Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Press
Memória e novos patrimônios | Cécile Tardy, Vera Dodebei
Memoração e
patrimonialização
em três tempos:
mito, razão e
interação digital
Vera Dodebei
Résumé
Este capítulo discute os modos de transmissão do saber atrelados às
condições tecnológicas da sociedade, em que a produção de memórias se
daria a partir de três processos memoriais ou de memoração. O primeiro
encontra-se diretamente ligado à ideia de dissolução de memórias e pode
ser explicitado pela transmissão oral do conhecimento que não gera
registros memoriais. Nesse modo, as memórias são de natureza
processual, não cumulativa, e se dissolvem quando o grupo social as
incorpora e as transforma, cedendo espaço para a criação de novas
memórias. Como consequência, não há acúmulo, repetição, origem ou
autoria memorial, pois a memória é sempre um único produto, como o
exemplo da memória virtual de Henri Bergson.
Texte intégral
Os tempos da memória
1 Memória e patrimônio são dois temas que vêm ganhando
presença cada vez mais intensa nos meios de comunicação
contemporâneos. Dos livros e artigos científicos veiculados
em mídias tradicionais aos blogues construídos no espaço
ubíquo da web, estudos sobre memórias on-line e
patrimônio digital ganham destaque. No entanto, pouco tem
sido investigado empiricamente sobre criação, manutenção e
dissolução de registros de memórias e de bens patrimoniais
na web. Mais escassas ainda são as elaborações teóricas que
tratem especificamente das relações entre as práticas
memorialistas e patrimoniais e as mídias eletrônicas.
2 De acordo com a proposta geral desta obra, o objetivo deste
capítulo é colocar em diálogo conceitos já consolidados nos
campos da memória e do patrimônio com aqueles inerentes
aos campos da computação, informação e comunicação. Dito
de outro modo, a intenção é a de verificar como conceitos
criados em ambiente analógico se comportam, se adaptam e
se transformam quando transpostos para o ambiente virtual.
É importante ressaltar que o ambiente virtual opera apenas
com números; portanto, quando os registros memoriais e
patrimoniais deixam o mundo analógico das sensibilidades
corporais transformam-se em representações numéricas que
potencialmente possuem significado.
3 Memória e patrimônio constituídos no ambiente virtual são
sempre mediados por objetos informacionais. Esses objetos
ou códigos numéricos se metamorfoseiam em imagens que
são seus substitutos. Todo este processo de “vestimenta” dos
códigos é feito por programas computacionais, construídos
em sua maioria para permitir que as pessoas se
comuniquem. A vestimenta dos códigos numéricos funciona
como nossa pele que nos confere identidade. Quer seja por
símbolos visuais criados para a escrita textual ou figurativa,
quer seja por símbolos sonoros, nos comunicamos
eletronicamente por números. Nossa epígrafe é uma equação
fractal que nos serve como exemplo da estrutura matemática
da informação1.
4 Durante quase vinte séculos, a cultura ocidental considerou
as dimensões tempo e espaço como atributos independentes
e, portanto, nos habituamos a pensar que os espaços são
fixos e que o tempo é linear, caracterizando o passado, o
presente e o futuro (Dodebei, 2000). Com a ciência
contemporânea, fomos obrigados a repensar esse estatuto do
tempo e do espaço e instados a buscar outras explicações que
dessem conta dessa nova “desordem” característica do
ambiente caótico no qual estamos imersos ao considerar o
mundo informacional em que vivemos. Identificamos que o
conceito de “acontecimento” desenvolvido pelos estoicos e
exemplificado por Deleuze (1974, p. 6) pode nos ser útil para
compreender a circularidade do tempo, como a seguir: “Só o
presente existe no tempo e reúne, absorve o passado e o
futuro, mas só o passado e o futuro insistem no tempo e
dividem ao infinito cada presente. Não três dimensões
sucessivas, mas duas leituras simultâneas do tempo”.
