo de tecnologia de
transmissão do saber é a linearidade, considerando a figura
temporal em que a circularidade está para a oralidade e os
segmentos/pontos configuram, no dizer de Lévy, a era
informática-mediática. As fronteiras mais tênues, do ponto
de vista do distanciamento temporal em que nos
encontramos entre a escrita e a imagética, dificultam nosso
pensar sobre uma era que abre mão da história na
perspectiva de uma realização, dos vestígios e da acumulação
de registros. O retardo, o ato de diferir e a inscrição no
tempo se contrapõem ao imediato da transmissão oral e ao
tempo real da rede informática-mediática. Mesmo
considerando o processo de comunicação nos três polos
como sendo hipertextual, a distância entre os hipertextos do
autor e do leitor é maior no polo da escrita, o que vai exigir
do autor maior objetividade e do leitor maior capacidade
interpretativa. Para Lévy, muda também a configuração da
memória. Se nos polos da oralidade e da simulação ela só
pode ser entendida como construção processual, portanto
em movimento constante, na tecnologia da escrita, seu
conceito é dependente da possibilidade de crítica ligada a
uma separação parcial do indivíduo e do saber, com ênfase
no estatuto de verdade.
33 Com relação às formas canônicas do saber, o polo da escrita
se fundamenta na construção teórica (explicação, exposição,
sistemática) e na interpretação, ao passo que a oralidade tem
o rito e a narrativa como instâncias do saber; já a
informática-mediática se vale da modelização operacional e
da simulação. Assim, permanência e significação colorem a
transmissão oral do saber; a verdade (crítica, objetividade,
universalidade) é dominante no polo da escrita; e a eficácia,
pertinência local e mudança, ou novidade, são os atributos
do polo da informática-mediática.
34 Se a narrativa é a forma dominante de transmissão do saber
no polo da oralidade mítica, o documento, com seu estatuto
de prova e verdade, é a instituição predominante do saber
científico no polo da escrita/razão/teoria. A memória
documentada, quer dizer, acumulada em arquivos,
bibliotecas, museus, garante a relação de dependência entre
documento e memória, mesmo ao considerar que o conceito
de documento (Dodebei, 2001, p. 59-66) se fundamenta na
existência de valores circunstanciais e temporários
atribuídos aos objetos.
35 No mundo materializado das representações ou dos registros
de memória, a era da tecnologia da escrita identifica-se com
a atribuição de valores patrimoniais aos objetos textuais,
imagéticos, monumentais, às coleções materiais e simbólicas
que Nora nomeou de “lugares de memória”. O desejo de
perpetuar a memória, acrescido da reprodutibilidade técnica
com a consequente criação dos acervos, fez com que a
sociedade produzisse próteses de suas memórias individuais,
verdadeiras memórias auxiliares, cada vez mais extensas,
diversificadas e até mesmo duplicadas, a exemplo das
bibliotecas, dos museus, dos arquivos, dos monumentos
históricos, gerando uma ampliação descomunal da
capacidade de memória do mundo.
36 Segundo Choay (2001), a noção de patrimônio estava, na
origem, ligada às estruturas familiares, econômicas e
jurídicas de uma sociedade estável, enraizada no espaço e no
tempo. Hoje, requalificada por diversos atributos, como se
pode acompanhar pela trajetória dos registros do
conhecimento sobre esse tema, ela admite uma pluralidade
de adjetivos (histórico, artístico, cultural, material,
intangível, virtual, digital) fazendo do termo um conceito
“nômade”. A instituição patrimonial seria uma invenção
moderna, porquanto essa preocupação com a salvaguarda de
edifícios e monumentos só é sistematizada em 1837, na
França, com a criação da Comissão dos Monumentos
Históricos. A manutenção dos estados nacionais nos séculos
xix e xx desencadeou o processo de patrimonialização dos
bens arquitetônicos, por razões que variavam entre a
proteção da arte e a manutenção do poder econômico e
simbólico das instituições.
37 O processo de institucionalização do patrimônio toma
contornos mais expansionistas, do ponto de vista conceitual,
após a Primeira Guerra Mundial. Com o intuito de
estabelecer uma cooperação cultural entre os povos, a
Sociedade das Nações (Bergson, 1919) cria, no ano de 1922, a
Comissão Internacional de Cooperação Intelectual (Bergson,
1922), que se reúne pela primeira vez em Genebra, sob a
presidência de Henri Bergson. Esta comissão de intelectuais,
formada por onze membros titulares e seis assistentes,
reunia à época nomes de peso entre filósofos e cientistas:
Bonnevie (zoóloga), Curie (física), Bannerjea (economista
político), Bergson (filósofo), Castro (médico brasileiro),
Destrée (escritor), Murray (filólogo), Reynold (escritor),
Ruffini (jurista), Torres-Quevedo (engenheiro
eletromecânico) e Einstein (que não compareceu por estar
em missão científica no Japão) (Mossé Bastide, 1959). O
objetivo da comissão era o de efetuar uma pesquisa sobre as
condições do trabalho intelectual em cada um dos países-
membros da Sociedade das Nações. O interesse da comissão
se estendia à organização internacional da documentação
científica (bibliografia corrente e retrospectiva), ao avanço
da pesquisa científica, à cooperação internacional na
educação, com destaque para as ciências humanas, tidas
como pouco articuladas no que concerne à transferência da
informação. E, para que se iniciasse uma cooperação
internacional, era necessário conhecer o estado da arte da
produção cultural dos países. Iniciava-se a era dos
inventários da produção intelectual, da criação dos centros
internacionais de documentação, da propriedade intelectual
e científica em geral, e da proteção dos bens culturais em
particular. Parece que Henri Bergson teve grande
participação na criação da noção de patrimônio cultural,
quando presidiu, entre 1° e 6 de agosto de 1922, a
Commission Internationale de la Coopération Intellectuelle,
instituição precursora da Unesco, criada em 1945, logo após
a Segunda Guerra Mundial.
38 De acordo com Choay, somente após a Segunda Guerra
Mundial, na década de cinquenta do século xx, é que serão
acrescentados às categorias definidas na Comissão dos
Monumentos Históricos outros objetos ainda considerados
de valor menor, mas já indicando uma ampliação da noção
de patrimônio institucional para a sociedade. Aos edifícios
religiosos e palacianos acrescem-se fábricas, usinas, teatros,
compreendendo os aglomerados de edificações da malha
urbana: casas, bairros, aldeias, cidades inteiras e mesmo
