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CLÍNICA TRANSDISCIPLINAR:
HÁ NOVOS SUJEITOS, NOVOS SINTOMAS, UMA NOVA CLÍNICA?

William César Castilho Pereira

O presente artigo tem como objetivo explicitar as bases teóricas das matrizes da sociedade moderna e
contemporânea contextualizando com os novos sintomas e uma nova clínica.

1. INTRODUÇÃO
Entre os séculos XVIII e XIX, e a partir das idéias Iluministas, surgiu a utopia do
Estado Nação. Com a crise de 1929 e o apocalipse nacional-socialista, ele parece ter
atingido seu apogeu e seus limites. Seus pilares foram erguidos a partir da homogeneidade
econômica, da tradição histórica, da unidade lingüística, da solidez das instituições, do
paradigma científico da razão e da subjetividade individual. Pela primeira vez, no mundo
Ocidental, surge a idéia de sujeito pleno, coeso e dono de si mesmo.
Conduzida em nome de valores nacionais, a Segunda Guerra Mundial pôs fim à
realidade do Estado Nação, reduzindo-o a uma ilusão mantida, desde então, com fins
ideológicos ou estritamente políticos. A busca de uma homogeneidade econômica cedeu a
vez à interdependência, ou seja, à submissão às grandes potências econômicas – o lado
perverso da globalização. Paralelamente, a tradição histórica, a unidade lingüística, a
subjetividade individual refundiram-se num denominador comum, ao mesmo tempo mais
amplo e multifacetado.
Em suma, os conjuntos socioculturais, econômicos, políticos e subjetivos,
contemporaneamente, apresentam uma dupla problemática: a da identidade que se
constituiu pela sedimentação histórica e a da identidade produzida por uma conexão de
memórias que escapa à história. Defrontamo-nos com duas dimensões temporais: o tempo
de uma história pautada no simbólico - a metáfora - e o tempo que engloba conjuntos
socioculturais supranacionais, globalizantes, pautados em simulacros - a metonímia.
1
Nas versões foucaultiana e deleuziana 2, vivemos a ambivalência entre a
sociedade disciplinar e a sociedade de controle. A primeira aracteriza-se pela mecânica do

1
FOUCAULT, 1997.
2
DELEUZA, 1992.
2

poder calcada em disciplinas, hábitos, exercícios, saberes, verdades e regras instituídas.


Tempo das instituições fortes, como o Estado, a penitenciária, a escola, a fábrica, o
exército, a igreja e a família que, preconizando a vigilância permanente dos sujeitos por
alguém que sobre eles exerce seu domínio, produz subjetividades e corpos dóceis,
individuais e totalizantes.
O paradigma da sociedade de controle funciona transformando, contínua e
rapidamente, o sujeito em outros moldes, impedindo a identificação dos modelos de
moldagem. É um novo modo de dominação: um poder disperso, distante e interpenetrado
nos interstícios espaciais por supostas ausências de limites. É o reino da automação e das
subjetividades mass-midiáticas. É o império da produção de imagens efêmeras sustentado
pela veiculação instantânea de sistemas de simulacros – a metonímia.

2. SINTOMAS DA CRISE PÓS-MODERNA DO SUJEITO HUMANO


Desde o início dos anos 60, essa nova subjetividade vem irrompendo entre nós,
trazendo um surto de “idéias novas”. Impondo-se como novo padrão de comportamento, de
práticas culturais, bem como de princípios político-econômicos, tais alterações podem ser
observadas na plasticidade da personalidade humana evidenciada na maleabilidade das
aparências estéticas, na forma de experienciar o tempo e o espaço e nos novos padrões de
sociabilidade. Instrumentos que correspondiam a um tempo em que cosmo, átomos e
células eram nossas balizas, hoje em dia, convocam à constituição de uma subjetividade
fluida e derivativa. Um sujeito solto, sem rumo, arrastado pelos neurolépticos, pelo
consumo metonímico, pela imagem narcisista, pelo massacre da mídia, pela velocidade do
tempo urbano e pela - religião espetáculo3.
Tais padrões de sociabilidade e subjetividade4 exacerbam o individualismo,
conduzindo o ser humano a uma relação narcisística consigo mesmo. As pessoas vêem o
mundo como espelho de si e não se interessam por eventos externos a não ser que
promovam o reflexo de sua própria imagem. Impera uma cultura terapêutica, que cultua o
corpo esteticamente disciplinado5
Além disso, registram-se mudanças de estilos arquitetônicos, há um aumento
exacerbado de signos, de estilos, de sistemas de comunicação rápida, de jogos de

3
PEREIRA, 2001.
4
Segundo Guattari, a “produção de subjetividade constitui matéria-prima de toda e qualquer produção. As
forças que administram o capitalismo hoje entendem que a produção de subjetividade talvez seja mais
importante que qualquer outro tipo de produção, mais essencial até que o petróleo e as energias, visto que
produzem esquemas dominantes de percepção do mundo” Cf.GUATTARI, 1986. p.40.
5
LASH, 1983 e 1986; COSTA, 1986 e 1989; GUATTARI & ROLNIK, 1986.
3

linguagem, um crescimento urbano explosivo com forte migração e industrialização


concentradora nas grandes cidades6. Vivemos em uma sociedade complexa onde a
informação passou a ser uma prioridade dramática. O grau de complexidade das relações
vividas pelos diversos agrupamentos sociais inviabiliza o acesso a uma compreensão
ampla e imediata das relações estabelecidas, seja no interior dos grupos sociais, seja entre
eles, dificultando opções de ações que visem à melhoria das condições de vida dos
segmentos populacionais empobrecidos, principalmente nos grandes centros urbanos.
Na rede imaginária e simbólica instalada no meio urbano e individualista,
condensam-se traços estereotipados em torno do novo sujeito: a cidade está sempre em
construção, ali tudo é novidade e sedução. Espaço imenso, casas de vidro e aço que
esbarram no céu, refletem-no, refletem-se e refletem o eu ideal; por ali circulam,
apressadas, pessoas imbuídas de sua própria imagem, maquiadas em excesso, em busca de
requintado gozo.
No locus urbano, a diversidade se manifesta na pluralidade de etnias, idades,
gêneros, idéias, religiões, culturas, modos de vida, profissionalidades, projetos, poderes e
grupos. Há uma recusa à castração simbólica e à diferença sexual. Na cidade, não há
garantia de padrões de comportamentos pré-fixados. A vida urbana exalta a mutação. As
pessoas são seduzidas pelo desejo de uma vida pessoal, livre e autônoma. Escolhem um
modo de vida próprio e isolado, onde a intimidade é cada vez mais privada, o que
atualmente se espelha em um tipo de moradia muito comum, o apart-hotel.
O dinheiro tende a circular mais e as pessoas são estimuladas a comprar e a
consumir compulsiva e exacerbadamente. A vida na cidade é agitada, as pessoas vivem de
novidades. As instituições, sobretudo as ligadas ao capital, produzem uma contínua
sensação de que as coisas mudam. O tempo é veloz e o espaço é condensado e
fragmentado. A paisagem da cidade assusta, seduz e alucina com seu poder
predominantemente virtual. O palco da violência anuncia a ausência de sociabilidade e o
alto grau de anomia e isolamento. A estética impregna os objetos, personaliza e erotiza as
mercadorias; o mundo social se desmaterializa, passando a ser signo, simulacro,
hiperrealidade7. O corpo conquista o território invisível da alma. Daí, o ato. Ele alienado.
Está saturado de imagens. Daí, o peso atribuído às técnicas visuais, à fotografia etc. O
cotidiano é redefinido. A máquina é substituída pela informação, a fábrica pelos shopping

6
JAMESON, 1992.
7
PEREIRA, 2005.
4

centers, o contato pessoal é dramatizado e radicalizado pela intermediação do vídeo8.


