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in Revista de Comunicação e Linguagens n.º 40, «Escrita, Memória, Arquivo», trad. Luís Lima, org.

Maria Augusta Babo e José Augusto Mourão, ed. Relógio d’Água, Lisboa, Outubro de 2009, p. 11.

ANAMNESE E HIPOMNESE
Platão, primeiro pensador do proletariado

BERNARD STIEGLER

1. A exteriorização da memória como perda de saber

Todos nós passámos pela experiência de perder um objecto portador de recordação –


pedaço de papel, livro anotado, agenda, relíquia, fetiche, etc. Descobrimos então que
uma parte de nós próprios (como que a nossa memória) está fora de nós. Esta memória
material, que Hegel considerava objectiva, é parcial. Mas constitui a parte mais preciosa
da memória humana: aí se forma o conjunto das obras do espírito, sob os mais variados
aspectos.

Escrever um manuscrito é organizar o pensamento confiando-o ao exterior sob a forma


de marcas, isto é, de símbolos, somente por onde ele se reflecte, se constitui realmente,
tornando-se repetível (Jacques Derrida dizia iterável) e transmissível: é aí que o
pensamento se torna saber. Esculpir, pintar, desenhar é ir ao encontro da tangibilidade
do visível, é ver com as mãos ao mesmo tempo que se dá a ver, isto é, a rever: é formar
o olhar daqueles que vêem e, nessa medida, esculpir, pintar e desenhar esse olhar –
trans-formá-lo. Tal é também o sentido do que Joseph Beuys chama escultura social.

A memória humana é originariamente exteriorizada e isso significa que é, desde logo,


técnica. Formou-se antes de mais como utensílio lítico, há já dois milhões de anos.
Suporte espontâneo de memória, o utensílio lítico não é feito, no entanto, para guardar a
memória: as chamadas mnemotécnicas seguramente não aparecem antes do paleolítico
superior. São os mitogramas da sociedade mágica, cujo churinga australiano é um
testemunho recente, as tatuagens no corpo feiticeiro, o cordel com nó dos Índios
americanos. As escritas na origem dos primeiros textos manuscritos, que só aparecem
depois do neolítico, dão origem ao alfabeto – que organiza, ainda hoje, a agenda do
quadro superior, mas este objecto calendário é doravante um aparelho: o computador de
bolso; e passa-se assim das mnemotécnicas às mnemotecnologias.

Originariamente objectivada e exteriorizada, a memória, que não cessa de se alargar


tecnicamente e de estender o saber e o poder dos homens, ao mesmo tempo, escapa-lhes
e ultrapassa-os, pondo em questão as suas organizações quer psíquicas quer sociais. Isto
torna-se particularmente sensível na passagem das mnemotécnicas às
mnemotecnologias – mas foi também o caso já na Antiguidade grega e, depois, com a
imprensa. Hoje, a memória tornou-se o elemento maior do desenvolvimento industrial e
tecnológico e os objectos do quotidiano são cada vez mais suportes de memória
objectiva, quer isto dizer também, de saberes. Ora, esses saberes tecno-lógicos,
objectivados sob a forma de aparelhos, engendram também, e sobretudo, uma perda de
saber, no próprio momento em que se fala de «sociedades de saber», de «indústrias do
conhecimento» e de capitalismo «cognitivo» ou «cultural».

Estamos permanentemente em relação com aparelhos mnemotecnológicos de toda a


espécie, desde a televisão ao telefone, passando pelo computador e pela orientação por
GPS. Ora, estas tecnologias cognitivas, às quais confiamos uma parte sempre mais
importante da nossa memória, fazem-nos também perder cada vez mais saber. Perder
um telemóvel é perder o rasto dos números dos seus correspondentes e aperceber-se que
já não estão na nossa memória mas no próprio aparelho. E é preciso perguntarmo-nos
então se o desenvolvimento industrial e maciço das mnemotecnologias não constituirá
uma perda estrutural de memória ou, mais precisamente, um deslocamento dessa
memória: deslocamento pelo qual ela pode tornar-se um objecto de controlo dos
saberes e constituir a base essencialmente mnemotecnológica das sociedades de
controlo que Gilles Deleuze começou a teorizar no fim da sua vida.
Esta hipótese baseia-se numa velha questão da filosofia exposta por Platão no que ele
chama hypomnesis e que Michel Foucault reactivou, também ele no fim da sua vida,
como a questão dos hypomnemata.

Na aparelhagem mnemotécnica contemporânea, exteriorizamos cada vez mais funções


cognitivas e, correlativamente, perdemos cada vez mais os saberes que se encontram
assim delegados nos aparelhos e serviços que os agenciam, controlam, formalizam e
modelam mas que também, talvez, os destroem – já que esses saberes que nos escapam
parecem induzir uma «obsolescência do homem» que se encontra cada vez mais
desprovido e como que esvaziado por dentro. Assim, quanto mais os automóveis se
aperfeiçoam – o sistema GPS que hoje assiste o condutor, substitui-lo-á amanhã
completamente: teleguiará o veículo através de um sistema de condução automática –,
menos sabemos conduzir: perdemos os esquemas sensório-motores que são
formalizados pelo sistema à medida que ele se automatiza. Quanto mais delegamos a
assunção das séries de pequenas tarefas que constituem a trama das nossas existências
aos aparelhos e serviços da indústria moderna, mais nos tornamos vãos; mais perdemos
não só o nosso saber-fazer como também o nosso saber-viver – e, com eles, os sabores
da existência; aí, já não prestamos senão para consumir cegamente, sem esses sabores
que só os saberes conferem, ficamos incapazes. Tornamo-nos impotentes senão mesmo
obsoletos – se é verdade que é o saber que nos dá a capacidade de sermos humanos.