conjuntos de cidades, agora tomados como coleções de bens
patrimoniais.
39 Em 1997, a Unesco cria uma nova distinção internacional,
intitulada obra-prima do patrimônio oral e imaterial da
humanidade6, concedida a espaços ou locais onde são
regularmente produzidas expressões culturais e
manifestações da cultura tradicional e popular. A criação do
título foi a forma de alertar a comunidade internacional para
a importância dessas manifestações e a necessidade de sua
salvaguarda, uma vez que compõem o “diversificado tesouro
cultural do mundo”. A proclamação das obras-primas do
patrimônio oral e imaterial da humanidade acontece de dois
em dois anos, com a escolha das candidaturas oferecidas
pelos países, a cargo de um júri internacional. A primeira,
ocorrida em 2001, selecionou dezenove bens. Em 2003, mais
vinte e oito itens foram acrescentados à lista das obras-
primas da humanidade, entre eles a arte Kusiwa – pintura
corporal e a arte gráfica Wajãpi, candidatura preparada pelo
Museu do Índio, que retrata a cosmologia e a linguagem
gráfica dos índios Wajãpi do Amapá, Brasil. A terceira
proclamação ocorreu em novembro de 2005, com mais
quarenta e três integrantes da lista do patrimônio oral e
imaterial. Mais uma vez o Brasil foi contemplado, com a
inclusão do samba de roda do Recôncavo baiano. Em 2011,
Yaokwa, o ritual para a manutenção da ordem cósmica e
social do povo Enawene Nawe, na Amazônia, Brasil, foi
inscrito na lista do patrimônio cultural intangível que
necessita salvaguarda urgente.
40 No Brasil, as políticas patrimoniais, representadas pelo
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional –
Iphan7, criado em 1937, consideram um universo
diversificado de bens culturais, classificados segundo sua
natureza nos quatro livros do Tombo: Livro do Tombo
Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico; Livro do Tombo
Histórico; Livro do Tombo das Belas Artes; e Livro do
Tombo das Artes Aplicadas. Suas ações, voltadas à
identificação, documentação, restauração, conservação,
preservação, fiscalização e difusão, estão previstas em
legislações específicas sobre cada um dos temas pertinentes
ao seu universo de atuação, sejam bens imóveis (núcleos
urbanos, sítios arqueológicos e paisagísticos, bens
individuais) ou bens móveis (coleções arqueológicas, acervos
museológicos, documentais, arquivísticos, bibliográficos,
videográficos, fotográficos e cinematográficos). O Decreto n°
3.551, de 4 de agosto de 2000, instituiu o registro, que é o
instrumento legal para reconhecimento e valorização do
patrimônio cultural imaterial brasileiro. Os bens registrados
são inscritos em quatro livros: Registro dos Saberes, das
Celebrações, das Formas de Expressão e dos Lugares. Os
saberes ou modos de fazer são atividades desenvolvidas por
atores sociais conhecedores de técnicas e de matérias-primas
que identificam um grupo social ou uma localidade. As
celebrações são ritos e festividades associados à
religiosidade, à civilidade e aos ciclos do calendário, que
participam fortemente da produção de sentidos específicos
de lugar e de território. As formas de expressão são formas
não-linguísticas de comunicação associadas a determinado
grupo social ou região, traduzidas em manifestações
musicais, cênicas, plásticas, lúdicas ou literárias. Lugares são
espaços onde ocorrem práticas e atividades de naturezas
variadas, tanto cotidianas quanto excepcionais, que
constituem referência para a população.
41 O valor patrimonial é atribuído a objetos que estão sendo
criados no presente e que são frutos de manifestações
culturais, em sua maioria de natureza artística e coletiva
como as artes populares, indígenas, urbanas, das periferias,
de comunidades de baixa renda, entre outros. Ou ainda,
seguindo o movimento ecológico, o patrimônio conviria
também aos espaços naturais como bosques, florestas,
fauna, lagos e praias. Essa extensão conceitual fará surgir o
patrimônio paisagístico, o genético, o medicinal, entre tantos
outros adjetivos que reforçam mais a preocupação com o
perigo de perda para a sobrevivência atual da humanidade
do que com a herança para gerações futuras.
42 A criação do patrimônio denominado imaterial, por conta de
sua institucionalização, transformou os objetos memoriais
característicos da era mítica, da oralidade, em documentos.
Registrar o mito, mantendo-se sua natureza processual
transformadora, é uma tarefa, senão impossível,
permanentemente inacabada. Se, por um lado, o registro
patrimonial garante direitos de autoria, por exemplo, por
outro lado, exige constante atualização de registro para a
manutenção fidedigna da prática cultural representada.
43 O patrimônio do polo da escrita, do documento, caracteriza-
se, assim, por uma natureza representacional. O
conhecimento é apresentado por seu substituto
representacional que, na feição pública, significa
conhecimento publicado, disponível para uso –
intencionalmente acumulado. Os estoques de
informação/memória são o conjunto dessas representações
do conhecimento que precisam ser organizados por meio das
memórias documentárias. Essas memórias são, por sua vez,
construções simbólicas do conhecimento que reúnem
cadeias de representações presentes na dinâmica social,
desde a produção do conhecimento até sua assimilação,
mediadas por uma forma artificial de comunicação.
44 Antonio Garcia Gutiérrez alerta para uma das questões mais
complexas da formação e manutenção das memórias
artificiais que nomeia de “exomemórias” – registros da
memória – ao considerar que a intermediação necessária
entre os documentos e seus leitores deve pautar-se por uma
ética espaço-temporal. O mundo contemporâneo exige, por
exemplo, atenção aos princípios da transculturalidade e do
reconhecimento das redes de sensibilidade e interpretação
transversal que constituem a realidade, a memória e seus
mediadores. Como consequência de uma herança positivista
(um lugar para cada coisa e uma coisa para cada lugar), a
tendência nos processos de representação documentária é a
de buscarem-se apenas os significados relevantes, deixando
de lado os aspectos menores ou distintos: “temos que nos
prover de uma ética sensorial, de equilíbrio e
transculturalmente aceitável, que não esqueça as partes da
racionalidade e sensibilidade que devem estar presentes na
construção da memória registrada”. (Garcia Gutiérrez, 204,
p. 31) Suas observações podem ser estendidas ao processo de
patrimonialização de objetos, no sentido de que estes
devem ser fruto de uma valorização ético-memorial.

