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A CONSTITUIÇÃO DA MULTIDÃO NA ERA VIRTUAL DAS REDES

SOCIAIS

DE SOUZA, Paula Tainar.


(PPG-FCL/UNESP)
paula.tainar90610@gmail.com

RESUMO

Esta proposta tem como objetivo central a realização de uma análise histórico-
comparativa entre a constituição das multidões e o seu desenvolvimento sob influência
dos meios de comunicação. O fenômeno de aumento do aglomerado de pessoas nos
centros urbanos ocorre no século XIX, simultâneo ao surgimento dos meios de
comunicação de massa. Ao longo do século XX o cinema desenvolve sua própria
linguagem e, muito além de entretenimento, nos permite compreender historicamente as
relações sociais. Devido às transformações da sociedade contemporânea, não é possível
compreendê-la sem levar em consideração a atuação midiática e o culto à imagem. Na
sociedade atual, sofremos um processo de inflação de imagem na qual ela está em foco,
em diversos níveis e em constante exposição. Desse modo, pretende-se analisar a
importância deste fenômeno no âmbito social, com ênfase na compreensão da
constituição da multidão atual em meio a popularidade da internet e das redes sociais.

PALAVRAS-CHAVE: Imagem; Sociedade midiática; Capitalismo.


ABSTRACT

This proposal has as its central objective the realization of a historical-


comparative analysis between the constitution of the crowds and their development
under the influence of the media. The phenomenon of an increase in the number of
people in urban centers occurred in the 19th century, simultaneously with the
emergence of mass media. Throughout the 20th century, cinema develops its own
language and, beyond entertainment, allows us to understand social relations
historically. Due to the transformations of contemporary society, it is not possible to
understand it without taking into account the media performance and the cult of the
image. In today's society, we experience a process of image inflation in which it is in
focus, at different levels and in constant exposure. Thus, it is intended to analyze the
importance of this phenomenon in the social sphere, with an emphasis on understanding
the constitution of the current crowd amid the popularity of the internet and social
networks.

KEY-WORDS: Image; Media Society; Capitalism.


INTRODUÇÃO

O presente artigo visa realizar uma análise histórico-comparativa entre a


constituição das multidões e o seu desenvolvimento sob influência dos meios de
comunicação, tentando compreender a configuração da multidão atual. Na sociedade
atual, sofremos o processo de inflação da imagem na qual ela está em foco, fenômeno
que contribui para a construção de indivíduos esvaziados de sua própria história,
tamanha é a superficialidade. Sendo assim, pretende-se realizar uma revisão teórica de
alguns autores que tomamos contato, a fim de observar a importância deste fenômeno
no âmbito social e político, com ênfase na compreensão da multidão na modernidade
atual.
Durante as revoluções burguesas, a sociedade sofreu uma série de modificações,
sendo a transição da idade moderna para a contemporânea. O aumento do aglomerado
de pessoas nos centros urbanos, assim como o surgimento dos meios de comunicação de
massa, influenciou o surgimento de novas relações sociais e relações de poder. Após a
invenção do cinema, esse fenômeno se agravou e ao longo do século XX, a linguagem
audiovisual se desenvolveu e, portanto, tornou-se uma forma de comunicação legítima.
Simultaneamente, o espectador também apurou sua compreensão, adquiriu senso crítico
para essa nova forma de narrar histórias que estava surgindo.
Gustave Le Bon nos permitiu compreender a formação do aglomerado de pessoas
e suas características psicológicas no século XIX; os estudiosos de mídia tais como
Walter Benjamin e Jesús Martin-Barbero nos trouxe a compreensão de parte dos
processos iniciados com o desenvolvimento dos meios de comunicação de massa;
Antonio Negri e Michael Hardt nos permitiu a compreensão das multidões além da
compreensão de Le Bon, bem como sua constituição na modernidade devido à
contextualização das dinâmicas sociais do século XXI, nos orientou para as conclusões
alcançadas.
A MULTIDÃO NO SÉCULO XIX E SEU DESENVOLVIMENTO SIMULTÂNEO
AOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO DE MASSA

No final do século XIX, Gustave Le Bon (2008) denunciou a constituição das


multidões ao desenvolver um estudo acerca das características e transformações sociais
do período. O aumento do aglomerado de pessoas resultou em inúmeras consequências,
e no contexto caótico resultante das destruições de crenças e tradições durante a Idade
Moderna, nota-se a existência de mudanças também no plano político e social (LE
BON, 2008). Em um momento conturbado, o povo questiona a estrutura política e então
se colocam como agentes. Sendo assim, as multidões se legitimam como o novo poder
da Idade Moderna, fazendo valer sua voz e deixando evidente que o rei/soberano deve
aprender controlar as multidões se quiser ter sucesso em seu governo.

