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CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

COORDENADORIA ESPECIAL DE MUSEOLOGIA


HST5838-05332 – Tópico Especial – Introdução à Arqueologia
Museologia UFSC (2022.1)
Estudante: Augusto Alencar
Trabalho 1 – Ensaio

Título: Pensar Arqueologia Hoje: Cultura material em xeque - intersecções


e pensamento científico.
São diversos os exemplos da importância do acompanhamento de registros
culturais no tempo passado e no tempo presente ao século XXI. Acompanhar a produção
da vida material humana urbana não é uma tarefa fácil, visto que as sociedades
organizadas em cidades são cada vez mais complexas, sempre conflituosas,
hierarquizadas e desiguais - cada vez mais entranhadas no modelo de vida capitalista de
intensa produção material e de exploração de recursos. Hoje em 2022, vemos que a vida
material não permanece mais apenas em um meio puramente físico como se conhecia até
meados dos anos 70 e 80 (e mesmo nos anos 2000) - de lá para cá, com o avanço
tecnológico no campo dos micro processadores, e na transmissão de dados via satélite,
viu-se nascer um mundo virtual de interação e comunicação jamais visto antes - Jean-
François Lyotard a partir de seu trabalho “Condição Pós-moderna” (1979) adjetivou esse
paradigma humano de sociedade computadorizada (MANOVICH,1999). Com a
pandemia mundial COVID-19, observamos o aprofundamento de uma vida digital, por
conta da necessidade sanitária de isolamento social, que intensificou uma produção de
vida cultural (trabalho, pesquisa, arte, entretenimento, relacionamento, interação, ...) em
ambientes completamente virtuais ou digitais.
Em que medida o mundo virtual também é físico? Até que ponto o que se produz
ou se dissemina no mundo virtual também pode ser considerado cultura material? A
terminologia produzida até agora dá conta da produção do tempo presente? A internet de
amplo acesso já tem quase três décadas, contando desde as primeiras inaugurações de
tráfego e produção humana não militar e não acadêmica - através e dentro de extensas
arquiteturas de dados. Uma rede que permite a existência de inúmeras situações de
produtos nascidos, consumidos, organizados, armazenados e esquecidos em dimensões
de bases de dados – seja em ambientes online, seja em ambientes offline – públicos ou
particulares.
Fazendo uma busca breve, me deparei com uma situação onde a maioria do
conhecimento produzido hoje, que relaciona a perspectiva das tecnologias digitais
interseccionadas à ciência Arqueológica, acontece no campo da Cyberarqueologia – que
basicamente consiste no desenvolvimento de práticas de investigação arqueológica
amparadas no uso massivo de tecnologia de ponta no mapeamento/coleta e
registro/tratamento de dados – que envolve o uso de drones, aviões, tecnologias de
termografia, imagens de satélite, radiografias, modelagem 3D, bases de dados já
organizadas e algorítmos, em vias de aprimoramento da experiência sítio arqueológico, e
ampliação do acesso de diferentes públicos à esta realidade científica1 . Em meio a esta
busca, me deparei com uma outra perspectiva para além desta área, através do texto de
Alex da Silva Martire “Arqueologia do Digital – O Antropoceno e o Novaceno de
Homens e Androides no Jogo eletrônico Detroit: Become Human” (Vestígios, vol. 15, n.
01; 2021) – ali foi possível ter contato com uma perspectiva digital outra, dentro do
contexto contemporâneo de investigação dessas possibilidades Arqueológicas olhando
a/na interação e a/na produção de vida em ambientes digitais. Martire diz:
“(...) meu trabalho aponta não uma Arqueologia Digital, na qual apenas
estudaria o mundo sintético do jogo eletrônico, mas, sim, uma Arqueologia do
Digital: essa preposição faz toda a diferença, uma vez que permite o estudo
arqueológico da mídia física e digital, bem como seus impactos nas paisagens
extra e intra-jogo eletrônico.” (MARTIRE, 2021)

