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LUCCHESI, Anita. Por um debate sobre História e Historiografia Digital. Boletim Historiar, n.

02, mar. /abr. 2014, p. 45-57.

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Compreendendo a inescapabilidade do presente, este artigo propõe uma reflexão sobre as
condições de produção de conhecimento histórico no Tempo Presente, considerando as técnicas,
instrumentos e contingências que condicionam atualmente nosso olhar para o passado. Haveria
inúmeros elementos a serem considerados para dar conta do que cabe na palavra
“contingências”, contudo, limitamos o foco desses pensamentos às mudanças tecnológicas
ocorridas nos últimos anos do século XX, que continuam in moto, se aprimorando e trazendo
outras inovações no começo desde século. Não desprezamos, contudo, que pensar tecnologias,
em qualquer tempo, implica uma reflexão sobre cultura, pois o conjunto de conhecimentos que
se organizam em torno dessas tecnologias não se limita ao universo dos dispositivos eletrônicos e
às diversas máquinas que derivam desses estudos. Os adventos tecnológicos influenciam hábitos,
comportamentos, padrões de consumo e relacionamento, modelos de trabalho e, a ver, o modo
como escrevemos a história.

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Essas mídias e a constelação digital ao seu redor (aplicativos, softwares, widgets etc.) têm sido
responsáveis por uma mudança sem precedentes na percepção e na compreensão dos fenômenos
comunicacionais. A humanidade encontra-se na transição da cultura alfabética para a cultura
digital, de modo que a forma como apresentamos as informações está se modificando. Além
disso, a chegada dessas tecnologias foi acompanhada de um movimento de virtualização que
provocou significativa distensão das noções de tempo e espaço. Fatores que de diferentes
maneiras atravessam elementos chave para os profissionais da História: o tempo, o espaço e o
dado.
À base de todas as ciências, naturais ou humanas, está a informação. O que tem sido observado
por diversos estudiosos é que na Era Digital a humanidade tem lidado diferente com a
informação, de modo geral, não apenas no âmbito acadêmico. Se, contudo, pensarmos na
produção de conhecimento científico no seio das várias comunidades acadêmicas, a situação não
é tão diferente. O efeito Google de acesso imediato a informações tópicas, por exemplo, é
sentido lá e cá. Obviamente o Google não sintetiza as transformações em andamento, mas
constitui um dramático exemplo de como a sociedade tem se informado. Estamos falando do
surgimento de redes de informação, da sociedade da informação, baseada na aplicação de novas
tecnologias na produção, troca, processamento e divulgação das mesmas.

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Partimos da constatação que estamos vivendo essa dita “revolução dos meios digitais” XXII sem
termos desenvolvido as competências necessárias para navegar criticamente e efetivamente
avaliar e criar informações utilizando as tecnologias hoje disponíveis. Nossa compreensão é a de
que existem potencialidades inexploradas no meio digital, que vão muito além de simplesmente
comunicar, acessar e processar dados: novos sentidos são criados em cada relação
tecnologicamente mediada – sentidos retóricos, políticos, históricos. Isso faz com que se torne
cada vez mais necessário buscarmos um processo real de letramento digital, para uma efetiva
Sociedade do Conhecimento Digital (Digital Scholarship). Não basta que a comunidade histórica
acadêmica acesse bancos de dados online, acervos digitais, crie listas de discussões, sites ou
blogs. Isso já acontece de forma bastante compartilhada. O problema, como observamos no
início, é que determinadas atitudes, sejam elas práticas ou subjetivas, de elaboração/abstração,
muitas vezes são tomadas como óbvias e, como tais, não são questionadas porque se
naturalizaram, se camuflaram em meio a rotina do trabalho.
Qual é qualidade e a quantidade de materiais disponíveis para historiadores no mundo digital?
Como essas potenciais fontes estão diversamente acessíveis? Como são diferentemente
compreendidas enquanto documentos digitais, distintos de sua forma analógica (material, de
papel)? Considerar a hipertrofia da memória no Tempo Presente.
Quais seriam as novas possibilidades de representação do passado (resultado da fase
representativa da operação história) neste cenário potencialmente inovador? Considerar projetos
de História Digital.

