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CLÍNICA TRANSDISCIPLINAR:
HÁ NOVOS SUJEITOS, NOVOS SINTOMAS, UMA NOVA CLÍNICA?
O presente artigo tem como objetivo explicitar as bases teóricas das matrizes da sociedade moderna e
contemporânea contextualizando com os novos sintomas e uma nova clínica.
1. INTRODUÇÃO
Entre os séculos XVIII e XIX, e a partir das idéias Iluministas, surgiu a utopia do
Estado Nação. Com a crise de 1929 e o apocalipse nacional-socialista, ele parece ter
atingido seu apogeu e seus limites. Seus pilares foram erguidos a partir da homogeneidade
econômica, da tradição histórica, da unidade lingüística, da solidez das instituições, do
paradigma científico da razão e da subjetividade individual. Pela primeira vez, no mundo
Ocidental, surge a idéia de sujeito pleno, coeso e dono de si mesmo.
Conduzida em nome de valores nacionais, a Segunda Guerra Mundial pôs fim à
realidade do Estado Nação, reduzindo-o a uma ilusão mantida, desde então, com fins
ideológicos ou estritamente políticos. A busca de uma homogeneidade econômica cedeu a
vez à interdependência, ou seja, à submissão às grandes potências econômicas – o lado
perverso da globalização. Paralelamente, a tradição histórica, a unidade lingüística, a
subjetividade individual refundiram-se num denominador comum, ao mesmo tempo mais
amplo e multifacetado.
Em suma, os conjuntos socioculturais, econômicos, políticos e subjetivos,
contemporaneamente, apresentam uma dupla problemática: a da identidade que se
constituiu pela sedimentação histórica e a da identidade produzida por uma conexão de
memórias que escapa à história. Defrontamo-nos com duas dimensões temporais: o tempo
de uma história pautada no simbólico - a metáfora - e o tempo que engloba conjuntos
socioculturais supranacionais, globalizantes, pautados em simulacros - a metonímia.
1
Nas versões foucaultiana e deleuziana 2, vivemos a ambivalência entre a
sociedade disciplinar e a sociedade de controle. A primeira aracteriza-se pela mecânica do
1
FOUCAULT, 1997.
2
DELEUZA, 1992.
2
3
PEREIRA, 2001.
4
Segundo Guattari, a “produção de subjetividade constitui matéria-prima de toda e qualquer produção. As
forças que administram o capitalismo hoje entendem que a produção de subjetividade talvez seja mais
importante que qualquer outro tipo de produção, mais essencial até que o petróleo e as energias, visto que
produzem esquemas dominantes de percepção do mundo” Cf.GUATTARI, 1986. p.40.
5
LASH, 1983 e 1986; COSTA, 1986 e 1989; GUATTARI & ROLNIK, 1986.
3
6
JAMESON, 1992.
7
PEREIRA, 2005.
4
8
ROUANET, 1993.
9
Segundo Hobsbawm, “por sua própria natureza, a sociedade de consumo contemporânea cada vez mais
obriga as estruturas políticas a se adaptarem a ela. Na verdade, a teoria do livre mercado alega que não há
necessidade da política, pois a soberania do consumidor deve prevalecer sobre todo o resto: o mercado
supostamente deve garantir o máximo de escolhas para os consumidores, permitindo-lhes satisfazer todas as
suas necessidades e desejos por meio dessas escolhas” Cf. HOBSBAWM, 2000.p 118.
10
JAMESON, 1992.
11
HARVEY, 1993. p.23.
5
3. EXPLICAÇÕES DA PÓS-MODERNIDADE
Dentre os padrões de comportamento do ser humano contemporâneo, vários
teóricos têm destacado diferentes temas, circunscritos aos campos subjetivo, social e
político, tais como a crise das matrizes da modernidade e o surgimento de novos padrões
pós-modernos, a falência do Estado do Bem-Estar Social e o colapso do socialismo real, a
dicotomia convencional entre o Estado e a sociedade civil, a democracia e os direitos do
cidadão, as formas crescentes de participação política não - institucionalizada e não –
convencional, a tensão entre a subjetividade de regulação e a de emancipação social, a
crise das clássicas organizações e instituições centralizadoras (Igreja, família, educação,
partidos, sindicatos) e a abertura de novos formatos organizativos, o esgotamento das
6
12
ARENDT, 1998.