As economias de serviços, que repousam nestas tecnologias através quais os


comportamentos são formalizados e geridos, são características de uma época hiper-
industrial que reactualiza, singularmente, a análise platónica da hipomnese. Já que se é
verdade que a industrialização em geral é a generalização de uma reprodutibilidade
mnemotecnológica dos comportamentos motores dos produtores, a hiper-
industrialização é a generalização de uma reprodutibilidade mnemotecnológica dos
comportamentos motores dos consumidores. Tal como o produtor de quem o gesto é
reproduzido e cujo saber-fazer passa para a máquina, desapropriando-o do seu valor-
saber e não lhe deixando senão a sua força de trabalho quase animal – o que faz dele
aquilo a que chamamos um proletário –, o consumidor é destituído do seu saber-viver e
encontra-se, no mesmo lance, desindividuado: ele passa a ser um mero poder de
compra, isto é, de consumo cego – e que destrói o mundo cegamente.
Jacques Derrida, em La Pharmacie de Platon, edificou em grande parte a sua empresa
de desconstrução da metafísica na leitura de Fedro mostrando como este diálogo opõe à
hypomnesis sofística uma anamnesis filosófica, lá onde é impossível (segundo o que
descreve em De la Grammatologie como uma lógica desse suplemento que é a marca)
opor o interior e o exterior: é impossível opor a memória viva a essa memória morta
que é o hypomnematon e que constitui a memória viva como sábia. Aí onde a metafísica
instala oposições estáticas, é preciso re-articular composições dinâmicas: é necessário
pensar processualmente – e Derrida chama a esse processo uma diferância.

Apesar disso, o que Sócrates descreve no Fedro – que a exteriorização da memória é


uma perda de memória e de saber – é aquilo que hoje em dia experimentamos
quotidianamente em todos os aspectos das nossas existências e, com uma frequência
cada vez maior, no sentimento da nossa incapacidade, senão da nossa impotência – no
próprio momento em que a extraordinária potência mnésica das redes digitais nos torna
também sensíveis à imensidão da memória humana que parece ter-se tornado
reactivável e infinitamente acessível.

Esse aparente paradoxo significa que a questão da hipomnese é uma questão política e
objecto de um combate: um combate por uma política da memória e, mais precisamente,
pela constituição de meios hipomnésicos duráveis. Uma vez chegada ao estado hiper-
industrial, a exteriorização da memória e dos saberes é, ao mesmo tempo, o que lhes
expande a potência sem limites e o que permite o seu controlo – controlo pelas
indústrias cognitivas e culturais dessas sociedades controladoras que formalizam
actualmente a actividade neuroquímica e as sequências de nucleótidos e que inscrevem
por esta via os substratos neurobiológicos da memória e dos saberes na história daquilo
que deve ser analisado como um processo de gramatização, cujas biotecnologias são o
estádio mais recente e cujas nanotecnologias serão a etapa seguinte, instalando
plenamente a questão de uma biopolítica, de uma psicopolítica, de uma sociopolítica e
de uma tecnopolítica da memória.

2. A gramatização como «história do suplemento»


Não há uma interioridade que preceda a exteriorização, antes pelo contrário: a
exteriorização constitui o interior enquanto tal, isto é, distingue-o e configura-o na
própria esteira do que Leroi-Gourhan descreve como um processo de exteriorização
onde essa distinção configuradora, que incessantemente se desloca, coloca a cada vez
novas relações entre os indivíduos psíquicos e os indivíduos colectivos – novos
processos de formação dos indivíduos psíquicos e sociais: novos processos de
individuação psíquica e colectiva1.

Quando aparecem as mnemotecnologias, o processo de exteriorização que é o devir


técnico concretiza-se como a história da gramatização. O processo de gramatização é a
história técnica da memória, onde a memória hipomnésica relança a cada vez a
constituição de uma tensão da memória anamnésica. Esta tensão anamnésica
exterioriza-se ela mesma sob a forma de obras do espírito, onde se configuram as
épocas da individuação psicossocial: a gramatização é o processo através do qual os
fluxos e as continuidades que enredam as existências são discretizados : a escrita,
enquanto discretização do fluxo da palavra, é um estádio da gramatização. Ora, com a
revolução industrial, o processo de gramatização ultrapassa subitamente a esfera da
linguagem, isto é, também, do logos, para investir a dos corpos. E em primeiro lugar,
discretiza os gestos dos produtores com vista à sua reprodução automatizada –
enquanto no mesmo momento surgem as reprodutibilidades maquínicas e aparelhadas
do visível e do audível que tanto terão chocado Benjamin.

Esta gramatização do gesto que constitui a base do que Marx descreveria como uma
proletarização, isto é, como uma perda do saber-fazer, prosseguirá com os aparelhos
electrónicos e digitais como gramatização de todas as formas de saberes sob o aspecto
de mnemotecnologias cognitivas – cujos saberes linguísticos tornadas tecnológicos e
industriais do tratamento automático das línguas, mas também os saber-viver (ou seja,
os comportamentos em geral, do user profiling à gramatização dos afectos), são aquilo
que conduz ao capitalismo cognitivo das economias hiper-industriais de serviços.

A gramatização é a história da exteriorização da memória sob todas as suas formas:


memória nervosa e cerebral, memória corporal e muscular, memória biogenética. Assim
exteriorizada, a memória é aquilo que pode ser objecto de controlos sociopolíticos e
1
Cf Simondon, L’individuation psychique et collective, Flammarion, …
biopolíticos através dos investimentos económicos de organizações sociais que
reagenciam assim as organizações psíquicas por intermédio dos órgãos
mnemotécnicos, entre os quais é, finalmente, necessário contabilizar as máquinas-
ferramentas (Adam Smith analisa, desde 1776, os efeitos da máquina sobre o espírito do
trabalhador) e todos os autómatos – incluindo os aparelhos electrodomésticos.

É por isso que o pensamento da gramatização faz apelo a uma organologia geral, isto é,
uma teoria da articulação dos órgãos corporais (cérebro, mão, olhos, tacto, língua,
órgãos genitais, vísceras, sistema neurovegetativo, etc.), dos órgãos artificias (suportes
técnicos da gramatização) e dos órgãos sociais (grupos humanos familiares, clãs, grupos
étnicos, instituições e sociedades políticas, empresas e organizações económicas,
organizações internacionais e sistemas sociais em geral, mais ou menos
desterritorializados – jurídicos, linguísticos, religiosos, políticos, fiscais, económicos,
etc.).