Interatividade memorial: patrimônio como


informação
45 Dizíamos na introdução deste texto que os objetos digitais
são essencialmente números e, desta forma, não importa se
o objeto patrimoniado, por exemplo, é de natureza material
ou imaterial, pois no ambiente eletrônico ele é representado
em bits (0/1). A vantagem que podemos observar deste
processo de digitalização de objetos nascidos em meio
analógico (por exemplo, o plano piloto da cidade de Brasília,
capital do Brasil) e daqueles já nascidos em meio digital (o
registro das práticas Yaokwa, ritual para a manutenção da
ordem cósmica e social do povo Enawene Nawe, na
Amazônia, Brasil; a arte fractal) é a de que eles se
metamorfoseiam em unidades memoriais digitais que
podem ser combinadas e recombinadas, possibilitando a
criação de novos objetos. Como, por exemplo, a coleção
digital da Unesco denominada Memória do mundo, cuja
existência é possível apenas por seu caráter virtual.
46 Constituída de bens patrimoniais de natureza material e
imaterial, de todas as partes do nosso planeta, essa coleção
pretende representar uma síntese dos feitos da humanidade
e está disponível na rede mundial de computadores. Uma
primeira leitura dos critérios estabelecidos para a seleção
dos bens que integram a Memória do mundo nos indica a
presença forte do conceito clássico de coleção, pelos
adjetivos: raros, excepcionais, geniais, únicos, memoráveis,
importantes, significantes, autênticos. Observando os
objetos, percebemos que o desejo de colecionar abarca seres
humanos, animais, plantas, paisagens, construções. Fazem
parte também da coleção fenômenos, propriedades, valores,
criações artísticas, históricas e tecnológicas, tradições,
crenças e ideias. Várias questões poderiam ser colocadas em
relação a esses critérios de seleção. De que se compõe, afinal,
a memória do mundo? Quem seleciona os objetos que,
isolados, deverão representar a totalidade de sua classe
conceitual? Por que um feito, uma paisagem, uma
comunidade, uma música, um livro é mais significativo para
representar todos os outros de sua categoria?
47 Fato é que o processo de digitalização desses patrimônios
oferece à humanidade a oportunidade de mapear conceitos
materiais e imateriais e de transferi-los para o espaço
virtual, onde a memória do mundo é construída já como
uma coleção delimitada conceitualmente. Textos, imagens,
sons, organizados como em um recorte enciclopédico,
podem ser acessados em tempo real por um número cada
vez mais amplo de internautas que se apropriam,
reformatam e devolvem ao ciberespaço novas informações.
48 Mas a natureza do ciberespaço é também caótica por sua
constituição ser informacional. Assim, a comunicação
pessoa/pessoa (sistema aberto) no espaço virtual sofre os
ruídos naturais do mundo analógico e daqueles criados pela
interoperabilidade digital – pessoa/computador/pessoa
(sistema fechado). O que se deseja enfatizar aqui é que
grande parte da comunicação efetuada entre as pessoas, a
partir da década de noventa do século xx, depende da
interação com o computador. Essa mediação eletrônica nos
obriga a dominar a técnica, por um lado, e, por outro lado,
nos oferece um universo mítico de experiências simuladas
que, de certa forma, compensam a aridez característica dos
sistemas fechados.
49 Para muitos pensadores do contemporâneo não há memória
no ambiente virtual, o que nos apontaria para um futuro
insípido e cruel. Hervé Fischer (2008, p. 351-352), em
ensaio sobre a arte, afirma que “é preciso escapar da
efemeridade fatal da cultura digital que não tem memória.
As artes digitais se dissolvem, mal aparecem. Quanto mais
sofisticada é uma tecnologia, mais rápido ela envelhece, mais
rápido se apaga”. É preciso compreender que o ambiente
virtual polvilhado de memórias digitais, mesmo que
efêmeras, possibilita a interação com um número expressivo
de internautas que podem fruir a obra de arte, interagir com
ela, apropriar-se dela e transformá-la, criando, desta forma,
uma cadeia de sentidos que se torna independente do objeto
original. Se os objetos se fundem em artefatos interativos e,
cada vez mais, os objetos eletrônicos se reduzem a interfaces,
cabe à sociedade desenvolver meios de disseminação de
sentidos.
50 Nesse sentido, Pierre Lévy (2007) vem trabalhando no
desenvolvimento da memória virtual da inteligência coletiva
que diz respeito à construção de uma linguagem artificial
denominada IEML (Information Economy MetaLanguage),
linguagem em sistema aberto de comunicação no
ciberespaço, com o objetivo de facilitar o acesso ao que ele
denomina de memória virtual eletrônica. O projeto analisa a
arquitetura da memória virtual e considera quatro planos
para representar a evolução das tecnologias da informação e
comunicação.
51 O primeiro plano é denominado de “camada de
endereçamento dos bits”, ou interconexão de transistores, e
refere-se aos computadores que compõem os pontos de
ligação no ciberespaço. É a memória dos computadores ou
endereços dos bits, que compreende os sistemas
operacionais e os aplicativos, de natureza lógica e aritmética,
que tem a década de 1950 como a data de seu nascimento. A
segunda camada, “endereçamento dos servidores” ou
interconexão entre computadores, é representada pelo
protocolo de internet que liga computadores pessoais,
comunidades virtuais e proporciona a convergência de
mídias digitalizadas. Esta fase é datada em 1980. A terceira
