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Maria Augusta Babo e José Augusto Mourão, ed. Relógio d’Água, Lisboa, Outubro de 2009, p. 11.
ANAMNESE E HIPOMNESE
Platão, primeiro pensador do proletariado
BERNARD STIEGLER
Esse aparente paradoxo significa que a questão da hipomnese é uma questão política e
objecto de um combate: um combate por uma política da memória e, mais precisamente,
pela constituição de meios hipomnésicos duráveis. Uma vez chegada ao estado hiper-
industrial, a exteriorização da memória e dos saberes é, ao mesmo tempo, o que lhes
expande a potência sem limites e o que permite o seu controlo – controlo pelas
indústrias cognitivas e culturais dessas sociedades controladoras que formalizam
actualmente a actividade neuroquímica e as sequências de nucleótidos e que inscrevem
por esta via os substratos neurobiológicos da memória e dos saberes na história daquilo
que deve ser analisado como um processo de gramatização, cujas biotecnologias são o
estádio mais recente e cujas nanotecnologias serão a etapa seguinte, instalando
plenamente a questão de uma biopolítica, de uma psicopolítica, de uma sociopolítica e
de uma tecnopolítica da memória.
Esta gramatização do gesto que constitui a base do que Marx descreveria como uma
proletarização, isto é, como uma perda do saber-fazer, prosseguirá com os aparelhos
electrónicos e digitais como gramatização de todas as formas de saberes sob o aspecto
de mnemotecnologias cognitivas – cujos saberes linguísticos tornadas tecnológicos e
industriais do tratamento automático das línguas, mas também os saber-viver (ou seja,
os comportamentos em geral, do user profiling à gramatização dos afectos), são aquilo
que conduz ao capitalismo cognitivo das economias hiper-industriais de serviços.
É por isso que o pensamento da gramatização faz apelo a uma organologia geral, isto é,
uma teoria da articulação dos órgãos corporais (cérebro, mão, olhos, tacto, língua,
órgãos genitais, vísceras, sistema neurovegetativo, etc.), dos órgãos artificias (suportes
técnicos da gramatização) e dos órgãos sociais (grupos humanos familiares, clãs, grupos
étnicos, instituições e sociedades políticas, empresas e organizações económicas,
organizações internacionais e sistemas sociais em geral, mais ou menos
desterritorializados – jurídicos, linguísticos, religiosos, políticos, fiscais, económicos,
etc.).
A ser verdade que a filosofia começa com Platão, concretiza-se no seu combate contra a
sofística em torno da memória enquanto mnomotécnica (hypomnesis, mas também
retórica e tecnologias da linguagem baseadas na logografia). A questão fundamental da
filosofia é a memória, isto é, a episteme concebida como anamnesis, e aquilo que
despoleta essa questão da filosofia é uma época da gramatização: a filosofia constitui-se
como afirmação da anamnesis enquanto reacção contra a prática sofística dessa
hypomnesis que é a escrita, definida como tecnicização da memória linguística e,
enquanto tal, como falso-saber (Gorgias) – sendo a técnica geralmente apreendida pela
filosofia platónica como um pseudo-saber do devir, ou seja, do contingente, do sensível
e do acidental, quando o verdadeiro saber é concebido como saber do necessário, isto é,
das essências inteligíveis do ser enquanto entidade imutável.
A gramatização é impensável no quadro dos pares edificados por Platão com base no
antagonismo entre anamnese e hipomnese e que o leva a opor 1) o ser e o devir ao
mesmo tempo que 2) a alma e o corpo, 3) o inteligível pensado a partir da imortalidade
dessa alma e o sensível enquanto mortalidade do corpo – que é também a sede das
paixões e a armadilha da queda –, tudo isto assentando por fim na 4) oposição entre o
logos e a tekhnè. Opor memória viva psíquica e memória morta técnica é induzir toda
esta série. Inversamente, repensar a memória como processo de gramatização onde a
memória viva e a memória morta estão em permanente composição, é tentar sair destas
oposições. Pensar hoje a memória, enquanto novo desafio político que constitui a
técnica, é esboçar esse passo em frente.
