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Cultura e Neuropoder

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Rui Matoso

Opinião

A participação cultural activa refere-se a uma


situação na qual os indivíduos não se limitam a
absorver passivamente os estímulos culturais,
mas sejam motivados a utilizar as suas
habilidades e talentos na produção das suas
próprias formas culturais.

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Em memória de Bernard Stiegler

(1 de abril de 1952–6 de agosto de 2020)

"A nossa época é caracterizada como uma tomada de controlo do simbólico pela
tecnologia industrial, onde a estética se tornou tanto a arma quanto o teatro da guerra
económica. O resultado é a miséria, onde o condicionamento toma o lugar da
experiência" (Bernard Stiegler)
O pensamento e a discussão em torno das políticas e das práticas culturais em Portugal é
atavicamente ancorado em dois ou três assuntos recorrentes e com maior notoriedade
naquilo que se designa como política das artes, e, em especial, acerca da exiguidade dos
programas de financiamento público à criação artística, circulação e programação
cultural, bem como dos efeitos nefastos na precariedade sistémica dos trabalhadores da
cultura.

Sendo a dialética democratização vs. democracia cultural um assunto historicamente


relevante e essencial ao pensamento da transformação social, o mesmo continua a ser
insuficientemente debatido no espaço público e ainda são poucos aqueles que reclamam
da sua pertinência para a qualidade da nossa democracia. Acerca da discussão sobre
descentralização vs. municipalização da cultura, parece que entramos em terreno tabu
dadas as evidências no exercício da dominação do poder local sobre a cidadania cultural e
o não aprofundamento da democracia participativa.

Outras problemáticas caberiam aqui, mas, em qualquer caso, é mais ou menos evidente
que estamos ainda longe de estender a reflexão crítica aos dilemas mais urgentes da
cultura contemporânea. Urgentes no sentido em que é a própria definição de humanidade
e de cultura que são postas em causa, num debate que aliás se tem desenvolvido nos
estudos das humanidades digitais e do pós-humano.

Uma das ausências nos debates em Portugal acontece no campo da relação entre política-
produção-práticas culturais e o contexto do capitalismo cognitivo ou semiótico em que
estamos submersos como peixes num aquário de águas cibernéticas. Nesta matéria,
aquilo que as investigações em torno da relação entre tecnologia e capitalismo têm vindo
a demonstrar é de facto perturbador: o poder tecno-capitalista tem gerado distúrbios
profundos nas três principais instâncias da vida contemporânea: Cérebro, Cultura e
Cidade.

Quando pensamos em “cultura” tendemos, em grande medida, a referirmo-nos à cultura


objectivada ou material (obras e objectos artísticos) em detrimento da cultura
subjectivada (experiência estética, informação, cognição, etc.), menosprezando a análise
dos modos como as produções simbólicas afectam o cérebro e a sua neuroplasticidade.
Esta neuroplasticidade deve ser entendida num quadro mais geral da crítica da economia
política, onde muitas das descrições de “plasticidade” são de facto justificações para uma
flexibilidade neoliberal sem limites, um sinal de que o neoliberalismo é uma
economia da plasticidade coadjuvada pelo conhecimento neurocientífico.

No contexto cibernético em que coexistimos com infra-estruturas tecnológicas que fazem


do cérebro a derradeira fonte de extração de mais-valias, torna-se manifesto que o actual
regime de computação penetra todas as esferas da vida social, biológica ou económica,
alterando paradigmas de governação política (governação algorítmica) e constituindo-se
globalmente como uma hiper-realidade computacional. O filósofo coreano, Byung-Chul
Han, reitera que é através das emoções que se chega às profundezas do quantified self, ou
seja, a emoção representa um meio eficiente para estabelecer o controlo psicopolítico dos
indivíduos.

Através da simulação computacional dos processos cerebrais, a cibernética incrementou o


desenvolvimento acelerado de psicotecnologias (mas também de psicopatologias), de
próteses neuronais (neurotecnologias) e de interfaces cérebro-máquina, cujos efeitos na
produção das subjetividades (processos de individuação pessoal e colectiva) vêm
abalando a nossa relação com a produção simbólica em geral e com as práticas culturais
“clássicas”. Na esteira de Marshal Mcluhan e da sua teoria dos media é conhecido o
fenómeno traumático das extensões tecnológicas da mente humana. Por outro lado, o
desenvolvimento técnico das ultimas décadas actualizou o conhecimento acerca dos
mecanismos de exploração do Intelecto Geral já delineada por Marx no manuscrito
Grundrisse para constatar o modo como a criação de capital fixo (tecnologias
usadas na produção) captura o conhecimento social e com isso a vida social
em si mesma, e os transforma em forças de produção capitalista.