É na imaginação popular que o poder dos conquistadores e a força dos


Estados se fundam. É agindo sobre ela que se arrastam as multidões [...]. Por
isso os grandes homens de Estado de todas as épocas e de todos os países, aí
incluídos os mais absolutos déspotas, consideravam a imaginação popular um
sustentáculo do poder. (LE BON, 2008, p. 68,69)

Devido às transformações nas relações sociais, no pensamento humano e no plano


cientifico, surgem modificações também na dinâmica das relações de poder. O Poder,
monopolizado pelos soberanos, agora está pluralmente presente na sociedade civil, ou
seja, nas multidões que habitam principalmente os centros urbanos. A energia das
multidões sofreu transformações sociais, logo, a opinião da multidão se sobressaiu em
detrimento da voz dos soberanos, que precisou aprender a lidar com a aceitação da
multidão.

É na alma das multidões que o destino das nações se preparam [...] pouco
aptas ao raciocínio, as multidões mostram-se, ao contrário, muito aptas a
ação. A atual organização torna a força delas imensa. Os dogmas que vemos
nascer rapidamente adquirirão o poder dos velhos dogmas. (LE BON, 2008,
p. 20, 21)

Em Le Bon (2008), o fenômeno do surgimento de um comportamento no plano


coletivo distinto do comportamento individual foi chamado de alma coletiva. Ele
categoriza as multidões como impulsivas, resultado de ações premeditadas, podendo se
tornar irritadiças, perigosas e violentas. Essa característica de instabilidade ocorre
devido ao impulso violento e incapacidade de administração do desejo. Por isso, podem
ser conquistas através de discursos fortes e inflamados, imagens que despertam a
sensibilidade e estruturas narrativas voltadas ao exagero. Nesse contexto, o resgate e
construção de figuras de heróis também se torna muito eficaz, pois desperta inspiração
nesses membros. O processo de convencimento das multidões se dá por quatro etapas.
Primeiramente a sugestão de uma ideia, que vai ser afirmada, repetida, e, por último,
ocorre o fenômeno do contágio. Gustave Le Bon (2008) defende que, uma vez que o
indivíduo tem seu consciente desativado e não possui senso crítico, ocorre um efeito
hipnótico. Neste momento, a ideia se transforma em ação, que por sua vez não é
resultante de um conhecimento crítico, pois são pouco aptas ao raciocínio.

Ora, acuradas observações parecem provar que o indivíduo mergulhado há


algum tempo numa multidão agitada rapidamente cai [...] num estado
particular, que muito se aproxima do estado de fascinação do hipnotizado nas
mãos do seu hipnotizador. Estando paralisada a atividade cerebral do sujeito
hipnotizado, ele se torna escravo de todas as suas atividades inconscientes,
que o hipnotizador dirige segundo a sua vontade. A personalidade consciente
desaparece, a vontade e o discernimento são abolidos. Sentimentos e
pensamentos são então orientados na direção determinada pelo hipnotizador.
(LE BON, 2008, p.35, 36)

Aqui, compreende-se que as multidões não são possuidoras de pensamento crítico,


por isso são suscetíveis à imoralidade e excessos. Paradoxalmente consegue ser
conversadoras, intolerantes e complexas, ao mesmo tempo em que preservam as
características revolucionárias, de simplicidade e aceitação. Vale destacar que, Gustave
Le Bon era um intelectual francês, estudiosos de várias áreas da ciência, então devido à
essa condição socialmente privilegiada, a forma como analisou as características
psicológicas das multidões é tendenciosa.
Michel Foucault (1979) questiona essa forma de compreensão através da crítica ao
pacto social. A relação de poder não surge após a decadência dos Estados modernos,
essas relações já existem anterior a constituição dessa estrutura de governo. Sendo
assim, ao realizar as análises acerca da genealogia do poder, ele constata a inexistência
de um espaço fora das relações de força, uma vez que o pacto social seria, portanto, uma
espécie de vontade de potência dos súditos que abrem mão de certos direitos,
terceirizando o governo para os soberanos. Apesar de existir uma suposta ordem após o
estabelecimento do pacto social, as forças continuam se organizando, travando conflitos
e, consequentemente, exercendo o poder. Em Foucault, mesmo com a existência do
pacto social, o súdito não abre mão do seu poder, ele o utiliza, permitindo que o
soberano exerça seu governo. Uma vez que o acordo não satisfaz, surgem
reivindicações decorrentes da insatisfação, e em alguns casos, uma Revolução visando
destruir a estrutura vigente.