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Em relação a essas novas possibilidades de escrita da história, destacamos três características
mais marcantes que, em maior ou menor medida, perpassam cada uma das questões acima
apresentadas. Essa diversa historiografia é: inscrita no ciberespaço, escrita digitalmente
(hipertextualmente) e é divulgada na rede. As três características são interdependentes entre si,
uma vez que o elemento central que constitui o ciberespaço é o hipertexto eletrônico que só se
torna acessível para o grande público se estiver disponível na rede mundial de computadores.
… espaço de comunicação aberto pela interconexão mundial dos computadores e das memórias
dos computadores. (...) Essa definição inclui o conjunto dos sistemas de comunicação eletrônicos
(aí incluídos os conjuntos de rede hertzianas e telefônicas clássicas), na medida em que
transmitem informações provenientes de fontes digitais ou destinadas à digitalização. Insisto na
codificação digital, pois ela condiciona o caráter plástico, fluido, calculável com precisão e
tratável em tempo real, hipertextual, interativo e, resumindo, virtual da informação que é, parece-
me, a marca distintiva do ciberespaço. Esse novo meio tem a vocação de colocar em sinergia e
interfacear todos os dispositivos de criação de informação, de gravação, de comunicação e de
simulação. A perspectiva da digitalização geral das informações provavelmente tornará o
ciberespaço o principal canal de comunicação e suporte de memória da humanidade a partir do
próximo século (p. 92-93). LÉVY, Pierre. Cibercultura. Tradução de Carlos Irineu da Costa. São
Paulo: Editora 34, 2000.
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Na literatura sobre História e Historiografia Digital, a primeira diferença notável sobre esta
narrativa digital é seu formato hipertextual que, através da navegação por esses “nós de
informação” que são os links, permitiria a navegabilidade de um mesmo texto em vários níveis
de leitura, isto é, diferentes estratos de um mesmo corpus informacional. Essa construção do
texto em vários andares possibilitaria uma leitura estratificada que, por sua vez, permitiria ao
leitor navegar, segundo a ordem sugerida pelos seus próprios critérios, tanto por “aquela parte do
empreendimento histórico que é visível para consumidores não-historiadores”, quanto por
“aquela ordem de atividades intelectuais pelas quais o passado histórico é estabelecido na
pesquisa histórica”. Ou seja, tal construção permitiria ao leitor navegar, respectivamente, pela
superestrutura e infra-estrutura do conhecimento histórico. O que está em jogo, portanto é a
possibilidade de, além de apresentar uma narrativa histórica sobre o passado, poder expor, em
outros “setores” do texto (não necessariamente equiparáveis a capítulos de um modelo
monográfico impresso) as evidências, os procedimentos, métodos e chaves de leitura que
também “fizeram” aquela operação histórica.
Para o humanista digital Shawn Graham, por exemplo, as mídias digitais fazem de toda história,
história pública, isto é, ao menos potencialmente divulgada, na medida em que fica acessível
para amplas audiências na Internet.
Ora, poderíamos nos questionar ainda, em que medida uma escrita da história digital,
hipertextual, potencialmente multimídia (que apresenta textos, imagens, vídeos, áudio, mapas
etc.), que disponibiliza suas fontes na Internet e permite diferentes níveis de leitura também não
pode ser considerada, com suas especificidades, um novo formato de texto didático?

GRAHAM, Shawn. The Wikiblitz (2012)


We as historians need to teach our students to understand how this all works, and how this
creates historical knowledge. Digital media make all history public history (whether we like it or
not)4, and we need to get our research into that positive feedback loop. While Google is a closed
service, its workings only dimly perceived through its effects, we can at least engage with the
other part of that positive feedback loop: Wikipedia.
That students need to understand how knowledge can be crowd-sourced, produced and
disseminated on the web is I think not a radical conclusion.
DA SILVEIRA, Pedro T. As fontes digitais no universo das imagens técnicas.

p. 272
O argumento que percorrerá estas páginas é o de que as fontes digitais trazem a necessidade de
repensar concepções a respeito das fontes históricas e, por extensão, procedimentos associados a
seu uso.
Entretanto, a maneira entusiástica como os historiadores abraçaram a digitalização de fundos
documentais, sugere Orville Vernon Burton (2005, p. 208) estaria por trás da ausência de “uma
discussão contínua sobre história digital”. Esta mesma constatação é feita, em outro contexto, por
Anaclet Pons (2011, p. 41) que salienta uma situação na qual “todos nos digitalizamos de
maneira informal, de modo que escrevemos com processadores de texto, nos comunicamos por
correio eletrônico, consultamos informações nos sites de busca etc”. Ainda assim, “tratamos este
mundo como se fosse apenas ‘um apêndice, uma curiosidade, uma distração, algo supérfluo’, que
pouco ou nada tem a ver com nosso ‘verdadeiro trabalho’” (PONS, 2011, p. 41).