A partir desta maneira como Martire apresenta, digo, a partir desta diferença entre
Arqueologia Digital e Arqueologia do Digital, confiro que ao escolher escrever sobre esse
tema, a minha perspectiva se aproxima mais do que o autor aponta como Arqueologia
Digital, busco trazer uma reflexão sobre Dados como Forma Simbólica
(MANOVICH,1999) – portanto, como meio para o acontecimento de diversos produtos
culturais – e isso requer uma certa abstração do conceito comum que nos vem à cabeça
do que são esses “dados”. Parto do princípio que a intensa produção de peças de imagem,
de vídeo e de áudio para comunicação, entretenimento, jornalismo, debate, conteúdos de
interação, publicações de resultados de pesquisa, resultados e processos de trabalhos, e
mais os arquivos online-offline/públicos-privados das atuais big techs (Youtube,
Facebook, Twitter,...), mais outros repositórios remotos de outras épocas que continuam
online hoje, representam uma quantidade de memória incomensurável; e toda essa
memória possui diferentes maneiras de serem acessadas, muitas vezes conseguem ser
acessadas diretamente pela ferramenta de busca, mas em outras situações são colocadas
em alcances mais afastados por conta principalmente da ação de algorítimos. Digo,
portanto, que uma intersecção da ciência arqueológica com os campos da ciência da
informação, arquivologia digital e museologia a partir do que Martire apresenta
brevemente, me leva a crer que se possa gerar boas colaborações e contribuições ao trato
com a memória, visto que a arqueologia tem toda uma bagagem própria de maneiras de

1
https://arqueologiaeprehistoria.com/2013/10/01/video-cyber-arqueologia-projeto-roma-360/
(acessado em: 21 de junho de2022)
como lançar olhar sobre esses resquícios de outros tempos, bem como de como organizar
uma busca e seus resultados.
É valido ressaltar que já tivemos diferentes fases de usos e de produção de dados
culturais. Essas mudanças vão acontecendo a partir principalmente das empresas que
criam redes sociais e aplicativos que vão se renovando e gerando espécies de fluxos
migratórios entre elas – à minha vista funciona mesmo como um complexo de arquiteturas
(sites[sítios] e apps[aplicativos]) onde as pessoas habitam e transladam ao interagir.
Vemos por exemplo como o Orkut2 entrou na vida de pessoas brasileiras a partir de 2004,
e cinco meses após seu lançamento, a comunidade brasileira já era 30,65% da quantidade
total de usuários da plataforma – públicos que só aumentaram até o fim da rede Orkut em
2014, quando boa parte dessas pessoas passaram a migrar para o Facebook. O que quero
apontar aqui é como tamanho tráfego produziu tamanha quantidade de conteúdos que
refletiram uma série comportamentos dessa época. A pergunta que fica é: aonde foram
parar todos esses dados que de repente passaram a não existir mais ao acesso instantâneo?
Antes dessa época ainda, houve a época dos blogs pessoais, que eram construídos através
de sites de blogs; ou ainda blogs de empresas, ou coletivos, ou organizações, institutos;
onde muitos, mesmo não sendo mais alimentados e atualizados, continuaram e continuam
com seus dados e conteúdos online, disponíveis para serem acessados, mas muitas vezes
com seu endereço esquecido ou com esses acessos dificultados por conta de algorítimos
dos mecanismos de busca.
Martire apresenta mais duas questões interessantes para pensar essa perspectiva
que estamos aqui pensando junto. A primeira é quanto a observação do tempo terrestre
em eras geológicas. O autor trás o debate atual sobre a cisão temporal proposta por grupos
de cientistas que enxergam um fim do Holoceno (iniciado a cerca de 11.84 anos ao fim
da última era glacial) dando início ao Antropoceno, que recebe esse nome por identificar
o período de maior interferência humana sobre as camadas geológicas mais externas,
incluindo a atmosfera. Martire exemplifica muito bem como a exploração de recursos
naturais nos continentes desde o século XVIII se relacionam com o aumento da população
humana sobre o globo, e como essa atividade se intensifica a cada revolução industrial,
interferindo e transformando cada vez mais a geomorfologia da Terra, ele cita a “Grande
Aceleração”, uma teoria proposta por Will Steffen em 2004 – que segundo Alex Martire
é a alternativa com mais chance de ser aceita como marco inicial do Antropoceno. A
teoria demonstra o monstruoso crescimento quantitativo do tamanho da população, do
consumo de água, da perda de florestas tropicais e bosques, e da concentração de CO2 e
N2O na atmosfera;- com acentuação das curvas desses gráficos quase que simultâneas no
período que compreende o pós-segunda-guerra-mundial, a década de 1950. Atividades de
mineração de profundidade - fonte de matéria prima pra atividades industriais, implosão
de morros para obtenção de matéria prima para a construção civil, aterros sanitários
(muito lixo), construção de cidades, desmatamento, monoculturas ligadas ao
agronegócio, pecuária extensiva e garimpo; são alguns exemplos de atividades humanas