Se reabrirmos a questão de Fedro na época hiper-industrial do objecto hipomnésico


mnemotecnológico, e do ponto de vista de uma tal organologia geral (fundindo uma
organologia política, uma organologia económica e uma organologia estética),
descobriremos que a questão da hipomnese constitui a primeira versão de um
pensamento da proletarização, a ser verdade que o proletariado é o actor económico
sem saber porque sem memória: a sua memória passou para a máquina reprodutora dos
gestos que esse proletário já não precisa de saber fazer, máquina que ele deve
simplesmente servir, tendo-se assim tornado novamente um servo.

Examinar a questão da memória técnica hoje é, pois, reabrir a questão da hipomnese


como questão do proletariado e como processo de gramatização lá onde é o consumidor
quem é doravante lesado na sua memória e nos seus saberes: é estudar o estádio da
proletarização generalizada induzida pela generalização das tecnologias hipomnésicas.
A verdade de Platão estaria assim em Marx, mas na condição de se retirarem duas
conclusões suplementares:

· O próprio Marx não pensa o carácter hipomnésico da técnica e da existência humana,


o que faz com que ele não pense ainda a vida humana como ex-istência.
· A luta inaugural da filosofia contra a sofística em torno desta questão da memória e da
sua tecnicização é o cerne da luta política que é, de antemão, a filosofia; e a reavaliação
do alcance da hipomnese em Platão, tal como a da desconstrução que dela propõe
Derrida, deve constituir a base de um projecto político renovado da filosofia onde a
técnica se torna o desafio central.

3. A filosofia como reacção ao estádio ortotético da gramatização

A ser verdade que a filosofia começa com Platão, concretiza-se no seu combate contra a
sofística em torno da memória enquanto mnomotécnica (hypomnesis, mas também
retórica e tecnologias da linguagem baseadas na logografia). A questão fundamental da
filosofia é a memória, isto é, a episteme concebida como anamnesis, e aquilo que
despoleta essa questão da filosofia é uma época da gramatização: a filosofia constitui-se
como afirmação da anamnesis enquanto reacção contra a prática sofística dessa
hypomnesis que é a escrita, definida como tecnicização da memória linguística e,
enquanto tal, como falso-saber (Gorgias) – sendo a técnica geralmente apreendida pela
filosofia platónica como um pseudo-saber do devir, ou seja, do contingente, do sensível
e do acidental, quando o verdadeiro saber é concebido como saber do necessário, isto é,
das essências inteligíveis do ser enquanto entidade imutável.

A gramatização é impensável no quadro dos pares edificados por Platão com base no
antagonismo entre anamnese e hipomnese e que o leva a opor 1) o ser e o devir ao
mesmo tempo que 2) a alma e o corpo, 3) o inteligível pensado a partir da imortalidade
dessa alma e o sensível enquanto mortalidade do corpo – que é também a sede das
paixões e a armadilha da queda –, tudo isto assentando por fim na 4) oposição entre o
logos e a tekhnè. Opor memória viva psíquica e memória morta técnica é induzir toda
esta série. Inversamente, repensar a memória como processo de gramatização onde a
memória viva e a memória morta estão em permanente composição, é tentar sair destas
oposições. Pensar hoje a memória, enquanto novo desafio político que constitui a
técnica, é esboçar esse passo em frente.

A questão da filosofia é a do amor pelo saber. Ora, esse amor pelo saber constitui-se na
prova de um saber perdido. Esse saber perdido faz do saber um objecto do desejo, do
philein tanto quanto do eros, e todo o objecto do desejo é um objecto de antemão
perdido: só é desejado enquanto fizer falta. Esse saber é perdido pela memória: a
questão da memória apresenta-se pela primeira vez na filosofia de Platão em Ménon. É
aí que o saber se encontra definido como reminiscência, como relembrança. A
relembrança aí surge como o fruto da dialéctica, ela própria uma actividade do
pensamento, à qual Fedro opõe os artifícios da hypomnesis, que aí se tornam, qual
corpo técnico, a própria queda. Retomando, com o mito da alma alada, o tema que
Ménon declinava com o mito de Perséfone, Fedro ensina-nos através dele que se trata
de um saber que foi esquecido devido a essa mesma queda.

A questão amorosa da filosofia é a de um esquecimento tal que fica por cumprir uma
anamnese, mas que deve ser distinguida da hipomnese dos sofistas: a memória do
verdadeiro (da ideia) foi originariamente perdida, há, na origem, uma falta de origem,
mas essa origem não é a origem verdadeira, não é senão aquilo que Platão define como
queda, prefigurando assim a versão monoteísta da falta de memória como desobediência
e falha, isto é, como pecado original. Esta queda faz tombar a alma na técnica que a
encarcera dentro do corpo e, como paixão que esta memória artificial desencadeia (pela
qual os sofistas produzem o pithanon, a persuasão e as crenças falsas – esquema que se
irá repetir em Rousseau), a hypomnesis é a técnica em geral oposta à anamnesis como a
alma se opõe ao corpo, e é isto que constitui a cena de Gorgias. Neste diálogo, a
filosofia define-se contra esses sofistas que pretendem saber tudo através das técnicas
(enquanto «polímatos») como amor por um saber perdido que o irredutível não-saber
de Sócrates exprime – algo que a dogmatização do socratismo por parte de Platão
tenderá progressivamente a esbater. Ora, o que constitui a questão filosófica, o objecto
do seu desejo – o saber, episteme, ou a verdade, aletheia – é, precisamente, uma questão
do desejo (philein, philia, elo social na individuação, chamado justiça, o Um que o ser
constitui, etc.) mas de modo a que esse desejo seja constituído pela sua tecnicidade,
quando essa própria tecnicidade, cuja versão sofística causa problema na Atenas do
século Vº, é recalcada pela filosofia. É este nó problemático que a oposição entre
anamnese e hipomnese traduz, e é aquilo que constitui a filosofia como metafísica que
nesta medida se trata de desconstruir.