camada, “endereçamento das páginas” ou interconexão entre
documentos, compreende a esfera pública mundial
hipertextual multimídia, significando a criação da world
wide web com as ferramentas de pesquisa, navegadores e
endereços (URLs – Uniform Resource Locator) e links
(HTTP – HyperText Transfer Protocol). A popularização da
web é datada em 1995. Além destas três camadas, com as
quais já estamos familiarizados, Lévy nos apresenta a
“noosfera”, que corresponde à quarta camada adicional da
memória virtual e que tem por base a linguagem IEML. A
noosfera, no esquema geral da arquitetura da memória
virtual, está prevista para funcionar plenamente em 2015, e
representa endereços de conceitos (semiographs), conexão
entre significados e gerenciamento do conhecimento.
52 A memória virtual da inteligência coletiva, projeto
internacional coordenado por Lévy junto à Universidade de
Ottawa no Canadá, pode ser considerada, de certo modo, a
atualização para o ciberespaço do conceito de memória
coletiva desenvolvido por Maurice Halbwachs e do conceito
de memória pura ou virtual de Henri Bergson. Há, entre os
três autores, um interessante diálogo sobre os conceitos de
memória e uma curiosidade em relação ao patrimônio
cultural. Bergson não só inspirou Halbwachs e Lévy, como
foi o filósofo que lançou, como vimos, a noção de patrimônio
cultural.
53 As unidades memoriais digitais permitem também a
possibilidade de criar uma história para os objetos, segundo
o que Frédéric Kaplan8 (2009, p. 13) denominou de les
métamorphoses de la valeur. Para compreender a dinâmica
da evolução tecnológica, o autor afirma que é necessário
construir não apenas a história dos objetos, mas
principalmente sua genealogia, e é essa ação memorial que
atribui valor aos objetos. Baudrillard (2009), em sua obra Le
système des objets escrita em 1968, diz também que a
tecnologia conta a história rigorosa dos objetos e que, de
cada transição de um sistema a outro melhor integrado e de
cada síntese de funções, surge um sentido independente
àquele atribuído aos objetos por quem os criou.
54 A constituição de uma história dos objetos (métamorphoses
de la valeur) em Kaplan, de seu sentido independente
(technèmes) em Baudrillard e de endereços de conceitos
(semiographs) em Lévy leva à possibilidade de dissociação
do objeto de sua memória, o que vai favorecer a atribuição
de valor não ao objeto, mas tão-somente ao seu sentido.
Nesse caso, todos os objetos digitalizados e postos em
interação com o público permitem não só a apreensão de seu
sentido, história ou memória, como também são passíveis de
serem reproduzidos em meios analógicos. Esta seria a
condição híbrida de produção de memória que requer a
interação homem-máquina em ambiente virtual eletrônico,
em que as lembranças depositadas ou comunicadas se
dissolvem nos processos de reformatação e autoria coletiva
e, ao mesmo tempo, podem gerar acúmulo, pois, como
vimos, o meio possibilita ainda a existência de registros
tanto analógicos quanto digitais.
55 Para Virilio (1994, p. 9), o tempo da interatividade memorial
substitui os símbolos da linguagem escrita pelos símbolos
visuais. Esta ideografia pode ser compreendida pelo que o
autor nomeia de lógica da imagem, ou imagética. A
imagética habita um espaço-tempo, acrescido de outra
dimensão, a velocidade, e pode ser caracterizada por três
fases: a era da lógica formal (pintura, gravura e arquitetura),
que se conclui no século xviii; a era da lógica dialética (a
fotografia, a cinematografia), no século xix; e a era da lógica
paradoxal, que se inicia com a videografia, holografia,
infografia (informação digitalizada).
56 Dentre os tipos de tecnologias de transmissão do
conhecimento citados por Virilio, a infografia pode ser
considerada como uma espécie de evolução da escrita. Os
exemplos são muitos e basta citar o prefixo e- (que significa
eletrônico) para encontrarmos e-books, e-musics, e-jogos, e-
etc., serviços e produtos culturais disponíveis na maior rede
de comunicação da atualidade, a world wide web. Aliada aos
demais signos imagéticos, a infografia, ainda que constituída
pela língua natural, ultrapassa a escrita convencional (que,
por sua vez, dominou o espaço da transmissão do
conhecimento em contraponto com a oralidade), e se
constitui na forma do relato da atualidade. Temos, assim,
um quadro de memórias, parafraseando Halbwachs,
composto por matizes de textos, imagens e sons,
conformando uma nova linguagem que Lévy (2003)
denominou de linguagem lúdica, tal é a sua forma de
interação comunicacional.
57 Ainda em Lévy (2003), dos tempos da memória – oralidade
primária (mito), escrita (teoria), e informática-mediática
(simulação) –, este último (informático-mediático) está em
permanente transformação, tal como na oralidade, e
encontra-se quase que totalmente objetivado em dispositivos
técnicos. Os atores da comunicação dividem cada vez mais o
mesmo hipertexto e as mensagens são cada vez menos feitas
para durarem, configurando-se o modelo de conhecimento
por simulação, em contraposição ao modelo interpretativo
do polo da escrita, no qual a memória é objetivada no texto
finito, o que vai exigir a identificação do indivíduo, portanto,
a autoria. Mesmo se considerarmos, como em Foucault
(1986), que o livro é um paralelepípedo que não se encerra
no ponto final, por conta das ilações inesgotáveis
proporcionadas pela rede de citações, estas ainda
resguardam a integridade das autorias.