2
https://www.techtudo.com.br/listas/2019/01/orkut-era-lancado-ha-15-anos-relembre-curiosidades-e-
polemicas-da-rede.ghtml (acessado em: 21 de junho de2022)
diretamente vinculadas ao motivo dessa necessidade de acordo científico sobre um novo
tempo geológico da Terra – tempo esse, que é uma medida utilizada pela Arqueologia
em seu desenvolvimento de campo.
Ainda nessa questão o autor apresenta o que viria a ser uma proposta de tempo
geológico que vem a se constituir como sequência, de dentro do Antropoceno para além
dele, e que segundo o autor já está a se desenvolver na vida material, mas mesmo assim,
é esperado que demore a ser considerado como possibilidade de acordo científico. Alex
Martire apresenta a ideia de Novaceno, criado por James Lovelock em 2019, com o livro
“Novacene: the coming Age of Hyperintelligence”.
“(...) marcada pelo convívio (muitas vezes interligado fisicamente) entre
humanos e máquinas inteligentes -; contornaremos a nossa própria extinção,
permitindo que a Inteligência Artificial – aqui entendida como capacidade das
máquinas em reprogramarem algoritmos automaticamente a fim de gerar
respostas a determinados problemas – atue a fim de diminuir os impactos
negativos que temos sobre o planeta Terra.” (MARTIRE, 2021)

O autor Lovelock parte dessa premissa ciborgue (humano + máquina) para


desenvolver sua tese; e de certo modo há um sentido geológico quando consideramos que
as máquinas são construídas a partir da transformação das matérias primas extraídas da
própria Terra. Martire, enquanto arqueólogo leva muito em consideração na construção
de seus argumentos, os reflexos/impactos do uso cotidiano de tecnologias (mesmo que
digitais) nas camadas físicas terrestres3.
A segunda questão interessante que o autor do artigo que estamos dissecando aqui
trás, diz respeito às ideias de tecnosfera e tecnofóssil. Ele ao traçar os paralelos da vida
em ambiente digital com o consumo de recursos naturais, de alguma maneira tenta
estabelecer uma relação objetiva do mundo digital à paisagem terrestre, de como o
primeiro interfere sim na segunda – e nesse caso o conceito de tecnosfera apresentado por
Peter K. Haff, o auxilia no desenvolvimento da argumentação.
“A proliferação de tecnologia em todo o mundo define a tecnosfera - o
conjunto de tecnologias em rede de larga escala que subjazem e possibilitam
a rápida extração, da Terra, de grandes quantidades de energia livre, e
subsequente geração de energia, comunicação a longa distância (quase
instantânea), energia à distância e transporte de massa, a existência e operação
de burocracias governamentais, operações industriais e de manufatura de alta
intensidade, incluindo distribuição regional, continental e global de alimentos
e outros bens, e uma miríade de adicionais 'artificiais' ou 'não naturais':
processos sem os quais a civilização moderna e seus atuais 7 x 109
constituintes humanos não poderiam existir. Se o termo "antroposfera"
pretende enfatizar o papel dos seres humanos como agentes responsáveis pelas

3
Por exemplo quando desenha os números da quantidade de energia utilizada na
experiência que teve com o jogo que dá nome ao texto, multiplicando o número de horas
que passou jogando de modo a compreender a quantidade de CO2 emitido na atmosfera
para a obtenção de tal quantidade de energia, ver MARTIRE; 2021, p.59 e p.60.
transformações da Terra que definem o Antropoceno, o uso da "tecnosfera"
sugere uma visão mais destacada de um processo geológico emergente que
define humanos como componentes essenciais que sustentam sua dinâmica.”
(HAFF, 2013 apud. MARTIRE, 2021)

