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BREVES REFLEXÕES SOBRE A CULTURA, A SOCIEDADE DIGITAL

BRASILEIRA E OS NOVOS DESAFIOS DO DIREITO.


Wagner Santos da Cunha Chaussê1

Resumo: O presente paper tem o objetivo de expor algumas reflexões do autor


quanto ao fenômeno da culturalização diante das transformações socioculturais
ocorridas nas últimas décadas no Brasil, decorrentes das evoluções
tecnológicas, sobretudo no que se refere ao uso da internet e desdobramentos
da vida virtual. Para tanto, o autor pretende valer-se de alguns conceitos
trabalhados na disciplina Justiça Social e Desenvolvimento (Cultura e Judiciário),
ministrada pelo professor Guilherme Roman Borges, dando aplicabilidade
abrangente – para além do âmbito das decisões judiciais – aos referidos
conceitos expostos em aula.

Palavras-chave: Cultura. Sociedade Digital. Tecnologia. Direito

1 Introdução

A evolução da tecnologia da informação é uma das forças mais


significativas na transformação cultural mundial ao longo dos últimos anos.
O impacto do progresso da tecnologia computacional, especificamente no
contexto da informação, é muito claro em diversas áreas, tais como economia,
educação, comunicação em suas diversas concepções e entretenimento.
Na década de 1950, os computadores eram enormes e caros, e somente
as grandes corporações e instituições governamentais podiam bancar os seus
custos. Já em 1960, com a invenção dos circuitos integrados, os computadores
se tornaram muito menores e bem mais baratos, permitindo que empresas
menores também pudessem se beneficiar de seu uso.
Foi a partir de 1970 que surgiram os computadores pessoais, os quais
permitiram que as pessoas tivessem acesso a esse tipo de tecnologia em suas
casas. Um marco importante nesse contexto foi o lançamento em 1977 do
primeiro microcomputador, o Apple II. A partir daí, percebeu-se uma

1 Mestrando em Direito pela Universidade Católica de Brasília. Aluno da disciplina


transformação importante na forma como as pessoas trabalhavam, estudavam,
se comunicavam e se relacionavam.
Todavia, apesar da grande importância da criação do computador, foi
mesmo na década de 1980, com o surgimento da Internet, que se observou o
principal fator de transformação cultural para as décadas seguintes.
Diante do surgimento da Internet, a tecnologia da informação passou a
ser usada para a criação de novos tipos de negócios e serviços, como as lojas
virtuais, os serviços de streaming de música e filmes, redes sociais, entre outros.
Além disso, a Internet também permitiu que as pessoas se conectassem e se
comunicassem com pessoas de todo o mundo, mudando a forma como as
pessoas interagem e se relacionam, consolidando ainda o fenômeno da
globalização mundial.
O paradigma da comunicação é de nítida transformação quando se pensa
nas mensagens antes enviadas por serviços postais, demorando muitas
semanas para que as cartas e as notícias se deslocassem, até a invenção do
telefone, e atualmente, quase não se percebem as distâncias físicas no aspecto
da interação e comunicação, dada a facilidade de se conectar com pessoas de
diversos pontos do mundo.
Enxergando esse fenômeno, já se tem hoje na antropologia uma espécie
de ramo de estudo especializado que é denominado de antropologia digital.
Segundo Mônica Machado2, “a antropologia nos ensina que os vínculos entre
humanidades e culturas digitais salientam a alteridade, as diferenças e os modos
de usos distintos que fazem da experiência digital um universo rico para análise
e investigação.”
A referida autora chama a antropologia digital de uma subdisciplina e
propõe que esta realize a reflexão entre o digital, a cultura e as redes de
sociabilidade.
Isto é que se pretende fazer de forma breve neste trabalho, investigar
como o esse traço marcante da cultura, o digital, pode impactar na forma de
enxergar e praticar o Direito.