8
13
ZIZEK, l995. p. 41
14
Etimologicamente, a palavra “alienação” vem do vocábulo latino alienatione, de alienare, que significa
“transferir para outrem, alucinar, perturbar”. Essa clivagem leva o indivíduo ou os grupos sociais a um estado
de não - pertencimento, de ausência de controle de si mesmos, de seus direitos fundamentais, levando-os a
um estado de coisificação (reificação) enquanto estrangeiros de si, do outro e do social.
15
LYOTARD, 1989.
9
Parece também certo que estamos num período de grande confusão, que não
decorre simplesmente de uma realidade em mutação, mas de uma passagem de época onde
se constata um eclipse do princípio de genealogia, a que se segue uma perda de hegemonia
do simbólico e um declínio da função paterna. Recusa-se a primazia da razão. Negam-se
conceitos, idéias e categorias fundamentais societárias, utopias vivas que movimentaram o
mundo. Podemos afirmar que esta é uma época de transição, de configuração ainda
inconclusa. Talvez por isso, tenham surgido variadas maneiras de denominá-la, fruto, todas
elas, de diversos olhares.
A teoria psicanalítica definiu três categorias clínicas: neurose, psicose e perversão,
e atribuiu ao sujeito analista a função da escuta do sofrimento humano, da dor da alma.
Como pensar a clínica – a partir de uma perspectiva psicanalítica e, simultaneamente,
numa epistemologia emergente e transdisciplinar em um contexto sociocultural?
11
17
COSTA, 1989. p. 60.
12
por exemplo, que há um menor número de sujeitos, hoje em dia, com disponibilidade para
freqüentar o discurso do analista ou da filosofia, prisioneiros que estão no império do gozo
da sociedade de consumo e ostentatória. Dir-se-ia, que há um maior número de sujeitos
com disponibilidade para ouvir o discurso do mestre.
Atualmente, o corpo está superprotegido e abandonado a si mesmo. O que fazer
com o corpo? Cada vez mais, se pede a ele. Cada vez mais, destruímos e mutilamos o
corpo com os tóxicos, os piercings e as tatuagens, com excessivas exigências de
desempenhos físico, sexual, estético, normativos e exatos. Por detrás desse abandono do
corpo, desenha-se a possibilidade de reduzi-lo a um conjunto de órgãos. É o império
exigente do superego gozador. A tirania do prazer. As manifestações somáticas e o poder
de transformar desejos em simulacros ou em pura virtualidade caraterizam cada vez os
sujeitos contemporâneos. ”Sorria, você está sendo filmado”.
Há realmente alguma novidade nos novos sintomas? O que dizer então, dos
vigoréxicos, dos transtornos alimentares (da bulimia e da anorexia), das adicções, das
síndromes do pânico, do TOC e dos transtornos depressivos? São sintomas inventados ou
simplesmente travestidos? Segundo Freud18 um novo sintoma se assemelha, segundo as
palavras do texto do Evangelho de Mateus, “a um odre velho repleto de vinho novo”.
“Nem se coloca vinho novo em velhos recipientes de couro, porque do contrário eles
arrebentam, o vinho escorre e os recipientes se estragam. Pelo contrário, põe-se vinho novo
em recipientes novos e ambos se conservam” (Mateus: 9, 17.).
Estamos perdendo o locus da escuta, o ponto de encontro transferencial amoroso e a
importância do outro como pilares da psicanálise para os milagres eufóricos e rápidos da
utopia biológica e farmacológica. Acreditamos que o Viagra, o Xenical, o Prozac, o Botox
vão produzir um ser humano sexualmente potente, elegantemente magro, imune à dor da
alma e sem rugas. É a institucionalização da razão cínica através da ciência. Com efeito,
“receitados tanto por clínicos gerais quanto pelos especialistas em psicopatologia, os
psicotrópicos têm o efeito de normalizar comportamentos e eliminar os sintomas mais
dolorosos do sofrimento, sem lhes buscar a significação”19.
Em alguns casos, o advento desses remédios deve ser celebrado. Criticamos seu uso
quando, a serviço do falseamento e da criação de uma existência asséptica, em que se ri
quando se está triste, em que se transa sem vontade e em que a preocupação não faz franzir
o cenho. Não existe pílula que acabe com a dor da alma. Na vida contemporânea, há uma
18
FREUD, 1905. p. 59.