Martire aponta que a tecnosfera se difere da biosfera, por a tecnosfera ser gerada
fundamentalmente por seres humanos ao desenvolverem soluções tecnológicas que
permitem sua existência no planeta. Estando a tecnosfera dentro da biosfera, visto que a
biosfera é o conjunto de todos os seres vivos sobre a Terra, e a tecnosfera a reunião de
elementos físicos criados e ligados aos seres humanos de alguma maneira. Do ponto de
vista geológico, as marcas de produtos tecnológicos humanos encontrados na tecnosfera
são aquilo que se convencionou chamar “tecnofóssil”.
“Os tecnofósseis têm características distintas que os diferenciam dos traços de
fósseis. Por exemplo, eles geralmente são fabricados com materiais de
natureza rara ou que não ocorrem naturalmente, como alumínio ou plástico.
Eles são produzidos em uma infinidade de formas que não têm paralelos na
natureza, desde um artefato de pedra trabalhado à mão, imediatamente
discernível por seus padrões de fratura de um seixo naturalmente erodido, até
um arranha-céu (e seus componentes): feito de aço, concreto, vidro e plástico
[...].
Os tecnofósseis são geralmente criados a partir de materiais com durabilidade
geológica de longo prazo. Por esse motivo, é possível considerar o
desenvolvimento de uma tecnoestratigrafia, da mesma forma que os fósseis
são usados para definir a bioestratigrafia, a partir da sucessão de tecnofósseis
em intervalos sucessivamente mais recentes de estratos sedimentares (por
exemplo, ferramentas de pedra no fundo, lascas de silicone e iPhones na parte
superior).
Embora se saiba que outros hominínios, grandes símios, pássaros e alguns
moluscos usam ou usaram ferramentas, aqui limitamos o termo tecnofóssil às
estruturas feitas por espécies de Homo (Zalasiewicz et al., 2019, p. 144).”

Uma outra frente da Arqueologia encontrada nessa breve pesquisa, e que se


relaciona com o tempo a partir da fase moderna dessa sociedade ocidental é a Arqueologia
Industrial. Essa lança olhar e desenvolve seus sítios arqueológicos em espaços que
desenham as histórias e contextos humanos a partir da formação de sociedades industriais
(séc. XVII do calendário cristão em diante), e que desemboca nesse mundo digitalizado
do trabalho que destina os dias de hoje.
Trago agora o trecho que abre o texto de Tânia Andrade Lima “Cultura material:
a dimensão concreta das relações sociais” de 2011; que nos convida para mais um passo
dessa breve reflexão/ensaio, a respeito da Cultura Material nas vistas e práticas da ciência
arqueológica:
“Ao conceituarmos a Arqueologia como a disciplina que investiga a
emergência, a manutenção e a transformação dos sistemas socioculturais
através dos tempos, por meio da cultura material por eles produzida, fica
implícito que seu interesse primordial é explanar fenômenos de mudança
cultural, operando, fundamentalmente, a partir de três dimensões
interrelacionadas que estruturam a vida social: forma, espaço e tempo.”
(LIMA, 2011)