Não se trata de analisar as formas regulamentares e legítimas do poder em


seu centro, no que possam ser seus mecanismos gerais e seus efeitos
constantes. Trata-se, ao contrário, de captar o poder em suas extremidades,
em suas últimas ramificações, lá onde ele se torna capilar; captar o poder nas
suas formas e instituições mais regionais e locais, principalmente no ponto
em que, ultrapassando as regras de direito que o organizam e delimitam, ele
se prolonga, penetra em instituições, corporifica-se em técnicas e se mune de
instrumentos de intervenção material, eventualmente violento. (FOUCAULT,
1979, p. 182)

O poder de soberania é o primeiro mecanismo de poder que Foucault diagnostica.


Podemos afirmar, portanto, que em toda e qualquer sociedade existe uma relação de
poder, já que uma das partes apresenta a resistência. Não fosse assim, as relações de
poder não poderiam ser legítimas.
No século XIX, compreende-se que a multidão é uma reunião de pessoas, e ao
compor essa coletividade de indivíduos experiencia modificações psicológicas. A
composição das multidões pode ser: homogêneas – quando os membros possuem
interesses de classe em comum –, ou heterogêneas – quando não possuem interesses em
comum, anônimas ou não anônimas (LE BON, 2008). Nos dois casos apresentam
características psicológicas semelhantes, mas aqui, as multidões são compreendidas
com a inexistência de pensamento crítico e inteligência. Isso quer dizer que, conforme
se inserem em uma coletividade, adquirem ações instintivas, mesmo que o indivíduo
seja intelectualmente esclarecido. Além disso, essa característica poderia explicar
atuação desorganizada quando se unem em prol de suas reivindicações. Como as
exigências revolucionárias burguesas restringiam-se aos interesses burgueses, nesse
contexto o indivíduo inserido na classe operária era pré-político, e, portanto, além de
explorados, caracterizado como desprovido de consciência crítica.
A compreensão das mudanças fica mais evidente se levarmos em conta a
influência dos meios de comunicação de massa nas multidões. O surgimento do
cinematógrafo foi um marco e representou as mudanças do século XIX. Ao longo do
século XX a linguagem cinematográfica e das outras mídias se desenvolveram,
permitindo a participação do público e a possibilidade de expor sua visão de mundo,
mesmo que esses indivíduos sejam supostamente alienados.
O fenômeno de formação do aglomerado de pessoas é universal e apresenta
consequências em todas as nações, cada qual com suas singulares. Antônio Negri
(2005) não compreende a multidão como passiva e enfatiza a heterogeneidade da sua
composição, ela torna-se imanência justamente devido ao conjunto de multiplicidades
da qual é constituída. O caráter homogêneo só se destaca a partir de reivindicações em
comum, que atrai os indivíduos e, consequente, contribui para a união desse
aglomerado. Uma vez que o meio externo influencia a formação de uma nova
organização, o sujeito se dilui. Em uma sociedade capitalista, que cultiva a
singularidade burguesa, ainda que os indivíduos componham a multidão, se reconhecem
enquanto diferentes uns dos outros.
Os meios de comunicação de massa surgem simultaneamente com o processo de
formação das multidões. O cinematógrafo foi criado no final do século XIX e não
demora muito a se tornar um entretenimento de massa. Devido à capacidade das
multidões de pensar através da imagem, as narrativas criadas para a tela do cinema,
posteriormente da televisão, tornam-se inspirações e constroem uma ligação entre ideia,
imagem, ou seja, estabelece uma relação que se dá pela emoção e analogia.