5 Essa concepção sobre o tempo e suas consequências para o
estatuto da memória eclode com o advento das redes
eletrônicas e do fenômeno da globalização, que vêm
atualizar o discurso sobre a circularidade do tempo e a
virtualidade do espaço, ao destacar o presente como única
possibilidade temporal, da mesma forma que pensado pelos
estoicos. O espaço virtual e o tempo real passam a fazer
parte da vida cotidiana das pessoas, evidenciando a função
da técnica midiática em nos manter no tempo presente e no
espaço ubíquo.
6 No entanto, a sensação de que estamos presos ao tempo
presente pode também ser ilusória, quer dizer, imaginamos
viver apenas o presente, mas, de fato, ele está sempre nos
escapando. As relações sociais representadas por redes que
se conectam a uma velocidade só possível pelo avanço da
tecnologia da comunicação e informação vêm nos revelando
que os tempos clássicos que configuravam a memória
(passado-presente-futuro) estão sendo percebidos de
maneira peculiar na atualidade. Ao contrário da
presentificação do tempo, podemos ter a sensação – como já
nos indicava Walter Benjamin (1985) sobre a perda da
experiência com o advento da informação – de que não
interessa vivenciar o presente em sua intensidade. Pois, hoje,
mais vale registrar, “clicar” o momento presente para
comunicá-lo e socializá-lo nas redes, resguardando assim o
que já passou, do que imergir na ação da qual se está
participando e retê-la na memória individual. Todos se
registram por suas câmeras fotográficas em tempo integral e
compartilham essas imagens com seus “amigos” e
“seguidores”. Quer parecer-nos, então, que a preocupação de
uma grande parcela das sociedades contemporâneas se
encontre mais fortemente ancorada no binômio passado-
futuro ao evitar a experiência do presente.
7 Não é por outra razão que a fotografia, por exemplo, é um
dos principais artefatos que têm um elevado poder de
evocação de lembranças. A técnica ou reprodutibilidade
técnica (analógica e digital) coloca, em frações de segundos,
a mesma imagem na caixa digital de centenas de milhares de
pessoas que estão conectadas em rede de comunicação
eletrônica. A tecnologia nos permite, assim, perceber o
tempo e o espaço de maneiras singulares. Pensamos que o
que acontece com a memória é algo semelhante à percepção
que temos do tempo. Se guardamos uma experiência vivida
em nossa memória pessoal, esta experiência é sempre da
ordem do presente, porque o estado ou a qualidade da
memória é o movimento, a constante atualização de
informações/lembranças. A virtualidade da memória,
conforme nos indica Bergson (1999), impõe-nos sempre o
presente e nos impossibilita identificar o passado. Quando
registros técnicos – representações de memórias
interiores/naturais – são criados, suas existências são
possibilitadas pela tecnologia disponível em determinado
tempo e espaço. Nesse sentido, as memórias externas,
artificiais, auxiliares ou exomemórias formadas por esses
registros podem ser consideradas materiais do passado.
8 Os registros técnicos, restos, rastros, traços ou vestígios
memoriais (designações que variam conforme o ponto de
vista teórico empregado) constituem, em sentido amplo, os
arquivos. Neste momento, importa compreender a influência
da técnica midiática na constituição das exomemórias, além
de compreender como essa influência transforma a própria
construção da memória. Deste ponto em diante, podemos
distinguir memória, sempre virtual, de registros memoriais,
que habitam as memórias externas/artificiais.
9 Os objetos, considerados como informações individuais,
podem ser representados por fotografias pessoais, filmes,
peças arqueológicas, museológicas, bibliográficas,
arquivísticas, ou mesmo peças imaginárias. As narrativas,
compreendidas sob uma perspectiva plural ou coletiva,
seriam representadas por exposições, mostras, textos
literários, entrevistas. Objetos e narrativas não são
mutuamente excludentes, o que poderá gerar o conflito já
amplamente discutido no campo da memória sobre sua
condição de subjetividade e coletividade. Quando o conceito
de lembrança é transposto do nível individual para o
coletivo, a operação feita é de natureza metafórica: memória
nacional, memória religiosa, memória literária. A memória
pode ser estudada então do ponto de vista individual, o que é
objeto principal das neurociências, e pode ser compreendida
do ponto de vista de uma construção social em que grupos
sociais criam um passado compartilhado com a ajuda do
contexto social, das mídias.