4. A memória humana é epifilogenética


À queda, logo, à falha, ao pecado original pelo qual Platão pensa a falta de origem que
precederia uma origem plena, uma interioridade, uma alma imortal, em suma, à
oposição platónica entre anamnese e hipomnese, a arqueologia a a paleontologia
humanas permitem responder com uma teoria da memória onde a tecnicidade aparece
como aquilo que constitui a vida como ex-istência, isto é, como desejo e como saber: é
o que permite caracterizar a hominização pelo aparecimento de uma memória
epifilogenética.
O Zinjantropus descoberto em 1959 é um australopiteco datado de 1,75 milhões de anos
– e cujos ascendentes bipedóides mais antigos remontarão a 3,6 milhões de anos. Pesa
cerca de trinta quilogramas. É um verdadeiro bípede: tem um furo occipital exactamente
na perpendicular do topo do seu crânio. Libertou, portanto, os seus membros superiores
da motricidade: estão doravante essencialmente votados ao fabrico e à expressão, ou
seja, à exteriorização. O seu esqueleto foi encontrado juntamente com os seus utensílios
no desfiladeiro de Olduvai. É com base nestes factos que Leroi-Gourhan mostra que
aquilo que faz a humanidade do homem, e que constitui uma ruptura na história da vida,
é o processo de exteriorização técnica do vivencial. O que até então relevava do
vivencial, como as condições de predação e de defesa, passa para fora desse registo: a
luta pela vida – ou antes, pela existência – não pode já ficar acantonada na cena
darwiniana. O homem trava essa luta, que também poderia ser dita espiritual, através de
órgãos não biológicos, isto é, através de órgãos artificiais que é aquilo em que as
técnicas consistem. Mas essa vida que não é já uma simples bio-logia, que é uma
existência, é uma técnica económica do desejo2 sustentada por meios técnicos
hipomnésicos que são também simbólicos.

Leroi-Gourhan demonstra que a técnica é um vector de memória. Do australopiteco ao


Neandertal produz-se a diferenciação biológica do córtex cerebral designada por
abertura do leque cortical. Mas a partir do Neandertal o sistema cortical praticamente já
não evolui: o equipamento neuronal Neandertal é bastante semelhante ao nosso. Ora, do
Neandertal até nós, a técnica evolui de modo extraordinário, e isso significa que a
evolução técnica não depende já da evolução biológica. O espaço da diferenciação
técnica produz-se fora da dimensão biológica, e independentemente dela, fora desse

2
Neste ponto, cf, em particular B. Stiegler, Mécréance et discrédit 3. L’esprit perdu du capitalisme,
Galilée, 2006.
«meio interior» no qual se banham, para Claude Bernard, os elementos constitutivos do
organismo. O processo de exteriorização é assim o processo de constituição de uma
terceira camada de memória.

A partir do neo-darwinismo oriundo da biologia molecular, e na sequência dos trabalhos


de Weismann, admite-se que os seres vivos sexuados são constituídos por duas
memórias: a memória da espécie, ou genoma, que Weismann designa por gérmen, e a
memória do indivíduo, dita somática, conservada pelo sistema nervoso central onde se
deposita a memória da experiência. Isto existe desde as limneias do Lago Leman
estudadas por Piaget até ao chimpanzé, passando pelos insectos e pelos vertebrados.
Ora, o homem acede a uma terceira memória suportada e constituída pela técnica. Um
sílex talhado forma-se numa matéria inorgânica organizada pelo acto da talha: o gesto
técnico engrama uma organização que se transmite por via do inorgânico, abrindo pela
primeira vez na história a possibilidade de transmitir saberes adquiridos
individualmente, mas por uma via que não é biológica. Esta memória técnica é
epifilogenética: é, ao mesmo tempo, o produto da experiência individual epigenética e o
suporte filogenético da acumulação dos saberes, constituindo o phylum cultural inter-
geracional.

Porque o seu saber procede dessa exterioridade primordial da memória, o escravo de


Ménon desenha na areia para aí traçar a figura em que encontra o objecto geométrico:
para pensar o seu objecto deve exteriorizá-lo, organizando a inorganicidade da areia que
se torna, no mesmo lance – qual superfície plástica podendo receber e conservar uma
inscrição –, no espaço e suporte de projecção de um conceito geométrico. Por mais
efémero que possa ser, o desenho na areia pode conservar mais duradouramente que o
espírito do escravo uma característica de um elemento da figura, porque esse espírito do
escravo é essencialmente movente: os seus pensamentos não cessam de passar e de se
apagar, ele é retentivamente finito. A sua memória flecte incessantemente, a sua atenção
é sempre desviada dos seus objectos para novos objectos, e ele tem dificuldade em
«intencionalizar» o objecto geométrico – em visualizá-lo na sua identidade orgânica, na
sua necessidade, na sua essência íntima: o seu eidos.

O desenho, enquanto memória hipomnésica, é pois indispensável a este filósofo em


potência que é o escravo, e à sua passagem ao acto, isto é, à sua anamnese: este desenho
constitui uma bengala do entendimento3, um espaço de intuição inteiramente produzido
pelos gestos do escravo que traça na areia, à medida do seu raciocínio, os efeitos
figurados desse mesmo raciocínio – que a areia guarda como resultados que o escravo, a
sua intuição e o seu entendimento têm desde logo «debaixo dos olhos» e sobre os quais
podem prolongar e construir o raciocínio geométrico. Ora, é isto que a oposição
platónica entre o inteligível e o sensível, ou seja, entre o logos e a tekhnè, tornará
literalmente impensável nos diálogos subsequentes a Ménon – e é desde modo que se
formará a metafísica como denegação da tecnicidade original da memória.

5. O desafio da questão filosófica da memória é a transindividuação

As questões filosóficas são todas elas questões de transindividuação. A


transindividuação é aquilo que resulta do processo de co-individuação dos indivíduos
psíquicos dentro do indivíduo colectivo que os reúne como grupo humano – processo
que não pára de colocar e individuar a questão do Um e do Múltiplo4. Ora, a
individuação é uma operação de memorização psíquica e colectiva onde a
transindividuação é a meta-estabilização de significações. E a transindividuação é, desta
feita, aquilo que, por intermédio dos indivíduos psíquicos, individua colectivamente
fundos pré-individuais eles próprios constituídos e suportados por formas
hipomnésicas5.