19
ROUDINESCO, 2000. p. 21.
13
20
CALLIGARIS, 2001. p.E11.
14
A propósito, também podemos tecer algumas indagações do tipo: qual é o lugar que
as práticas psicoterápicas ocupam na cultura? Elas são um bem de cidadania? Um bem de
direito? Entretanto, essas questões não estão claras na rede dos profissionais do psiquismo
humano. O analista, mais que um lugar vazio, é também o que ajuda a civilização por meio
do respeito e da articulação entre o sujeito e o outro e a elaboração da castração simbólica
– a metáfora paterna. As atividades analíticas carecem de um acompanhamento rigoroso
de ensino e pesquisa e, conseqüentemente, não se dirigem às demandas implícitas da
população.
Diante desse quadro, por certo e verdadeiro, não estaríamos escondendo de nós
mesmos sinais de profunda angústia e de impotência frente ao insucesso? A população não
estaria colocando em xeque o nosso arsenal teórico-metodológico-prático? Onde será que
nos perdemos? Que desencontro é esse entre o profissional e sua clientela? O que estamos
falando? E o que a clientela está escutando? E vice-versa?
O problema, pois, não termina, mas começa exatamente aí. E nós, inconformados
com a possibilidade de um fracasso, fugimos. Grande controvérsia! Pois não estamos
exatamente frente aos dados, à realidade dos fatos? Não estaríamos no ponto exato de
retomarmos nossos estudos, análises e pesquisas? Evidentemente que sim. Pois as dúvidas,
as suposições e as indagações só podem ter algum valor científico quando forem
devidamente, confirmadas, pesquisadas e analisadas. E mais, a ciência não é propriedade
dos cientistas. Portanto, o maior interessado nesse assunto deve ser o usuário da saúde
mental, tanto do serviço privado quanto do serviço público. E por isso mesmo, ele também
deve ser chamado a participar, a dar a sua opinião, a interferir no processo e no seu próprio
sistema de saúde. Ou será que, onipotentes, devemos assumir sozinhos o fracasso desses
magros resultados?
Para finalizar, quero alertar sobre o risco de a clínica psicanalítica tornar-se uma
prática cínica em que a alienação do profissional que não se questiona de que lado está
pode dar origem a uma prática perversa. O analista também está convocado a viver a dor
da busca e do pensar sobre sua prática e sua inserção na civilização.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Paulo), p.E 8-11, 3 março.
COSTA, Jurandir Freire (1986). Violência e psicanálise. Rio e Janeiro: Graal.
15
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Petrópolis: Vozes/Abrasco. (Col. Saúde e Realidade,2)
DELEUZE, G. (1992). Post-scriptum: sobre as sociedades de controle. In: DELEUZE.
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Trad.). Petrópolis: Vozes.
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NETTO, José Paulo (1992). Nota sobre a crise de paradigmas nas ciências sociais. Caderno ABESS
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ZIZEK, Slavoj.(1995). As repúblicas do leste europeu. In: SADER, Emir (Org.). O mundo depois
da queda. Rio de Janeiro: Paz e Terra.
William César Castilho Pereira - Psicólogo Clínico, Professor Adjunto III PUC Minas, do ISTA e ISI.
Analista Institucional. Doutor pela UFRJ. Autor de vários livros e artigos.
Endereço para contato com autor:
Rua Lavras, 935 / 502.
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16
Análise dos conceitos de rizoma e hipertexto como teorias de rede. Exame das trocas
teórico-práticas desenvolvidas entre o Programa de Ensino, Pesquisa e Extensão A tela e o
texto (FALE/UFMG), o Núcleo de Psicanálise e Práticas Institucionais (NPPI) e
comunidades da Região Metropolitana de Belo Horizonte. Considerações sobre saber-fazer,
saber narrativo e saber letrado.
21
A esse respeito, os dados mais recentes mostram que os brasileiros lêem 1,8 livros por habitante/ano,
enquanto os norte-americanos lêem 5 e os franceses 7. Cf. Plano Nacional do Livro e da Leitura. In:
http://www.cultura.gov.br/politicas/livro_e_ leitura/pnll/ index.Php? p=14350&more=1. Acesso em
10/06/07.