58 O sentido de hibridação entre o analógico e o digital pode
também ser observado por algumas tentativas mediadoras
ou de fronteiras que surgem no cenário empírico dos campos
da memória e do patrimônio. É no âmbito do processo de
patrimonialização do presente que se estabelece a categoria
de bem intangível ou imaterial, separada do patrimônio
material. Se, por um lado, essa separação demonstra a
importância do contexto de criação do patrimônio material
ao lhe atribuir sentido cultural, por outro lado, a proteção do
fazer cultural deve ser considerada como um ato de
preservação dos produtos e do ambiente no qual este fazer se
produz, e não como outra categoria de patrimônio.
Compreende-se que esta questão surge a partir da
preocupação de não apenas salvaguardar os vestígios do
passado, como também de incluir nesse processo as ações
desencadeadas no tempo presente. Os bens de natureza
imaterial são classificados na ordem dos saberes, dos
fazeres, das comemorações, da tradição oral, quer seja a
música, a dança, a literatura, a língua. São circunstanciais,
vivos e se preservam por tradição. Depreende-se daí que a
falta aparente de um corpo material na condição efêmera de
produção não exclui a materialidade do imaterial, nem a
imaterialidade do material. Preservar uma construção
religiosa sem a liturgia, ou uma língua sem o falante, é
observar uma única face ou natureza do objeto. E, mesmo
com a criação de leis, normas e procedimentos para a
proteção dos bens patrimoniais de natureza intangível ou
imaterial, é necessário compreender o caráter de
virtualidade desses bens e a impossibilidade prática de
separar o bem material daquele imaterial. (Dodebei, 2007)
59 Mário Chagas (2003, p. 95-110) concorda com essa
impropriedade de separar os bens tangíveis dos intangíveis.
Diz o autor que a preservação dos bens tangíveis busca e
assenta a sua justificativa não na materialidade do objeto e,
sim, nos saberes, nas técnicas, nos valores, nas funções e nos
significados que esses bens representam e ocupam na vida
social. O patrimônio cultural é, então, criado a partir de
valores imateriais ou intangíveis, valores que representam
objetos materiais ou saberes, fazeres e significados presentes
na vida social.
60 Aqui fica a ideia de que é possível preservar significados,
independentemente da proteção aos objetos materiais que
são sua referência. Do ponto de vista patrimonial, talvez
tenha sido necessário criar o conceito de bem imaterial para
que pudéssemos pensar em preservação para além do
referente material. As políticas patrimoniais separam os
registros em livros distintos para os bens tangíveis
(materiais) e os intangíveis (imateriais), mas o processo de
representação do bem patrimonial na contemporaneidade é
o mesmo, quer dizer, o registro digital transforma o bem,
“material ou imaterial”, em informação. A invenção ou a
reinvenção do patrimônio imaterial, a partir da mudança da
tecnologia da escrita para a tecnologia da interação, nos
aproxima do tempo memorial mítico; e aproxima também a
narrativa da informação. (Dodebei e Gouveia, 2007, p. 293-
307)
61 Se, no passado, a afirmativa de que ao relato escrito deviam-
se créditos de reprodutibilidade e de prova, neste momento,
tais atributos não lhe são convenientes. A primeira grande
ruptura na estabilidade da escrita é, tal como no relato
mítico, a possibilidade de múltipla autoria. Recortes e
recomposição da informação/memória são processos
incentivados pelo livre acesso aos estoques de conhecimento
do espaço virtual, a despeito de todas as tentativas de
preservação dos direitos autorais. Pesquisas têm sido
desenvolvidas para atribuir, ainda numa visão autoral da
comunicação e numa perspectiva cumulativo-repetitiva dos
objetos memorais, a responsabilidade pela preservação da
memória na world wide web. (Sayão, 1996) Essa
preocupação, marcada pelo espírito de cientificidade na
busca de consistência teórico-metodológica, é desencadeada
exatamente pela inconsistência, inconstância, mutação e
obsolescência das informações lançadas na rede mundial de
comunicação. Essa é a forma paradoxal da memória na
atualidade: ao mesmo tempo plural como processo em
permanente construção passível de múltiplas interferências,
e singular como um único conjunto – forma do hipertexto.
62 Para finalizar, trazemos a discussão sobre este tempo da
interação memorial e do patrimônio como informação, ainda
tão contemporâneo a este relato, um objeto empírico que
pode abordar as possibilidades de memoração on-line.
Trata-se do projeto Memoryshare, coordenado pela BBC de
Londres, que nos mostra a fragmentação dos temas e a
ausência de qualquer esforço reflexivo sobre as memórias ali
registradas e nos coloca diante daquilo que Beatriz Sarlo
(2007, p. 9-22) chamou de “uma cultura de memória
ausente de pensamento sobre a memória”. Por outro lado, a
proposta de criar uma “história dos cidadãos” mostra alguns
dos objetivos do projeto, como podemos ler no trecho
abaixo, retirado do editorial do site:
No Memoryshare você coloca suas memórias on-line para
que se possa construir um retrato da vida nas Ilhas
Britânicas desde 1900. É um projeto único, para construir
um retrato de nossa história a partir dos cidadãos britânicos.
Qualquer pessoa que viva, estude, trabalhe ou se divirta
neste país pode contribuir para registrar como era viver a
vida no século xx e como é no século xxi. (What is
memoryshare, 2009)