10 Os diferentes modos de “lembrar” correspondem a uma
grande disputa de opiniões no campo dos estudos sobre a
memória. Maurice Halbwachs (2004), ao opor história e
memória, leva-nos a compreender que a primeira diz
respeito apenas ao passado (morto) e a segunda reflete um
presente (vivo). Essa polaridade faz com que Pierre Nora
apresente “os lugares de memória” como uma possibilidade
(inter) mediada entre a história e a memória. Podemos
considerar que existem diferentes modos de lembrar a partir
das diversas culturas. Esse enfoque parte do pressuposto de
que o passado não está dado, mas, ao contrário, deve ser
continuamente construído e apresentado2.
11 Com certeza, o legado de Maurice Halbwachs é indiscutível,
inicialmente por ter cunhado a expressão “memória
coletiva”, mas também por ter iniciado as discussões dos
“quadros sociais da memória” (1925) em que os conceitos de
memória individual e memória coletiva se apresentam em
disputa. Com seus estudos sobre as memórias familiares,
Halbwachs (2008) alimenta as posteriores discussões sobre
a história oral; com sua pesquisa sobre a memória de
comunidades religiosas, ele acentua os aspectos topográficos
da memória, antecipando, assim, a noção de “lugares de
memória”. (Nora, 1993)
12 Paul Ricoeur afirma que o objeto da memória é, certamente,
a lembrança (mnme = que); que a recordação (anamnesis =
como) é o processo de busca dessa lembrança; e que o
importante não é quem se lembra, mas o que é lembrado. Ao
suavizar o quem das preocupações com o estatuto da
memória, Ricoeur nos livra da tensão permanente entre
memória individual e memória coletiva. Vale ressaltar que
não é intenção do autor eliminar uma ou outra memória,
vinculada ou ao indivíduo, ou ao coletivo. Está claro, na
introdução de sua obra, que o caminho a percorrer vai do “o
quê?” ao “quem?” passando pelo “como?”, isto é, da
lembrança à memória refletida, passando pela
reminiscência. (Ricoeur, 2007, p. 24)
13 A memória pode ser também compreendida sob uma
dimensão cultural, o que a aproxima do contexto digital
contemporâneo, ao abarcar fronteiras de outras disciplinas
que têm o passado como material de estudo, como a história,
a arqueologia, as ciências da informação. Astrid Erll
apresenta uma genealogia e as ramificações dos estudos
sobre memória cultural que, na verdade, compõem a obra
organizada por ela e por Ansgar Nünning. Essa genealogia
representa o domínio dos estudos sobre a memória que,
embora remontem a Platão e Aristóteles, têm seu
desenvolvimento pleno no século xix, alcançando o boom
(Huyssen, 2000), ou a boulemie mémorielle (Nora, 1997)
nas últimas décadas do século xx. O conceito de Pierre Nora
(1993, p. 1-78) dos “lugares de memória”, por exemplo,
muito ajudou a consolidar a metáfora de uma memória
coletiva, assim como o conceito de memória cultural
(kulturelles Gedächtnis) defendido por Jan e Aleida Assman
(2008), que enfatizam a contribuição de Halbwachs sobre
seus estudos de comunidades cujas memórias pudessem
alcançar centenas de anos, o que representa uma forte
ligação com a cultura.