Do computador aos interfaces neuronais ou às nano-partículas, estas tecnologias acabam


por gerar efeitos perversos: perda de capacidade de memorização, patologias cognitivas,
aceleração e simultaneidade de tarefas (multitasking), narcisismo, adição, etc. No regime
inaugurado pelas indústrias da consciência dá-se uma ruptura nos paradigmas do
exercício do poder simbólico, em direcção àquilo que Maurizio Lazzarato designa como
noo-políticas: o foco do exercício do poder, e das tecnologias à sua disposição, não é já
direcionado à materialidade do corpo, mas antes para a vida psíquica e muito
particularmente para a modulação da memória e da atenção.

Na formulação de Toni Negri e Michael Hardt, o “Império” exerce o poder mediante


máquinas que organizam directamente os cérebros e os corpos, com o objectivo de criar
um estado de alienação permanente e independente do sentido da vida. Neste âmbito,
trata-se de entender a criação de um novo “Império” instituído agora como Sociedade de
Controlo. Num contexto de possibilidades ilimitadas de comunicação (redes sociais,
aplicações, etc.), a cibervigilância - e o potencial de manipulação emocional gerador de
medo e de pânico social - é convertida hoje num mecanismo de vigilância total (panóptico
digital), onde o controle activo e as novas técnicas do poder neoliberal permitem intervir
na psique e condicioná-la a um nível pré-reflexivo.

É neste habitat distópico, repleto de crises políticas, ambientais, sociais e económicas, que
vamos sobrevivendo à beira do colapso mental e civilizacional. O que é que a cultura, as
artes e a gestão democrática das cidades têm em comum com esta situação? Estaremos
conscientes das transformações radicais trazidas pela inteligência artificial?
Reconhecemos o facto de que a cultura das selfies e da representação narcísica é fruto de
uma narcose induzida pelos oligarcas de Silicon Valley e das suas necessidades de acesso
a enormes quantidades de rostos que por sua vez servem para alimentar processos de
machine learning usados para aperfeiçoar a vigilância biométrica colocada ao serviço de
ditaduras em vários pontos do planeta? A China é só o caso mais gritante. Estaremos
despertos para reconhecer a elevada capacidade de manipulação emocional gerada no
contexto das redes sociais? Que processos de subjectivação individual e colectiva podem
ocorrer no contexto do capitalismo cognitivo?

Independentemente da resposta cabal a estas perguntas, o que nos parece ser inevitável é
a tendência para o capitalismo se tornar um factor de descivilização e de regressão
tecnológica e intelectual, pois, ao explorar as energias neuro-psíquicas influi
negativamente nas formas de subjectivação colectiva e individual.

A corporação multinacional detida por Mark Zuckerberg tem vindo a desenvolver com
sucesso tecnologias que permitem ler e descodificar a atividade cerebral, traduzindo
sinais elétricos em linguagem natural (humana). Um laboratório situado na Califórnia,
através do projecto Brain Viewer, conseguiu transcrever imagens mentais (córtex visual)
em imagens pictóricas (ecrã). Neste preciso momento, a interioridade da mente e a
suposta invisibilidade dos seus processos neuronais e cognitivos faz já parte duma
inaudita visualidade que transforma o próprio carácter das imagens. As imagens
deixaram de ser simples elementos visuais (retinianos) para incorporarem
funcionalidades operativas.

A coalescência entre cérebro, imagem, algoritmos e inteligência artificial gerou um


ambiente cibernético capaz de alterar e inculcar comportamentos, ideias, ideologias e
acções no mundo. Dito de outro modo, no actual regime escópico potenciado pela
ubiquidade computacional, a imagem deixou de ser apenas representação da realidade e
simulacro retiniano, tendo adquirido capacidades performativas. Isto significa que os
comportamentos, os hábitos culturais, as identidades ou as disposições humanas são
agora condicionadas por um poder panóptico que funciona como uma espécie de
laboratório de dominação das subjectividades, o qual, em virtude dos seus dispositivos de
vigilância e agenciamento, ganha em eficácia e capacidade de penetração nos hábitos
humanos e, desse modo, um aumento de supremacia vem implantar-se em todas as
frentes deste novo neuropoder.

Pelo menos desde 2001 (9/11), até ao presente, múltiplos projectos secretos foram sendo
desenvolvidos pelo complexo militar-industrial, e o dispositivo de vigilância planetária é
cada vez mais intrusivo. Com o uso massivo dos panóticos modernos, os sistemas de
vigilância ficam ocultos ou camuflados do ponto de vista dos vigiados. O olhar vigilante
contemporâneo está presente, mas é invisível, sendo caracterizado pela exibição
mediática de uma vigilância implícita e, simultaneamente, pelo espectáculo da
transparência.