Entram em cena os significantes eletrônicos do cinema, da fotografia, da televisão, do
vídeo, dos gravadores, da moda e de novos padrões e estilos da juventude, com todo o
vigor: barulho, imagens, signos e discursos fragmentados que são mixados na tela
cinematográfica que é a cidade programada.
O que fazer nesse locus da cidade? Apenas uma coisa: vender e comprar
mercadorias ou imagens, o que dá no mesmo, pois, inócuos, eles não têm profundidade ou
consistência.
Encontramo-nos frente a uma nova ordem simbólica, caracterizada por um grande
consumo9 de signos e imagens mas, antes de mais nada, encontramo-nos frente a uma
profunda semiotização da vida cotidiana, processos construídos pela nova indústria cultural
transnacionalizada. O sujeito contemporâneo pode ser considerado tanto ator como
consumidor, uma figura emblemática da sociedade do espetáculo que apresenta um
imaginário em constante pane.
São os primeiros fermentos das produções culturais que sinalizam a virada pós-
moderna ou, como diz Jameson em sua ousada tese, o pós-moderno não é senão a lógica
cultural do capitalismo avançado. É a terceira e mais profunda fase do capitalismo, o
capitalismo multinacional, cujas estruturas estão intensamente marcadas pela nova
tecnologia10 Em outra formulação: a produção cultural integrou-se à produção de
mercadoria. “A promoção da publicidade como a arte oficial do capitalismo traz para a arte
estratégias publicitárias e introduz a arte nessas mesmas estratégias”11 Portanto, os grandes
centros industriais, a arquitetura e a produção cultural estão imbricados e vinculados a um
novo estilo de capitalismo. Ou seja, a produção cultural atinge o inconsciente e perverte os
desejos, incitando assim o avanço tecnológico que, por sua vez, desperta novos desejos.
Entra-se numa roda de produção de desejos sem fim.
O capitalismo é um sistema onde o crescimento da produção, para atender a
necessidades e desejos, só faz aumentar a demanda por novas formas de desejo. Pois a
questão básica do capitalismo está em seu permanente estado de insatisfação. O

8
ROUANET, 1993.
9
Segundo Hobsbawm, “por sua própria natureza, a sociedade de consumo contemporânea cada vez mais
obriga as estruturas políticas a se adaptarem a ela. Na verdade, a teoria do livre mercado alega que não há
necessidade da política, pois a soberania do consumidor deve prevalecer sobre todo o resto: o mercado
supostamente deve garantir o máximo de escolhas para os consumidores, permitindo-lhes satisfazer todas as
suas necessidades e desejos por meio dessas escolhas” Cf. HOBSBAWM, 2000.p 118.
10
JAMESON, 1992.
11
HARVEY, 1993. p.23.
5

capitalismo vive da produção da carência, onde a falta é constitutiva do sistema de


produção e consumo. Não se trata da carência de necessidades, que escraviza os pobres,
mas sim da carência no âmbito do desejo, que move compulsivamente o consumidor
ocidental. Seus princípios essenciais repousam na falta de equilíbrio estrutural e no seu
caráter antagonista: vive-se de crise em crise. Seu estado normal consiste em viver
insatisfeito e perigosamente. E a dimensão da satisfação é a insatisfação absoluta, ou seja,
o excesso.
A elite capitalista guia os desejos das massas: o luxo estéril que hoje deleita a
elite, amanhã se torna objeto de desejo para as massas. Esse é o objetivo do dispositivo
cidade vitrine, produtora de uma demanda de cultura de massa: nova estética, mídia de
imagem, shopping centers grandiosos e monumentais - novas catedrais. Puros e vazios
significantes que se traduzem em momentos absolutos de um presente perpétuo - o
presentismo.
A realidade nos é dada nas imagens, na versão midiática, na simulação, de modo
que não sabemos distinguir a realidade da imagem, a verdade da simulação, a certeza da
opinião. A cidade vitrine distorce a percepção do tempo histórico, coletivo,
desestruturando-o, ao se polarizar sobre o presente.
O Big Brother Brasil ou a Casa dos Artistas envolvem essas distorções.
Estimulam fantasias primárias regressivas e fixações infantis, como a cena primária. O
voyeurismo e o exibicionismo atuais se concretizam mediados pelo “mesmo buraco da
fechadura”, tornando público o privado, provocando a desprivatização e remetendo-nos de
volta à barbárie do Pai Primevo de “Totem e tabu”. Quebra-se o pacto social, Édipo é
vencido por Narciso e o sujeito torna-se clonado pela figura de Jocasta.

3. EXPLICAÇÕES DA PÓS-MODERNIDADE
Dentre os padrões de comportamento do ser humano contemporâneo, vários
teóricos têm destacado diferentes temas, circunscritos aos campos subjetivo, social e
político, tais como a crise das matrizes da modernidade e o surgimento de novos padrões
pós-modernos, a falência do Estado do Bem-Estar Social e o colapso do socialismo real, a
dicotomia convencional entre o Estado e a sociedade civil, a democracia e os direitos do
cidadão, as formas crescentes de participação política não - institucionalizada e não –
convencional, a tensão entre a subjetividade de regulação e a de emancipação social, a
crise das clássicas organizações e instituições centralizadoras (Igreja, família, educação,
partidos, sindicatos) e a abertura de novos formatos organizativos, o esgotamento das
6

tradicionais estratégias e táticas de esquerda e as novas alternativas em busca das


transformações sociais, questões que se posicionam fora do campo econômico e com foco
em temas de intensidade política e cultural como o feminino, as etnias, as questões etárias,
religiosas, ecológicas, culturais, pacifistas, antifascistas, de consumidores e de
empreendimentos de autogestão, de cooperativas agrícolas e industriais, de projetos de
atenção à infância e à adolescência, da população de rua e de cooperativas para construção
de moradias.
O advento de tais movimentos instala o debate sobre o colapso, ou, pode-se dizer,
a implosão das tradicionais posições de dependência e de cristalização da autoridade nas
esferas institucionais. Em outras palavras, aqueles movimentos determinaram o
questionamento das funções e responsabilidades do Estado, da educação, da família, dos
sistemas religiosos, da produção estética, do mercado de trabalho, da ciência, da
tecnologia, dos partidos e sindicatos. Os cidadãos politicamente ativos estariam ampliando
seu engajamento na sociedade por meio do envolvimento em grupos e em formas originais
de solidariedade nos denominados “novos movimentos sociais”.
Tais questionamentos têm proporcionado discussões sobre as metanarrativas
presentes em discursos totalizantes sobre a origem do mundo, a problematização da
identidade e das representações, a crise do sujeito, o eclipse da verdade, a desconstrução
dos modernos paradigmas científicos e a desestabilização de infinitas estabilidades. Nunca
em nossa história a vida cotidiana e as sociedades em que ela ocorre foram tão
radicalmente transformadas, em tão pouco tempo, de forma tão difusa e não - localizada,
configurando um quadro político global de mudanças.
Essas “mudanças” ou “novas idéias” têm recebido diversas denominações que
condensam explicações e expressões ideológicas, numa grande variedade de teorias e
pensamentos, oriundos de diferentes campos do saber: da filosofia, das ciências naturais,
sociologia clássica, da estética, da arquitetura, do urbanismo, da lingüística, da psicanálise
etc.
Minado, desde o nascimento, por noções conflitantes e atravessado por sistemas
político-econômicos, projetos teóricos, produções culturais e transformações ideológicas,
esse novo tempo tem sido batizado por inúmeros autores e recebido diversos nomes:
sociedade do espetáculo (Guy Debord), pós-modernidade (Lyotard, Boaventura Santos),
capitalismo tardio (Fredric Jameson), sociedade pós-industrial (Daniel Bell), modernidade
tardia (Anthony Giddens), modernidade contemporânea, pós-burguesa, tecnotrônica,
7

modernidade líquida (Zygmunt Bauman, Alain Touraine e outros). Não há um consenso


teórico-conceitual sobre este novo tempo, há apenas demarcações e concepções distintas.
Em todo momento de transformação cultural, há pontos convergentes e
divergentes, aspectos propositivos e restritivos sobre as demarcações e seus rumos.
Portanto, o que estamos denominando de crise da modernidade e advento da pós-
modenidade? Há pelo menos três posições, que se entrecruzam.

3.1. A pós-modernidade maníaca e eufórica


Essa posição acentua e celebra euforicamente as vitórias e conquistas do
capitalismo mundial. Exalta o progresso, a tecnologia, a ciência, o desenvolvimento e a
riqueza. Em contrapartida, a experiência cotidiana parece demonstrar uma espetacular
redução da vida interior. Quem, hoje em dia, ainda tem alma?
A pós-modernidade maníaca e eufórica é a grande avalista da ideologia neoliberal.
Paira sobre nós uma concepção de homem e de sociedade, que se alojou em nossos tecidos
psíquico-libidinais, sócio-culturais e econômico-políticos, que prima pelo de
individualismo, pela apatia, pelo consumismo, pela ideologia de mercado e pelo
desinteresse por questões sócio-políticas, tendo o culto do corpo como a única fórmula
capaz de proporcionar prazer – é a cultura do narcisismo.
Nenhuma ideologia política é capaz de inflamar as multidões. A sociedade pós-
moderna eufórica já não tem ídolos nem tabus, já não possui qualquer imagem gloriosa de
si própria ou um projeto histórico mobilizador; doravante, é o vazio que nos governa, um
vazio sem o trágico nem o apocalíptico.
Quais são nossos heróis? O ativista social, o artista de talento, o cientista, o sujeito
produtivo, os grupos comunitários? Ou o mais recente apresentador de televisão, que exibe
deformações físicas e morais ou diversões estimuladoras de pulsões parciais, feitas de
encomenda para excitar o moralismo tacanho dos que renunciaram a pensar com as
próprias cabeças?
Parece evidente que essa ideologia arrasta também, por contrabando, excessos e
valores absolutos de totalitarismo, competição, individualismo, cientificismo, isolamento e
desenraizamento. E o desenraizamento, o isolamento e o individualismo neoliberal e da
sociedade de consumo podem causar a destruição da capacidade de organização, de
mobilização política e de produção coletiva12