Logo, não são os fatos em si que afetam a imaginação popular, mas o modo
como se apresentam. [...] esses fatos devem produzir uma imagem impactante
que preencha e atormente o espírito. Conhecer a arte de impressionar a
imaginação das multidões é conhecer a arte de governa-las. (LE BON, 2008,
p.70)

Esse fenômeno deixa evidente que, ao passo que a consciência evolui, aqueles que
acessam a psicologia das multidões, tornam-se capazes de governá-las. Por isso, os
meios de comunicação tornaram-se necessários para a compreensão do sujeito atual, sua
percepção, em meio as inúmeras modificações sociais. Mas, é importante ressaltar que
essa compreensão não é determinante e rígida, o espectador não é totalmente alienado,
já que possui escolha e decide sobre ao que quer estar exposto ou não (MARTIN-
BARBERO, 2013).
Antônio Negri e Michael Hardt (2005) vão além das conclusões de Le Bon, pois,
ao longo do século XX, com o avanço da tecnologia, as multidões e os indivíduos que
as compõem vão adquirindo características mais complexas. Na modernidade, devido ao
discurso burguês, os indivíduos buscam discussões acerca da identidade. Além disso,
não só se colocam como sujeitos, tornando-se agentes transformadores da sociedade na
qual estão inseridos, como também afirmam suas singularidades. Vale destacar os
pontos de encontro entre os conceitos de povo e massa, já que ambos compreendem a
relação de poder na qual o subordinado não possui voz e se relacionam com a ideia de
passividade homogênea. No que diz respeito ao conceito de massa, Baudrillard defende
que só é possível compreendê-la inserida em uma sociedade informacional, sendo
assim, pode ser relacionada com a multidão que é própria de um contexto midiático.
Enquanto a massa é silenciosa e os meios de comunicação utiliza essa característica ao
seu favor, uma vez que se objetiva propagar ideias para essas maiorias silenciosas. De
acordo com os estudos de Negri, povo e massa se distinguem do conceito de multidão,
pois, ela tem potência de criação. O conceito de povo compreendida pela perspectiva do
romantismo sofre uma decomposição ao longo do século XIX (MARTIN-BARBERO,
2013). De modo que, a esquerda adota o uso do conceito de classe, por compreendê-lo
como sendo mais coerente, e em contrapartida, a orientação política de direita admite o
uso de classe.
Ao defender o cinema enquanto uma forma de reprodução técnica, Walter
Benjamin (2012) questiona as ressignificações que a arte sofreu após a influência da
constituição da sociedade de massa. Uma vez que o processo industrial influencia
também a produção artística, com o novo fenômeno da reprodutibilidade técnica, toda e
qualquer produção artística pode ser facilmente reproduzida. Sabe-se que a reprodução
manual já ocorria, mas ainda exigia conhecimento acerca da arte que buscava-se
reproduzir, além disso, era caracterizada como falsificação de algo, uma vez que se
valoriza a originalidade das obras. A reprodução técnica é a cópia fiel da obra,
captando-a plenamente, sem excluir os detalhes, não é considerada falsificação e o autor
da obra original deve ser nomeado. Além disso, permite que essas reproduções sejam
utilizadas de maneira que a original impossibilita. Apesar disso, Benjamin ainda
questiona a legitimidade dessa cópia realizada através da reprodução técnica, pois ele
acredita ter uma desvalorização do aqui-e-agora, tempo investido pelo artista, que ele
chama de aura da obra de arte.

A autenticidade de algo é a essência de tudo que é transmissível desde a


origem da sua permanência física até seu testemunho histórico. Já que o
testemunho histórico repousa na permanência, quando a reprodução técnica a
elimina é o próprio testemunho que se esvai. Só se perde isso, mas isso é
justamente a autoridade da coisa. (BENJAMIN, 1993, p.13)

O valor ritualístico da obra de arte realmente se perde, a reprodução técnica é


rápida e detalhista. No entanto, em um contexto de aumento do aglomerado de pessoas,
em uma sociedade na qual esses indivíduos tem cada vez mais acesso ao que é
produzido, a reprodução técnica responde a demanda social. Se antes a arte era restrita
às elites, agora as classes populares também tem acesso, mesmo que seja uma arte
padronizada e facilmente reproduzida. Basta lembrar que, o cinema inicialmente foi
negligenciado pelos intelectuais e pela elite, foi considerado instrumento de
entretenimento das classes sociais mais baixas (FERRO, 2010).
Ao passo que essa linguagem se desenvolve e temos a propagação dos meios de
comunicação, as multidões se tornam mais participativas e a arte também possibilita a
prática política. Esse fenômeno culmina na industrialização também da cultura, que é
um sistema munido de interesses políticos, econômicos, sociais e capitalistas. A
indústria cultural produz bens culturais, tais como livros, teatro, música, filmes,
programas de televisão, com interesse principal no lucro. Embora sejam produções
artísticas, visam atingir os indivíduos que compõem as multidões e, portanto, são
mercadorias munidas de ideologias e estratégias de controle social. No contexto da
indústria cultural tudo que gera lucro é absorvido e se transforma em negócio, uma vez
que o retorno financeiro não é alcançado, a mercadoria deixa de ser produzida. Quando
a arte e os meios de comunicação são explorados como mercadoria podem se tornar
mecanismos de alienação.

