Você está na página 1de 1

SODRÉ, Muniz. As estratégias sensíveis: afeto, mídia e política. Petrópolis: Vozes, 2006.

C1 – Sentir, Comunicar e Compreender

19 – Mas quando se admite que “o meio é a mensagem” (McLuhan), está-se dizendo que há sentido
no próprio meio, logo, que a forma tecnológica equivale ao conteúdo e, portanto, não mais veicula
ou transporta conteúdos-mensagens de uma matriz de significações (uma “ideologia”) externa ao
sistema, já que a própria forma é essa matriz. Tal é o sentido ou o “conteúdo” da tecnologia: uma
forma de codificação hegemônica, que intervém culturalmente na vida social, dentro de um novo
mundo sensível criado pela reprodução imaterial das coisas, pelo divórcio entre forma e matéria.

24 – A infinita e imediata expressividade do corpo leva à suposição de que o poder ativo e passivo
das afecções ou dos afetos, além de preceder a discursividade da representação, é capaz de negar a
sua centralidade racionalista, seu alegado poder único. Um exemplo talvez pequeno, mas certamente
significativo, mostra-se no teatro, quando a qualidade de expressão no corpo do ator transcende a
qualidade do texto, fazendo às vezes com que um roteiro medíocre ganhe dimensões notáveis no
palco. Fatores como ritmo, tempo, entrosamento, energia, gesto e corpo sobrepõem-se à literalidade
da peça. Por outro lado uma parte considerável do pensamento contemporâneo é atravessada pela
intuição de que a dimensão dos afetos pode escapar da apregoada onipotência da razão metafísica.
O regime afetivo da alegria é um bom exemplo. Segundo o francês (Clement) Rosset, ela “é por sua
própria definição, de essência ilógica e irracional. Para pretender ao sério e à coerência, sempre lhe
faltará uma razão de ser que seja convincente ou mesmo simplesmente que possa ser confessada e
dizível. A língua corrente diz muito mais a respeito do que geralmente se pensa quando se fala de
‘alegria louca’ ou declara que alguém está ‘louco de alegria’.

30-1 – (Antônio) Damásio preocupa-se especialmente com a vinculação dos sistemas cerebrais a
comportamentos de planejamento e decisão “pessoais e sociais” e conclui por uma partilha entre o
que se chama de racionalidade e o processamento de informação. Partindo da noção de corpo como
organismo vivo complexo, pleno de processos em constante modificação, ele sustenta que a
capacidade de deliberar está relacionada à capacidade de ordenação de imagens internas (visuais,
sonoras, olfativas, etc.). Estas constituem propriamente o pensamento. O conhecimento assume em
grande parte a forma de imagens. Para que se realize o raciocínio, é preciso que essas imagens
estejam ativas e disponíveis, o que supõe processos ligados a emoções e sentimentos.

C2 – O emotivo e o indicial na mídia

122 – Não se tenta eliminar, como no nazismo, o deficiente físico ou a alteridade étnica (ou psíquica,
ou sexual), mas se buscam alinhar esteticamente as diferenças a partir de paradigmas
mercadológicos de aparência, conduta e pensamento. O bios é um lugar magneticamente afetivo,
uma recriação tecnoestética do ethos, capaz de mobilizar os humores ou estados de espírito dos
indivíduos, reorganizando seus focos de interesse e de hábitos, em função de um novo universo
menos psiquicamente “interiorizado” e mais temporalmente relacionado ou conectado pelas redes
técnicas. Bios midiático ou bios virtual são, assim, expressões adequadas para o novo tipo de forma
de vida (bios, na terminologia aristotélica) caracterizado por uma realidade imaginarizada, isto é, feita
de fluxos de imagens e dígitos, que reinterpretam continuamente com novos suportes tecnológicos as
representações tradicionais do real. Trata-se geralmente de um imaginário controlado e sistemático,
sem potência imaginativa ou metafórica, mas com uma notável capacidade ilocutária (portanto, um
imaginário adaptável à produção) que não deixa de evocar a dinâmica dos espelhamentos
elementares ou primais. O elementarismo fundador da máquina-espelho reencontra-se, reforçado, no
imaginário administrado pelas máquinas eletronicamente inteligentes. Emerge daí um novo tipo de
política-polícia, que incide sobre os costumes – de agora em diante definitivamente regidos pelas
diretivas do mercado – e sobre a apropriação da informação coletiva. Se antes o Estado totalitário
pretendia enraizar-se na vida da nação, reunificando (contra o liberalismo) corpo e espírito, agora é a
mídia, esse forte dispositivo cinemático, que se enraíza culturalmente na vida social, por meio de uma
forma simulativa ou espectral de vida (o bios), mobilizando os corpos da cidadania, instituindo um
imaginário que se confunde com a realidade da vida nua, natural, de modo a constituir uma nova
esfera existencial plenamente afinada com o capital, onde o desejo se imponha preferencialmente
como desejo de mercado.

Você também pode gostar