12
ARENDT, 1998.
8

É notório que, atualmente, assistimos a um refluxo dos movimentos de Educação


Popular e sociais comunitários. A onda de isolamento, o individualismo, o não - pensar, a
desmobilização, a apatia e a descrença criaram corpo na sociedade de consumo
ostentatória. O mundo neoliberal não gosta da revolta nem da crítica, tampouco da
transformação. Ele acredita na gestão da ordem natural das coisas. Solicita-se de cada um
adaptar-se individualmente. O indivíduo neoliberal está mergulhado na mídia instantânea e
rápida, sem memória histórica. Ele é o filho predileto da sociedade de consumo
ostentatória. A diversão consiste em visitas ao shopping center, num consumismo
repetitivo e compulsivo. Os espaços para pensar, criticar, encontrar e amar, arriscar e
transformar são desprezados e/ou ridicularizados. Estamos mergulhados na era do vazio.
De um lado, a demência de um mundo em que as 225 pessoas mais ricas detêm,
segundo o relatório da ONU, a mesma renda anual dos 2,5 bilhões de pessoas mais pobres.
De outro lado, uma fração significativa da população prefere usar formas enlouquecidas e
alienantes, para resistir aos mecanismos de opressão, tais como o alcoolismo, o consumo
de drogas lícitas e ilícitas, o fanatismo religioso, o clientelismo, a dependência e a “razão
cínica”, que seria algo como “eles sabem muito bem o que estão fazendo, mas mesmo
assim o fazem”13. A razão cínica14 não é ingênua, é uma falsa consciência esclarecida, do
tipo: “sei que fulano é corrupto, mas voto nele”; “ele rouba, mas faz”; “quero ganhar
vantagem em tudo”. O cinismo é uma saída individual, sem organização, uma resposta à
cultura vigente, à subversão cínica.

3.2. A pós-modernidade decepcionada e fracassada


Essa posição afirma que a modernidade fracassou e entende que o modelo
paradigmático da ciência moderna e as matrizes expressas na Revolução Francesa (de
liberdade, igualdade e fraternidade) eram falsas e sustentadas por meras falácias. Lyotard15
é um dos participantes dessa concepção. Há também uma decepção com as ideologias e as
utopias revolucionárias.
Portanto, o que está em jogo não é apenas o caráter da dogmatização da ciência,
com sua racionalidade estreita e própria do paradigma positivista. O que está por detrás

13
ZIZEK, l995. p. 41
14
Etimologicamente, a palavra “alienação” vem do vocábulo latino alienatione, de alienare, que significa
“transferir para outrem, alucinar, perturbar”. Essa clivagem leva o indivíduo ou os grupos sociais a um estado
de não - pertencimento, de ausência de controle de si mesmos, de seus direitos fundamentais, levando-os a
um estado de coisificação (reificação) enquanto estrangeiros de si, do outro e do social.
15
LYOTARD, 1989.
9

dessa polêmica familiar, e ao mesmo tempo estranha, é a racionalidade do paradigma da


modernidade.
É visível que esse projeto não vingou e que sua operacionalização trouxe sérios
prejuízos, por exemplo, ao campo político. Desde os anos 30, os bens simbólicos da ordem
burguesa são bens de mercado - “a cultura de massa”, conforme mostrava Adorno. A
transição dos anos 60 e 70 não se deu apenas pela saturação do mercado nos controles
capitalistas. Ocorreu uma cartelização, um grande acordo do monopólio internacional, ou
seja, uma monopolização dos grandes produtores que viabilizam o mercado de bens
simbólicos. Isso altera a relação de consciências individuais e os processos sócio-reais.
A segunda conseqüência foi a substituição das agências tradicionais do saber.
Houve uma substituição ou um deslocamento da funcionalidade das agências. Em outra
formulação, os institutos de pesquisa e estabelecimentos de educação, como as
universidades, não desapareceram, mas foram deslocados por outras instâncias que, menos
que produzir saber, dão apenas visibilidade a ele. O lugar da universidade como
transmissora de cultura, de ensino de profissões, de investigação científica e educação de
novos homens de ciência não somente foi abalado como também interpelado. A bolha de
sabão da verdade estourou, dando início às crises da hegemonia e da legitimidade
institucional.
E o terceiro efeito é a crise dos modelos societários. À crise do marxismo e do
Estado do Bem-Estar Social, juntam-se também os elementos institucionais e os pactos
sociais que se desgastam no pós-guerra, ocasionando uma crise nas matrizes e nos marcos
da sociedade moderna: liberdade, justiça, igualdade, estado de direito, Estado, partidos,
sociedade civil, o público e o privado.
Quanto à controvérsia paradigmática, há que apontar pelo menos duas perigosas
simbioses. José Paulo Netto16, em seu artigo “A controvérsia paradigmática nas ciências
sociais”, chama a atenção para essa trágica fusão. A primeira é a tentativa de incorporar no
mesmo patamar a razão clássica com a racionalidade instrumental. Sem dúvida, essa
simbiose será paga com o alto custo: dos regimes regressivos (vejam-se os movimentos
religiosos fundamentalistas), ou dos regimes totalitários, como o fascismo.
Ora, tanto a razão quanto a cultura são bens em si mesmos, necessários para a vida
entre os seres humanos e para a manutenção da organização da sociedade. O que está em
jogo é a instrumentalização e a manipulação de uma determinada ordem (burguesa) sob o
predomínio do capital.
16
NETO, 1992.
10

3.3. A pós-modernidade crítica


Já a posição da pós-modernidade crítica sugere que o projeto da razão iluminista
exauriu-se, ou seja, que não é mais factível, viável e que esses conceitos fundamentais
deixaram de responder a inúmeras indagações do homem contemporâneo. Nesse
esgotamento, ele realizou valores, mas também os perdeu. Portanto, essa posição não nega
a Modernidade em sua essência e ainda aponta como saída os “novos movimentos sociais”,
fruto da revolução cultural dos anos 60.
Da emergência de inúmeros empreendimentos, surgiram novos atores sociais: as
“minorias”, os marginalizados urbanos, as mulheres, os nativos, os movimentos religiosos
de base, os estudantes, os negros e os povos do Terceiro Mundo em “substituição” à classe
operária, protagonista e revolucionária da era industrial. Em outra formulação: os
movimentos sociais construíram formas específicas de mobilização popular com espaço
próprio, diverso daquele ocupado por partidos e sindicatos.
Os “novos movimentos sociais” enfatizam a importância da determinação da
superestrutura político - jurídica e ideológica em sua relação com a infra-estrutura
econômico. Além disso, supõem que as relações sociais estão sujeitas a causação múltipla,
complexa, articulada e variada, isto é, são sobredeterminadas.

4. MUDANÇA DE ÉPOCA? HÁ NOVOS SUJEITOS, NOVOS SINTOMAS, NOVA


CLÍNICA?

Parece também certo que estamos num período de grande confusão, que não
decorre simplesmente de uma realidade em mutação, mas de uma passagem de época onde
se constata um eclipse do princípio de genealogia, a que se segue uma perda de hegemonia
do simbólico e um declínio da função paterna. Recusa-se a primazia da razão. Negam-se
conceitos, idéias e categorias fundamentais societárias, utopias vivas que movimentaram o
mundo. Podemos afirmar que esta é uma época de transição, de configuração ainda
inconclusa. Talvez por isso, tenham surgido variadas maneiras de denominá-la, fruto, todas
elas, de diversos olhares.
A teoria psicanalítica definiu três categorias clínicas: neurose, psicose e perversão,
e atribuiu ao sujeito analista a função da escuta do sofrimento humano, da dor da alma.
Como pensar a clínica – a partir de uma perspectiva psicanalítica e, simultaneamente,
numa epistemologia emergente e transdisciplinar em um contexto sociocultural?
11

Como pensar a questão da clínica em contextos mais amplos, não fixados no


território sedentário do consultório individual? Em A história do movimento psicanalítico
(1914), em defesa da psicanálise, Freud diz que os conceitos fundamentais dessa ciência
são: inconsciente, recalque, pulsão, transferência e interpretação. Existe psicanálise se, e
somente se, levarmos em conta todos esses conceitos. No entanto, ele se referiu a esses
conceitos e não absolutizou o espaço territorial do consultório individual. Portanto, falo de
uma clínica ampliada que não entende subjetividade como sinônimo de individual. A
subjetividade é múltipla e não restritiva ao individual. Subjetividade também é social. A
clínica também é social. A psicopatologia dos sujeitos se transforma numa psicopatologia
do social.
Jurandir Costa diz que os analistas avaliaram mal a obra sociológica freudiana. Para
ele, a evolução da teoria psicanalítica do individual para o social corresponde a um
processo de crescimento e maturação intelectual de Freud. E completa:
O socius não é o apêndice do indivíduo; o indivíduo é que foi o primeiro passo em
direção ao social. Se o valor da sociologia freudiana foi desprezado é porque houve, até
então, uma apreciação por baixo da qualidade desta produção. No momento em que
Freud sai do limbo e alcança a aprovação da comunidade científica, não há razão para se
continuar achando que o que ele disse sobre o social é inferior ao que ele disse sobre o
individual17.