p. 274
Os documentos digitalizados são o resultado do “trabalho de digitalização da documentação
‘tradicional’ já existente”, enquanto os documentos digitais exclusivos são aqueles gerados
eletronicamente (ALMEIDA, 2011, p. 19).
As fontes “tradicionais” não são mais confiáveis que as fontes digitais. Um documento impresso
pode ser falso. Uma fotografia antiga pode ser fraudulenta. Um depoimento oral pode modificar
os fatos. É normal para os historiadores trabalhar dentro de campos de possibilidades, utilizando
métodos para reduzir as chances de erro. No futuro, é possível que sejam criados mecanismos
mais precisos para verificar a autenticidade das fontes digitais. Contudo, enquanto tais
procedimentos não se tornarem operacionais, a habilidade e a experiência dos pesquisadores
continuarão determinantes na seleção das fontes mais confiáveis (ALMEIDA, 2011, p. 21-22).
Nos Estados Unidos, por sua vez, uma voz levemente dissonante é a de Roy Rosenzweig, para
quem a percepção de instabilidade dos recursos históricos online é admitidas apenas pela ilusão
de que nos arquivos tradicionais tudo que é importante foi preservado (e o foi da maneira
correta) (ROSENZWEIG, 2011, p. 8). A tradução da fonte digital a um formato tradicional, como
a impressão de uma página da internet, por exemplo, destruiria o que é único à fonte digital: sua
interatividade, não-linearidade e facilidade de acesso (ROSENZWEIG, 2011, p. 13) – e, talvez,
estas sejam características incontornáveis das fontes digitais.

p. 276
Embora o objetivo deste trabalho não seja encontrar uma definição de história digital mais
apropriada, creio que a compreensão das fontes históricas digitais não passa apenas pela
elaboração de critérios técnico-metodológicos que permitam utilizá-las melhor, e sim por um
melhor entendimento teórico do que efetivamente é um documento digital e suas implicações
para a historiografia.

p. 277
A introdução das fontes históricas digitais não é compreendida necessariamente como uma
transformação das fontes históricas no geral, mas simplesmente uma adição ao amplo espectro
destas, e, por conseguinte, porque as fontes digitais não levaram ao desenvolvimento de uma
crítica documental nova, mas ao retorno aos princípios já estabelecidos do método histórico.

p. 279
Por outro lado, o conceito de remidiação pode nos ajudar a compreender algumas das reações em
torno às fontes históricas digitais. Segundo aqueles que o pensaram, os já citados Jay David
Bolter e Richard Grusin (2000, p. 5), a remidiação expressa um aspecto contraditório da cultura
contemporânea, a qual “busca tanto multiplicar suas mídias quanto apagar todos os traços da
mediação: idealmente, ela quer apagar suas mídias no próprio ato de multiplica-las”.

p. 280
Ambos os aspectos não são tanto contraditórios quanto complementares. Seu funcionamento
conjunto – uma espécie de dialética – possibilita que, através do excesso midiático, por exemplo,
se tenha acesso a uma experiência considerada autêntica, ainda que “não no sentido de que
corresponda a uma realidade externa”, mas sim “precisamente porque ela não se sente compelida
a se referir a nada além de si mesma” (BOLTER; GRUSIN, 2000, p. 51-52). Um exemplo que
afeta a cultura histórica contemporânea e que pode ser facilmente considerado aqui é o dos
museus, os quais apostam, muitas vezes, no excesso midiático de forma a oferecer, por meio do
estímulo sensorial, uma experiência o mais impactante e “autêntica” possível.

