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DOM QUIXOTE E A INSTAGRAMIZAÇÃO DAS RELAÇÕES SOCIAIS

O neoliberalismo do século XXI possui uma característica que o faz distinguir-se do seu
passado biopolítico (ao que Foucault estabelece um dilema entre o regime biopolítico e o
sistema neoliberal, impossibilitando-o de desassociar um de outro)[i]: a “exploração da
liberdade” por meio da “digitalização” das relações sociais, desenvolvendo uma espécie de
“fetichismo digital” e uma “reificação tecnológica”, através dos influenciadores digitais. Um
digital influencer não nasce por geração espontânea, ele se torna reconhecido na medida que
suas publicações agradam os olhares dos que podem vir a ser colaboradores de seu projeto. O
número de pessoas que se encaixam nesse papel deve ser ínfimo, pelo fato de trabalhar como
um agregador das massas, para atingir os interesses da burguesia. Uma conta no Instagram
possui dois lados: uma conta pessoal, que é mais reservada, e a conta “comercial” (utilizada
pelos influencers). Esta última possui o termo “comercial” não por acaso. O indivíduo que
opta pela segunda opção deixa de ser um “ser humano” e se torna uma “mercadoria
humanizada”, cujas relações com seus semelhantes tornam se, ao que Bauman denominará
em suas obras: relações líquidas.

O curtir é o amém digital. Quando clicamos nele, subordinamo-nos ao contexto de


dominação. O smartphone não é apenas um aparelho de monitoramento eficaz, mas também
um confessionário móvel. O Facebook é a igreja ou sinagoga (…) do digital.”[ii]

Instagram, apesar de a diferença dessa com outras redes ser apenas aparente. Ao mesmo
tempo que o criador de conteúdo é um “pároco” do Capitalismo Tecnológico, é também uma
vítima dele. Desenvolve diariamente inúmeras publicações, publi-posts, colabs, lives etc. com
o intuito apenas de atender à demanda cada vez maior do “Capital absoluto”, sob a
“penitência” de perder o engajamento daquele dia, que deve ser cada vez mais aumentado, à
medida em que o “mandamento” de se seguir um algoritmo temporal (desde a primeira
publicação e as subsequentes devem ser postadas no mesmo horário. Se não cumprido, o
engajamento – o número de curtidas, compartilhamentos etc. – será reduzido e o trabalho
destinado para a produção daquela publicação, terá um retorno menor, será em vão, para
atender à demanda do capital. Uma espécie de “mais-valia” digital) é seguido.
Essa exploração, sem rumo algum, servindo a um “deus diabólico”, inconsciente e fetichista,
está figurada na epopeia de Miguel de Cervantes, Dom Quixote[iii], partindo de uma análise
feita pelo sociólogo húngaro György Lukács em A Teoria do Romance, no qual é feita uma
crítica ao “Deus demoníaco”, que institui uma consciência de dominação positiva, um
progresso sem rumo, apenas para atender ao que a psicanálise denomina gozo do Outro. Em
LUKÁCS (2000), é possível encontrar a crítica às epopeias de cavalaria, escárnio de
Cervantes, o ponto exato da loucura adquirida por Dom Quixote, chamada também de
“monomania”, em busca de um “sentido” para suas aventuras:

“Assim que o máximo de sentido alcançado em vida torna-se o máximo de ausência de


sentido: a sublimidade torna-se loucura, monomania. E essa estrutura da alma tem de
atomizar completamente a massa possível de ações. Mesmo que, (…), a realidade externa
permaneça intocada por ela e revele-se ‘tal como é’ em resposta a cada ação do herói, nem
por isso ela deixa de ser uma massa perfeitamente inerte, amorfa e sem sentido, a que falta
toda capacidade de reação planejada e uniforme e da qual a demoníaca sede de aventuras do
herói elege, de maneira arbitrária e incoerente, aqueles momentos em que deseja pôr-se à
prova.”[iv]

Levando em consideração o excerto acima apresentado, quando Lukács e fazemos um


paralelo com o contexto hodierno das redes sociais, feitas as devidas distinções, é possível
encontrar uma semelhança naquilo o sociólogo chama de teodiceia que, na figura de
romances de cavalaria na idade média, percebe-se a dependência do Eu ante ao que fora
chamado de “Demônio do Meio dia” (acídia). O inconsciente comandando o ser aos moldes
de sua era. Com o constante processo de autovalorização do capital é chegar na Era das redes,
o que teo torna-se data, uma “Odisseia dos dados”, que reduz o indivíduo ao cansaço,
explorando-o gradativamente numa “aventura sem fim”, e condenando-o ao marasmo da
alienação no panóptico psicológico (e psicossomático), da exploração e da positividade, que
leva ao sofrimento psíquico. O influencer se sujeita a isso e o influenciado também, como
mero constructo da massa associada às redes, como o Instagram. De fato, a sociedade está
desaparecendo e virando um mero número para o “banco de dados” do sistema capitalista. O
ser se encontra preso na monomania de uma aventura automatizada, técnica e depressiva.

Notas de rodapé
↑i Foucault inclusive garante aos estudantes do Collège de France, em 1979, intitulado O
nascimento da biopolítica, tornando-se uma obra póstuma de mesmo nome, que “(…),
apesar de tudo, eu tinha a intensão de lhes falar de biopolítica, mas, sendo as coisas
como são, acabei me alongando, me alongando talvez demais, sobre o neoliberalismo”
(FOUCAULT, M. O nascimento da biopolítica. Tradução: Eduardo Brandão. São Paulo,
SP: Martins Fontes, 2008. p. 257)

↑ii HAN, Byung-Chul. Psicopolítica: O neoliberalismo e as novas técnicas de poder.


Tradução: Maurício Liesen. Belo Horizonte, MG: Âyné, 2018. p. 24

↑iii CERVANTES, M. Dom Quixote: vols. 1 e 2. Tradução: Ernani Ssó. São Paulo, SP:
Penguin Classics & Companhia das Letras, 2012. 1071 p.

↑iv LUKÁCS, G. A Teoria do Romance. Tradução: José Marcos Mariani de Macedo. São
Paulo, SP: Duas Cidades/Editora 34, 2000. p. 103.

Referências

i. FOUCAULT, M. O nascimento da biopolítica. Tradução: Eduardo Brandão. São


Paulo, SP: Martins Fontes, 2008. 475 p.
ii. HAN, Byung-Chul. Psicopolítica: o neoliberalismo e as novas técnicas de poder.
Tradução: Maurício Liesen. Belo Horizonte, MG: Âyné, 2018. 124 p.
iii. CERVANTES, M. Dom Quixote: vols. 1 e 2. Tradução: Ernani Ssó. São Paulo, SP:
Penguin Classics & Companhia das Letras, 2012. 1071 p.
iv. LUKÁCS, G. A Teoria do Romance. Tradução: José Marcos Mariani de Macedo. São
Paulo, SP: Duas Cidades/Editora 34, 2000. 236 p.

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