Estou tentando demonstrar uma das importâncias que percebo na Arqueologia


Científica para o contexto brasileiro e mundial, de modo a desenhar como essa
perspectiva de investigação arqueológica das arquiteturas digitais da memória material
não representam uma ruptura competitiva com o modelo científico de Arqueologia que
descende da Arqueologia Tradicional, mas sim uma ramificação de preparo para lidar
com uma demanda de memória que cresce no tempo presente e em sua expansão para o
tempo futuro.
Muito bem, agora chamamos para o caldo da reflexão o texto de Lev Manovich
“Data as Symbolic Form” onde se é discutida uma perspectiva de percepção e
compreensão da Cultura Material a partir deste novo momento social, da “sociedade
computadorizada” como elucidou Lyotard, do mundo virtual da arquitetura de dados na
rede mundial de computadores. Já aviso de antemão que estamos entrando numa
perspectiva de observação que se aproxima flertando com linguagens advindas da Ciência
da Computação; portanto uma interdisciplinaridade; - e por incrível que pareça, vamos
perceber nesse trabalho o uso de algumas nomenclaturas e diretrizes do tratamento de
dados que se interseccionam com a Ciência Arqueológica. O autor logo no início do texto
nos demonstra por onde faz o uso da palavra “database” ou “base de dados”, segue uma
citação com tradução livre, visto que este texto apenas encontra-se disponível em língua
inglesa:
“Antes de proceder preciso comentar o meu uso da palavra base de dados. Em
ciência da computação base a de dados é definida como uma coleção de dados
estruturada. Os dados armazenados em uma base de dados são organizados
para uma busca e recuperação rápida, portanto, é tudo menos uma simples
coleção de itens. Diferentes tipos de bases de dados – hierárquica, em rede,
relacional e orientada à objetos – usam diferentes modelos de organização de
dados. Por exemplo, os registros em bases de dados hierárquicos são
organizados em uma estrutura em formato de árvore. Bases de dados
orientadas a objetos armazenam estruturas de dados mais complexas,
chamadas de objetos, que são organizados em classes hierárquicas que podem
herdar propriedades de classes superiores na cadeia. Novos objetos de mídia
podem ou não empregar esses modelos de banco de dados altamente
estruturados; contudo, do ponto de vista da experiência do usuário uma grande
proporção desses novos objetos são bancos de dados em um sentido mais
básico.” (MANOVICH, 1999)

Isso nos leva a começar a perceber de que estamos tratando de estruturas que não
são exatamente apenas o que vemos nas telas, em vias de exibição final. Entrar no campo
das bases de dados e dos algorítimos (que são códigos que ativam e reativam outros
códigos, criando inteligências artificiais) significa abstrair da tradicional maneira de
imaginar a física das coisas, mas não totalmente, visto que a ciência de dados é baseada
em lógica estruturada, tal como acontece com as bases de dados orientados a objetos – é
basicamente, muito basicamente, como imaginar engrenagens maquínicas que se
conectam em um plano virtual, onde, quando olhadas com uma lupa, percebe-se que essas
engrenagens são formadas por textos de comandos de dígitos (linguagem binária que
utiliza dos algarismos zero e um) que se interligam em processamentos lógicos a partir
de informações nativas de sua existência programada ou informações implantadas para
serem tratadas em função de alguma operação. É importante considerar que nem sempre
estes objetos estão ao toque de controle da pessoa usuária final, visto que os sistemas
possuem séries de procedimentos com programações prévias necessárias para que o uso
final, por exemplo de digitar e armazenar um texto em formato .word aconteça. Deste
modo, vai se desenhando a nossa percepção um mundo virtual invisível aos nossos olhos
nus, porém que existe, pode ser acessado, pode ser acumulado, possui memória – não
apenas na perspectiva dos dados, mas na perspectiva de que a maneira de criar e interagir
essas estruturas vem se alterando/atualizando ao longo do tempo -; e, ainda, atravessa as
épocas gerando maneiras de interação/interlocução/prática/produção/... humanas –
portanto gerando e sendo cultura, numa perspectiva antropológica.
Lev Manovich apresenta em seu texto uma série de situações de como essas bases
de dados são apresentadas e utilizadas nesse percurso histórico humano recente. Ele
aponta como o CD-ROM assumiu a identidade de uma mídia de armazenamento
projetada em outro plano, tornando-se uma forma cultural própria. Considerando por
exemplo os primórdios do gênero museu virtual – quando CD-ROMs levavam usuários a
um passeio pelo acervo de um museu; tornando esse museu uma base de dados de imagens
representativas do seu acervo, que pode ser acessada de diferentes formas:
cronologicamente, por país ou por artista.
“Embora esses CD-ROMs muitas vezes simulem a experiência tradicional do
museu de passar de uma sala para outra, em uma trajetória contínua, esse
método de acesso “narrativo” não tem nenhum status especial em comparação
com outros métodos de acesso oferecidos por um CD-ROM. Assim a narrativa
torna-se apenas um método de acesso aos dados entre outros.” (MANOVICH,
1999)