2Machado, Monica. A teoria da antropologia digital para humanidades digitais. Disponível em:
http://revistazcultural.pacc.ufrj.br/a-teoria-da-antropologia-digital-para-as-humanidades-digitais/.
Acesso em: 20/06/2023
2. A internet e Cultura

Segundo Bernado Lewgoy3 “a internet antes de ser “cultura”, “artifício” ou


“invenção”, é um novo ambiente que unifica mundos significativos e morais
distintos, onde se joga com novas atualizações o jogo da sociabilidade humana,
onde se habita, onde se exercitam novas e velhas habilidades e onde se utilizam
novas ferramentas para a consecução destes fins. Torna-se, assim, ocioso
reproduzir a pergunta romântica sobre a “natureza”, impondo-se uma reflexão
não-dicotômica sobre a existência do ciberespaço como ecossistema e
paisagem no qual humano e não-humano, artificial e natural, inventado e
convencional, estão relacionados de modo irreversível”.
Antes, se pensava na existência de uma espécie de dicotomia, quando se
refletia sobre o “local” dos atos da vida, transitava-se entre as noções de mundo
on-line e mundo off-line. Hoje, já se fala em mundo on-life4.
A noção de on-life surge para refletir a integração dessas duas esferas,
que se interpenetram de maneira cada vez mais intensa. A partir da ubiquidade
da tecnologia, que revela sua capacidade de estar em praticamente todas as
áreas da vida social, as atividades cotidianas que antes eram restritas ao mundo
off-line passaram a ser substancialmente complementadas, modificadas e, em
grande medida, até mesmo substituídas pelo mundo on-line. Assim, pode-se
afirmar que hoje a vida das pessoas se desdobra em realidades
simultaneamente on-line e off-line, em que as fronteiras entre essas duas esferas
se tornam cada vez mais sutis.
Considerando que a realidade on-life retrata experiências vividas pelos
indivíduos não limitadas a um único espaço ou momento, além de que também
exprime experiências resultantes de uma complexa interação entre a dimensão
virtual e a dimensão física do mundo, surge agora uma nova realidade de

3 LEWGOY, Bernardo. A invenção da (ciber) cultura: Virtualização, aura e práticas etnográficas pós-
tradicionais no ciberespaço. Civitas, Porto Alegre, v. 9, n. 2, p. 185-196, maio-ago. 2009. Disponível em:
https://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/144052/000836171.pdf?sequence=1 Acesso em
20/06/2023
4 O termo deixa claro que nossas vidas muitas vezes não estão nem on-line nem off-line, mas que um

novo tipo de mundo – o mundo on-life – está começando a se formar. Neste mundo, os sistemas de
computador podem, em grande parte, libertar pessoas da necessidade de tomar decisões, ou seja,
substituir as decisões humanas. (HOFFMANN-RIEM, Wolfgang. Teoria do Direto Digital: Transformação
Digital Desafios para o Direito. Rio de Janeiro: Forense. 2022, p.28)
desafios para diversos ramos da ciência, principalmente para o Direto, que
desafiam princípios, ideias, métodos e técnicas que até então de mostravam
suficientes ou incontestáveis.

3. A Cultura, o Direito e o Digital

O que é cultura? Um dos conceitos de cultura abordados em sala de aula,


foi o definido pelo antropólogo britânico Edward Burnett Tylor. Grosso modo,
para Tylor a cultura seria um conjunto complexo que inclui crenças, arte, moral,
conhecimentos, leis, costumes e outras capacidades. A cultura seria assim
“caracterizada por sua dimensão coletiva e expressa a totalidade da vida social
do homem”5.
Para além da definição acima, Tylor abordou a possibilidade da existência
de várias culturas, tentando implementar uma certa estruturação na sua análise
para compreender as diferenças culturais.
Apesar de um conceito antigo, é possível perceber a sua aplicabilidade
ainda nos dias atuais.
Partindo deste conceito, algumas reflexões emergem como: A cultura
muda? Se muda, como ela muda? E quem valida a mudança dessa cultura?
São questionamentos que aparentemente possuem respostas claras, já
que se olharmos para a história é possível ver de forma relativamente evidente
a transição cultural de muitos povos. Alguns povos de forma mais clara, outros
de forma menos clara, mas, mesmo o leigo (não antropólogo), pode enumerar
mudanças sociais e culturais de um dado povo.
No Brasil, recorte deste trabalho, não é diferente. Nos últimos anos, com
o advento do “digital” as mudanças estão bem evidentes. As relações de
consumo já são amplamente realizadas por meio da internet. Com a pandemia
mundial de Covid, algumas mudanças foram ainda mais rápidas.6