A questão da filosofia é a do amor pelo saber. Ora, esse amor pelo saber constitui-se na
prova de um saber perdido. Esse saber perdido faz do saber um objecto do desejo, do
philein tanto quanto do eros, e todo o objecto do desejo é um objecto de antemão
perdido: só é desejado enquanto fizer falta. Esse saber é perdido pela memória: a
questão da memória apresenta-se pela primeira vez na filosofia de Platão em Ménon. É
aí que o saber se encontra definido como reminiscência, como relembrança. A
relembrança aí surge como o fruto da dialéctica, ela própria uma actividade do
pensamento, à qual Fedro opõe os artifícios da hypomnesis, que aí se tornam, qual
corpo técnico, a própria queda. Retomando, com o mito da alma alada, o tema que
Ménon declinava com o mito de Perséfone, Fedro ensina-nos através dele que se trata
de um saber que foi esquecido devido a essa mesma queda.
A questão amorosa da filosofia é a de um esquecimento tal que fica por cumprir uma
anamnese, mas que deve ser distinguida da hipomnese dos sofistas: a memória do
verdadeiro (da ideia) foi originariamente perdida, há, na origem, uma falta de origem,
mas essa origem não é a origem verdadeira, não é senão aquilo que Platão define como
queda, prefigurando assim a versão monoteísta da falta de memória como desobediência
e falha, isto é, como pecado original. Esta queda faz tombar a alma na técnica que a
encarcera dentro do corpo e, como paixão que esta memória artificial desencadeia (pela
qual os sofistas produzem o pithanon, a persuasão e as crenças falsas – esquema que se
irá repetir em Rousseau), a hypomnesis é a técnica em geral oposta à anamnesis como a
alma se opõe ao corpo, e é isto que constitui a cena de Gorgias. Neste diálogo, a
filosofia define-se contra esses sofistas que pretendem saber tudo através das técnicas
(enquanto «polímatos») como amor por um saber perdido que o irredutível não-saber
de Sócrates exprime – algo que a dogmatização do socratismo por parte de Platão
tenderá progressivamente a esbater. Ora, o que constitui a questão filosófica, o objecto
do seu desejo – o saber, episteme, ou a verdade, aletheia – é, precisamente, uma questão
do desejo (philein, philia, elo social na individuação, chamado justiça, o Um que o ser
constitui, etc.) mas de modo a que esse desejo seja constituído pela sua tecnicidade,
quando essa própria tecnicidade, cuja versão sofística causa problema na Atenas do
século Vº, é recalcada pela filosofia. É este nó problemático que a oposição entre
anamnese e hipomnese traduz, e é aquilo que constitui a filosofia como metafísica que
nesta medida se trata de desconstruir.
2
Neste ponto, cf, em particular B. Stiegler, Mécréance et discrédit 3. L’esprit perdu du capitalisme,
Galilée, 2006.
«meio interior» no qual se banham, para Claude Bernard, os elementos constitutivos do
organismo. O processo de exteriorização é assim o processo de constituição de uma
terceira camada de memória.
3
Cf B. Stiegler, La technique et le temps 3. Le temps du cinéma et la question du mal-être, Galilée, 2001.
4
Referência a Garelli.
5
A posição de Simondon sobre este ponto é ambígua e hesitante. Sobre este tema, cf «L’apolitique de
Simondon» dans La revue philosophique, Outono de 2006 e «Nanomutations, hypomnémata,
grammatisation» em Nanomutations, Avital Ronell ed. Bayard, no prelo.