22
SANTIAGO, 2001. p. 79.
17
mesmo tempo em que publicavam revistas literárias como a Complemento. Nos anos 40, já
temos um belo exemplo dessas conexões imagético-textuais, na obra de Carlos Drummond
de Andrade que, em poemas como “Uma hora e mais outra”, declara que “há uma hora
triste” que o leitor não conhece à qual se contrapõe a hora do cinema — “hora vagabunda /
onde se compensa, / rosa em tecnicólor, / a falta de amor, / a falta de amor, / A FALTA DE
AMOR” 23. Além de Santiago e Drummond, outros escritores como Luiz Vilela e Murilo
Rubião terão em suas obras marcas tão acentuadas do cinema que elas serão transformadas
pelos jovens cineastas do século XXI em inspiração e roteiro de obras audiovisuais24. Essa
forte tradição cinematográfica talvez seja um dos fatores mais importantes na geração dos
atuais videomakers mineiros que, produzindo poemas em vídeo, intensificam as trocas
entre literatura, cinema e televisão25. Hoje, a cultura local também sofre o impacto da
revolução global da informática a qual altera todos os padrões de conhecimento e
comportamento que antes orientavam nossa vida cotidiana.
23
ANDRADE, 1987. p. 43.
24
A esse respeito, merece destaque a trilogia fílmica de Rafael Conde Françoise, Rua da amargura e A
chuva nos telhados antigos, a partir de contos homônimos de Luiz Vilela.
25
Dentre outros, destacamos a produção de Aggêo Simões, Álvaro de Andrade Garcia, Rodrigo Nascimento
e Sebastião Nunes.
26
LÉVY, 1993.
27
Para Lyotard, o saber propriamente dito é composto pelos jogos de linguagem do saber narrativo que são
responsáveis pela legitimação do saber filosófico-científico por meio dos grandes relatos emancipatórios.
Apresentando modelos positivos e negativos (presença de heróis com suas sagas, seus fracassos e sucessos),
o saber narrativo é produzido em co-autoria por 3 instâncias: 1) por um sujeito que narra; 2) por seu(s)
ouvinte(s); 3) pelo sujeito do qual se fala durante a narração. Essa tradição de co-autoria delega à
posteridade uma “tríplice competência — saber-dizer, saber-ouvir, saber-fazer — em que se exercem as
relações da comunidade consigo mesma e com o que a cerca. O que se transmite com os relatos é o grupo de
regras pragmáticas que constitui o vínculo social”. Cf. LYOTARD, 1998. p. 40.
18
28
Para Pierre Lévy, a inteligência coletiva é uma prática associada à própria construção da subjetividade e
da humanidade, mas que assume propriedades novas no ciberespaço. Constituída por elementos técnicos,
abstratos e emocionais, a inteligência coletiva funciona como um corpo vivo (que é capaz de se reproduzir,
passando de um indivíduo a outro), ou como um ecossistema de idéias que, literalmente, nutrimos,
reproduzimos ou deixamos que desapareçam.
Já a inteligência artificial é aquela dedicada a buscar “métodos ou dispositivos computacionais que possuam
ou simulem a capacidade humana de ser inteligente.” In:http://pt.wikipedia.org
Uma experiência que demonstra a conjugação de inteligência coletiva com inteligência artificial são as
árvores de conhecimento desenvolvidas na França (Électricité de France, Citroën, Peugeot, universidades,
conjuntos habitacionais, coletividades locais) e o projeto Nectar desenvolvido em 1994/95 nas universidades
européias de Siena (Itália), Limerick (Irlanda), Lancaster (Inglaterra), Genebra (Suíça), Aarhus (Dinamarca).
As árvores de conhecimento são constituídas por um programa de computador que permite a gestão em rede
das competências em escolas, empresas etc., estando fundadas sobre os princípios de auto-organização,
democracia e livre troca de saberes. Elas abandonam uma concepção feudal dos conhecimentos organizados
em disciplinas e dominados pelos grandes conceitos, desenvolvendo um espaço de saber produzido por todos,
co-extensivo à vida das coletividades humanas. A diversidade das competências e dos recursos cognitivos de
qualquer comunidade torna-se visível no espaço de comunicação e negociação entre os atores desse processo.