63 De alguma forma, esta passagem nos revela um “desejo de


memória” associado a um projeto nacional que se quer
perpetuar para as futuras gerações. Como entender tal
projeto amalgamado em uma plataforma de visualização tão
fragmentária? Como pensar a possibilidade de unidade de
tais registros compostos a partir de computadores pessoais
espalhados pelo mundo? Como pensar a construção de
identidade a partir de registros anônimos? Eis algumas
questões colocadas por este artefato cultural do ciberespaço,
o portal Memoryshare. (Dantas e Dodebei, 2012)
64 O exemplo do portal Memoryshare nos serve para
aproximar a dinâmica do tempo da oralidade mítica ao
tempo da interação, sem abdicar da escrita, uma vez que os
posts ainda são digitados. E como se configurava o
imaginário social da oralidade, muito mais criativo do que
objetivo, o espaço-tempo da interação memorial é habitado-
vivenciado por uma memória dinâmica, interativa e em
tempo real. O que é fundamental, na atualidade, como nos
mostrou Virilio, é a velocidade com que as ações sociais são
mediatizadas pela dimensão da técnica.

Dissolução e acumulação de memórias:


uma proposta para pensar o patrimônio
digital
65 Em um primeiro momento, representado pela transmissão
oral do saber, discutimos mito e herança como discursos
basilares para a construção dos conceitos de memória e de
patrimônio. Nesse quadro de análise sobre a configuração da
narrativa como forma de transmissão de informações, o
conceito de dissolução é apreendido como uma possibilidade
de construção da memória individual. A transmissão da
memória ou a herança memorial, em sua forma narrativa,
proporciona o sentido da experiência do presente, como
discutida por Walter Benjamin, e incorpora as duas leituras
possíveis do tempo estoico: o presente e a insistência, no
tempo, do passado e do futuro. Nessa configuração
memorial não há risco de perda de lembranças e, portanto,
não há necessidade de desenvolver ações de salvaguarda da
memória. Se pensarmos bem, não há muitos objetos criados
para auxiliar a memória e nem para representá-la. A
memória é intrinsecamente pessoal e virtual.
66 O segundo momento, dedicado ao espaço-tempo da razão,
das técnicas da escrita, nos faz pensar nos excessos e
transbordamentos da memória, que têm no documento a
explicação para a existência das memórias artificiais,
auxiliares, memórias exteriores ou “exomemórias”. O
conceito de acumulação de lembranças surge em oposição
ao da dissolução ocorrida no espaço-tempo processual,
típico da oralidade. A era da razão, da prova, da
autoria/autoridade, da garantia de bens patrimoniais, do
acúmulo ou superávit cria na sociedade um sentimento de
apego aos objetos. Podemos dizer que esta é a era das
coleções, da constituição dos acervos, dos lugares de
memória discutidos por Pierre Nora. O fetiche do objeto
como prova de posse do conhecimento leva a sociedade a
acumular bens e a sofrer as consequências de sua perda.
Guardar, proteger, recuperar são ações típicas do espaço-
tempo da razão, proporcionadas pela técnica da escrita. E é
justamente no final do século xx que a sociedade se dá conta
de que a diminuição dos objetos criados, ou o que
denominamos de convergência das mídias proporcionada
pela comunicação eletrônica, pode dar fim aos registros de
memória ou memórias auxiliares da memória individual. O
fim dos objetos já é anunciado nas mídias comunicativas, o
que vem gerando o excessivo desejo de tudo salvar. Neste
contexto, a memória individual se complementa com os
registros memoriais.
67 O terceiro momento é caracterizado pela interatividade
memorial, em que informação e eletrônica criam interfaces
que mediam os processos de comunicação de lembranças. O
conceito de interação é construído para a análise desse
fenômeno, em que o ambiente é de natureza virtual e que
podemos nomear de ciberespaço, por exemplo, e os objetos
são digitais, isto é, são números com aparência de coisas. Já
em meados do século xx, quando a sociedade passa a
privilegiar a informação em detrimento do objeto no âmbito
da pesquisa científica, podíamos já vislumbrar um horizonte
da supremacia do reino da informação sobre aquele dos
objetos, coisas, artefatos. Paulatinamente, as coleções vão
sendo digitalizadas, passando assim a habitar o ambiente