Na atualidade, diferentes demandas aparecem. Elas surgem apoiadas na angústia da


exacerbada competição pelo saber e pela informação sobre o tempo contemporâneo, sobre
um sujeito cada vez menos protegido, inseguro em relação a seu emprego, com menor
possibilidade de ter um alojamento no outro. O cidadão contemporâneo se reconhece
facilmente no estatuto de sujeito traumatizado e se prende a em classificações econômicas,
relativistas e inconsistentes: síndrome do pânico, personalidade múltipla, transtorno do
estresse, distúrbio pós-traumático, síndrome depressiva, transtorno de toxicomanias etc.
As novas formas de subjetividade contemporânea mostram um descentramento da
autoridade, da responsabilidade do Estado central, da diminuição da autoridade paterna e
uma ânsia imperativa de alcançar um novo reino de felicidade plena. A neurociência e
algumas práticas religiosas se oferecem de forma emergente oferecendo um bem-estar total
na melhor circulação serotonínica ou na esperança de se alcançar o estado de iluminação
religiosa.
Se tomarmos as reflexões dos Iluministas, que afirmavam que à ausência do valor
da Razão só nos resta a barbárie, e o axioma de Lacan “ou a castração ou o pior”, dir-se-ia,

17
COSTA, 1989. p. 60.
12

por exemplo, que há um menor número de sujeitos, hoje em dia, com disponibilidade para
freqüentar o discurso do analista ou da filosofia, prisioneiros que estão no império do gozo
da sociedade de consumo e ostentatória. Dir-se-ia, que há um maior número de sujeitos
com disponibilidade para ouvir o discurso do mestre.
Atualmente, o corpo está superprotegido e abandonado a si mesmo. O que fazer
com o corpo? Cada vez mais, se pede a ele. Cada vez mais, destruímos e mutilamos o
corpo com os tóxicos, os piercings e as tatuagens, com excessivas exigências de
desempenhos físico, sexual, estético, normativos e exatos. Por detrás desse abandono do
corpo, desenha-se a possibilidade de reduzi-lo a um conjunto de órgãos. É o império
exigente do superego gozador. A tirania do prazer. As manifestações somáticas e o poder
de transformar desejos em simulacros ou em pura virtualidade caraterizam cada vez os
sujeitos contemporâneos. ”Sorria, você está sendo filmado”.
Há realmente alguma novidade nos novos sintomas? O que dizer então, dos
vigoréxicos, dos transtornos alimentares (da bulimia e da anorexia), das adicções, das
síndromes do pânico, do TOC e dos transtornos depressivos? São sintomas inventados ou
simplesmente travestidos? Segundo Freud18 um novo sintoma se assemelha, segundo as
palavras do texto do Evangelho de Mateus, “a um odre velho repleto de vinho novo”.
“Nem se coloca vinho novo em velhos recipientes de couro, porque do contrário eles
arrebentam, o vinho escorre e os recipientes se estragam. Pelo contrário, põe-se vinho novo
em recipientes novos e ambos se conservam” (Mateus: 9, 17.).
Estamos perdendo o locus da escuta, o ponto de encontro transferencial amoroso e a
importância do outro como pilares da psicanálise para os milagres eufóricos e rápidos da
utopia biológica e farmacológica. Acreditamos que o Viagra, o Xenical, o Prozac, o Botox
vão produzir um ser humano sexualmente potente, elegantemente magro, imune à dor da
alma e sem rugas. É a institucionalização da razão cínica através da ciência. Com efeito,
“receitados tanto por clínicos gerais quanto pelos especialistas em psicopatologia, os
psicotrópicos têm o efeito de normalizar comportamentos e eliminar os sintomas mais
dolorosos do sofrimento, sem lhes buscar a significação”19.
Em alguns casos, o advento desses remédios deve ser celebrado. Criticamos seu uso
quando, a serviço do falseamento e da criação de uma existência asséptica, em que se ri
quando se está triste, em que se transa sem vontade e em que a preocupação não faz franzir
o cenho. Não existe pílula que acabe com a dor da alma. Na vida contemporânea, há uma
18
FREUD, 1905. p. 59.
19
ROUDINESCO, 2000. p. 21.
13

desvalorização em relação ao amor e, por outro lado, o acento recai extraordinariamente no


mercado do gozo especular, do gozo auditivo e visual, ou seja, no puro gozo fantasioso.
Assim, sinaliza Calligaris:
há poucos traços tão relevantes na subjetividade moderna quanto a paixão pela mudança
e, por conseqüência, a ojeriza da mesmice. O gosto pela novidade é crucial em nossas
vidas. E isso funciona como incentivo essencial para o sistema de produção e consumo
no qual vivemos [...] O cônjuge torna-se a encarnação dos motivos pelos quais
desistimos do novo e da aventura. Ele é o responsável pelo nosso tédio, culpado de toda
estagnação [...] O casal torna-se descartável como esferográfica e o isqueiro. Não
funciona mais? Jogue fora [...]20

Paralelamente, outro grande mercado concorrente se impõe: o religioso. Com


diversificada oferta de escolhas do sagrado por parte do consumidor, cria-se a
mercantilização da fé. No mercado da fé, os concorrentes não apresentam tanta diferença:
católicos carismáticos, evangélicos, pentecostais e outras formas religiosas alienantes estão
em plena consonância. Os dois fenômenos, o da fé e o da TV, estão por sua vez imbricados
realizando um dos maiores fenômenos sociais do Brasil contemporâneo, cujas
conseqüências são ainda imprevisíveis. A religião deixou de representar o espaço da
relação do crente com Deus para se transformar em veículo de ascensão social ou em
promessa de felicidade plena. Tudo isso se resolve com “a inocência dos anjos e dos
elefantinhos”, a estética, a música infantil e as coreografias regressivas que fazem pular
histericamente com dois passinhos para a frente e para trás as massas: o povão, a classe
média e a elite. Trocamos a elaboração analítica que exige a dor da busca e da reflexão por
sessões de entretenimento religiosas, estéticas, regradas com Florais de Bach, com
exercícios corporais, com incenso e outros produtos de perfumaria.
Acreditamos que essa demanda é produzida por meio de dispositivos midiáticos
forjadas pela condição de miséria e exploração imposta à maioria da população, decorrente
da estrutura de relações de produção capitalista e pelo aparelho profissional, incorporando
novos espaços sociais sem implicações éticas.
O adoecimento da alma estaria exprimindo a própria doença da sociedade e,
portanto, exigindo dos analistas re-pensar a clínica na contemporaneidade. Estamos diante
de uma crise de civilização. Isso afeta a clínica psicanalítica, a clientela e o psicanalista?
Se o adoecimento psíquico não é novo, suas configurações atuais são inéditas por se
relacionarem a novos sintomas com diferentes cruzamentos e atravessamentos das matrizes
civilizatórias contemporâneas.