Esse trecho demonstra como uma arqueologia do mundo dos dados poderia ter
entradas diferentes pare estabelecer investigações de contextos de contextos históricos;
nesse exemplo, pelo menos duas entradas: a primeira a partir da estruturação dos dados
estabelecida pela mídia (CD-ROM) em direção à narrativa; e outra da estrutura da
narrativa em direção à estrutura de identidade da organização dos dados, que pode variar
de acordo com o período tecnológico de elaboração – no exemplo apresentado fora um
CD-ROM, objeto obsoleto no tempo presente à essa escrita.
Essa fase histórica do CD-ROM, marca um início da intensa prática cultural de
computadorização da cultura; incessantemente muita coisa foi (e ainda é) de alguma
forma transfigurada do mundo real para o mundo digital, através de arquivos de diferentes
naturezas (imagens, vídeos, áudios, textos,...); sendo organizadas e armazenadas em bases
de dados, que alimentaram novas e novas bases de dados, e assim por diante – esse
processo se estende até hoje – objetos de cultura são criados a todo momento utilizando
dados já presentes na rede. Desse modo, para compreender todo esse funcionamento no
mundo atual, é preciso começar a flertar com a compreensão dos códigos algorítmicos
que se configuram, por exemplo, enquanto softwares que nos auxiliam, enquanto
usuários, a realizar tarefas como por exemplo acessar certas camadas e sítios de bancos
de dados.
“A informatização da cultura envolve a projeção dessas duas partes
fundamentais dos softwares de computação – e da ontologia única do
computador – na esfera cultural. Se os CD-ROMs e bancos de dados da Web
são manifestações culturais de metade dessa ontologia – estruturas de dados e
jogos de computador são manifestações da segunda metade: os algoritmos.
Jogos (esportes, xadrez, cartas, etc.) são formas culturais que exigiam dos
jogadores um comportamento semelhante a algoritmos; consequentemente,
muitos jogos tradicionais foram rapidamente simulados em computador.
Paralelamente, surgiram novos gêneros de jogos de computador como, por
exemplo, o jogo de tiro em primeira pessoa (“Doom, “Quake”). Assim como
foi o caso dos gêneros de bancos de dados, os jogos de computador imitaram
jogos já existentes e criaram novos gêneros de jogos.” (MANOVICH, 1999)

E continua:
“Pode parecer à primeira vista que os dados são passivos e os algoritmos
ativos – outro exemplo de categorias binárias passivo-ativas tão amadas pelas
culturas humanas. Um programa lê dados, executa um algoritmo e escreve
novos dados. Podemos lembrar que antes da ‘ciência da computação’ e da
‘engenharia de software’ o nome estabelecido para o campo da computação
era ‘processamento de dados’. Esse nome permaneceu em uso por algumas
décadas, durante as quais os computadores eram principalmente
desempenhados a realizarem cálculos sobre dados. No entanto, a distinção
passivo/ativo não é muito precisa, pois os dados não apenas existem – mas
precisam ser gerados. Os criadores de dados precisam coletar dados e
organizá-los ou cria-los a partir de arranhões. Os textos precisam ser escritos,
as fotografias precisam ser tiradas, o vídeo e o áudio precisam ser gravados.
Ou eles precisam ser digitalizados a partir de mídias já existentes. Na década
de 1990, quando o computador assumiu o novo papel de uma Universal Media
Machine (Máquina Universal de Mídia), as sociedades já informatizadas
entraram em uma mania de digitalização. Todos os livros, fitas de vídeo,
fotografias e gravações de áudio passaram a alimentar computadores, cada vez
mais. Steven Spielberg, por exemplo, criou a Fundação Shoah, que gravou e
depois digitalizou várias entrevistas com sobreviventes do Holocausto; levaria
40 anos de uma pessoa para assistir todo o material gravado. Os editores da
revista Mediamatic, que dedicaram um número inteiro ao tópico da ‘mania de
armazenamento’ (verão de 1994) escreveu: Um número crescente de
organizações está embarcando em projetos ambiciosos. Tudo está sendo
coletado: cultura, asteróides, padrões de DNA, registros de crétdito, conversas
telefônicas; não importa.’. Uma vez digitalizados, os dados precisam ser
limpos, organizados, indexados. A era do computador trouxe consigo um novo
algoritmo cultural: realidade -> mídia -> dados -> banco de dados. A ascenção
da Web, esse gigantesco corpus de dados que está em constante mudança, deu
a milhões de pessoas um novo hobby ou uma profissão: indexação de dados.
Dificilmente existe um site que não apresente ao menos uma dezena de links
para outros sites, portanto, cada site é um tipo de banco de dados. E, com a
ascensão do comercio na internet, a maioria dos sites comerciais de grande
escala tornaram-se também bancos de dados reais, ou melhor, front-ends para
bancos de dados da empresa.’ (MANOVICH, 1999)