14 Sob a perspectiva da mediação memorial e patrimonial de
objetos/narrativas existentes em ambiente virtual, não
podemos deixar de considerar a ideia de “memória mediada”
proposta por Jose van Dijk (2007). O conceito procura
entrelaçar o social e o individual e enfrentar as modalidades
contemporâneas de estabelecimento de vínculos entre o
passado e o presente. O pressuposto de Dijk é que os
artefatos individuais estão inseridos em modos
(compartilhados socialmente) de registrar e rememorar o
passado. Tais modos estão, por sua vez, estreitamente
relacionados às mídias utilizadas. Fotografias ou imagens
em movimento do núcleo familiar evidenciam uma prática
compartilhada de viver o presente. Essa autora reconhece a
importância de Halbwachs para a fundamentação de um
campo de saber sobre a memória, porém propõe um modelo
teórico que transcende o pai fundador da sociologia da
memória. As obras de Henri Bergson e Gilles Deleuze (1999,
1988 e 1999) constituem-se em pontos importantes de sua
abordagem, que procura estabelecer relações com o campo
da psicologia cognitiva. A partir deste diálogo teórico emerge
um modelo que trata também da possibilidade criativa nos
registros da memória, mas que se propõe a uma investigação
de caráter cultural, ampliando as premissas de Bergson e
Deleuze. (Dijk, 2007, p. 127-129)
15 Para incluir todos os adjetivos impostos à memória,
entendemos que seu campo de estudos pode ser nomeado
“memória social”. Mas entendemos também que a memória
(quer seja coletiva, cultural ou social, mediada ou virtual) é
uma abstração do pensamento e uma metáfora da suposição
que fazemos de nossa memória individual. No máximo,
poderíamos afirmar que essas memórias são uma extensão
imaginada de nossa memória individual. (Dodebei, 2005, p.
27-39)
16 Posta essa questão, levantamos a seguinte hipótese: se os
modos de transmissão do saber estão atrelados às condições
tecnológicas da sociedade, a produção de memórias se daria
a partir de três processos memoriais ou de memoração. O
primeiro está diretamente ligado à ideia de dissolução de
memórias, que pode ser explicitado pela transmissão oral do
conhecimento que não gera registros memoriais. Neste
modo, as memórias são de natureza processual, não
cumulativa e se dissolvem quando o grupo social as
incorpora e as transforma, cedendo espaço para a criação de
novas memórias. Assim, não há acúmulo, repetição, origem
ou autoria memorial, pois a memória é sempre um único
produto, como o exemplo da memória virtual de Henri
Bergson (1999). O segundo modo de produção de memórias
é da ordem da soma, da adição, o que significa que a ideia de
acumulação faz parte de sua memoração. E, como é de todo
impossível possuir a totalidade de lembranças em nossa
memória individual, a sociedade cria, com a ajuda da técnica
da escrita e dos suportes analógicos, as memórias artificiais
que são os objetos auxiliares da memória individual. Deste
conceito de acumulação nascem as angústias da perda, da
falta, do erro e as consequentes ações de proteção
“patrimonial” de lembranças. O terceiro modo de produção
de memórias pauta-se por uma hibridação dos anteriores,
quer dizer, um misto de dissolução e acumulação, que
arriscaríamos denominar provisoriamente de interação.
Seguimos, neste caso, a ideia de metamorfose da
interatividade de Kaplan (2009) em que os objetos
memoriais são interfaces privilegiadas de um universo
digital. Este modo de produção de memória requer a
interação homem-máquina e incorpora às memórias
artificiais a chamada memória eletrônica. No ambiente on-
line (virtual eletrônico), as lembranças depositadas ou
comunicadas se, por um lado, se dissolvem nos processos de
reformatação e autoria coletiva, por outro lado, podem ainda
gerar acúmulo, pois as tecnologias atuais possibilitam a
reprodução da informação em várias mídias, garantindo a
existência de registros tanto analógicos quanto digitais.
17 Para demonstrar nossa hipótese, traçaremos uma síntese do
pensamento de autores que, direta ou indiretamente,
utilizam essa argumentação, ao analisar a criação e a
circulação de registros memoriais. Os meios de memória são
considerados discursos de natureza espaço-temporal já
clássicos na literatura historiográfica e das ciências sociais,
como indicado nas obras de Leroi-Gourhan (arqueólogo) e
Jack Goody (antropólogo social), citados por Jacques Le
Goff (historiador medievalista) em História e memória (Le
Goff, 2003), especialmente aqueles relacionados com a
oralidade e a escrita. Mas são ainda pouco discutidos no que
se refere ao estágio contemporâneo dos registros memoriais
em ambiente on-line, exceção feita para as análises de Pierre
Lévy (1993, 1998, 2003, 2005, 2007) e para alguns teóricos
(Lemos, 2007; Manovich, 2001, 2003, 2008; Kaplan, 2009)
que pesquisam os espaços híbridos que combinam
ambientes analógico e digital, ou as chamadas interfaces.