Postulemos que o indivíduo psíquico é um eu e que o indivíduo colectivo é um nós. O


eu não pode ser pensado senão enquanto fazendo parte de um nós: constitui-se ao
adoptar uma história colectiva que herda e na qual se reconhece uma pluralidade de eus.
Esta herança é uma adopção, no sentido em que posso perfeitamente, enquanto neto de
um emigrado alemão, reconhecer-me num passado que não foi o dos meus antepassados
e que posso, no entanto, tornar meu enquanto francês ou americano: esse processo de
adopção é estruturalmente factício, é uma memória intrinsecamente artificial6. Ora, esta
artificialidade, que é um defeito de origem, é também aquilo que abre o jogo do eu,

3
Cf B. Stiegler, La technique et le temps 3. Le temps du cinéma et la question du mal-être, Galilée, 2001.
4
Referência a Garelli.
5
A posição de Simondon sobre este ponto é ambígua e hesitante. Sobre este tema, cf «L’apolitique de
Simondon» dans La revue philosophique, Outono de 2006 e «Nanomutations, hypomnémata,
grammatisation» em Nanomutations, Avital Ronell ed. Bayard, no prelo.
6
É este o pensamento de Renan em Qu’est-ce qu’une nation?
essencialmente enquanto processo e não enquanto estádio: esse processo é uma in-
dividuação enquanto tendência a tornar-se-um, isto é, in-divisível, mas essa tendência
nunca se realiza (o que Kant questiona nos Paralogismos da Crítica da Razão Pura)
porque depara – enquanto sistema aberto, neguentrópico e dinâmico – com uma contra-
tendência com a qual forma um equilíbrio meta-estável: um equilíbrio no limite do
desequilíbrio, num meio mnésico pré-individual onde o eu se co-individua num nós.

Isto só é possível porque este nós é igualmente um processo: a individuação do eu está


sempre processualmente inscrita na do nós, enquanto que, inversamente, a individuação
do nós só se cumpre através das individuações – processualmente polémicas – dos eus
que o compõem. O que liga o eu e o nós na individuação é o meio pré-individual, de
acordo com as suas condições positivas de efectividade, dependendo de dispositivos
retentivos pelos quais se forma como meio mnésico. Estes dispositivos retentivos são
apoiados pelo meio técnico que é a condição do encontro entre o eu e o nós: a
individuação do eu e do nós é igualmente, neste sentido, a individuação de um sistema
técnico (o que Simondon, estranhamente, não viu). O sistema técnico é um dispositivo
que goza de um papel específico (no qual todo o objecto é tomado: um objecto técnico
só existe agenciado, no seio de um tal dispositivo, com outros objectos técnicos – é
aquilo que Simondon designa por conjunto técnico). A espingarda e, de modo mais
geral, o devir-técnico com o qual constitui sistema, são assim, em Foucault, a
possibilidade de constituição de uma sociedade disciplinar7.

O sistema técnico é aquilo que sustenta a possibilidade de constituição dos dispositivos


retentivos que são ele mesmos oriundos do processo de gramatização: este desdobra-se
no seio do processo de individuação do sistema técnico. Os dispositivos retentivos dos
meios mnésicos engendrados por cada novo estádio da gramatização são aquilo que
condiciona os agenciamentos entre o indivíduo do eu e o indivíduo do nós num mesmo
processo de individuação psíquica, colectiva e técnica (ou seja, mnésica e onde a

7
«Marx faz, por exemplo, soberbas análises do problema da disciplina no exército e nas oficinas. A
análise que vou fazer sobre a disciplina no exército não se encontra em Marx, mas que importa! O que se
passou no exército desde o fim do século XVI e o início do século XVII até, praticamente, aos finais do
século XVIII? No exército, que havia sido até então essencialmente constituído por pequenas unidades de
indivíduos relativamente intermutáveis, organizados em torno de um chefe, sucedeu toda uma enorme
transformação que fez com que estas unidades fossem substituídas por uma grande unidade piramidal,
com toda uma série de chefes intermediários, de sub-oficiais, de técnicos também e essencialmente
porque havia sido feita uma descoberta técnica: a espingarda com um tiro relativamente rápido e
ajustado». Dits et Écrits, Quarto Gallimard, p. 1006.
gramatização é um subsistema da técnica)8, um processo que comporta assim três
ramais, e onde cada ramal se divide ele próprio em subconjuntos processuais (por
exemplo, o sistema técnico, ao individuar-se, individua também os seus sistemas
mnemotécnicos ou mnemotecnológicos onde bifurcam os estádios da gramatização,
etc.).

Antes mesmo da filosofia (chegada tardiamente), o que se coloca aos primeiros


pensadores pré-socráticos (ao mesmo tempo geómetras, fisiólogos, poetas e legisladores
– nomótetas) é a questão daquilo que articula o Múltiplo, constituído pela multidão dos
cidadãos, dos «eus», com o Um – que se chama água (Tales) ou ser (Parménides) – que
funda o «nós» até ao seu horizonte mais vasto: como universal. A questão política assim
formada é a das condições da metaestabilização das leis jurídicas, mas também
epistémicas, enquanto horizonte comum, isto é, transindividual, das significações
oriundas da individuação psicossocial e que os filósofos pensam como eidè, idealidades.

Ora, o início do pensamento pré-socrático é o aparecimento deste pensamento do Um e


do Múltiplo no momento em que a gramatização que conduziu à alfabetização abre a
krisis da qual surge esse novo processo de individuação psíquica e colectiva que é a
pólis, – que substitui a sociedade basílica do «preste-rei». De Tales a Platão, esta krisis
inaugura a era do pensamento crítico, ou seja, também, político, e como processo de
individuação psicossocial: como processo no qual o cidadão se distingue do grupo, mas
inventa esse grupo como estruturalmente incumprido e em devir, precisamente através
dessa distinção onde ele se destaca como singularidade de direito.

Este pensamento político-filosófico do Um e do Múltiplo é o pensamento da


transindividuação enquanto tal – e, a partir de Platão que assim funda a metafísica,
como mnémè atravessada pela tekhnè, isto é, ao mesmo tempo como anamnesis e
hypomnesis. A questão filosófica – passando pela krisis sofística e saindo assim da
época pré-socrática – consiste então em saber em que condições é possível
transindividuar na facticidade. E a transindividuação é a questão do espírito tal como se
irá tornar princípio de unidade no monoteísmo cristão.