virtual. A corrida para a digitalização do passado representa
aquilo que dizíamos sobre a suposta perda da memória do
mundo. De qual memória estaríamos falando? Naturalmente
não da memória individual, virtual, mas daquela relativa aos
registros de memória. A transmissão da
informação/memória continua a existir, como no tempo da
oralidade mítica, acrescida das novas lembranças
depositadas no ciberespaço, para as quais não sabemos
ainda se haverá, no futuro, condição de reprodutibilidade
analógica. O sentido de hibridação na produção de
lembranças também é o de justamente convivermos com
meios de memória oral, documental/digital.
68 Como comentários finais, vale intensificar o diálogo com
alguns conceitos apresentados no texto. Sobre o
digital/virtual, ressaltamos que digitalizar compreende o
processo de representar um objeto concreto, ou analógico,
em bits, que poderão ser interpretados por programas de
computador. Por exemplo, a partir dos bits, um programa
apropriado gerará um conjunto de pixels, que será
compreendido pelo olho humano como uma imagem. A
diferença entre digital e virtual está diretamente vinculada
ao processo, no caso do atributo digital, e no meio ou
ambiente, no caso do virtual. Podem existir, desta forma,
objetos digitalizados que habitam tanto o mundo concreto
quanto o mundo virtual, mas o mundo virtual é habitado
apenas por objetos digitais.
69 Quanto à patrimonialização da memória, a seleção do que
patrimonializar deve ser o processo principal de nossa
atenção, do contrário vamos igualar o mapa ao território; ou,
como menciona Choay, o patrimônio pode ser decifrado
como uma alegoria dos humanos na aurora do século xxi.
Não sabemos ainda se a memória virtual eletrônica nos dará
garantias de acumulação e de integridade de dados como é a
característica principal de uma coleção documentária ou
patrimonial. A representação da memória por redes de
conceitos, em sistema aberto de comunicação, sugere que a
constante reformatação da informação, a exemplo do jogo da
memória e do esquecimento, parece ser o atributo essencial
dessa memória virtual.
70 Quanto aos valores memoriais do patrimônio, entendemos
que, se a sociedade deseja preservar bens patrimoniais para
as gerações futuras, é necessário considerar que os objetos
do cotidiano são, em ritmo exponencial, produzidos em meio
digital. No entanto, o valor patrimonial atribuído aos objetos
digitalizados ou criados digitalmente deverá ser considerado
sempre temporário e circunstancial, assim como o valor
documental. Documento e patrimônio são valores e,
portanto, devem ser compreendidos como construções
virtuais. Essa parece ser a única maneira, no momento, de
garantir a existência desses valores entre as fronteiras do
analógico/digital. A corrida patrimonial parece desacelerar
no século xxi, não apenas por desapego da sociedade aos
bens materiais, o que já é praticado por diversas culturas,
mas por uma real impossibilidade tecnológica de tudo
guardar. A memória, como aquela arte pensada na sociedade
oral, aliada à estrutura da memória virtual defendida por
Henri Bergson, parece ser retomada com a ajuda de
programas informáticos que organizam os lugares e as
imagens no ciberespaço.
71 Finalmente, podemos afirmar que vivemos ao mesmo tempo
em, no mínimo, dois mundos: um analógico e outro digital.
Em ambos, as memórias e seus valores documentais e
patrimoniais são construídos, transitam, deixam rastros e se
dissolvem. A ideia de patrimônio institucional é recente e,
por seu caráter representacional, gera conflitos com a
natureza da memória, que é absolutamente virtual. Nossa
discussão sobre a memória vir a ser patrimônio e o
patrimônio necessitar do processo memorial para se
sustentar no tempo nos levou a analisar teórica e
empiricamente o campo de estudos denominado memória
social, do qual os estudos documentais e patrimoniais fazem
parte. Além disso, tentamos visualizar como se comportam
as produções de subjetividade e objetividade em um espaço-
tempo mantido por redes eletrônicas de comunicação. A
questão da memória ainda não está em jogo, por ser de
natureza virtual. Ao contrário da noção de patrimônio que,
por ser de natureza representacional, está atrelada ao
documento e à sua reprodutibilidade.
Melhor do que a criatura,

fez o criador a criação.