Neuropoder é uma forma de conhecimento produzido pelo poder tecnológico em aliança


com o poder político, que actua por meio da modulação de processos mentais, funções e
expressões, dirigido a indivíduos e a agregados populacionais. Por meio de imagens
cerebrais, tratamentos médicos e farmacologia, extensões técnicas, redes digitais, regimes
jurídicos e paradigmas conceptuais orientadores, o neuropoder actua nas funções mentais
que antes eram invisíveis, ignoradas ou ingovernáveis. O neuropoder é uma lógica
capacitadora de uma governamentalidade que vê na regulação da cognição, da sensação,
da atenção, do humor e da aptidão mental, um novo e singular território de influência e
soberania.

O problema biopolítico levantado por Michel Foucault em 1987, coloca-se hoje com muito
maior pregnância. Afinal a produção social de “subjectividades dóceis” ganhou nas
ultimas décadas uma dimensão holística à qual os corpos são submetidos, utilizados e
transformados, controlando corpos e almas, modulando-os através do controlo dos fluxos
da atenção consciente e dos automatismos inconscientes. A afinidade entre poder e saber,
evidenciada por aquele autor, reclama a nossa atenção para a conexão intima entre
capitalismo e conhecimento. O poder produz saberes, mas também fabrica ignorância.
Não havendo relação de poder sem a constituição de um campo de saber, nem saber que
não suponha e não constitua ao mesmo tempo relações de poder.

Se em maio de 1968 coabitávamos numa sociedade do espectáculo integrado, em 2020


podemos dizer que, tal como Debord previra, o espectáculo misturou-se a toda a
realidade, irradiando-a em todos os poros e neurónios da humanidade. O resultado é a
difusão global da miséria simbólica (Bernard Stiegler), libidinal e emocional: os
indivíduos foram privados dos hábitos de contemplação estética de singularidades
artísticas, vendo as suas capacidades de atenção e percepção serem absorvidas pelo
dispositivo tecno-estético planetário. Nesta situação, avisa Stiegler, o abandono do
pensamento político pelo mundo das artes e da cultura, resultará numa catástrofe.

A nova gestão do visível, agora apropriado pela cibernética, é a condição do modelo


dominante da industrialização do não-olhar (Paul Virilio) que funciona de acordo
com as necessidades das indústrias da informação, militares, médicas ou do
entretenimento. Nas circunstâncias actuais, e de um modo geral, é a capacidade de
atenção dos indivíduos que é capturada e vendida aos anunciantes nas plataformas
digitais. Para que cada utilizador gere uma economia (da atenção) suficientemente
rentável o uso dessas plataformas é gratuito, sendo apenas necessário gerar níveis
óptimos de atenção, função garantida pelas investigações no campo do
neuromarketing. No contexto da Economia da Atenção e do Capitalismo Cognitivo,
cada um dos nossos cérebros é concitado a mergulhar no aquário cibernético –
ciberespaço – colocando neurónios e processos mentais ao dispor deste novo poder
colonizador.

Se o cérebro é o lugar de integração e tradução da experiência humana, agindo tal como


uma membrana que liga o exterior e o interior, permitindo-nos a interpretação dos
contextos em que nos situamos, e se a envolvente contextual se encontra saturada por
sistemas de computação inteligente, é na interação entre o cérebro e os fluxos de
informação que emergem estados de consciência produzidos e simulados por redes
neurais artificiais (cujo funcionamento é inspirado no sistema nervoso central
humano). É portanto na interação entre os cérebros e estas extensões técnicas da psique
que são produzidas alterações no campo unificado da experiência, coagindo o cérebro a
calibrar-se segundo as métricas do ambiente virtual-digital. É neste trabalho de
adaptação coerciva da rede neuronal ao meio-ambiente electrónico (aquário cibernético)
que reside o sucesso da operacionalidade do neuropoder.