Se a Arqueologia em seu início se limitou a reconhecer apenas a partir dos traços


históricos-culturais – desenvolvendo maneiras de classificação e sistematização de dados
suportados em artefatos objetivamente materiais. Lendo o textode Tania Andrade Lima,
percebemos que gradualmente os fundamentos Darwinianos do campo da Biologia
Evolutiva se confrontaram com as perspectivas mais tradicionais da Antropologia - ainda
tudo isso entre os conflitos de poder das narrativas Históricas. Foram espécies de brigas
a partir de suas divergências epistemológicas, que porém traçaram um interessante mapa
de trilhas por onde instituiu-se um campo científico interessado na investigação,
compreensão, remontagem, salvaguarda e comunicação dos contextos das trajetórias
humanas sobre o globo terrestre – tudo isso que caracteriza a Arqueologia Científica hoje.
Symanski (2014), aponta que um dos principais responsáveis pela implementação da
disciplina acadêmica arqueológica em continente americano entre o final do século XIX
e início do século XX, foi o antropólogo alemão Franz Boas, nos Estados Unidos.
“Para Boas, a antropologia não deveria se prender no presente
etnográfico, mas ser um empreendimento holístico, que visasse o
entendimento da história cultural das sociedades nativas. Para alcançar
uma diacronia mais consistente, essa investigação deveria envolver
quatro campos: a antropologia cultural, a antropologia biológica, a
linguística e, logicamente, a arqueologia. Para Boas, como herdeiro da
tradição romântica alemã que considerava que cada povo era produto
de uma trajetória histórica única, a antropologia deveria se firmar como
a história dos povos nativos. Desconsiderava, portanto, princípios e
modelos teóricos universalizantes para explicar a cultura, como aqueles
que tinham sido empregados pelos evolucionistas culturais do final do
século XIX (BOAS, 2005 [1896], [1920]; apud Symanski, 2014; p. 14-
15).
Luís Claudio Pereira Symanski em seu texto “Arqueologia – Antropologia ou
História? Origens e tendências de um debate epistemológico” (2014), ainda nos aponta
que “Boas, rejeitando as noções evolucionistas, considerou um conceito plural de cultura
como: a cultura seria o conjunto de traços que caracteriza um povo. A cultura material,
nesse sentido, seria um desses traços, e, assim um elemento cultural em si próprio”. De
modo a complementar essa perspectiva arqueológica apresentada por Symanski, vale
trazer a esta leitura alguns contornos apresentados por Lima (2011):
“Nessa linha de pensamento, a cultura material foi entendida como um
reflexo passivo da cultura, sendo esta conceituada como um conjunto
de normas, valores, ideias, prescrições e regras formais partilhado por
um determinado grupo. Inertes, os artefatos portariam significados que
lhes seriam inerentes, cabendo ao investigador tão somente a tarefa de
retirar deles a poeira do tempo para que esses significados aparecessem
e o passado pudesse ser ‘reconstruído’. (LIMA 2011, p. 13)
Desse modo tentei desenrolar brevemente o tempo com algumas referências já
consolidadas acerca da noção de cultura material, bem como alguns caminhos de porvir,
baseados em situações contemporâneas. Por fim lanço algumas questões que fazem parte
das minhas inquietações enquanto graduando de um curso cujo motivo científico de
estudo está pautado na(s) memória(s), bem como na(s) narrativa(s).
Ora a Antropologia, ora a História, ora a Biologia Evolutiva; o que faz com que
haja uma disputa tão grande de um por onde a Arqueologia ir? Tudo isso faz parte do
debate de ideias, e o conflito faz parte. A questão é: a serviço de que/para quem? Outro
ponto que me inquietou quanto à Cyberarqueologia: quando um laboratório brasileiro,
financiado com dinheiro público federal, se dedica a um projeto cujo o objetivo é criar
uma maquete 3D de fim arqueológico à representar da cidade de Roma, algo não faz