CONFIGURAÇÃO DAS MULTIDÕES NO SÉCULO XXI EM MEIO A


AFIRMAÇÃO DA VONTADE DE POTÊNCIA
No século XXI, após todos os avanços e mudanças do século XX, há um processo
complexo nas relações sociais, e, consequentemente, as multidões adquirem
características multifacetadas. Pode-se afirmar que, multidão é um conceito paradoxal e
em hipótese nenhuma pode ser caracterizado enquanto homogêneo. Devido à influência
da globalização, ao tentar inserir as multidões no contexto da democracia, a
complexidade é aumentada, já que é composta por inúmeras singularidades e, portanto,
não pode ser tratada enquanto mera unidade. Sendo assim, na modernidade, a multidão
é compreendida como agente heterogêneo, de modo que a união só se sustenta enquanto
há interesses em comum. Atualmente no século XXI, os indivíduos presentes nas
multidões exercem seu poder de expressão e atuam no plano político, econômico, social
e cultural. Através das possibilidades criadas pelos meios de comunicação de massa,
com o destaque para a internet e redes sociais virtuais, é possível expor críticas,
descontentamentos, aceitação e visão de desses indivíduos que utilizam a ferramenta. Le
Bon (2008) defende que a multidão, por ser apta à ação, é a nova governante do plano
social e isso se mantém, desde o seu surgimento no século XIX.
Antonio Negri diagnosticou que, no contexto no qual está inserido, os conceitos
acerca das multidões estavam se tornando obsoletos. Com a necessidade de criar novas
definições que trouxessem um novo entendimento, ele realiza seus estudos com o
objetivo de dar conta da complexidade da multidão no contexto da modernidade, bem
como suas relações de poder, exploração e opressão. Sob influência da filosofia
deleuziana, Negri (2005) afirma que a multidão se tornou imanência. Ela é constituída
de multiplicidades, cada indivíduo que a compõe é sujeito e, portanto, possui
consciência de suas subjetividades. Devido à consciência desses indivíduos na sua
capacidade de atuação, se une ao aglomerado se for do seu interesse, tem autonomia e
vontade própria. O fenômeno sofreu influência da ideologia burguesa, mas apesar de
Ortega y Gasset (2007) acusar a futilidade do que ele chamou de homem-massa, ainda
assim esse indivíduo se reconhece enquanto agente, sujeito e singular.

O povo é uno. A multidão, em contrapartida, é múltipla. A multidão é


composta de inúmeras diferenças internas que nunca poderão ser reduzidas a
uma unidade ou identidade única – diferentes culturas, raças, étnicas, gêneros
e orientações sexuais; diferentes formas de trabalho; diferentes maneiras de
viver; diferentes visões de mundo; e diferentes desejos. A multidão é uma
multiplicidade de todas essas diferenças singulares. (HARDT; NEGRI, 2005,
p.12)

Na compreensão de Negri, a multidão é um conceito de classe, inserida no


contexto da formação da sociedade produtiva, está sempre em movimento e é explorada.
O conceito de classe, criado por Marx, é uma compreensão da sociedade a partir da luta
de classes sociais e a ideia de classe operária apresenta certas limitações. Em tese, ao
passo que a luta de classes fosse se desenvolvendo, nós evoluiríamos para uma
sociedade ideal – o comunismo. Esse fenômeno só seria possível, se o proletariado
adquirisse consciência de classe e lutassem pelas suas reivindicações, com o objetivo de
tomar o poder político.
Com a formação dos Estados modernos absolutistas, o soberano tinha monopólio
do poder, devido ao pacto social, e a posse da administração da sociedade. No século
XX, as multidões tomam novamente para si esse poder, mas a coletividade é de difícil
organização por conta as inúmeras diferenças da qual ela é composta, que gera pontos
de vistas distintos. Com a dinâmica atual da sociedade e das inúmeras crises que
enfrentamos, a democracia apoia o retorno da união da sociedade civil com o Estado.
Essa necessidade se admite com a existência da exploração no plano político.
Com o surgimento da modernidade, Michel Foucault (2013) afirma que surge o
poder disciplinar, articulado com o modo de produção capitalista. Esse segundo
mecanismo de poder está ligado as instituições, agora a disciplina como uma tecnologia
de poder visa individualizar, exercendo-se sobre o corpo de cada indivíduo. A multidão
na contemporaneidade é composta de indivíduos individualizados, ou seja, são
considerados indivíduos devido à internalização da ação da tecnologia de poder sobre
elas. A partir do momento que se é necessário disciplinar esses corpos, torna-se
necessário confina-los.