6
É este o pensamento de Renan em Qu’est-ce qu’une nation?
essencialmente enquanto processo e não enquanto estádio: esse processo é uma in-
dividuação enquanto tendência a tornar-se-um, isto é, in-divisível, mas essa tendência
nunca se realiza (o que Kant questiona nos Paralogismos da Crítica da Razão Pura)
porque depara – enquanto sistema aberto, neguentrópico e dinâmico – com uma contra-
tendência com a qual forma um equilíbrio meta-estável: um equilíbrio no limite do
desequilíbrio, num meio mnésico pré-individual onde o eu se co-individua num nós.
7
«Marx faz, por exemplo, soberbas análises do problema da disciplina no exército e nas oficinas. A
análise que vou fazer sobre a disciplina no exército não se encontra em Marx, mas que importa! O que se
passou no exército desde o fim do século XVI e o início do século XVII até, praticamente, aos finais do
século XVIII? No exército, que havia sido até então essencialmente constituído por pequenas unidades de
indivíduos relativamente intermutáveis, organizados em torno de um chefe, sucedeu toda uma enorme
transformação que fez com que estas unidades fossem substituídas por uma grande unidade piramidal,
com toda uma série de chefes intermediários, de sub-oficiais, de técnicos também e essencialmente
porque havia sido feita uma descoberta técnica: a espingarda com um tiro relativamente rápido e
ajustado». Dits et Écrits, Quarto Gallimard, p. 1006.
gramatização é um subsistema da técnica)8, um processo que comporta assim três
ramais, e onde cada ramal se divide ele próprio em subconjuntos processuais (por
exemplo, o sistema técnico, ao individuar-se, individua também os seus sistemas
mnemotécnicos ou mnemotecnológicos onde bifurcam os estádios da gramatização,
etc.).
8
Este último ponto encontra-se mais particularmente desenvolvido em La technique et le temps 4.
Symboles et diaboles, ou la guerre des esprits, ed. Galilée, no prelo.
Quando o Um se torna Ser, este divide-se em regiões que constituem disciplinas: os
saberes fundados nas «ontologias regionais», para falar como Husserl. Estes definem o
que se transindividua entre o psíquico e o colectivo e a legalidade dessa
transindividuação de acordo com esses regimes de individuação que formam também
paridades (colectivos de pensamento e nós transcendentais, para falar ainda com
Husserl). Estas ontologias regionais estão elas próprias de acordo com as regras
fundamentais da transindividuação definida pela ontologia formal da lógica e / ou da
metafísica, sendo esta, por sua vez, enquanto meta-transindividuação, aquilo que resulta
da individuação filosófica.
Estas operações urdem a história da metafísica, tal como foi diversamente desconstruída
desde Marx até ao pensamento da gramatologia, passando por Freud. Mas para além
desta desconstrução, e aquém dela (como na era pré-socrática), a questão da
individuação permanece fundamental, e a da transindividuação na tensão anamnésica
do Um e do Múltiplo permanece o objecto da filosofia propriamente9.
É por isso que a filosofia não acabou.
9
Descrever aquilo que designei, em Mécréance et discrédit 1. La décadence des démocraties
industrielles, Galilée, 200…, «regimes de consistência» é descrever regimes de transindividuação, onde o
que permite transindividuar as existências são, justamente, as consistências.
hipomnésicas que suportam as retenções primárias e secundárias definidas por Husserl e
que formam a urdidura da vida anamnésica.
Mas existe uma terceira espécie de retenção que é hipomnésica: assim, antes da
invenção do fonógrafo era absolutamente impossível ouvir duas vezes de seguida a
mesma melodia. Ora, desde o aparecimento do fonograma, que é um caso de retenção
terciária, e um estádio da gramatização, ou seja, uma época do suplemento, a idêntica
repetição de um mesmo objecto temporal tornou-se possível, o que permite, aliás,
compreender melhor os processos retentivos. Porque o que aparece aqui como resultado
é que:
· Quando o mesmo objecto temporal se produz duas vezes de seguida, engendra dois
fenómenos temporais diferentes, o que significa que as retenções primárias variam de
um fenómeno para o outro: as retenções da primeira audição, tornadas secundárias,
desempenham um papel de selecção nas retenções primárias da segunda audição – isto é
verdade em geral, mas a retenção terciária que é o fonograma torna-o evidente. A
repetição hipomnésica produz uma diferença.