8
Este último ponto encontra-se mais particularmente desenvolvido em La technique et le temps 4.
Symboles et diaboles, ou la guerre des esprits, ed. Galilée, no prelo.
Quando o Um se torna Ser, este divide-se em regiões que constituem disciplinas: os
saberes fundados nas «ontologias regionais», para falar como Husserl. Estes definem o
que se transindividua entre o psíquico e o colectivo e a legalidade dessa
transindividuação de acordo com esses regimes de individuação que formam também
paridades (colectivos de pensamento e nós transcendentais, para falar ainda com
Husserl). Estas ontologias regionais estão elas próprias de acordo com as regras
fundamentais da transindividuação definida pela ontologia formal da lógica e / ou da
metafísica, sendo esta, por sua vez, enquanto meta-transindividuação, aquilo que resulta
da individuação filosófica.

Estas operações urdem a história da metafísica, tal como foi diversamente desconstruída
desde Marx até ao pensamento da gramatologia, passando por Freud. Mas para além
desta desconstrução, e aquém dela (como na era pré-socrática), a questão da
individuação permanece fundamental, e a da transindividuação na tensão anamnésica
do Um e do Múltiplo permanece o objecto da filosofia propriamente9.
É por isso que a filosofia não acabou.

6. A transindividuação como retenção

A transindividuação como actividade da memória enquanto agir psicossocial revela que


qualquer questão em torno da memória é uma questão de selecção, e, inversamente, que
qualquer questão de selecção é uma questão de memória. A partir do momento em que
selecciono (isto é, por exemplo, assim que falo e que calo aquilo de que não falo), estou
a constituir uma memória, ou seja, transindividuo ou participo num processo de
transindividuação. Para pensar esta selecção é necessário passar pela fenomenologia
husserliana do objecto temporal (zeitobjekt) e criticá-la lá onde transparece que a
transindividuação na qual o psíquico e o colectivo se conjugam ocorre às condições
organológicas de retenções terciárias formadas pelos suportes hipomnésicos dos meios
preindividuais. A epifilogénese é o processo de produção dessas retenções terciárias

9
Descrever aquilo que designei, em Mécréance et discrédit 1. La décadence des démocraties
industrielles, Galilée, 200…, «regimes de consistência» é descrever regimes de transindividuação, onde o
que permite transindividuar as existências são, justamente, as consistências.
hipomnésicas que suportam as retenções primárias e secundárias definidas por Husserl e
que formam a urdidura da vida anamnésica.

A retenção primária, e a sua distinção da retenção secundária, é aquilo que Husserl


retira de uma análise fenomenológica da melodia. No «agora» de uma melodia, ou seja,
no momento presente de um objecto musical que se escuta, a nota que está presente não
pode ser uma nota, e não apenas um som, senão na medida em que retém em si a nota
precedente, que aí permanece presente, nota precedente ainda presente que por sua vez
retém em si aquela que a precede, etc. E não se deve confundir esta retenção primária,
que pertence ao presente da percepção, com a retenção secundária, que é a melodia
que posso, por exemplo, ter ouvido ontem, que posso tornar a ouvir na imaginação pelo
jogo da relembrança, e que constitui o passado da minha consciência. Não se deve
confundir, diz Husserl, percepção (retenção primária) com imaginação (retenção
secundária).

Mas existe uma terceira espécie de retenção que é hipomnésica: assim, antes da
invenção do fonógrafo era absolutamente impossível ouvir duas vezes de seguida a
mesma melodia. Ora, desde o aparecimento do fonograma, que é um caso de retenção
terciária, e um estádio da gramatização, ou seja, uma época do suplemento, a idêntica
repetição de um mesmo objecto temporal tornou-se possível, o que permite, aliás,
compreender melhor os processos retentivos. Porque o que aparece aqui como resultado
é que:

· Quando o mesmo objecto temporal se produz duas vezes de seguida, engendra dois
fenómenos temporais diferentes, o que significa que as retenções primárias variam de
um fenómeno para o outro: as retenções da primeira audição, tornadas secundárias,
desempenham um papel de selecção nas retenções primárias da segunda audição – isto é
verdade em geral, mas a retenção terciária que é o fonograma torna-o evidente. A
repetição hipomnésica produz uma diferença.

· Por outro lado, os objectos temporais terciarizados (fonograma, filmes, emissões de


rádio e de televisão), gravados ou teledifundidos e, nessa medida, controlados, são
tempo materializado que sobredetermina as relações entre retenções primárias e
secundárias em geral e permitem, assim sendo, controlá-las. A diferença tanto pode
então ser intensificada pela repetição terciária como anulada por ela: a repetição pode
gerar indiferença.

Ora, o jogo das retenções primárias e secundárias, enquanto é o jogo, anamnésico, de


uma selecção – mas tal que se revela ser sobredeterminada pelas retenções terciárias
hipomnésicas – é aquilo que constitui a realidade concreta de toda a operação de
transindividuação10. E o pensamento da retenção terciária, na medida em que as suas
épocas constituem uma história do suplemento como gramatização, decorre da
organologia geral onde a história do suplemento só é pensável na sua tripla dimensão
fisiológica, técnica e social11.

Em termos de filosofia política, a questão está em descrever e criticar (de discernir,


krinein) os processos concretos de transindividuação. Por exemplo, o jurídico é um
processo concreto de transindividuação – concreto significa que ele pertence a uma
época da gramatização que o sobredetermina. Produzir uma lei é transindividuar
literalmente – e a operacionalidade recente das gravações da imagem animada e sonora
nas instituições judiciárias levanta novas questões de transindividuação jurídica.

Esta transidividuação é feita de acordo com leis elas próprias constitucionais, no sentido
filosófico, isto é, constituídas por uma lógica transcendental, e a filosofia política
consiste em descrever as legalidades que permitem a transindividuação do jurídico a
partir desta constituição que também condiciona a matemática, etc. Ora, levar em conta
a hipomnese na formação da anamnese torna impossível e caduca uma tal compreensão
transcendental, isto é, a priori, da constituição. E não é por simples coincidência que a
filosofia, enquanto «rainha das ciências», entra em crise no momento em que surgem
novos estádios da gramatização, que não são já unicamente os das letras.