O poder disciplinar é com efeito um poder que, em vez de se apropriar e de


retirar, tem como função maior “adestrar”; ou sem dúvida adestrar para
retirar e se apropriar ainda mais e melhor. Ele não amarra as forças para
reduzi-las; procura ligá-las para multiplica-las e utilizá-las num todo. Em vez
de dobrar uniformemente e por massa tudo o que lhe está submetido, separa,
analisa, diferencia, leva seus processos de decomposição até às
singularidades necessárias e suficientes. “Adestra” as multidões confusas,
móveis, inúteis de corpos e forças para uma multiplicidade de elementos
individuais [...]. A disciplina “fabrica” indivíduos; ela é a técnica específica
de um poder que toma os indivíduos ao mesmo tempo como objetos e como
instrumentos de seu exercício. (FOUCAULT, 2013, p. 164)

O terceiro mecanismo de poder, diagnosticado por Michel Foucault, é o biopoder,


a exploração através do político. Negri e Hardt (2005) defendem que, a multiplicidade
da multidão não se resume as diferenças entre indivíduos, mas vai além com a
existência de um devir diferente, ou seja, com a transformação e movimento histórico
em vários níveis, é fato a existência da eterna mudança.

O conceito de multidão é de uma multiplicidade singular, um universal


concreto. O povo constitui um corpo social; a multidão não, porque a
multidão é a carne da vida. Se por um lado opusermos multidão a povo,
devemos também contrastá-la com as massas e a plebe. Massas e plebe são
palavras que têm sido frequentemente empregadas para nomear uma força
social irracional e passiva, violenta e perigosa que, justamente por isto, é
facilmente manipulável. Ao contrário, a multidão constitui um ator social
ativo, uma multiplicidade que age. (NEGRI, 2004, p.17-18)

Negri não concorda com a argumentação da ignorância das multidões, defendida


por Le Bom (2008), tanto que, o autor defende a vontade de potência das multidões.
Apesar de toda a discussão acerca das características das multidões, esses indivíduos
que a compõem possuem consciência e força de atuação social. Nesse entendimento,
possível de ser relacionado com o entendimento de Spinoza sobre o corpo, Negri e
Hardt (2005) compreendem as multidões como agentes e voltadas para a ação. Aqui,
podemos substituir a questão “do que um corpo é capaz?” por “do que inúmeros corpos
atuantes, conscientes de sua força de ação, são capazes quando unidos?” (DELEUZE,
2017).
A presença do Estado é uma técnica que busca ordem, administração e exercício
do poder. Apesar de existir uma consciência individual, todos os indivíduos inseridos
nas multidões estão expostos à sugestão e contágio, como chamara Le Bon (2008),
resultando em ações orientadas pelo instinto. No entanto, é paradoxal, já que
simultaneamente o indivíduo sofre influencias da energia do aglomerado de pessoas,
além de influenciarem os meios de comunicação e, consequentemente, a propaganda
que se embasa na opinião das multidões e norteia essa força coletiva. O cinema, a
televisão e a internet, são instrumentos que facilitam o processo de propagação
ideológica, atingindo uma multidão que não necessariamente está unida fisicamente.
Mesmo com a vontade potência e a capacidade de devir das multidões,
compreendida através dos estudos de Hardt e Negri, a modernidade conta com
indivíduos egocêntricos e com uma singularidade precária. É um fenômeno paradoxal,
pois, o indivíduo possui consciência da sua força de atuação, ao mesmo tempo em sofre
influência da construção de estados emocionais através de imagens e analogias. Essas,
por sua vez, criadas pelo cinema, televisão, propaganda, internet. Ortega y Gasset
(2007) já havia denunciado esse fenômeno do que ele chamou de homem-massa. Um
sujeito que possui uma existência ilusória, padronizada e sem profundidade. A
superficialidade da existência desses indivíduos reflete, inclusive, nas relações sociais e
de poder.