20
CALLIGARIS, 2001. p.E11.
14

A propósito, também podemos tecer algumas indagações do tipo: qual é o lugar que
as práticas psicoterápicas ocupam na cultura? Elas são um bem de cidadania? Um bem de
direito? Entretanto, essas questões não estão claras na rede dos profissionais do psiquismo
humano. O analista, mais que um lugar vazio, é também o que ajuda a civilização por meio
do respeito e da articulação entre o sujeito e o outro e a elaboração da castração simbólica
– a metáfora paterna. As atividades analíticas carecem de um acompanhamento rigoroso
de ensino e pesquisa e, conseqüentemente, não se dirigem às demandas implícitas da
população.
Diante desse quadro, por certo e verdadeiro, não estaríamos escondendo de nós
mesmos sinais de profunda angústia e de impotência frente ao insucesso? A população não
estaria colocando em xeque o nosso arsenal teórico-metodológico-prático? Onde será que
nos perdemos? Que desencontro é esse entre o profissional e sua clientela? O que estamos
falando? E o que a clientela está escutando? E vice-versa?
O problema, pois, não termina, mas começa exatamente aí. E nós, inconformados
com a possibilidade de um fracasso, fugimos. Grande controvérsia! Pois não estamos
exatamente frente aos dados, à realidade dos fatos? Não estaríamos no ponto exato de
retomarmos nossos estudos, análises e pesquisas? Evidentemente que sim. Pois as dúvidas,
as suposições e as indagações só podem ter algum valor científico quando forem
devidamente, confirmadas, pesquisadas e analisadas. E mais, a ciência não é propriedade
dos cientistas. Portanto, o maior interessado nesse assunto deve ser o usuário da saúde
mental, tanto do serviço privado quanto do serviço público. E por isso mesmo, ele também
deve ser chamado a participar, a dar a sua opinião, a interferir no processo e no seu próprio
sistema de saúde. Ou será que, onipotentes, devemos assumir sozinhos o fracasso desses
magros resultados?
Para finalizar, quero alertar sobre o risco de a clínica psicanalítica tornar-se uma
prática cínica em que a alienação do profissional que não se questiona de que lado está
pode dar origem a uma prática perversa. O analista também está convocado a viver a dor
da busca e do pensar sobre sua prática e sua inserção na civilização.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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CALLIGARIS, C.(2001). A paixão pelo novo e o casamento. Folha de São Paulo (São
Paulo), p.E 8-11, 3 março.
COSTA, Jurandir Freire (1986). Violência e psicanálise. Rio e Janeiro: Graal.
15

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Trad.). Petrópolis: Vozes.
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LYOTARD, J. François (1989). A condição pós-moderna. Lisboa: Gradiva.
NETTO, José Paulo (1992). Nota sobre a crise de paradigmas nas ciências sociais. Caderno ABESS
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NETTO, José Paulo (1995). Crise do socialismo e ofensiva neoliberal. São Paulo: Cortez.
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método e prática. Petrópolis/BH: Vozes/PUC Minas/ISTA.
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ZIZEK, Slavoj.(1995). As repúblicas do leste europeu. In: SADER, Emir (Org.). O mundo depois
da queda. Rio de Janeiro: Paz e Terra.

William César Castilho Pereira - Psicólogo Clínico, Professor Adjunto III PUC Minas, do ISTA e ISI.
Analista Institucional. Doutor pela UFRJ. Autor de vários livros e artigos.
Endereço para contato com autor:
Rua Lavras, 935 / 502.
Bairro São Pedro - BELO HORIZONTE – MG – Cep: 30.330-010
Telefax: (031) 3227 7357 Cel: (31) 9313 3323
E-mail: williamccastilho@uol.com.br
16

PARA LER O TEXTO E O GRUPO:


RIZOMA, ÁRVORE E REDE
Maria Antonieta Pereira

Análise dos conceitos de rizoma e hipertexto como teorias de rede. Exame das trocas
teórico-práticas desenvolvidas entre o Programa de Ensino, Pesquisa e Extensão A tela e o
texto (FALE/UFMG), o Núcleo de Psicanálise e Práticas Institucionais (NPPI) e
comunidades da Região Metropolitana de Belo Horizonte. Considerações sobre saber-fazer,
saber narrativo e saber letrado.

Criado em 1998, o Programa de Ensino, Pesquisa e Extensão A tela e o texto


atravessou diferentes conjunturas político-sociais, universitárias e grupais. Desenvolvido, a
princípio, como um pequeno grupo de Iniciação Científica da Faculdade de Letras da
UFMG (FALE/UFMG), o então projeto abrigou pesquisas sobre literatura e cinema do
Brasil e da Argentina, levando seus participantes a congressos e publicações locais e
nacionais. Muito cedo, esse grupo definiu como seu objetivo básico formar leitores críticos
de telas e textos.
Ao se propor como tarefa a formação de leitores, o Programa considerava alguns
dados da realidade contemporânea: de um lado, os baixíssimos níveis de leitura da
21
população em geral , de outro lado, a forte cultura televisiva do país. E embora a ausência
do hábito de leitura possa ser relacionada à presença da televisão nos lares brasileiros, não
podemos atribuir à telinha a total responsabilidade pela tragédia que atinge milhões de
brasileiros. Outros fatores de ordem econômico-social (como o alto preço dos livros) ou
histórica (como a escravidão de negros, índios e seus descendentes) também são
responsáveis pela existência de vastas camadas da população excluídas da cultura letrada.
Se considerarmos outras relações entre as telas (TV, computador, cinema, celular) e
os textos, observaremos que muito antes da televisão o cinema já interferia na formação de
leitores e escritores em Minas Gerais. Conforme Silviano Santiago, a capital mineira dos
anos 50 produziu uma importante geração de intelectuais que transitavam ora pelo cinema,
ora pela literatura, mesclando ambas as formas. Segundo o autor, os jovens escritores de
22
então chegavam “à literatura pelo caminho da adaptação do livro para o cinema” , ao

21
A esse respeito, os dados mais recentes mostram que os brasileiros lêem 1,8 livros por habitante/ano,
enquanto os norte-americanos lêem 5 e os franceses 7. Cf. Plano Nacional do Livro e da Leitura. In:
http://www.cultura.gov.br/politicas/livro_e_ leitura/pnll/ index.Php? p=14350&more=1. Acesso em
10/06/07.
22
SANTIAGO, 2001. p. 79.
17

mesmo tempo em que publicavam revistas literárias como a Complemento. Nos anos 40, já
temos um belo exemplo dessas conexões imagético-textuais, na obra de Carlos Drummond
de Andrade que, em poemas como “Uma hora e mais outra”, declara que “há uma hora
triste” que o leitor não conhece à qual se contrapõe a hora do cinema — “hora vagabunda /
onde se compensa, / rosa em tecnicólor, / a falta de amor, / a falta de amor, / A FALTA DE
AMOR” 23. Além de Santiago e Drummond, outros escritores como Luiz Vilela e Murilo
Rubião terão em suas obras marcas tão acentuadas do cinema que elas serão transformadas
pelos jovens cineastas do século XXI em inspiração e roteiro de obras audiovisuais24. Essa
forte tradição cinematográfica talvez seja um dos fatores mais importantes na geração dos
atuais videomakers mineiros que, produzindo poemas em vídeo, intensificam as trocas
entre literatura, cinema e televisão25. Hoje, a cultura local também sofre o impacto da
revolução global da informática a qual altera todos os padrões de conhecimento e
comportamento que antes orientavam nossa vida cotidiana.

CIBERCULTURA, REDE E TRANSDISCIPLINARIDADE

Segundo Pierre Lévy, o modelo de produção de conhecimento na atualidade é a


simulação26. Sendo um conhecimento orientado pela imaginação, ele utiliza a indução
(tipo de abordagem oriundo da experiência) e a dedução (raciocínio lógico) como suportes
para sua efetivação. Instala-se, assim, um processo de saber-fazer diferente da estrutura
dicotômica metafísica que coloca, de um lado, a teoria e, de outro, a prática. Envolvendo a
formação de habilidades e competências específicas e gerais, afetivas e lógicas, artesanais
e computacionais, esse saber-fazer atua como uma das mais importantes estratégias de
produção de conhecimento da atualidade, ao pressupor atividades compartilhadas,
processos abertos de ensino-aprendizagem, valorização do saber narrativo27 e