A criatura é limitada.

O tempo, o espaço,

normas e costumes.

Erros e acertos.

A criação é ilimitada.

Excede o tempo e o meio.


Projeta-se no Cosmos

Cora Coralina

Notes
1. Curva de Koch: se considerarmos cada passo, notamos que, para
passar de uma linha para a seguinte, substituímos três segmentos por
quatro de igual comprimento, ou seja, o comprimento total é
multiplicado por 4/3. O limite da sucessão geométrica de razão 4/3 é o
infinito, o que significa que a figura final (ou para a qual tende esta
sucessão) terá um comprimento infinito (designado por Mandelbrot
como “infinito interno”), disponível em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Curva_de_Koch, consultado em 8 de
novembro de 2014.
2. A expressão usada por muitos autores é reconstruir e reapresentar. Eu
prefiro retirar a partícula “re”, que denota a ideia de repetição, uma vez
que a memória possibilita sempre uma (nova) criação e não uma
repetição de algo já dado.
3. Inspirados na obra de Jack Goody, antropólogo social especializado no
estudo da estrutura e de mudanças sociais, Olson e Cole, além do
prefácio “Tecnology and social change” dedicado a Goody, reúnem, em
Technology, literacy, and the evolution of society, diversas perspectivas
de vinte renomados historiadores, antropólogos, psicólogos e educadores
sobre a influência das tecnologias na estabilidade e na mudança em
sociedades tradicionais e modernas. Neste texto, de caráter
interdisciplinar, acadêmicos examinam como línguas locais e tradições
culturais, modos de produção e comunicação, padrões de conhecimento
e autoridade locais afetam o modo como as pessoas e as culturas
resistem ou se acomodam a essas mudanças. Cf. Olson David R., Cole
Michael (org.), 2006.
4. Halbwachs, ao discorrer sobre a oposição entre memória coletiva e
história, usa menos o argumento da cientificidade e mais o conceito de
continuidade espaço-temporal para estabelecer uma diferença. De fato, o
interesse da memória social sobre os acontecimentos do passado reside
exatamente na percepção de que esses acontecimentos continuam a
existir no presente, ou seja, pertencem a um continuum, alterado pelos
esquecimentos ocorridos no percurso e acrescido de outras lembranças.
Cf. Halbwachs Maurice, 2004, p. 80.
5. Cf. em Vernant (2000, p. 19) o nascimento de Chronus, filho de Gaia e
Urano, que instaura o tempo na Terra.
6. Cf. o website da Unesco http://www.unesco.org.br/, consultado em 8
de novembro de 2011.
7. Cf. o website do Iphan:
http://portal.iphan.gov.br/portal/montarPaginaInicial.do, consultado
em 8 de novembro de 2011.
8. Frédéric Kaplan é engenheiro, especialista em inteligência artificial e
novas interfaces e designer de objetos eletrônicos. Sua obra A
metamorfose dos objetos é quase uma autobiografia, pois narra sua
experiência pessoal, familiar e empresarial sobre a criação de
objetos/interfaces.

Auteur

Vera Dodebei
Professora associada IV do
Programa de Pós-Graduação em
Memória Social

Universidade Federal do Estado


do Rio de Janeiro – Unirio.
Doutora em Comunicação e
Cultura, Universidade Federal do
Rio de Janeiro – UFRJ.

dodebei@gmail.com

CV  Lattes:
http://lattes.cnpq.br/1112112146102164
Du même auteur

Introdução in Memória e novos


patrimônios, OpenEdition
Press, 2015
Introduction in Mémoire et
nouveaux patrimoines,
OpenEdition Press, 2015
Mise en mémoire et
patrimonialisation en trois
temps  : mythe, raison et
interaction numérique in
Mémoire et nouveaux
patrimoines, OpenEdition
Press, 2015
Tous les textes
© OpenEdition Press, 2015

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Modification 4.0 International - CC BY-NC-ND 4.0

Référence électronique du chapitre


DODEBEI, Vera. Memoração e patrimonialização em três tempos:
mito, razão e interação digital In  : Memória e novos patrimônios [en
ligne]. Marseille  : OpenEdition Press, 2015 (généré le 20 avril 2022).
Disponible sur Internet  : <http://books.openedition.org/oep/865>.
ISBN : 9782821853539. DOI : https://doi.org/10.4000/books.oep.865.

Référence électronique du livre


TARDY, Cécile (dir.) ; DODEBEI, Vera (dir.). Memória e novos
patrimônios. Nouvelle édition [en ligne]. Marseille : OpenEdition Press,
2015 (généré le 20 avril 2022). Disponible sur Internet  :
<http://books.openedition.org/oep/417>. ISBN : 9782821853539. DOI :
https://doi.org/10.4000/books.oep.417.
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