5 CUCHE, D. A noção de cultura nas ciências sociais. Bauru: Edusc, 1999.


6 Exemplo disto, vide a seguinte notícia:
https://mercadoeconsumo.com.br/09/12/2022/ecommerce/brasileiros-estao-comprando-mais-via-
internet-desde-o-inicio-da-
pandemia/#:~:text=Segundo%20a%20pesquisa%20da%20MARCO,e%20at%C3%A9%20mesmo%20da%2
0Europa.
Mesmo em um país com profunda desigualdade social, o acesso dos
brasileiros ao celular e à internet já é cada vez mais rotineiro, mesmo em classes
sociais mais baixas. Isso se reflete inclusive em serviços públicos
disponibilizados por meio de aplicativos aos cidadãos, e uma maior presença do
Estado nas redes sociais e em plataformas digitais.
Até a publicidade online tem apresentado mais interesse dos empresários
de diversos segmentos que a publicidade física, já que neste meio é possível
monitorar melhor o comportamento do consumidor, o alcance e resultado da
propaganda, etc, uma vez que é possível capturar dados que fundamentam
aqueles tipos de análise.
Até mesmo a prática forense tem mudado. Já se tem falado até em
audiência no Metaverso.7
Mas, e o Direito? Será que foi realmente impactado pelas transformações
digitais deste século?
Como o objetivo desde trabalho não é o de esgotar conceitos sobre direito,
as considerações seguintes serão fundamentadas numa visão um pouco
utilitarista do direito apenas para se ter um paradigma metodológico.
Assim, o direito, enquanto ferramenta social que busca o bem-estar social,
poderia realmente sofrer influências desta nova realidade social e cultural?
A resposta parece ser um sonoro sim. O fato é que o direito enquanto
fenômeno social tende a ser diretamente afetado por qualquer comportamento
cultural amplo e abrangente.
Essa alteração passa tanto pelos atores do direito e aí estão os
legisladores, juízes, cidadãos, etc., como pela própria materialização e
instrumentalização do direito.
Neste contexto e analisando as considerações em sala de aula sobre a
cultura em juízo ou defesa cultural, pode-se tomar por exemplo a hipótese de
eventual lide consumerista em que se analisa a responsabilidade civil em
decorrência de uma fraude bancária. Neste caso, sabe-se que o comportamento
do lesado pode por vezes ser elemento de análise, para se saber se este deu
causa ou não a ocorrência do ilícito digital. Acontece que o aculturamento digital
de um indivíduo de 18 anos nascido e criado no centro da capital paulista, tende

7Vide a seguinte notícia: https://www.cnj.jus.br/justica-federal-na-paraiba-realiza-primeira-audiencia-


real-do-brasil-no-metaverso/
a ser bem diferente do aculturamento digital de outro indivíduo também de 18
anos, que nasceu e foi criado na zona rural de uma cidade do interior da Paraíba,
por exemplo.
Neste caso fictício, a pergunta que vem à mente é: Como mensurar de
forma objetiva o aculturamento digital de um indivíduo? Quais mecanismos que
o direito teria, hoje, para lidar com situações similares?
Seria possível a aplicação de um teste cultural, para mensuração do grau
de aculturamento digital?
Outra hipótese em que poderia se aplicar lógica semelhante são os casos
de crimes contra a honra praticados em redes sociais. Será que a capacidade
de discernimento (internalização da noção de amplitude do digital) do ofensor da
extensão dos danos por se dar em ambiente de fácil propagação, poderia ser
levada em consideração no julgamento do juiz?
Enfim, esta é uma discussão recente e que ainda necessita de ampliação
do debate. Uma coisa é certa: o mundo digital tem mudado e ainda irá mudar
significativamente todas as áreas de conhecimento, incluindo o Direito.

4. Considerações Finais

As breves linhas deste trabalho não possuem o objetivo de esgotar o


tema. Buscou-se aqui iniciar uma reflexão sobre questões da culturalização ou
da própria cultura brasileira, num contexto de digitalização da vida interpessoal.
Em verdade, a tecnologia está em simbiose com o ser humano. Pode-se
até parafrasear o famoso brocardo e dizer que “aonde está a sociedade, aí está
a tecnologia”.
A próxima década promete trazer ainda mais mudanças estruturais para
a sociedade como consequência da tecnologia. Um exemplo disso é a evolução
do uso de Inteligência artificial em diversas áreas da vida. Neste contexto,
diferentes desafios surgirão para o Direito e certamente novos debates como o
deste documento serão necessários.

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