23
ANDRADE, 1987. p. 43.
24
A esse respeito, merece destaque a trilogia fílmica de Rafael Conde Françoise, Rua da amargura e A
chuva nos telhados antigos, a partir de contos homônimos de Luiz Vilela.
25
Dentre outros, destacamos a produção de Aggêo Simões, Álvaro de Andrade Garcia, Rodrigo Nascimento
e Sebastião Nunes.
26
LÉVY, 1993.
27
Para Lyotard, o saber propriamente dito é composto pelos jogos de linguagem do saber narrativo que são
responsáveis pela legitimação do saber filosófico-científico por meio dos grandes relatos emancipatórios.
Apresentando modelos positivos e negativos (presença de heróis com suas sagas, seus fracassos e sucessos),
o saber narrativo é produzido em co-autoria por 3 instâncias: 1) por um sujeito que narra; 2) por seu(s)
ouvinte(s); 3) pelo sujeito do qual se fala durante a narração. Essa tradição de co-autoria delega à
posteridade uma “tríplice competência — saber-dizer, saber-ouvir, saber-fazer — em que se exercem as
relações da comunidade consigo mesma e com o que a cerca. O que se transmite com os relatos é o grupo de
regras pragmáticas que constitui o vínculo social”. Cf. LYOTARD, 1998. p. 40.
18

experimentos com base na inteligência coletiva e na inteligência artificial28. Nesse novo


modelo, a lógica tradicional do ensino é questionada porque se favorece a criação de
novas competências por parte dos estudantes, envolvendo a articulação de numerosos
pontos de vista e o trânsito desses indivíduos entre comunidades, escolas, eventos e
pesquisas. Numa perspectiva de não-totalização e não-universalidade, esse saber aberto,
constantemente em processo, pode ser expresso pelos verbos “navegar” ou “surfar” que
identificam o caráter flexível e moldável do conhecimento atual.
Na ausência de um centro fixo, esse saber revela o poder da inteligência coletiva
que é mediada/estimulada por vários fatores: pelo ciberespaço (espaço virtual e, por isso
mesmo, potente), pelos percursos investigativos (e não somente por currículos) e pelas
ações cooperativas (compartilhadas, amigáveis). Essa produção de conhecimento
pressupõe a existência de um pesquisador autônomo, crítico e cooperativo que, sendo
estudante e professor ao mesmo tempo, funciona como um animador da inteligência
coletiva responsável pela gestão de aprendizagens.
Contudo, uma observação mais cuidadosa das redes também mostra que elas
podem assumir características hierárquicas e, às vezes, autoritárias29. Esse diagnóstico se
aplica, por exemplo, às redes da web e às redes de referências bibliográficas. Nesse caso, a
rede estaria atravessada por uma estrutura arborescente típica da organização do saber no
mundo ocidental, que busca “a naturalização do convencional, ou a apresentação da cultura
como se fosse natureza, da invenção como se fosse descoberta, [negando] que os grupos

28
Para Pierre Lévy, a inteligência coletiva é uma prática associada à própria construção da subjetividade e
da humanidade, mas que assume propriedades novas no ciberespaço. Constituída por elementos técnicos,
abstratos e emocionais, a inteligência coletiva funciona como um corpo vivo (que é capaz de se reproduzir,
passando de um indivíduo a outro), ou como um ecossistema de idéias que, literalmente, nutrimos,
reproduzimos ou deixamos que desapareçam.
Já a inteligência artificial é aquela dedicada a buscar “métodos ou dispositivos computacionais que possuam
ou simulem a capacidade humana de ser inteligente.” In:http://pt.wikipedia.org
Uma experiência que demonstra a conjugação de inteligência coletiva com inteligência artificial são as
árvores de conhecimento desenvolvidas na França (Électricité de France, Citroën, Peugeot, universidades,
conjuntos habitacionais, coletividades locais) e o projeto Nectar desenvolvido em 1994/95 nas universidades
européias de Siena (Itália), Limerick (Irlanda), Lancaster (Inglaterra), Genebra (Suíça), Aarhus (Dinamarca).
As árvores de conhecimento são constituídas por um programa de computador que permite a gestão em rede
das competências em escolas, empresas etc., estando fundadas sobre os princípios de auto-organização,
democracia e livre troca de saberes. Elas abandonam uma concepção feudal dos conhecimentos organizados
em disciplinas e dominados pelos grandes conceitos, desenvolvendo um espaço de saber produzido por todos,
co-extensivo à vida das coletividades humanas. A diversidade das competências e dos recursos cognitivos de
qualquer comunidade torna-se visível no espaço de comunicação e negociação entre os atores desse processo.
A árvore de conhecimento é criada por um computador, que gera o sistema e desenha a árvore
automaticamente, na medida em que os participantes produzem as patentes individuais (registro de suas
competências e habilidades). As árvores de conhecimento permitem expressar os saberes de qualquer
comunidade humana. Cf. LÉVY, 2000.
29
BARABASI, 2003.
19

sociais sejam responsáveis pelas classificações, assim sustentando a reprodução cultural e


resistindo a tentativas de inovação.” 30 Por outro lado, a experiência social na produção de
softwares livres, blogs, e-books, chats, e-mails, periódicos virtuais, educação à distância e
outras formas interativas de leitura e produção de textos e saberes mostram que as
construções em rede podem ser democráticas, mesmo quando organizadas de forma
hierárquica.
As redes dessa natureza — simultaneamente democráticas e hierárquicas — podem
fazer avançar o conhecimento e os níveis de leitura dos cidadãos, pois funcionam como
alternativa estruturante de uma nova cultura capaz de transformar o leitor em co-autor e
editor dos textos que ele próprio lê. É importante compreender, nesse caso, a motivação
das pessoas para contribuírem voluntariamente nas redes de geração de conhecimento em
que a figura do autor individual desaparece, dando margem ao surgimento de co-autorias.
Portanto, para se tornar viável, a produção de conhecimento na cibercultura deve se
organizar, muitas vezes, numa estrutura hierárquico-reticular — em que são usadas
categorias de velhas estruturas sociais (a hierarquia, a estrutura arborescente, a definição de
papéis e lugares institucionais) mas introduzindo categorias de possíveis novas estruturas
(a democracia, a conexão hipertextual/rizomática, a instalação de fóruns de
discussão/deliberação). Conjugando hierarquia e democracia, essas novas propostas
devem, necessariamente, adotar uma perspectiva transdisciplinar, já que seu movimento e
sua metamorfose constantes vão provocar a ultrapassagem das fronteiras das disciplinas,
criando verdadeiras redes de produção e circulação dos saberes.
Nesse contexto, o pensamento dicotômico característico da metafísica ocidental vai
cedendo lugar às teorias de rede em suas diferentes formas: princípio da incerteza
(Heisenberg), teoria dos conjuntos (Cantor), teoria dos fractais (Mandelbrot), conceito de
31
rizoma (Deleuze/Guattari) e idéia de hipertexto (Lévy). Tendo nas redes neurais seu
elemento mais conhecido e utilizado, as teorias de rede permitem ampliar a produtividade
do saber contemporâneo, esteja ele sob a forma de ciência ou de arte, de tecnologia ou de
pensamento crítico. Para efeito das reflexões propostas neste artigo, abordaremos aqui

30
BURKE, 2003. p. 82.

31
As redes neurais são ferramentas inventadas pela computação, para trabalhar no processamento de dados, à
semelhança do cérebro humano com sua rede de neurônios. As redes neurais desenvolvem habilidades típicas
do cérebro tais como aprender e tomar decisões com base nessa aprendizagem. Uma rede neural pode ser
interpretada como um esquema de processamento que é capaz de armazenar conhecimento/aprendizagem
(experiência) e disponibilizar esse conhecimento para aplicação.
20

apenas os conceitos de rizoma e hipertexto, considerando que essas ferramentas se


configuram, respectivamente, a partir das imagens do livro32 e do texto, fato que as torna
adequadas para tratar do próprio texto, literário ou não, em suas conexões com a vida
contemporânea e a formação de subjetividades.
Contendo em si mesmo a idéia de texto, o hipertexto pode ser caracterizado por seis
princípios básicos: 1) metamorfose — processo constante de construção e mudança do
discurso em que seus atores negociam os lances de linguagem; 2) heterogeneidade — nas
conexões da rede discursiva encontra-se um material multimodal, multimídia; 3)
multiplicidade e encaixe de escalas — organização fractal das conexões em que, sob cada
uma delas, pode-se encontrar uma nova rede e assim ad infinitum; 4) exterioridade — a
força que move a rede do discurso vem de estímulos exteriores a ela e fora de seu controle;
5) topologia — a rede não está no espaço, ela é o próprio espaço: tudo que se movimenta
por ela deve usá-la ou modificá-la por um processo de contigüidade; 6) mobilidade dos
centros — a rede não tem centro fixo, qualquer conexão pode ser um centro provisório
funcionando simultaneamente a outros33.
Lévy propõe a idéia de hipertexto, a partir do conceito de rizoma, formulado por
Deleuze e Guattari segundo os seguintes princípios: 1 e 2) conexão e heterogeneidade —
qualquer ponto de um rizoma pode ser conectado a outros, sejam eles de natureza
lingüística ou não, o que leva os agenciamentos coletivos de enunciação a atuarem
diretamente nos agenciamentos maquínicos; 3) multiplicidade — numa estrutura
rizomática não há unidade com relação ao sujeito e ao objeto, mas grandezas e dimensões
cuja natureza varia à medida que essa estrutura amplia suas conexões com algo que,
evidentemente, está fora dela; 4) ruptura a-significante — um rizoma pode ser
interrompido em qualquer lugar porque, não sendo composto por uma totalidade
significante, ele poderá sempre recomeçar num ou noutro sentido, estabelecendo um
processo constante de desterritorialização e re-territorialização (numa evolução a-paralela,
não-genealógica e, portanto, transversal); 5 e 6) cartografia e decalcomania — um rizoma
não se organiza como decalque (em que uma estrutura genética e centrada se auto-

