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publico.pt/2020/08/20/opiniao/opiniao/cultura-neuropoder-1928671
Rui Matoso
Opinião
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"A nossa época é caracterizada como uma tomada de controlo do simbólico pela
tecnologia industrial, onde a estética se tornou tanto a arma quanto o teatro da guerra
económica. O resultado é a miséria, onde o condicionamento toma o lugar da
experiência" (Bernard Stiegler)
O pensamento e a discussão em torno das políticas e das práticas culturais em Portugal é
atavicamente ancorado em dois ou três assuntos recorrentes e com maior notoriedade
naquilo que se designa como política das artes, e, em especial, acerca da exiguidade dos
programas de financiamento público à criação artística, circulação e programação
cultural, bem como dos efeitos nefastos na precariedade sistémica dos trabalhadores da
cultura.
Outras problemáticas caberiam aqui, mas, em qualquer caso, é mais ou menos evidente
que estamos ainda longe de estender a reflexão crítica aos dilemas mais urgentes da
cultura contemporânea. Urgentes no sentido em que é a própria definição de humanidade
e de cultura que são postas em causa, num debate que aliás se tem desenvolvido nos
estudos das humanidades digitais e do pós-humano.
Uma das ausências nos debates em Portugal acontece no campo da relação entre política-
produção-práticas culturais e o contexto do capitalismo cognitivo ou semiótico em que
estamos submersos como peixes num aquário de águas cibernéticas. Nesta matéria,
aquilo que as investigações em torno da relação entre tecnologia e capitalismo têm vindo
a demonstrar é de facto perturbador: o poder tecno-capitalista tem gerado distúrbios
profundos nas três principais instâncias da vida contemporânea: Cérebro, Cultura e
Cidade.
É neste habitat distópico, repleto de crises políticas, ambientais, sociais e económicas, que
vamos sobrevivendo à beira do colapso mental e civilizacional. O que é que a cultura, as
artes e a gestão democrática das cidades têm em comum com esta situação? Estaremos
conscientes das transformações radicais trazidas pela inteligência artificial?
Reconhecemos o facto de que a cultura das selfies e da representação narcísica é fruto de
uma narcose induzida pelos oligarcas de Silicon Valley e das suas necessidades de acesso
a enormes quantidades de rostos que por sua vez servem para alimentar processos de
machine learning usados para aperfeiçoar a vigilância biométrica colocada ao serviço de
ditaduras em vários pontos do planeta? A China é só o caso mais gritante. Estaremos
despertos para reconhecer a elevada capacidade de manipulação emocional gerada no
contexto das redes sociais? Que processos de subjectivação individual e colectiva podem
ocorrer no contexto do capitalismo cognitivo?
Independentemente da resposta cabal a estas perguntas, o que nos parece ser inevitável é
a tendência para o capitalismo se tornar um factor de descivilização e de regressão
tecnológica e intelectual, pois, ao explorar as energias neuro-psíquicas influi
negativamente nas formas de subjectivação colectiva e individual.
A corporação multinacional detida por Mark Zuckerberg tem vindo a desenvolver com
sucesso tecnologias que permitem ler e descodificar a atividade cerebral, traduzindo
sinais elétricos em linguagem natural (humana). Um laboratório situado na Califórnia,
através do projecto Brain Viewer, conseguiu transcrever imagens mentais (córtex visual)
em imagens pictóricas (ecrã). Neste preciso momento, a interioridade da mente e a
suposta invisibilidade dos seus processos neuronais e cognitivos faz já parte duma
inaudita visualidade que transforma o próprio carácter das imagens. As imagens
deixaram de ser simples elementos visuais (retinianos) para incorporarem
funcionalidades operativas.
Pelo menos desde 2001 (9/11), até ao presente, múltiplos projectos secretos foram sendo
desenvolvidos pelo complexo militar-industrial, e o dispositivo de vigilância planetária é
cada vez mais intrusivo. Com o uso massivo dos panóticos modernos, os sistemas de
vigilância ficam ocultos ou camuflados do ponto de vista dos vigiados. O olhar vigilante
contemporâneo está presente, mas é invisível, sendo caracterizado pela exibição
mediática de uma vigilância implícita e, simultaneamente, pelo espectáculo da
transparência.
O problema biopolítico levantado por Michel Foucault em 1987, coloca-se hoje com muito
maior pregnância. Afinal a produção social de “subjectividades dóceis” ganhou nas
ultimas décadas uma dimensão holística à qual os corpos são submetidos, utilizados e
transformados, controlando corpos e almas, modulando-os através do controlo dos fluxos
da atenção consciente e dos automatismos inconscientes. A afinidade entre poder e saber,
evidenciada por aquele autor, reclama a nossa atenção para a conexão intima entre
capitalismo e conhecimento. O poder produz saberes, mas também fabrica ignorância.
Não havendo relação de poder sem a constituição de um campo de saber, nem saber que
não suponha e não constitua ao mesmo tempo relações de poder.
Num planeta envolto por uma gigantesca malha de infra-estruturas tecnológicas secretas
e ultrapotentes, o potencial de resistência dependerá da nossa capacidade para activar
outros circuitos neuronais através de práticas culturais emancipatórias propiciadas em
todas as comunidades. Contudo, paralelamente ao desenvolvimento da infra-estrutura
técnica, as políticas de cidade avançam alegremente em direção ao modelo das smart
cities, promovido globalmente pela Google (Sidewalk Labs), pela IBM e outros colossos
da computação, incentivando um cada vez maior uso de sensores e sistemas de vigilância
no espaço público. Neste aspecto, e se o objectivo fundamental de uma sociedade
democrática é promover o bem-estar, os direitos, as liberdades e a emancipação de cada
um dos cidadãos, é fulcral que isso passe por uma profunda reflexão acerca do
desenvolvimento endógeno da vitalidade cultural das cidades, bem como pela sua
correlação com o vigor e a criatividade das mentes.
Num horizonte mais vasto da produção simbólica, e de acordo com Pier Luigi Sacco
(2011), é facilmente compreensível que a importância estratégica da participação cultural
activa - no contexto da noção de Cultura 3.0 – seja intrínseca à expansão massiva do
grupo de produtores culturais. A participação cultural activa refere-se portanto a uma
situação na qual os indivíduos não se limitam a absorver passivamente os estímulos
culturais, mas sejam motivados a utilizar as suas habilidades e talentos na produção das
suas próprias formas culturais.