A árvore de conhecimento é criada por um computador, que gera o sistema e desenha a árvore
automaticamente, na medida em que os participantes produzem as patentes individuais (registro de suas
competências e habilidades). As árvores de conhecimento permitem expressar os saberes de qualquer
comunidade humana. Cf. LÉVY, 2000.
29
BARABASI, 2003.
19
30
BURKE, 2003. p. 82.
31
As redes neurais são ferramentas inventadas pela computação, para trabalhar no processamento de dados, à
semelhança do cérebro humano com sua rede de neurônios. As redes neurais desenvolvem habilidades típicas
do cérebro tais como aprender e tomar decisões com base nessa aprendizagem. Uma rede neural pode ser
interpretada como um esquema de processamento que é capaz de armazenar conhecimento/aprendizagem
(experiência) e disponibilizar esse conhecimento para aplicação.
20
32
Embora Deleuze e Guattari tenham retirado o conceito de rizoma da Botânica, eles avançaram em sua
construção utilizando as idéias de livro-raiz (clássico, mimético, com raízes culturais centradas e pivotantes),
livro-radícula (suposto aborto da raiz principal pelo enxerto à mesma de uma infinidade raízes secundárias) e
livro-rizoma (sem eixo central e constituído pelos 6 princípios acima descritos). Cf. DELEUZE,
GUATTARI, 1995. p.15-21.
33
LÉVY, 1993. p. 25.
21
reproduz) mas como mapa (sendo construído de forma aberta, conectável, modulável,
reversível)34.
As relações entre rizoma e hipertexto também são explicitadas no conceito de
heterogênese em que Guattari discute a “heterogeneidade dos componentes que concorrem
para a produção de subjetividade”, a saber: 1) componentes semiológicos significantes
(família, educação, ambiente, religião, arte, esporte); 2) componentes da indústria do
cinema e da mídia em geral; 3) dimensões semiológicas a-significantes (máquinas
informacionais de signos que escapam às axiomáticas lingüísticas)35. Nessa perspectiva, a
subjetividade é “o conjunto das condições que torna possível que instâncias individuais
e/ou coletivas estejam em posição de emergir como território existencial auto-referencial,
36
em adjacência ou em relação de delimitação com uma alteridade ela mesma subjetiva.”
Nesse sentido, toma corpo uma proposta de subjetividade que não está restrita apenas às
idéias de interioridade e introspecção, mas também aos processos históricos, tecnológicos,
culturais etc. que interferem em sua composição. Para Ferreira Neto, a noção de
subjetividade diretamente causada por algum fator determinante cede lugar à idéia de
subjetividade concomitantemente produzida por conexões rizomáticas37. Esse enfoque
mostra também como são desenvolvidos novos modos de subjetivação a partir das
demandas de movimentos sociais emergentes, que produzem discursos ligados a gênero,
etnia, problemas de bairro, Comunidades Eclesiais de Base etc.
Essa subjetividade nascida de uma hetero-gênese sempre foi recriada pela arte em
geral e pela literatura em particular. Na medida em que não estabelece o sentido único (ou
a verdade) como critério de produção de seu discurso, a ficção literária acolhe todos os
dizeres e fazeres passíveis de serem produzidos pelos homens (inclusive os filosóficos,
científicos e tecnológicos). Particularmente, experimentei essa rede quando, em 1994/97,
trabalhei numa pesquisa de doutorado em que utilizei a teoria do hipertexto para analisar a
vertigem narrativa do romance A cidade ausente, do escritor argentino Ricardo Piglia38. A
preocupação estritamente acadêmica — analisar um relato marcado por descentramento,
fragmentação e ritornelos narrativos — foi cedendo lugar à percepção de que esse livro-
rizoma denunciava a presença de estruturas em rede noutros espaços da sociedade e da
produção de saber. Essa percepção foi decisiva para a constituição do Grupo Redes que,
34
DELEUZE, GUATTARI, 1995. p.15-21.
35
GUATTARI, 1992. p.14.
36
GUATTARI, 1992. p. 19. Grifos do autor.
37
FERREIRA NETO, 2004. p. 7.
38
Mais tarde, esse trabalho foi publicado sob o título Ricardo Piglia y sus precursores (Buenos Aires: Ed.