Não é que o homem-massa seja idiota. Ao contrário, o atual é mais rápido,


tem mais capacidade intelectiva que o de qualquer outra época. Mas essa
capacidade não lhe serve para nada; a rigor, a vaga sensação de possuí-la só
serve para ele fechar-se ainda mais em si, e não para usá-la. (ORTEGA Y
GASSET, 2007, p. 103)

De acordo com Ortega y Gasset, esse sujeito experimenta a existência com o foco
em meras experiências externas, sem explorar seu conhecimento crítico. Os indivíduos
na atualidade, apesar de compor as multidões, também são esvaziados de sua própria
história, com a consciência arrogante de que o mundo deva servi-los de alguma forma.
Foca-se em excesso nos direitos e negligencia-se os deveres, sem conseguir concluir
que uma sociedade baseada nessa fórmula está fadada ao fracasso. Ao passo que esses
indivíduos se tornam arrogantes e individualistas, resultam em vidas medíocres,
destituídas de sentido em um homem com a crença de que “viver é não ter limite algum;
é abandonar-se tranquilamente de si mesmo. Praticamente nada é impossível, nada é
perigoso” (ORTEGA Y GASSET, 2007, p. 94).
A constituição das multidões no contexto da democratização da internet e
popularização das redes sociais refletem a forma como as relações sociais são
estabelecidas na atualidade, agravada em um contexto mundial de pandemia de covid-
19, por exemplo. Momento em que há a destruição entre o espaço público e privado,
além da inexistência de um isolamento social, apesar do isolamento físico. Fenômeno
resultante da democratização da internet e das redes sociais, tais como Instagram,
Facebook, Twitter. O homem-massa é inerte, apesar de negar sua condição, mergulhado
em uma bolha de frustração devido à ausência de autoconhecimento, opta por se
insensibilizar com a satisfação imediata que o uso de internet e redes sociais pode
proporcionar. É um sujeito que se esconde atrás de imagens e ilusões a fim de
anestesiar-se, e fica submerso em uma vida que não vale a pena ser vivida. Deseja
conquistar segurança, mas ela é falsa, porque viver é perigoso, a morte pode estar lhe
esperando em qualquer lugar, ela é imprevisível.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Desde o século XIX, quando Gustave Le Bon diagnosticou a formação da


multidão e sua legitimação como novo poder da Idade Moderna, denunciou o
surgimento de uma energia forte e emergente que influenciou a vida social e política no
contexto caótico. Devido essa forte necessidade de comunicação entre seres humanos,
os instrumentos comunicacionais com longo alcance chegam para um grande número de
pessoas simultaneamente, por isso foram caracterizados enquanto instrumento de massa.
Os meios de comunicação, principalmente em períodos de conflito, são explorados para
alcance de interesses políticos, no contexto da guerra era algo confuso para toda
população que estava vivenciando aquelas catástrofes.
Conforme os meios de comunicação de massa evoluíram, desenvolvera sua
linguagem e, portanto, sofreram um aumento na complexidade das relações sociais e
relações de poder. Antonio Negri e Michael Hardt compreendem que os conceitos
existentes para compreensão das multidões não estavam dando conta da complexidade
das dinâmicas, relações e suas características. Diante disso, Negri compreende a
multidão enquanto um conjunto de corpos múltiplos, singulares, que se unem para fazer
valer seus interesses, reivindicações, ela se torna sujeito e produto da prática coletiva. A
multidão agente é uma potência que pode enfraquecer o poder dos soberanos.
Portanto, podemos enfatizar que desde o século XIX existe um aglomerado de
indivíduos que se unem para reivindicar e até hoje possui um determinado poder social
e político. O que muda na constituição das multidões em seu início e a multidão na
modernidade é principalmente a consciência desse poder e resistência, além disso, o
desenvolvimento do pensamento crítico e individualista foi se agravando
gradativamente. Na sociedade atual temos um modelo de meio de comunicação de
massa no qual esses indivíduos são participantes, então exerce também um impacto na
forma como o homem na modernidade atua socialmente. O fenômeno de
democratização da internet não só contribuiu para que o espectador fosse ouvido e
tivesse voz ativa na produção audiovisual, como também contribui para alienar na
tentativa de padronização dos indivíduos.

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