32
Embora Deleuze e Guattari tenham retirado o conceito de rizoma da Botânica, eles avançaram em sua
construção utilizando as idéias de livro-raiz (clássico, mimético, com raízes culturais centradas e pivotantes),
livro-radícula (suposto aborto da raiz principal pelo enxerto à mesma de uma infinidade raízes secundárias) e
livro-rizoma (sem eixo central e constituído pelos 6 princípios acima descritos). Cf. DELEUZE,
GUATTARI, 1995. p.15-21.
33
LÉVY, 1993. p. 25.
21

reproduz) mas como mapa (sendo construído de forma aberta, conectável, modulável,
reversível)34.
As relações entre rizoma e hipertexto também são explicitadas no conceito de
heterogênese em que Guattari discute a “heterogeneidade dos componentes que concorrem
para a produção de subjetividade”, a saber: 1) componentes semiológicos significantes
(família, educação, ambiente, religião, arte, esporte); 2) componentes da indústria do
cinema e da mídia em geral; 3) dimensões semiológicas a-significantes (máquinas
informacionais de signos que escapam às axiomáticas lingüísticas)35. Nessa perspectiva, a
subjetividade é “o conjunto das condições que torna possível que instâncias individuais
e/ou coletivas estejam em posição de emergir como território existencial auto-referencial,
36
em adjacência ou em relação de delimitação com uma alteridade ela mesma subjetiva.”
Nesse sentido, toma corpo uma proposta de subjetividade que não está restrita apenas às
idéias de interioridade e introspecção, mas também aos processos históricos, tecnológicos,
culturais etc. que interferem em sua composição. Para Ferreira Neto, a noção de
subjetividade diretamente causada por algum fator determinante cede lugar à idéia de
subjetividade concomitantemente produzida por conexões rizomáticas37. Esse enfoque
mostra também como são desenvolvidos novos modos de subjetivação a partir das
demandas de movimentos sociais emergentes, que produzem discursos ligados a gênero,
etnia, problemas de bairro, Comunidades Eclesiais de Base etc.
Essa subjetividade nascida de uma hetero-gênese sempre foi recriada pela arte em
geral e pela literatura em particular. Na medida em que não estabelece o sentido único (ou
a verdade) como critério de produção de seu discurso, a ficção literária acolhe todos os
dizeres e fazeres passíveis de serem produzidos pelos homens (inclusive os filosóficos,
científicos e tecnológicos). Particularmente, experimentei essa rede quando, em 1994/97,
trabalhei numa pesquisa de doutorado em que utilizei a teoria do hipertexto para analisar a
vertigem narrativa do romance A cidade ausente, do escritor argentino Ricardo Piglia38. A
preocupação estritamente acadêmica — analisar um relato marcado por descentramento,
fragmentação e ritornelos narrativos — foi cedendo lugar à percepção de que esse livro-
rizoma denunciava a presença de estruturas em rede noutros espaços da sociedade e da
produção de saber. Essa percepção foi decisiva para a constituição do Grupo Redes que,

34
DELEUZE, GUATTARI, 1995. p.15-21.
35
GUATTARI, 1992. p.14.
36
GUATTARI, 1992. p. 19. Grifos do autor.
37
FERREIRA NETO, 2004. p. 7.
38
Mais tarde, esse trabalho foi publicado sob o título Ricardo Piglia y sus precursores (Buenos Aires: Ed.
Corregidor, 2000).
22

nos anos 2000/2005, atuou de forma independente ou associada ao Instituto de Estudos


Avançados Transdisciplinares (IEAT) da UFMG. As principais ações do Grupo Redes
foram o desenvolvimento de um projeto-piloto envolvendo as Faculdades de Letras e
Medicina em cursos de Graduação e Pós-Graduação, a formulação de um curso de cinema
transdisciplinar, a participação em eventos científicos nacionais e internacionais e a
publicação de livro e artigos científicos com resultados de pesquisa articulando os
conceitos de rede e transdisciplinaridade no mundo atual. Nessa trajetória, alguns
princípios metodológicos foram experimentados, a saber: 1) fortalecimento de instâncias
de trabalho e decisão caracterizadas pela democracia interna, pela abertura para com os
enfoques oriundos de diferentes disciplinas e pelas negociações de saber e de sentido
capazes de garantir trabalhos compartilhados; 2) criação de fóruns de debate, em salas de
aula e noutros locais de aprendizagem como eventos, congressos etc., por meio dos quais
se avançou no exame do conceito de rede; 3) desenvolvimento da prática de co-autoria, em
diferentes etapas de pesquisa, viabilizando a mobilidade dos centros discursivos das
disciplinas (sexto princípio do hipertexto; primeiro e segundo princípios do rizoma) e,
portanto, a construção reticular do saber39.
O Programa de Ensino, Pesquisa e Extensão A tela e o texto beneficiou-se
amplamente desse processo, seja participando das discussões acadêmicas sob a forma de
teses de doutorado, dissertações de mestrado, monografias e trabalhos de iniciação
científica, seja organizando-se numa estrutura hierárquico-reticular ou promovendo
intervenções transdisciplinares nos âmbitos da universidade e da comunidade por meio de
eventos e projetos na área da formação de leitores40.

TEORIAS DE REDE E GRUPO – ESPAÇOS DO SABER-FAZER

Nos cursos de Pós-Graduação da FALE/UFMG, estabeleceram-se os primeiros


diálogos entre o Núcleo de Psicanálise e Práticas Institucionais e o Programa A tela e o
texto. Os pontos mais importantes dessas convergências localizaram-se nos fundamentos
teóricos dos dois grupos, que se apóiam respectivamente nos conceitos de rizoma e
hipertexto, os quais podem ser indicados genericamente como teorias de rede. Justamente
por causa de sua percepção reticular do mundo, o Núcleo e o Programa desenvolvem

39
Algumas dessas questões foram abordadas em A grande narrativa de Michel Serres (Belo Horizonte:
IEAT/Fumarc, 2007).
40
Dados sobre as atividades do Programa podem ser encontradas no site www.letras.ufmg.br/atelaeotexto.
23

trabalhos de caráter social e pedagógico que investem no desenvolvimento de um saber-


fazer em que teoria e prática estejam articuladas. Tais elementos são reforçados por uma
atuação que acredita na capacidade de aprendizagem dos grupos sociais, especialmente
daqueles que, vivendo na periferia de metrópoles como Belo Horizonte, sofrem todos os
impactos das sociedades globalizadas, todos os temores de populações ainda marcadas pela
cultura camponesa e todas as carências de comunidades excluídas dos bens e serviços da
vida contemporânea.
Ao apostarem na capacidade produtiva das articulações em rede, o Núcleo e o
Programa transformam-se em espaços abertos às experiências de produção de
conhecimento com base em agrupamentos sociais e inteligência coletiva. Nesse caso,
construir conhecimento não é considerado apenas como a manipulação e a transmissão de
um saber letrado, que seja definido por currículos ou espaços institucionalizados e
referendado por diplomas. Pelo contrário, nesse processo entram em jogo formas de
conhecimento que nascem de práticas cotidianas, de informações compartilhadas
oralmente, de crenças e hábitos oriundos da tradição cultural ou do senso comum. Sendo
assim, os participantes desse processo não são um professor que transmite crenças e
instruções a um aluno passivo, mas educadores formados no corpo-a-corpo das lutas
cotidianas para sobreviver nas cidades da Região Metropolitana de Belo Horizonte. Não
havendo mais lugar para aquele que professa uma teoria diante de outro que deve aplicá-la,
os indivíduos envolvidos nesse processo são, ao mesmo tempo, aprendizes e educadores,
num processo de subjetivação auto-gerado, co-construído.
Assim, um universo multifacetado de cidadãos vai se articulando em torno de
projetos que visam ao desenvolvimento de leituras do mundo, de si mesmos, de suas
comunidades e dos textos que circulam na sociedade brasileira e globalizada. Agentes
sociais, líderes comunitários, egressos de hospital psiquiátrico, jovens infratores, agentes
culturais, profissionais da saúde, psicólogos, estudantes de todos os níveis e faixas etárias,
bibliotecários, donas de casa, críticos literários, esquizoanalistas, professores das redes
pública e privada, pesquisadores, psicanalistas, artistas e escritores, todos se transformam,
de uma forma ou de outra, em autores de práticas grupais produtivas e em leitores das
múltiplas formações sociais e intelectuais da atualidade. Isso faz com que se construa um
autêntico saber-fazer com base nos grupos sociais que, embora estejam situados
geograficamente na favela, no bairro de periferia, na clínica, na escola fundamental ou na
universidade, também estão fora desse lugar restrito porque circulam intensamente por
outros espaços geográficos e/ou virtuais, construindo novas formas de viver e de pensar.
24