Corregidor, 2000).
22
39
Algumas dessas questões foram abordadas em A grande narrativa de Michel Serres (Belo Horizonte:
IEAT/Fumarc, 2007).
40
Dados sobre as atividades do Programa podem ser encontradas no site www.letras.ufmg.br/atelaeotexto.
23
letrada).
Impedida de ser co-proprietária do acervo da cultura letrada para o qual contribui
diuturnamente com o suporte narrativo de suas histórias de aprendizagem da vida
cotidiana, essa população, no entanto, elabora um tipo de saber que ultrapassa as
dicotomias entre teoria e prática, natureza e cultura, imaginação e razão. Autores de um
saber-fazer em rede (não-esfacelado pela abordagem disciplinar nem fragmentado pela
separação entre teoria e prática, já que conectado pelas infinitas redes da própria vida
concreta), os grupos da periferia de Belo Horizonte podem se organizar como espaços do
aprender-ouvir e do aprender-falar que se configuram, simultaneamente, como um saber-
ouvir e um saber-falar. Nesse caso, embora analfabeta e iletrada, essa população produz
um saber tão significativo que se confunde com sua própria capacidade de sobrevivência, a
despeito de todas as adversidades que enfrenta enquanto extrato social excluído dos bens
econômico-culturais da sociedade da escrita. Nesse saber-fazer, o indivíduo é, ao mesmo
tempo, professor e estudante, falado e falante, ouvinte e ouvido, escrito e escrevente – pois
se trata, justamente, de um saber e um fazer inseparáveis, retro-alimentados, teórico-
pragmáticos, artesanais, imanentes, mutuamente implicados. Não há privilégios, exclusões
ou alternâncias entre esse saber e esse fazer mas auto-organizações compartilhadas,
ritornelos narrativos e redes desarmônicas que provocam infinitas produções de sentido.
O caráter pedagógico assumido pelas propostas do Núcleo e do Programa busca,
portanto, desconstruir uma perspectiva em que os intelectuais (professores, pesquisadores,
terapeutas, artistas) são os que detêm um conhecimento válido, em oposição aos iletrados
cujo saber seria desprezado. Numa ecologia de saberes, as atividades compartilhadas por
letrados e não-letrados pode ter resultados muito produtivos, já que, em última instância, o
saber é o conjunto do que todo mundo sabe e não algo abstrato, fora da vida e dos homens.
Nesse sentido, sendo constituídas a partir das condições materiais de existência daqueles
que as produzem, as idéias estão intimamente ligadas à concretude da vida, razão pela qual
não há uma divisão radical entre o pensar e o agir, mas possibilidades de interações
amigáveis. Os projetos co-construídos numa perspectiva de rede, além de gerarem novas
produções de sentido pessoal, grupal e comunitário, também permitem o deslocamento de
seus participantes por variados tipos de conhecimento, tornando porosas as fronteiras das
disciplinas, dos equipamentos culturais, das tradições e dos valores sociais, e permitindo
assim a intercomunicação dos saberes. Na medida em que for evitada a separação entre
reflexão crítica e prática cotidiana, será possível redimensionar os contatos, os
estranhamentos e as convergências entre realidades muito diferentes (e às vezes
26
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Janeiro: Record. 4. ed. 1987. p. 43.
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LYOTARD, Jean-François. A condição pós-moderna. Rio de Janeiro: José Olympio, 1988.
27
Maria Antonieta Pereira é professora de Teoria da Literatura e Literatura Comparada na Faculdade de Letras da
UFMG. Pós-doutora pela Universidade de B. Aires. Fundadora e Coordenadora Geral do Programa de Ensino,
Pesquisa e Extensão A tela e o texto. Autora de artigos e livros sobre literatura e formação de leitores, dentre os
quais se destacam Formando leitores de telas e textos (Belo Horizonte: FALE/UFMG, 2007) e A grande narrativa
de Michel Serres (Belo Horizonte: IEAT/UFMG, FUMARC, 2007). Co-diretora da Colección Vereda Brasil
(Buenos Aires, Corregidor) e da Coleção Tela e Texto (Belo Horizonte, FALE/UFMG).
(31) 3499-6054 – www.letras.ufmg.br/atelaeotexto