Quando os regimes de poder atingem um determinado estádio de dominação avançado


corre-se o risco de todas as oposições e alternativas serem absorvidas e anuladas. Neste
ponto a racionalidade tecnológica revela-se como potência política e veículo de
dominação eficaz, criando um “universo verdadeiramente totalitário no qual a sociedade
e a natureza, o espírito e o corpo são mantidos num estado de mobilização permanente
em defesa desse universo” (Marcuse, O Homem Unidimensional). A diferença é que
durante os tempos da propaganda ideológica, difundida através de suportes visuais
convencionais (cartaz, televisão, livro, etc.), a resistência simbólica e a teoria crítica foram
suficientes para desconstruir mecanismos de doutrinação e manipulação emocional;
enquanto que na nossa contemporaneidade cibernética convivemos diariamente com
tecnologias high tech que permitem uma conexão mais intensa, intima e directa com o
cérebro, somos constantemente induzidos a alimentar os mecanismos de adição e
recompensa (neurofeedback) e é por aí que se entranham discursos, afeções,
comportamentos e ações moduladas e produzidas por instâncias de poder anti-
democrático.

Num planeta envolto por uma gigantesca malha de infra-estruturas tecnológicas secretas
e ultrapotentes, o potencial de resistência dependerá da nossa capacidade para activar
outros circuitos neuronais através de práticas culturais emancipatórias propiciadas em
todas as comunidades. Contudo, paralelamente ao desenvolvimento da infra-estrutura
técnica, as políticas de cidade avançam alegremente em direção ao modelo das smart
cities, promovido globalmente pela Google (Sidewalk Labs), pela IBM e outros colossos
da computação, incentivando um cada vez maior uso de sensores e sistemas de vigilância
no espaço público. Neste aspecto, e se o objectivo fundamental de uma sociedade
democrática é promover o bem-estar, os direitos, as liberdades e a emancipação de cada
um dos cidadãos, é fulcral que isso passe por uma profunda reflexão acerca do
desenvolvimento endógeno da vitalidade cultural das cidades, bem como pela sua
correlação com o vigor e a criatividade das mentes.

Centremo-nos então nos indivíduos e na sua relação com o binómio cultura-cidade na


época em que o cérebro - a mente e a consciência - é a derradeira matéria-prima do
neurocapitalismo. A plasticidade e a multiplicidade são duas constantes da nossa
maquinaria cognitiva concebida para a auto-transformação face aos ambientes
socioculturais que nos envolvem, daí a importância de se reclamar a importância de
envolventes culturais e tecnológicas amenas, catalisadoras de um desenvolvimento
neuronal liberto de coações, com autonomia e liberdade crítica de agenciamento. Diante
de um contexto civilizacional paranoico, onde a vigilância activa (24/7) sobre os cidadãos
se torna ubíqua e omnipresente, a individuação psíquica e a transindividuação colectiva
requerem novos espaços onde a privacidade seja possível, designadamente espaços de
resistência face ao poder hegemónico dos Estados e das corporações.
A constituição de uma neuropolítica cultural, enquanto antagonista do
neuropoliciamento e do neuropoder iliberal, tem de considerar igualmente uma política
da estética, uma economia política da imagem e uma ecologia dos media, partindo, por
exemplo, de Jacques Ranciére e da sua noção de política como partilha e distribuição do
sensível. O futuro próximo que a Europa tem obrigatoriamente de abraçar deve partir da
auto-crítica dos seus padrões culturais indigentes e rejeitar toda a intolerância xenófoba
da alteridade. Simbólico do fechamento desta mentalidade europeia é o destino dos
migrantes, refugiados e requerentes de asilo que carregam o peso inaceitável do racismo
na Europa contemporânea. É necessário definir uma nova agenda que não se fundamente
na subjetividade racional, universal e eurocêntrica, mas antes numa transformação
radical dela, em ruptura com as tendências imperiais, fascistas e antidemocráticas da
Europa. Trata-se, portanto, de repensar uma outra figura do humano e de imaginar uma
subjectividade que expresse e incorpore um sentido forte de colectividade, do relacional e
da capacidade de construção de laços comunitários localizados, mas também nomádicos.

Num horizonte mais vasto da produção simbólica, e de acordo com Pier Luigi Sacco
(2011), é facilmente compreensível que a importância estratégica da participação cultural
activa - no contexto da noção de Cultura 3.0 – seja intrínseca à expansão massiva do
grupo de produtores culturais. A participação cultural activa refere-se portanto a uma
situação na qual os indivíduos não se limitam a absorver passivamente os estímulos
culturais, mas sejam motivados a utilizar as suas habilidades e talentos na produção das
suas próprias formas culturais.

A construção de um projecto de desenvolvimento humano (para a liberdade) carece de


uma valorização da cultura popular, assim como do incentivo à criatividade e à
participação da população. As políticas culturais aparecem, portanto, como importante
meio para fomentar tal envolvimento da sociedade com o desenvolvimento, e o
desenvolvimento tem necessariamente a ver com transformação, sobretudo com um
processo de elaboração, confronto e realização plural de projectos.

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