sentido para mim. As inovações são pulsantes, mas por onde passam os projetos políticos
e pedagógicos das ciências que estamos produzindo com o dinheiro público?
Tentei trazer nesse ensaio referências contemporâneas de demandas que estão
saltando aos nossos alcances. E com isso provoco: porque não um diálogo teórico e
técnico-metodológico sobre o trato com a memória entre a Arqueologia e a Ciência da
Computação que permita inovação científica a serviço da realidade brasileira? Uma outra
grande questão crítica que nosso afastamento temporal permite que lancemos, é: Porque
sempre uma perspectiva deve se antagonizar com a outra de maneira competitiva e de
ruptura/desconexão? De certo modo esta situação nos desenha o típico modo de
pensar/agir de uma modernidade a egóica que em minha opinião se apresenta ainda hoje
dentro e fora das universidades, nessa massa-fluxo-confusa de uma modernidade
intrínseca ao comportamento contemporâneo embolado com uma série de acoplamentos
de uma pós-modernidade mal resolvida. Precisamos nos permitir pegar mais leve com a
cobrança e estabelecer maiores espaços de diálogos entre as áreas; achar maneiras outras
de lidar com a ciência na maioria das situações – pois do jeito que está a situação é de
afastamento e fragmentação das comunidades, entre os saberes. Digo isso para além do
conteúdo aqui apresentado a respeito dos dados e do debate sobre cultura material.
Escrevo estes apelos em chamada de atenção reflexiva e retórica, para que todo
esse exercício de energia intelectual aplicado à compreensão do passado e do presente,
ao menos colabore para um arranjo fundamentalmente interdisciplinar e crítico ao
pensamento hegemônico (re)colonial – digerir Manovich, um autor estrangeiro, para
compreender o mundo de dados de modo a saber como conviver nele, aproveitá-lo e
desvendá-lo é também se esforçar para colocar conhecimento a serviço das nossas
comunidades; avançar intelectualmente e deixar pontas para outras pessoas continuarem
de alguma maneira é também agir para além de uma manutenção vaidosa do próprio
currículo ou da própria área de atuação – acho que precisamos estabelecer mais relações
como essas, esse ensaio foi uma tentativa. Uma das perspectivas que o pensamento
contemporâneo em Museologia pode contribuir nisso, diz respeito ao uso social da
memória, e a museologia social tem muito a contribuir para essa conversa. Toda vez que
conseguimos colaborar entre áreas uma erupção de dimensão vulcânica está sujeita a
acontecer. Quando elaborada criticamente em relação à memória colonial, entre
diferentes disciplinas científicas, essa erupção, pode ativar e elevar a potência do impacto
ante os projetos necrófilos (comprometidos com a morte) por exemplo ao plano de
exterminação dos povos originários no Brasil.

Referências Bibliográficas:
LIMA, Tania Andrade. Cultura material: a dimensão concreta das relações sociais; Boletim do Museu Paraense
Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 6, n. 1, p. 11-23, jan.-abr. 2011.

MARTIRE, Alex da Silva. Arqueologia do Digital – o antropoceno e o navaceno de homens e andtroides no jogo
eletrônico Detroit: Become Human; Vestígios -Revista Latino-Americana de Arqueologia Histórica, v.15, n. 1,
p.52-76, jan-jun. 2021.

MANOVICH, Lev; Database as Symbolic Form – escrito em 1999, publicado Em: The Language of New Media,
The MIT Press, Massachusetts, U.S., 2001. (http://manovich.net/index.php/projects/database-as-a-symbolic-
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CORDEIRO, José Manuel Lopes; A Arqueologia Insdustrial: Uma vertente fundamental da arqueologia urbana.
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SYMANSKI, Luís Cláudio Pereira; Arqueologia: Antropologia ou História?: Origens e tendências de um debate
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