18 Segundo Le Goff, da Pré-História à Antiguidade, surge a
ideia de que a memória, no âmbito da cultura oral, é
eminentemente coletiva. A sociedade memorial é
representada por homens-memória que têm por função
transmitir os conhecimentos práticos, técnicos, de saber
profissional. A memória é narrativa, criativa e pauta-se pelos
interesses de uma construção generativa dos mitos de
origem e dos saberes técnico e mágico-religioso. Com o
desenvolvimento da técnica, a memória medieval encontra-
se em equilíbrio entre o oral e o escrito. A ideia de
reprodução mnemônica e de memória repetitiva se faz
presente com a criação de comemorações, monumentos e
documentos. O modo de pensar é alterado por esta
tecnologia midiática – a escrita – em que nomear é
conhecer, gerando nas sociedades novas aptidões
intelectuais. Intensifica-se, assim, a consciência do
esquecimento e, com ela, a instituição de meios de memória
representados por um aumento considerável na criação de
arquivos, bibliotecas e museus. Nesta fase, a memória está
em expansão; o sentido de acumulação é preponderante ao
da dissolução. A era da escrita faz surgir as memórias
artificiais, auxiliares, já que é impossível ter homens-
memória que absorvam individualmente toda a produção do
conhecimento registrado. A memória na idade
contemporânea é pouco discutida por Le Goff, que apenas
indica ser ela a mais complexa, por acomodar, de certo
modo, as características das anteriores com a estrutura dos
bancos de dados e da memória eletrônica (dos
computadores).
19 Para Jack Goody, as principais mudanças na estrutura social
surgem a partir de três fatores principais. O primeiro foi o
desenvolvimento de formas intensivas de agricultura que
permitiram a acumulação de superávit – o superávit
explicava muitos aspectos da prática cultural, do casamento
aos funerais, assim como a grande divisão entre as
sociedades africanas e europeias. Segundo, as mudanças
sociais podem ser explicadas em termos da urbanização e do
crescimento das instituições burocráticas que modificaram
ou eliminaram formas tradicionais de organização social,
como a família ou a tribo, passando-se a identificar
civilização com “cultura da cidade”. E, em terceiro lugar,
Goody atribuiu grande peso às tecnologias da comunicação
como sendo instrumentos de mudança psicológica e social.
Ele associou a era da escrita com a tarefa de gerenciamento
do superávit. Em um importante artigo com Ian Watt
(Goody e Watt, 1963), o antropólogo social defende a tese de
que o desenvolvimento da ciência e da filosofia na Grécia
clássica foi fortemente influenciado pela invenção de um
sistema eficiente de escrita, ou seja, do alfabeto3.
20 Pode-se, assim, inferir que o sentido de acumulação de
qualquer tipo de bem social inicia-se com o seu excesso, em
termos econômicos, com o superávit. A representação desses
bens propiciada pelo sistema de escrita faz com que
tenhamos a sensação de poder acumular tudo que
produzimos, deixando-nos com a impressão de que aquilo
que nos escapa é esquecido ou perdido, o que aponta para
uma falha ou, no mínimo, uma situação indesejável. Somos
educados para não esquecer, o que é contrário ao
funcionamento de nossa memória individual, por exemplo.
O escritor Jorge Luís Borges (2000) e Viktor Mayer-
Schönberger (2007) nos dão bons exemplos dessa falácia de
tudo lembrar.