Em termos de filosofia política, a questão consiste em saber quem se apropria e quem


controla os processos de transindividuação que poderiam ser ditos meta-

10
A própria anamnese deve ser pensada, nesta abordagem, com o conceito aristotélico de «acto», de
energeia e de entelecheia: a partir de um par não oposicional do acto e da potência, onde a potência
forma o pré-individual ao ultrapassar a oposição entre a forma e a matéria oriunda do esquema
hilemórfico, como o demonstra Simondon.
11
Mostrei algures de que modo os três níveis organológicos se articulam com as três formas de retenção,
e como as três sínteses da imaginação transcendental que Kant estabelece na Dedução transcendental da
Crítica da Razão Pura são constituídas por uma quarta síntese protética e a posteriori.
transindividuantes e que permitem controlar as meta-transformações sócio-económicas
e sócio-políticas através das hipomneses próprias a cada época da gramatização –
estando as meta-transindividuações sobredeterminadas pelas características técnicas e
tecnológicas das retenções terciárias. Dito de outra forma, o e da individuação psíquica
e colectiva, onde se formam as condições da transindividuação, é a técnica – e é,
precisamente, aquilo que a filosofia tinha até agora excluído. É por isso que se deve
constituir um novo horizonte filosófico onde a tecnicidade esteja no seio da
transindividuação. Esse caminho que passa pela desconstrução não se detém nela: esta
não é um impasse, na condição de se fazer dela uma história técnica do suplemento
concebido como retenção terciária no processo de individuação de uma organologia
geral12.

7. Capitalismo e gramatização do desejo

A memória trabalha, e o seu trabalho, que se aparenta ao do luto, idealiza os seus


objectos. Esta idealização espontânea (entendida aqui no sentido freudiano) é uma
condição da transindividuação. Mas, por outro lado, a transindividuação, enquanto
processo de produção de significações, supõe a idealização. Há idealização assim que
há linguagem, como o demonstraram as Recherches Logiques de Husserl. Quando
aparece o logos enquanto tal, o trabalho da memória, enquanto trabalho transindividual
do espírito, faz passar a ideação a idealização através da elaboração conceptual
entendida como anamnesis: é a dianoia enquanto skholè, mélétè, otium. Mas não é

12
Nietzsche, pensador da marca e da inscrição na Segunda Dissertação da Genealogia da Moral, é o
filosofo que introduz a questão genealógica e, desta feita, organológica da selecção. Freud faz dela a
questão do inconsciente, residindo o problema no facto do pensamento de Freud não conseguir pensar as
retenções terciárias, logo, nem a técnica; facto que o encurralou numa fabulação neo-Lamarckiana.
Bergson, pelo privilégio que concede ao tempo, opondo-o ao espaço, fabrica um par oposicional que é
muito diferente daquele de Husserl que, por sua vez, opõe as retenções primárias às retenções secundárias
mas que exclui as retenções terciárias pelos mesmos motivos, ou seja, por serem espaciais e não
temporais. Deleuze fica preso neste par oposicional bergsoniano que ele próprio opõe ao par oposicional
bergsoniano. Nesta medida, Deleuze é mais bergsoniano do que nietzschiano. Os trabalhos de Barbara
Stiegler (Nietzsche et la critique de la chair, PUF, 2005) mostraram que em Nietzsche a questão das
relações entre o apolíneo e o dionisíaco coloca desde logo em fundo estas questões da técnica e da
indústria. Pelo contrário, um pensamento como o de Bergson, que domina ainda Deleuze, não pode
colocar a questão da técnica – como se pode ver, por exemplo, no «diagrama», ... Daí a sua crítica das
sociedades de controlo ser desesperada.
possível opor a anamnesis à hypomnesis, e foi por isso que Foucault pôde mostrar que o
otium é uma prática dos hypomnemata13.

Todavia, há que reavaliar o discurso de Platão sobre os hypomnemata e a hypomnesis


enquanto factores de perda de saber. Do ponto de vista de uma história da gramatização,
Fedro antecipa questões que reaparecem em O Captital. São as questões de uma
economia política da memória. Fedro diz que a memória pode proletarizar-se, que a
hypomnesis, enquanto exteriorização, é uma desindividuação, e que esta questão é
política (é então a questão da sofística). Hoje, o controlo industrial da memória através
dos hypomnemata que são as mnemotecnologias constitui uma perda de saber-viver
tanto quanto de saber-fazer e de saberes teóricos (de transindividuação das idealidades).
No actual estado de hegemonia que o capitalismo financeiro exerce sobre as tecnologias
hipomnésicas, e das quais faz tecnologias de controlo retentivo, perdemos o poder de
transindividuar.

Individuar-se é individuar o grupo: é transindividuá-lo e transindividuar-se.


Reciprocamente, não aceder à transindividuação, perder o poder e o saber de
transindividuar, é desindividuar-se – é arruinar a psique e precipitá-la em direcção à
psicose.

Os Gregos pensam no interior de um processo de individuação psíquica e colectiva


fundado pela letra enquanto retenção terciária ortotética: a transindividuação torna-se aí
hegemonicamente literal, na medida em que os meios simbólicos, que também são
mnésicos, aí se encontram todos sobredeterminados pela hypomnesis alfabética que rege
a cidadania. A memória alfabética objectivada é ortotética (orthotès significa exactidão)
na medida em que permite engramar sem ambiguidade uma significação linguística pelo
princípio de uma decomposição (análise) e de uma recomposição (síntese) fonética.
Interiorizada pelos locutores, engendra uma nova relação com a língua e,
consequentemente, um novo processo de transindividuação das significações: coloca o
sentido à prova de uma nova diferância (no sentido de Derrida). Já que a identificação
textual dos enunciados, isto é, a sua objectivação hipomnésica, engendra uma
intensificação da subjectivação respectiva: da sua individuação anamnésica. Mas ao
mesmo tempo – é o que Platão sublinha – o controlo hipomnésico literal permite
13
Michel Foucault, «L’écriture de soi», Dits et Écrits, Gallimard, p...
também a «logografia», ou seja, esse conjunto de técnicas da linguagem que consistem
em manipular a opinião através do pithanon (a arte de persuadir) ao curto-circuitar a
anamnesis, que é a transindividuação, e que Platão chama dialéctica – que é, antes de
mais, um diálogo.