Os projetos atualmente desenvolvidos pelo Núcleo e pelo Programa, mesmo


quando não realizados em parceria, estão baseados em teorias de rede que lhes permitem
construir espaços de produção de conhecimento e de vida, em vários sentidos. Nesse caso,
não se valoriza apenas a produção filosófica ou científica, mas também o saber narrativo
que, desde sempre, tem ensinando a humanidade a sobreviver em tempos difíceis. Das
parábolas bíblicas aos relatos jornalísticos de hoje, das histórias de ensinamento à conversa
informal com os amigos, da narrativa literária à fala no consultório do psicanalista,
estamos sempre nos contando histórias para nos ensinarmos mutuamente estratégias de luta
contra a perda, o medo, o sofrimento, a morte. A maioria dos conhecimentos que usamos
no dia-a-dia não foi obtida nas páginas dos livros mas nesses relatos orais, às vezes
fragmentados e confusos, elaborados no calor da experimentação concreta das coisas, do
corpo e das relações humanas. Tais produções requerem habilidades e competências que
ultrapassam de muito o simples ato de narrar ou de ouvir uma narrativa porque envolvem
as marcas de toda uma comunidade lingüística (quem conta, embora aumente um ponto,
sempre conta a partir de elementos já dados por outros contadores: maneiras de narrar,
gêneros narrativos, idioma utilizado etc.). Assim, a contação de histórias da vida diária é
sempre um ato de inteligência coletiva: alguém narra para ouvintes que, logo a seguir,
assumirão o papel de narradores da mesma história — que já vão modificando, ao narrá-la
— ou de nova história. Além disso, em cada narrativa, há remissões infindáveis a outros
figurantes do discurso (personagens da ficção, interlocutores da pragmática discursiva,
textos lidos, fatos rememorados etc.) que contribuem, mesmo que involuntariamente, para
a constituição desses relatos.
Essa tradição de co-autoria é responsável pelo trabalho artesanal e cotidiano de
construção de diálogos em que o saber-dizer e o saber-ouvir resultam num saber-fazer
potencialmente infinito. Vista sob esse ângulo, a produção de conhecimento da população
periférica da Região Metropolitana de Belo Horizonte não só está inserida na antiqüíssima
história de toda a humanidade, mas também participa das redes não-formais de ensino,
aprendizagem e investigação da sociedade em que vivemos. Contudo, bem sabemos que
essa mesma população, cuja riqueza cultural e narrativa está na base de nosso cotidiano,
não tem sido chamada a participar da produção do saber crítico-científico gerado pelos
intelectuais do país. Essa exclusão nasce de variadas causas, dentre as quais podemos
destacar certas razões históricas (como a escravidão de índios, africanos e seus
descendentes), políticas (ausência, durante séculos, de políticas públicas de leitura), sociais
(altíssimo índice de analfabetismo) e econômicas (alto preço dos livros e da cultura
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letrada).
Impedida de ser co-proprietária do acervo da cultura letrada para o qual contribui
diuturnamente com o suporte narrativo de suas histórias de aprendizagem da vida
cotidiana, essa população, no entanto, elabora um tipo de saber que ultrapassa as
dicotomias entre teoria e prática, natureza e cultura, imaginação e razão. Autores de um
saber-fazer em rede (não-esfacelado pela abordagem disciplinar nem fragmentado pela
separação entre teoria e prática, já que conectado pelas infinitas redes da própria vida
concreta), os grupos da periferia de Belo Horizonte podem se organizar como espaços do
aprender-ouvir e do aprender-falar que se configuram, simultaneamente, como um saber-
ouvir e um saber-falar. Nesse caso, embora analfabeta e iletrada, essa população produz
um saber tão significativo que se confunde com sua própria capacidade de sobrevivência, a
despeito de todas as adversidades que enfrenta enquanto extrato social excluído dos bens
econômico-culturais da sociedade da escrita. Nesse saber-fazer, o indivíduo é, ao mesmo
tempo, professor e estudante, falado e falante, ouvinte e ouvido, escrito e escrevente – pois
se trata, justamente, de um saber e um fazer inseparáveis, retro-alimentados, teórico-
pragmáticos, artesanais, imanentes, mutuamente implicados. Não há privilégios, exclusões
ou alternâncias entre esse saber e esse fazer mas auto-organizações compartilhadas,
ritornelos narrativos e redes desarmônicas que provocam infinitas produções de sentido.
O caráter pedagógico assumido pelas propostas do Núcleo e do Programa busca,
portanto, desconstruir uma perspectiva em que os intelectuais (professores, pesquisadores,
terapeutas, artistas) são os que detêm um conhecimento válido, em oposição aos iletrados
cujo saber seria desprezado. Numa ecologia de saberes, as atividades compartilhadas por
letrados e não-letrados pode ter resultados muito produtivos, já que, em última instância, o
saber é o conjunto do que todo mundo sabe e não algo abstrato, fora da vida e dos homens.
Nesse sentido, sendo constituídas a partir das condições materiais de existência daqueles
que as produzem, as idéias estão intimamente ligadas à concretude da vida, razão pela qual
não há uma divisão radical entre o pensar e o agir, mas possibilidades de interações
amigáveis. Os projetos co-construídos numa perspectiva de rede, além de gerarem novas
produções de sentido pessoal, grupal e comunitário, também permitem o deslocamento de
seus participantes por variados tipos de conhecimento, tornando porosas as fronteiras das
disciplinas, dos equipamentos culturais, das tradições e dos valores sociais, e permitindo
assim a intercomunicação dos saberes. Na medida em que for evitada a separação entre
reflexão crítica e prática cotidiana, será possível redimensionar os contatos, os
estranhamentos e as convergências entre realidades muito diferentes (e às vezes
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mutuamente destrutivas, se não forem colocadas num projeto cooperativo).


As novas formas de organização da sociedade e do conhecimento que se delineiam
no âmbito do saber letrado e do próprio mercado indicam as ações cooperativas e o
trânsito por distintas habilidades como os componentes básicos das competências exigidas
por um mundo que está atento às diferenças, mesmo que não seja capaz de respeitá-las de
forma adequada. Nesse contexto, o desenvolvimento de projetos que têm, ao mesmo
tempo, contribuições acadêmicas e não-acadêmicas — e que têm como referência a
distribuição eqüitativa da cultura letrada do país — são uma fonte constante de
aprendizado para o Núcleo, o Programa e as comunidades parceiras. Nesse caso, o
desenvolvimento das teorias de rede não mais pressupõe um sujeito cognoscente
individuado — um gênio, um descobridor — mas formações sociais, tecnológicas e
semiológicas, significantes ou a-significantes. Nessa perspectiva, ao invés do sujeito
iluminado, constroem-se processos de subjetivação constituídos por instâncias individuais
e/ou coletivas capazes de apresentarem propriedades emergentes sem, contudo, perderem
sua auto-referencialidade. Pensar a subjetividade como uma construção coletiva é também
considerar que as idéias de rizoma e hipertexto, enquanto teorias de rede, são tecnologias
da inteligência que contribuem para se organizar/interpretar as práticas grupais.
Noutras palavras, todo grupo é uma rede e, por isso, detém uma composição
rizomática, hipertextual e, nesse sentido, democrática, compartilhável. Mas todo grupo é
também uma árvore, com estruturas internas mais ou menos estáveis e diferenciadas. Da
conjugação de ambos — árvore e rizoma, texto e hipertexto — nascem energias potentes e
singulares, condizentes com a própria vida — que também é uma rede em cujas malhas nos
encontramos e nos desencontramos, no processo incessante da construção de sentidos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Janeiro: Record. 4. ed. 1987. p. 43.
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Maria Antonieta Pereira é professora de Teoria da Literatura e Literatura Comparada na Faculdade de Letras da
UFMG. Pós-doutora pela Universidade de B. Aires. Fundadora e Coordenadora Geral do Programa de Ensino,
Pesquisa e Extensão A tela e o texto. Autora de artigos e livros sobre literatura e formação de leitores, dentre os
quais se destacam Formando leitores de telas e textos (Belo Horizonte: FALE/UFMG, 2007) e A grande narrativa
de Michel Serres (Belo Horizonte: IEAT/UFMG, FUMARC, 2007). Co-diretora da Colección Vereda Brasil
(Buenos Aires, Corregidor) e da Coleção Tela e Texto (Belo Horizonte, FALE/UFMG).
(31) 3499-6054 – www.letras.ufmg.br/atelaeotexto

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