21 Borges, no conto Funes, o memorioso, nos indica que
lembrar todos os segundos de uma existência é impedir a
própria condição de existir, como observado por Irineu
Funes, “[...] o presente era quase intolerável de tão rico e tão
nítido [...] minha memória, senhor, é como o despejadouro
de lixos”. Mayer-Schönberger, ao discutir sobre a arte de
esquecer na era da computação ubíqua em seu preprint do
repositório da Harvard University, diz:
Como seres humanos, temos a capacidade de lembrar e de
esquecer. Durante milênios, esquecer foi fácil e lembrar foi
difícil. Em princípio, esqueceríamos. A tecnologia digital
inverteu essa condição. Hoje, com espaço de
armazenamento economicamente acessível, recuperação
fácil e acesso global, o ato de lembrar se tornou o padrão,
quer seja para o indivíduo, quer seja para a sociedade.
Armazenamos nossas fotografias digitais sejam elas boas ou
ruins – porque até escolher quais eliminar demanda tempo
demais, e mantemos versões diferentes dos documentos em
que trabalhamos, para o caso de necessitarmos de uma
delas. A Google salva cada busca realizada e milhares de
câmeras de vigilância registram nossos movimentos.
(Tradução livre da autora)
A criatura é limitada.
O tempo, o espaço,
normas e costumes.
Erros e acertos.
A criação é ilimitada.
Cora Coralina
Notes
1. Curva de Koch: se considerarmos cada passo, notamos que, para
passar de uma linha para a seguinte, substituímos três segmentos por
quatro de igual comprimento, ou seja, o comprimento total é
multiplicado por 4/3. O limite da sucessão geométrica de razão 4/3 é o
infinito, o que significa que a figura final (ou para a qual tende esta
sucessão) terá um comprimento infinito (designado por Mandelbrot
como “infinito interno”), disponível em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Curva_de_Koch, consultado em 8 de
novembro de 2014.
2. A expressão usada por muitos autores é reconstruir e reapresentar. Eu
prefiro retirar a partícula “re”, que denota a ideia de repetição, uma vez
que a memória possibilita sempre uma (nova) criação e não uma
repetição de algo já dado.
3. Inspirados na obra de Jack Goody, antropólogo social especializado no
estudo da estrutura e de mudanças sociais, Olson e Cole, além do
prefácio “Tecnology and social change” dedicado a Goody, reúnem, em
Technology, literacy, and the evolution of society, diversas perspectivas
de vinte renomados historiadores, antropólogos, psicólogos e educadores
sobre a influência das tecnologias na estabilidade e na mudança em
sociedades tradicionais e modernas. Neste texto, de caráter
interdisciplinar, acadêmicos examinam como línguas locais e tradições
culturais, modos de produção e comunicação, padrões de conhecimento
e autoridade locais afetam o modo como as pessoas e as culturas
resistem ou se acomodam a essas mudanças. Cf. Olson David R., Cole
Michael (org.), 2006.
4. Halbwachs, ao discorrer sobre a oposição entre memória coletiva e
história, usa menos o argumento da cientificidade e mais o conceito de
continuidade espaço-temporal para estabelecer uma diferença. De fato, o
interesse da memória social sobre os acontecimentos do passado reside
exatamente na percepção de que esses acontecimentos continuam a
existir no presente, ou seja, pertencem a um continuum, alterado pelos
esquecimentos ocorridos no percurso e acrescido de outras lembranças.
Cf. Halbwachs Maurice, 2004, p. 80.
5. Cf. em Vernant (2000, p. 19) o nascimento de Chronus, filho de Gaia e
Urano, que instaura o tempo na Terra.
6. Cf. o website da Unesco http://www.unesco.org.br/, consultado em 8
de novembro de 2011.
7. Cf. o website do Iphan:
http://portal.iphan.gov.br/portal/montarPaginaInicial.do, consultado
em 8 de novembro de 2011.
8. Frédéric Kaplan é engenheiro, especialista em inteligência artificial e
novas interfaces e designer de objetos eletrônicos. Sua obra A
metamorfose dos objetos é quase uma autobiografia, pois narra sua
experiência pessoal, familiar e empresarial sobre a criação de
objetos/interfaces.
Auteur
Vera Dodebei
Professora associada IV do
Programa de Pós-Graduação em
Memória Social
dodebei@gmail.com
CV Lattes:
http://lattes.cnpq.br/1112112146102164
Du même auteur