Esta transidividuação é feita de acordo com leis elas próprias constitucionais, no sentido
filosófico, isto é, constituídas por uma lógica transcendental, e a filosofia política
consiste em descrever as legalidades que permitem a transindividuação do jurídico a
partir desta constituição que também condiciona a matemática, etc. Ora, levar em conta
a hipomnese na formação da anamnese torna impossível e caduca uma tal compreensão
transcendental, isto é, a priori, da constituição. E não é por simples coincidência que a
filosofia, enquanto «rainha das ciências», entra em crise no momento em que surgem
novos estádios da gramatização, que não são já unicamente os das letras.
10
A própria anamnese deve ser pensada, nesta abordagem, com o conceito aristotélico de «acto», de
energeia e de entelecheia: a partir de um par não oposicional do acto e da potência, onde a potência
forma o pré-individual ao ultrapassar a oposição entre a forma e a matéria oriunda do esquema
hilemórfico, como o demonstra Simondon.
11
Mostrei algures de que modo os três níveis organológicos se articulam com as três formas de retenção,
e como as três sínteses da imaginação transcendental que Kant estabelece na Dedução transcendental da
Crítica da Razão Pura são constituídas por uma quarta síntese protética e a posteriori.
transindividuantes e que permitem controlar as meta-transformações sócio-económicas
e sócio-políticas através das hipomneses próprias a cada época da gramatização –
estando as meta-transindividuações sobredeterminadas pelas características técnicas e
tecnológicas das retenções terciárias. Dito de outra forma, o e da individuação psíquica
e colectiva, onde se formam as condições da transindividuação, é a técnica – e é,
precisamente, aquilo que a filosofia tinha até agora excluído. É por isso que se deve
constituir um novo horizonte filosófico onde a tecnicidade esteja no seio da
transindividuação. Esse caminho que passa pela desconstrução não se detém nela: esta
não é um impasse, na condição de se fazer dela uma história técnica do suplemento
concebido como retenção terciária no processo de individuação de uma organologia
geral12.
12
Nietzsche, pensador da marca e da inscrição na Segunda Dissertação da Genealogia da Moral, é o
filosofo que introduz a questão genealógica e, desta feita, organológica da selecção. Freud faz dela a
questão do inconsciente, residindo o problema no facto do pensamento de Freud não conseguir pensar as
retenções terciárias, logo, nem a técnica; facto que o encurralou numa fabulação neo-Lamarckiana.
Bergson, pelo privilégio que concede ao tempo, opondo-o ao espaço, fabrica um par oposicional que é
muito diferente daquele de Husserl que, por sua vez, opõe as retenções primárias às retenções secundárias
mas que exclui as retenções terciárias pelos mesmos motivos, ou seja, por serem espaciais e não
temporais. Deleuze fica preso neste par oposicional bergsoniano que ele próprio opõe ao par oposicional
bergsoniano. Nesta medida, Deleuze é mais bergsoniano do que nietzschiano. Os trabalhos de Barbara
Stiegler (Nietzsche et la critique de la chair, PUF, 2005) mostraram que em Nietzsche a questão das
relações entre o apolíneo e o dionisíaco coloca desde logo em fundo estas questões da técnica e da
indústria. Pelo contrário, um pensamento como o de Bergson, que domina ainda Deleuze, não pode
colocar a questão da técnica – como se pode ver, por exemplo, no «diagrama», ... Daí a sua crítica das
sociedades de controlo ser desesperada.
possível opor a anamnesis à hypomnesis, e foi por isso que Foucault pôde mostrar que o
otium é uma prática dos hypomnemata13.
14
Este programa é o que se encontra em Réenchanter le monde. La valeur esprit contre le populisme
industriel e em La télécratie contre la démocratie. Lettre ouverte aux représentants politiques, ed.
Flammarion, 2006.