p. 285
O computador e as novas tecnologias trazem à tona o sonho de transparência total (CHUN, 2011,
p. 17). Este desejo se manifesta desde a prestação de contas públicas ao compartilhamento de
dados nas redes sociais, passando pela digitalização de acervos documentais. Para que esta
transparência seja alcançada, todavia, é necessário a cada momento esquecer que o “computador
está sempre criando textos e imagens mais do que necessariamente representando ou
reproduzindo o que existe em algum outro lugar” (CHUN, 2011, p. 17; grifo no original). O
computador, ao contrário de outros aparelhos, está sempre presente, não necessariamente como
um mediador passivo mas como um intermediário ativo (BERRY, 2011, p. 132).11
Ao longo deste artigo, procurei demonstrar que as fontes históricas digitais lançam desafios
teóricos distintos das questões metodológicas que são abordadas muitas vezes pela bibliografia a
respeito da história digital. Estes desafios acabam por incidir na própria conceituação das fontes
históricas, das quais as fontes digitais – assim argumentei – não são meramente uma etapa
adicional numa narrativa de crescente expansão dos tipos de documentos utilizados pelo
historiador. Com isso, o entendimento do documento histórico como um indício do passado ou
como um testemunho distinto da interpretação do historiador (ou dos próprios agentes históricos)
torna-se problemático. A fonte histórica não perde seu caráter de evidência, mas esta palavra
ganha novo significado como uma imagem que habita e faz ver – ou, nos termos de Vilém
Flusser, imagina – o mundo. Encontra-se um paralelo no mundo antigo, no qual a enargeia, a
capacidade de tornar o discurso vivo ao ponto de se acreditar tê-lo diante dos olhos, o que não
deixa de ser uma espécie de remidiação, indicava a “visibilidade do invisível, uma epifania, o
surgimento do invisível no visível” (HARTOG, 2011, p. 13). Procurou-se também avançar um
conjunto de conceitos, derivado da teoria da comunicação e dos software studies, áreas com
maior experiência que a historiografia no trato seja das imagens seja da computação, para tornar
as fontes digitais inteligíveis.

Lucchesi A. History without ice and boredom: the role of experimentation and digital literacy in
history teaching. Boletim do Tempo Presente. 2022 Aug 5;11(07):14-21.

p. 16
The current challenge facing the discipline of history is not in creating ever bigger sets of
data and developing new tools, important as these are. The real challenge is to be consciously
hybrid and to integrate ‘traditional’ and ‘digital’ approaches in anew practice of doing history (I
realise that the concept of hybridity might underscore the dichotomy I have argued against
earlier, but it seems to me a necessary sensitising concept to accompany the conscious
mental transition that I deem so important). (ZAAGSMA, 2013, p. 17; my translation).
To think about this issue from the point of view of the public commitment of citizen education
with the school public, but also as a fundamental service to the population, the most reasonable
way would be to think about the inclusion of digital literacyXIin the curricula.

p. 18
This autonomy of the students, which the authors are talking about, is directly related to
the proposals of active methodologies in education. In history teaching, we can also relate
it to the notion of "shared authority", formulated by the historian Michael Frisch.This
shared authority should exist amongall subjects who are involved with
historicalknowledge -producing, disseminating, criticizing -and can, in this way, also be a
guide for classrooms as well. In public history, shared authority reinforces the democratic
character of the practice, so that all subjects involved can contribute and usetheir different
knowledge and traditions.

HALBWACHS, M. A memória coletiva. São Paulo, SP: Centauro, 2004.


LUCCHESI, Anita. A história sem fio: questões para o historiador da Era Google. Anais do XV
Encontro Regional de História da Anpuh-Rio. 2012.
__________. História e Historiografia Digital: diálogos possíveis em uma nova esfera pública.
Conhecimento, História e Diálogo. 2013.
__________. Por um debate sobre História e Historiografia Digital. Boletim Historiar, n. 02, p.
45-57, 2014.
__________. History without ice and boredom: the role of experimentation and digital literacy in
history teaching. Boletim do Tempo Presente, v. 11, n. 7, p. 14-21, 2022.
LUCCHESI, Anita; da SILVEIRA, Pedro; NICODEMO, Thiago. Nunca fomos tão úteis.
Esboços: histórias em contextos globais. 2020;27(45):161-9.
GRAHAM, Shawn. The Wikiblitz: A Wikipedia Editing Assignment in a First Year
Undergraduate Class Writing History in the Digital Age, 2012. Disponível em:
http://writinghistory.trincoll.edu/crowdsourcing/graham-2012-spring/.
ROSENZWEIG, Roy. Clio Wired: the future of the past in the digital age. New York: Columbia
University Press, 2011.
LATOUR, Bruno. O que é iconoclash? Ou, há um mundo além das guerras de imagem?
Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 14, n. 29, p. 111-150, jan./jun. 2008.
LÉVY, Pierre. O que é o virtual? São Paulo: Editora 34, 1996.
GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. São Paulo: Companhia das
Letras, 2007.
ALMEIDA, Fábio Chang de. O historiador e as fontes digitais: uma visão acerca da internet
como fonte primária para pesquisas históricas. Aedos, Porto Alegre, n. 8, v. 3, p. 9-30, jan.-jun.
2011.
DA SILVEIRA, Pedro T. As fontes digitais no universo das imagens técnicas: crítica documental,
novas mídias e o estatuto das fontes históricas digitais. Antíteses, v. 9, n. 17, p. 270-296, 2016.

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