No século XIX, com os primeiros aparelhos de gravação analógicos, surgem os


engramas ortotéticos mnemotecnológicos. Os aparelhos mnemotecnológicos tornam-se
digitais na segunda metade do século XX. As mnemotécnicas e as mnemotecnologias
ortotéticas são aquilo que permite ao mesmo tempo intensificar a individuação e
controlá-la no sentido de uma desindividuação. As formas de hypomnemata analógicas
e digitais relançam nesta medida as mais velhas questões da filosofia num contexto
capitalista e mercante que a actividade mercantil dos sofistas prefigura sem dúvida, mas
onde a dimensão industrial introduz novas questões. Porque a indústria é um novo
estádio da gramatizão.

A gramatização dos meios mnésicos e simbólicos pelos aparelhos tecnológicos produz-


se efectivamente enquanto a máquina ferramenta desenvolve uma outra forma de
ortótese pelo controlo dos gestos e, logo, dos corpos. As hipomneses que controlam, ao
reproduzi-la, a motrocidade do gesto aparecem no início da Revolução Industrial, lá
onde as hipomneses literais controlavam desde a Antiguidade as funções intelectivas do
espírito e onde as hipomneses audiovisuais controlariam as suas funções sensitivas a
partir do século XX. E, aqui, a fotografia e o cinema participam nesta gramatização do
gesto. O controlo do trabalho pela respectiva organização científica que se apoia na
gramatização é teorizado por Taylor em Principles of Scientific Management.

O gesto gramatizado é um gesto tercializado: a sua reprodução maquínica intervém


como retenção terciária na actividade motriz de produção. Sempre houve retenção
terciária na actividade motriz de produção. É isso que faz aparecer o que chamamos em
termos pré-históricos «tecnologia experimental» aplicada à reconstituição do entalhe
dos sílex neandertais. Mas toda a gestão oriunda da teoria tayloriana do trabalho é um
pensamento e um controlo do gesto por um tipo de retenção terciária ortotética e
maquínica que constitui uma hipomnese do gesto através da qual o operário é
transformado em proletário e privado dos seus saberes.
Os aparelhos analógicos e, depois, numéricos, que se desenvolvem na esteira do
maquinismo industrial e das máquinas ferramentas, afectam não só os modos de
produção como também as modalidades de consumo. Produz-se aqui um novo estádio
da exteriorização dos saberes e da hipomnese que constitui o processo de proletarização
generalizada como perda dos saberes. A gramatização literal é posta ao serviço da
concepção, a gramatização dos gestos ao serviço da produção e a gramatização dos
sentidos ao serviço do consumo: este capitalismo cognitivo e cultural constitui uma
nova organização hipomnésica integrada que permite o controlo de todas as formas do
movimento, isto é, da emoção e, desta feita, do inconsciente.

O facto do aparecimento dos corpos no processo de individuação – quer seja o corpo do


produtor controlado pelo gesto ou o corpo do consumidor controlado pelos sentidos – se
dar no momento em que se formam os pensamentos nietzschianos e freudianos do
desejo e da pulsão, como fenómenos surgidos do inconsciente, significa que (no
momento em que vivemos) o reaparecimento da questão da anamnese e da hipomnese
(no momento em que retorna, como telecracia, e em termos que ganharam uma
dimensão industrial e tecnológica colossal, e mundial) – questão que a sofística
colocava à filosofia e à democracia – reveste-se de um alcance que é uma reelaboração
da questão do desejo enquanto propriamente constituído ou destituído
hipomnesicamente e segundo os estádios da gramatização.

Porque o processo de individuação é a economia do que, desde Freud, se chama desejo:


é a economia libidinal. Ora, Feud não soube articular um pensamento da hipomnese em
psicanálise, quando o seu pensamento é o da anamnese como tão bem o demonstrou
Jean François Lyotard – uma anamnese pensada a partir da questão do narcisismo, do
ideal do eu e da sublimação como poderes de individuação e de ransformação espiritual
do psíquico e do colectivo, através da constituição de um processo de transindividuação
que já Aristóteles chamava philia, ou seja, amor.

A questão que nos é actualmente dirigida a título de política da memória é pois a de


uma política do desejo, isto é, também, de uma economia política do inconsciente. O
inconsciente é aquilo que articula corpos sobre retenções terciárias e suportes
hipomnésicos, constituindo o corpo como poder técnico, ou seja, como poder da
imaginação, como potência do fantasma. Pensar actualmente a questão da memória, na
medida em que esta é originariamente exteriorizada e permite ao mesmo tempo
intensificar a individuação e produzir desindividuação por via da perda de saber e por
proletarização, é reelaborar um pensametno hipomnésico e anamnésico da economia
geral dos saberes na medida em que estes são formas da libido.

Porque, na nossa época – tal é o carácter eminentemente estranho e inquietante do


capitalismo contemporâneo –, vemos que os saberes estão a ser destruídos, e através
deles a libido, por uma exteriorização que permite um controlo e uma intensificação dos
processos pulsionais em detrimento da economia libidinal, isto é, da anamnese: o
capitalismo das sociedades de consumo, mimético, gregário e pulsional, que é uma
verdadeira gramatização do próprio desejo, reactiva as técnicas sofísticas a um grau
incomparavelmente mais poderoso e perigoso que constitui um limite lá aonde se torna
evidente que esse mesmo capitalismo se dirige – se nada acontecer que possa alterar
este estado de coisas – e que irá conduzir ao seu desmoronamento por autodestruição.

Trata-se desde logo de accionar programas de investigação sobre a economia


hipomnésica do desejo actualmente permitidos pelos media digitais: estes são
portadores de possibilidades anamnésicas tanto quanto hipomnésicas de individuação e
de transindividuação totalmente inéditas. Trata-se de pensar os hypomnemata digitais, e
as formas novas de otium que aí podem brotar, e fundar uma nova economia política da
memória e do desejo14.

Trad. Luís Lima

14
Este programa é o que se encontra em Réenchanter le monde. La valeur esprit contre le populisme
industriel e em La télécratie contre la démocratie. Lettre ouverte aux représentants politiques, ed.
Flammarion, 2006.

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